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A GUERRA CONTRA AS DROGAS COMO ESTRATÉGIA DE CONTROLE E

GERENCIAMENTO DAS CLASSES BAIXAS SOB A ÉGIDE DO NEOLIBERALISMO.

Autores: Guilherme Gustavo Vasques Mota 1

Maria Nazareth Vasques Mota2

RESUMO

Atualmente, a manutenção da política mundial sobre drogas pautada na “guerra contra as drogas”
traz perplexidade pelo fato deque, passados mais de cinquenta anos de trajetória, esta não alcançou
seus objetivos declarados, que atualmente giram em torno dos Direitos Humanos Internacionais,
trazendo como resultado, justamente, a violação daquilo que supostamente sempre buscou tutelar –
a vida, a saúde e a segurança. O presente artigo pretendeu responder o motivo pelo qual, apesar de
ser um fracasso, do ponto de vista da materialização dos objetivos declarados, se tem a insistência
na mencionada política. Além disso, questionou-se também, se a política de “guerra contra as
drogas” encobre uma finalidade oculta que é o controle das classes baixas. Sob análise, a hipótese
de que apesar de não cumprir suas finalidades jurídicas declaradas,a“guerra contra as drogas”,desde
sempre, tem cumprido objetivos políticos e atualmente estes objetivos ocultos podem ser decifrados
pelo estudo dos diagramas de poder no Neoliberalismo. Como metodologia, as propostas de Michel
Foucault sobre as relações entre Poder e Saber no discurso, a questão da “política da verdade”, da
polivalência tática dos discursos, paradesvelar os discursos, não a partir de uma filosofia que
encerram, mas a partir dos efeitos que garantem no plano da realidade. A partir da noção de Poder
em Foucault, a temática do governo dos homens foi analisada pelo o que denominou
de“Governamentalidade” e “Racionalidades políticas”, o que permitiu decifrar a lógica das
“políticas de drogas” em diferentes momentos no século XIX, a compreensão de seus “inimigos”
desde o surgimento do probicionismo até a consolidação mundialde uma política que declara
“guerra contra as drogas” e desenha a faceta de um novo inimigo e de uma nova forma de
racismo.Pela análise da racionalidade neoliberal,o artigo percorreu temas pertinentes como seu

1
Guilherme Gustavo Vasques Mota – É Mestre em Ciência Política pela PUC/SP. É advogado e Professor
Universitário. Leciona no CIESA as disciplinas Criminologia, Direitos Humanos e Direito Constitucional. É
Coordenador de Trabalho de Curso do Curso de Direito do CIESA. Leciona no Curso de Ciências Militares da
UEA a disciplina Direitos Humanos.
2
Maria Nazareth Vasques Mota – É Mestre em Ciências Penais pela UCAM e Doutora em Ciência Política pela
PUC de São Paulo. É Promotora de Justiça aposentada, Advogada e Professora Doutora da UEA. Coordena o
Mestrado em Direito Ambiental da UEA. É professora do CIESA e da Faculdade Marta Falcão. Leciona as
disciplinas de Direitos Humanos e Criminologia.
surgimento na Alemanha e nos Estados Unidos, a “teoria do capital humano” da Escola de Chicago,
a política criminal de tolerância zero. Ao final,com Nils Christie foi possível constatar que a “guerra
contra as drogas” é utilizada como forma de controle das classes baixas e, nos dias de hoje, a
seleção penal cumpre o papel de ceder a matéria prima necessária para a existência de um indústria
que fatura com a criminalização e traz como reflexo uma nova forma de racismo que passa
despercebida da fiscalização do Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, um
racismo determinado pelo mercado.

Palavras Chave: Política Criminal de Drogas, Criminologia e Neoliberalismo.

ABSTRACT

Currently , the maintenance of world politics , based on the " war on drugs " brings perplexity by
the fact that , after more than fifty years of history, has not achieved its stated objectives , which
currently revolve around Human Rights International , bringing as a result precisely what the
violation allegedly always sought to protect- life , health and safety . This paper aims to answer why
, despite being a failure from the point of view of realization of stated objectives , it is the insistence
on the policy of the drug war . Furthermore , it is also questioned whether the policy of " war on
drugs " masks a hidden purpose that is control of the lower classes . Following analysis , the
hypothesis that despite not fulfilling their legal purposes declared , " The war on drugs " has always
served political purposes and currently these hidden objectives can be deciphered by studying the
diagrams of power in Neoliberalism . As methodology, proposed by Michel Foucault on the
relationship between power and knowledge in the discourse , the question of " politics of truth " ,
the tactical polyvalence of discourses to unveil the speeches, not from a philosophy that close , but
from ensure that the effects in terms of reality. From the notion of power in Foucault , the subject of
the government of men was analyzed by what he termed governmentality and political rationalities
that bring new regimes of tolerance and punishment from new political goals , which allowed
decipher the logic of " political drug " at different times in the nineteenth century , the
understanding of their " enemies " of the emergence of probicionism until the consolidation of a
global policy that declares " war on drugs " and draws the facet of a new enemy and a new form of
racism. For the analysis of neoliberal rationality , the article ran pertinent topics as their emergence
in Germany and the United States , the " human capital theory " of the Chicago School , the
criminal policy of zero tolerance . At the end , with Nils Christie was established that the " War on
drugs " is used as a way to control the lower classes , and these days , the selection criminal plays
the role of giving the raw material necessary for the existence of a industry that bill with the
criminalization and as a result brings a new form of racism that goes unnoticed surveillance System
International Protection of Human Rights , a racism determined by the market .

Key Word: Drugs Policy; Criminology; Neoliberalism

APRESENTAÇÃO

Em Junho de 2013, a Comissão de Narcóticos do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas
e Crime (UNODC) lançou sua versão anual do World DrugsReport(ONU, 2003), o Relatório
Mundial sobre Drogas, sendo esse o primeiro passo para a revisão da Declaração Política e Plano de
Ação para a questão das drogas.

Conforme se verifica das diretrizes esboçadas no documento, a mudança da atual política


criminal mundial sobre Drogas, baseada na Guerra, é uma realidade distante. Em recente entrevista
acerca da direção que tomará a revisão do plano de ação de drogas, YuryFedotov, Diretor executivo
do UNODC, teorizou sobre a importância do combate às drogas, o reconhecimento das convenções
internacionais, enfatizando a importância da proteção dos Direitos Humanos como a saúde, o
fortalecimento da Justiça Criminal na luta contra o problema mundial das drogas (UNODC, 2013).

Os valores declarados dão sinais da possível manutenção da configuração da atual “guerra


contra as drogas” que já dura mais de 50 anos, desde sua proclamação pela ONU,em 1961 e
aperfeiçoada na década de 80, com a Convenção sobre Drogas de 1988.

Apesar da insistência da ONU e de alguns Estados signatários, entre eles, Estados Unidos e
Brasil, a “guerra contra as drogas” mostrou um efeito no máximo modesto, pois tantos anos após a
deflagração dessa política, não se alcançou uma diminuição significativa no uso de quaisquer das
substâncias que proíbe, alcançando no máximo uma estabilidade. O mercado global de drogas, a
despeito de toda a política internacional capitaneada pela ONU, atualmente gira em torno de US$
320 bilhões de dólares enquanto o gasto dos Estados Unidos na manutenção dessa política, nos
últimos 40 anos foi de mais de um trilhão de dólares (UNODC, 2012).

O Brasil é signatário das Convenções sobre drogas da ONU e aberto às políticas dos Estados
Unidos sobre o modelo de política criminal para os países da América Latina. Assim como os
Estados que a integram, o Brasil têm colhido os nocivos efeitos da “guerra contra as drogas”, seja
pelos gastos bilionários do Estado em operações e investimentos em segurança, seja pelas mortes,
de policiais, de pessoas envolvidas com o tráfico, de usuário de drogas, de pessoas que habitam os
bairros mais vulneráveis do ponto de vista social além da superlotação dos presídios.

A manutenção da política da “guerra contra as drogas” pela ONU gera assim perplexidade,
pois seus efeitos mais nocivos têm como principal alvo, justamente os bens declarados que
“juridicamente” legitimam o seu exercício – a vida, a saúde, a proteção ao erário e, nos dias de hoje,
a luta contra o crime organizado internacional – trazendo o engrandecimento absoluto das
populações carcerárias, mortes em massa, gastos públicos exorbitantes com a militarização e
fomento do crime organizado, sendo uma política no mínimo contraditória.

Para Nilo Batista (1998, p. 77-78), no que concerne às políticas criminais, as autoridades
dispõem de “critérios diretivos enunciados ao nível normativo”, mas também, outros critérios: como
“aqueles silenciados ou negados pelo discurso jurídico”, porém legitimados socialmente, trazendo a
constatação de que os objetivos jurídicos declarados muitas vezes mascaram usos políticos ocultos.

Em “Política criminal com derramamento de sangue”, Nilo Batista (1998) destacou a visão de
Clausewitzsobre a “Guerra do ópio”, no sentido de que “a guerra é um instrumento da política”, por
trazer necessariamente a marca da política que a rege.

Na Guerra do Ópio, o discurso da política era incontroverso, “[...] a rainha Vitória nada sabe
sobre droga, mas se preocupa sim, com [...] o confisco do ópio [...] as indenizações por perda de
estoque de ópios confiscados”, não havendo contradição entre discurso declarado e efeito
alcançado, podendo-se notar a “marca da política” (os traços dessa política), identificá-la nos
esboços dessa guerra a favor do comércio de drogas (BATISTA, 1998, p.78).

Contudo, segundo Nilo Batista, quando a guerra é determinada pela proibição das drogas
como é o caso da politica mundial de drogas instaurada há mais de cinquenta anos, será necessário
percorrer o raciocínio inverso para vislumbrar na política, a “marca da guerra”. Considerando o
reconhecimento de Batista (1998), de que a política criminal é uma extensão da “política social”,
para decifrar os objetivos políticos da manutenção da “guerra contra as drogas” será necessário
visualizar as relações de poder a partir da atual tendência da Política nos Estados ocidentais, o
Neoliberalismo3.

Situando a discussão no campo da política enquanto análise das relações de poder, é


importante a contribuição dos estudos de Foucault, que vê o Poder, como algo mais próximo do

3
Em “Nascimento da Biopolítica” Foucault teoriza sobre o Neoliberalismo, não como sistema econômico, mas como
tendência ou lógica política de governo (FOUCAULT, 2008-b).
governo das pessoas do que ao embate ou uma luta como defendeu Nietszche. Na análise da
“governamentalidade” e das racionalidades políticas, sendo estas últimas, tendências de governo
determinantes da natureza de intervenção a ser realizada pela organização política na sociedade, a
partir de objetivos políticos específicos, será possível verificar a assertiva da constatação de Batista
(1998) ao afirmar que as políticas criminais representam a incorporação dos objetivos que se busca
politicamente, como ocorre na política de drogas sob a égide do Neoliberalismo.

Questiona-se assim, o fracasso da atual “guerra contra as drogas”, não a partir do discurso
jurídico, pois este traria a constatação imediata de um fracasso, mas a partir dos efeitos de poder
garantidos no plano da realidade pela análise das relações de poder engendradas pelo
Neoliberalismo que traz novas utilizações da lei e do Direito.

Sob análise, a hipótese de que as políticas proibicionistas, independente do objetivo


declarado, sempre englobaram utilizações políticas, geralmente relacionadas à discriminação racial,
étnicas e sociais, mas a atual “guerra contra as drogas”, voltada principalmente contra os traficantes,
é uma alternativa para controle das classes baixas a partir da orientação do Neoliberalismo enquanto
lógica política e tendência de governo.

Para alcançar tal diagnóstico, se optou pela metodologia de analise das relações entre poder e
saber em Foucault percorrendo necessariamente a discussão da verdade, das políticas da verdade e
da polivalência tática dos discursos, em que se analisa a utilização política de um discurso a partir
de critérios como a “profundida tática” e a “integração estratégica” como será visto em momento
oportuno.

A partir da base metodológica esboçada, se investigará o histórico do proibicionismo a partir


do Século XX, mediante o vislumbre da transição dos discursos legitimadores da proibição e seus
respectivos usos políticos frequentemente contra inimigos criados pelas próprias configurações da
política, além do esboço dos resultados desastrosos que sugerem o fracasso, como ocorre no Brasil.

Neste sentido, partindo da compreensão de que com diferentes objetivos de governo surgem
novas relações de tolerância e punição, será verificado o surgimento do Neoliberalismo na
Alemanha e Estados Unidos, sua concepção e objetivos, a “Teoria do capital humano” desenvolvida
pela Escola de Chicago e o sujeito que se busca produzir no Neoliberalismo. Inversamente é
possível identificar a nova figura do inimigo, aquele que não se adequa aos fins políticos buscados.
Aderindo a algumas conclusões de Nils Christie (1993), se adentrará a discussão da guerra
contra as drogas, como guerra contra aqueles que compõem as denominadas “classes perigosas”,
sendo possível notar a mudança do discurso das drogas na passagem do Estado Social para um
modelo de Estado pautado na orientação da ordem de mercado em que a forma de lidar com as
adversidades é empresarial.

Conforme já disse Nilo Batista (2002), a utilização do sistema punitivo como forma de
neutralizar obstáculos ou entraves ao progresso de determinada lógica política é algo tradicional nas
transições políticas.

No decorrer das transições das políticas de drogas, com discursos declarados e efeitos
desejados, constata-se uma mudança nos critérios de seleção penal, um racismo que passa a ser
orientado não mais pela temática do conflito de raças, ou dos saberes psiquiátricos do Estado, que
influenciaram campos da Criminologia como o “Positivismo”, mas da teorização de economistas
fundadores da “Teoria do capital humano”: o improdutivo –engendrando uma nova forma de
racismo biológico de Estado determinado pelas relações de poder no Neoliberalismo.

Esse atual racismo biológico de Estado que alimenta uma indústria passa despercebido por
todas as convenções da ONU, em meio às balas trocadas e mortes esperadas em um palco de
tolerância universal internacional que defende uma Guerra. Ao final, será possível verificar que o
Brasil adere à política de controle do crime e lota presídios com traficantes, mostrando que aqui, o
empreendimento Neoliberal está a pleno vapor.

1. O FRACASSO DA GUERRA CONTRA AS DROGAS NO MUNDO

Em recente artigo para o Wall Street Journal, Gary Becker (2013), conhecido economista
neoliberal estadunidense da Escola de Chicago, admite o fracasso da “guerra contra as drogas”,
anunciada explicitamente por Nixon na transição da década de 60 para 70. Segundo o autor, a
expectativa naquele momento era de que o tráfico de drogas poderia ser amplamente reduzido em
poucos anos pela polícia. Contudo, passados mais de 40 anos, se percebe sinais de fracasso
associados aos números referentes à perda de vidas, dinheiro e bem-estar dos americanos,
principalmente nos campos da saúde e educação.
Segundo Becker (2013), estima-se o custo total anual da guerra contra as drogas, seja pela
militarização, aumento de contingentes e utilização da Justiça Criminal, em mais ou menos 40
bilhões por ano, além de outros dados de difícil quantificação como a evasão de 25% no Ensino
médio voltada principalmente para a situação dos negros e hispânicos que ao experimentarem
escolas e bairros sem infraestrutura mínima buscam a sorte na venda de drogas.

Atualmente, o total de pessoas encarceradas nos presídios federais e estaduais nos EUA subiu
de 330.000 (1980) para 1,6 milhão (2013). Tal resultado é explicado pelo excesso de condenações,
expansão da justiça criminal e aplicação de penas severas.

Becker (2013), um dos principais idealizadores da política criminal de drogas, em vigência,


pesquisador oriundo da Escola de Chicago teorizou em suas obras que a melhor forma de combater
o tráfico não está no objetivo de erradicar o tráfico, em contraposição aos governantes
representantes do Wellfare, que por vezes, ao derrubar importantes cartéis de drogas, permitiram o
surgimento de organizações maiores que se beneficiavam da exclusividade. A partir das orientações
de Becker, os neoliberais deveriam atuar nas relações de demanda e oferta.

Assim, a estratégia seria intervir no ambiente do tráfico e direcionar a repressão policial para
garantir que o usuário iniciante se deparasse com valores altíssimos para a aquisição da droga, de
forma a convencê-lo a largar o vício. Já para os usuários dependentes, tanto faria o valor da droga,
pois de qualquer forma estes iriam adquiri-la e nesse sentido era melhor que os valores fossem
baixos, pois se não conseguisse pagar cometeria crimes para financiar seu vicio.

Contudo, atualmente, o próprio autor assume que quanto mais os governos intensificam o
combate, mais os preços da droga sobem para compensar os riscos gerando lucros maiores para os
traficantes que conseguem se manter em liberdade.

Tornar ilegais a venda e o consumo de drogas não só aumenta os preços, mas


gera também outros efeitos importantes. Por exemplo, embora alguns
consumidores hesitem em comprar mercadorias ilegais, as drogas podem ser
uma exceção porque o uso delas começa geralmente na adolescência ou na
juventude. Uma tendência à rebeldia pode levá-los a usar e vender drogas
justamente porque essas atividades são ilegais ( BECKER, 2013).

Ou seja, além de todos os problemas mencionados, a guerra contra as drogas pode gerar mais
dependência e aumento do número de viciados.

De forma inesperada, o neoliberal Gary Becker (2013), aponta como caminho a observância a
modelos europeus recentes, como o de Portugal que descriminalizou a o uso de qualquer substância.
Nos EUA já se observa alguns Estados descriminalizando a maconha e obtendo valiosos resultados
como a diminuição da dependência mediante o incremento da possibilidade de tratamentos
institucionais.

No mundo, a “guerra às drogas” apresenta números que a remete ao fracasso e,no Brasil não é
diferente. Embora tais efeitos sejam sentidos em todas as unidades da Federação Brasileira, é no
Rio de Janeiro que a guerra mais vitima. De acordo como o Relatório das milícias4, embora o
número de policiais mortos seja estável, de 138 no ano de 2000 para 144 em 2006, o número de
civis mortos na guerra contra o tráfico pulou de 300 no ano de 1997 para 1330 em 2007. Além das
mortes desnecessárias, a guerra é ineficaz, pois não torna as cidades mais seguras e o número de
apreensão de drogas e de armas é decrescente: entre 2006 e 2007, as apreensões de drogas e armas,
diminuíram respectivamente de 13.312 em 2006 para 11.062 em 2007 (drogas) e 10.793 para
10.178 (armas) (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008).

Assim, apesar dos anos de “batalha”, segundo os dados do Mapa da Violência dos Municípios
Brasileiros, da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e Cultura
(OEI), o Rio de Janeiro ainda se classifica em terceiro lugar na taxa de homicídios, sendo de 50 para
cada 100.000 habitantes, o que se intensifica quando se trata de jovens – 100 para cada 100.000
habitantes.

Segundo Roberta Pedrinha (2008), no Rio de Janeiro, os principais alvos da repressão são os
traficantes nas favelas, com índices de morte de aproximadamente 1.000 pessoas por ano, sendo que
desde a democratização já morreram mais de 30.000 pessoas e só em 2007 mais de 1.260 homens.
Conforme mostrou a autora, o Relatório preliminar da ONU sobre a política de drogas em 2008,
considerou a política “contraproducente”, e no Rio de Janeiro é mais grave, pois baseada em ações
de extermínio e criminalização da pobreza. Além dos casos de morte de civis e policiais, o
traficante costuma ser o principal alvo da guerra.

O processo de demonização do tráfico de drogas fortaleceu os sistemas de


controle social, aprofundando seu caráter genocida. O número de mortos na
“guerra do tráfico” está em todas as bancas. A violência policial é
imediatamente legitimada se a vítima é um suposto traficante. (BATISTA,
2003, p. 135)

4
Relatório das Milícias. Disponível em http://br.boell.org/downloads/Relatorio_Milicias_completo.pdf. Acesso
em 10 de Julho de 2013.
2. METODOLOGIA DE ANÁLISE DOS DISCURSOS E RELAÇÕES DE PODER EM
FOUCAULT.

Foucault, em “Verdades e Formas Jurídicas”, analisou o tema da verdade e constatou que


esta não pode ser entendida como uma “derivação natural”, não sendo, portanto, algo instintivo,
mas pelo contrário, uma “luta, um combate, o resultado do combate” (FOUCAULT, 1999, p. 17).

Sobre a discussão da verdade, Foucault parte da visão de Nietzsche para conceber a tarefa da
filosofia, como exercício do “diagnóstico” e não como busca da “verdade intertemporal”, como os
filósofos desde sempre proclamaram. O trabalho de “diagnóstico” é concebido na forma de criar
uma história da verdade, indicando que existem interesses implícitos e inerentes à criação do
verdadeiro e do falso.

Não seria suficiente, assim, realizar a história da política mundial de drogas e analisar a
condução a uma determinada verdade, que seria a necessidade de proteção de direitos humanos e da
sociedade, mas sim, buscar uma história dessa declarada verdade.

Na busca pela “ história da verdade” sobre o proibicionismo das drogas, não será verificado
assim, o quão próximo um determinado discurso se aproximou da verdade, mas sim, a verdade
como uma determinada relação que discurso e o poder mantêm “consigo mesmo”.questionando se
essa relação “[...] não é, ou não tem ela mesma uma história” (FOUCAULT, 2000-b, 233.).

A partir dessa inteligibilidade, Foucault busca “uma história da verdade”, a “vontade de


verdade” ou as “políticas da verdade” sendo estas integrantes de uma história dos “jogos de
verdade”. Neste sentido, entende-se verdade como o “[...] conjunto dos procedimentos que
permitem pronunciar a cada instante e, a cada um, enunciados que serão considerados como
verdadeiros” (Idem).

Sobre as “histórias da verdade”, Foucault (1999) distingue uma “história interna da verdade”,
que se atualiza a partir de seus próprios princípios de regulação e que é desenvolvida pela ciência,
como é o caso do discurso dos Direitos Humanos declarado pela ONU. Por outro lado, uma
“história externa da verdade”, em que se determina “regras do jogo” emitidas pelos diversos
governos, subjetividades, tipos de saberes e domínios, como se vê, por exemplo, na utilização do
proibicionismo na política de drogas.

A partir de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não será “[...] nem arbitrária
nem modificável, nem institucional, nem violenta”. Tal separação estará assim em outra escala, em
que se coloca a questão de saber a partir de determinado discurso, a vontade de verdade imposta
durante o decorrer da história, sua forma mais geral para que a partir daí possa ser concebido um
sistema de exclusão que será sempre caracterizado por ser histórico modificável e
institucionalmente coercitivo e constrangedor (FOUCAULT, 2004, p. 3).

Pela relação entre poder, saber e verdade, se vislumbra o caráter histórico e modificável do
“verdadeiro” e do “falso”. Neste sentido, Foucault (2004),menciona a época dos poetas gregos do
século VI a.C, o discurso verdadeiro era pronunciado por quem tinha o direito de fazê-lo, segundo o
ritual requerido, o que despertava respeito e terror, pronunciava a justiça, profetizava o futuro,
dizendo o que ia se passar, mas já contribuindo para a sua realização.

Um século mais tarde, na verdade dos discursos, entre Hesíodo e Platão, se estabeleceu uma
determinada divisão que separou o discurso verdadeiro e o discurso falso; dali em diante, o discurso
verdadeiro não é mais o discurso “precioso” e “desejável”, porque não é mais o discurso ligado ao
exercício de poder. O discurso verdadeiro deixava para trás o ato ritualizado (FOUCAULT, 2004).

Uma questão se mostra relevante: se o discurso da verdade não está mais, desde os gregos,
relacionado ao desejo ou ao exercício do poder, o que há na vontade de verdade que não o desejo e
o poder.

O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e


liberta do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e
a vontade de verdade, essa que se impõe há bastante tempo, é tal que a
verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la (FOUCAULT, 2004, p.
20-21).

Pela discussão da “politica da verdade” de Foucault (2004) é possível situar a verdade como
criação deste mundo em virtude de múltiplas correções, possuindo efeitos regrados de poder ao se
generalizar em cada sociedade. Está relacionada ao discurso que essa sociedade aceita e faz
funcionar como verdadeiros a partir de mecanismo que permitem a distinção do verdadeiro e do
falso, a relação entre os discursos e os procedimentos que sugerem a possibilidade de obtenção da
verdade.

Assim, a análise dos discursos não deve ser orientada a partir da vontade de verdade ou do
pressuposto moral que se defende, mas sim, a partir da polivalência tática dos discursos5.

5
Pela regra da polivalência tática dos discursos Foucault traz um método que consiste em analisar os discursos,
não como simples tela de projeção dos mecanismos de poder, pois é “[...] justamente no discurso que vem a se
articular poder e saber. E por essa mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos
descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar um
mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso admitido
Segundo considera essa metodologia, a multiplicidade de elementos discursivos desempenha
diferentes papeis a partir de diferentes estratégias. Neste sentido, Foucault (1977) apresenta como
critérios da utilização, a “profundidade tática” e a “integração estratégica”.

Pelo critério da “profundidade tática”, se busca saber quais os efeitos recíprocos de poder e
saber, os discursos buscam garantir e a partir da “integração estratégica”,se questiona que
conjunturas, quais relações de força, fazem com que determinado discurso seja necessário em
determinado momento.

Partindo já mencionada premissa de Nilo Batista, de que quando a guerra é determinada pela
proibição das drogas como é o caso da atual “politica mundial” de drogas, instaurada há mais de
cinquenta anos, será necessário buscar na política, a “marca da guerra”. Neste sentido, para decifrar
o que determina o perfil do proibicionismo atual será necessário visualizar as relações de poder a
partir da atual tendência da Política nos Estados ocidentais, o Neoliberalismo.

Na discussão sobre o Poder, Foucault (2005), passou a vê-lo como a possibilidade de


governar as pessoas. Neste sentido, o poder consistiria em termos gerais em “[...] conduzir condutas
e dispor de sua probabilidade, induzindo-as, separando-as, facilitando-as, dificultando-as,
limitando-as, impedindo-as”. O modo de visualização do poder não deve ser visto a partir da
violência e da luta, nem do contrato, “nem guerreiro, nem jurídico”, mas sim a partir do governo
(FOUCAULT, 2005, p.243).

Contudo, conforme mostra em “Território, governo e população” o governo da cidade não é o


governo dos homens. O primeiro é relatado desde a antiguidade com os gregos e relaciona-se ao
ofício do político, que busca a unidade mediante a construção de um ordenamento jurídico que
possa funcionar inclusive em sua ausência. Esse poder que Foucault (2008 c) denomina de “poder
político” é bem conhecido das literaturas jurídicas, que o vêem na criação de leis, e no caso das
drogas, pode se dizer que esse poder é manifesto e intensamente exercido principalmente a partir do
pós-guerra com o surgimento da ONU.

Já o governo das pessoas é tema que tem seus primeiros relatos oriundos da cultura do povo
hebreu e posteriormente, sem muito destaque, na Grécia e no período socrático. Está relacionado ao
ofício do pastore segundo Foucault, trata-se da:

dominante e o dominado, mas ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que poder entrar
em estratégias diferentes” (FOUCAULT, 1977, p. 95).
[...] benevolência individualizada que se dá no acompanhamento da
vida,na qual a responsabilidade do pastor não se refere somente à vida
de suas ovelhas, mas de todas as suas ações; a relação entre o pastor e
suas ovelhas é individual e total; aquele deve conhecer o que se passa
nos aspectos na vida de suas ovelhas, até, nos campos íntimos; o
pastor deve conduzir suas ovelhas no cotidiano, neste mundo, o que
denominou de poder pastoral.

Na visão de Platão não havia assim relação entre o papel desempenhado pelo político e pelo
pastor, uma vez que este último era reconhecido por realizar atividades que acompanhavam a vida
das pessoas, como o médico, o agricultor, o ginasta, o pedagogo. Compartilhavam assim, de um
objetivo único, o de manter a vida dos indivíduos, acompanhando-os, vigiando-os, velando por eles,
de forma individualizada.

Já a atividade do político nos textos gregos é comparável a de um “timoneiro da nave” que


“persegue a honra”, exercendo seu poder sobre um território, enquanto que o pastor nos textos do
judaico-cristianismo, não exerce seu poder sobre um território, mas sobre um rebanho, devendo dar
a vida por suas ovelhas (Idem, p. 360).

Dessa forma, Foucault chama atenção para o seguinte detalhe: a atuação do político não tem
como objeto direto, os homens, mas sim, a cidade:

[...] em toda série de metáforas em que o rei é assimilado a um


timoneiro e a cidade a um navio, o que convém notar é que o que é
governado, o que nessa metáfora é designado como objeto do
governo, é própria cidade, que é como um navio entre os escolhos,
como um navio em meio a uma tempestade, um navio que é obrigado
a bordejar para evitar os piratas, os inimigos, um navio que tem de ser
levado a bom porto. O objeto de governo, aquilo sobre o que recai o
ato de governar não são os indivíduos. O capitão de um navio não
governa os marujos, governa o navio. É da mesma maneira que o rei
governa a cidade, mas não os homens da cidade [...] os homens, de seu
lado, só são governados indiretamente, na medida em que também
estão embarcados no navio (Foucault, 2008-c, p. 165).
Assim, nas sociedades gregas e romanas não se verificou o exercício do “governo dos
homens” pelas práticas do pastorado, não havendo qualquer atividade que tivesse como meta
conduzir os indivíduos ao longo da vida. Neste sentido constata-se que foi no Oriente que o tema do
poder pastoral adquiriu amplitude, principalmente na sociedade hebraica.

No Ocidente, foi no período do cristianismo é que se introduziram as práticas pastorais,


restauradas pela Igreja que as utilizou na forma de “práticas de si”, a partir da proposta de obtenção
da verdade pela conversão no discurso cristão, pelo deciframento de códigos secretos da
consciência, pela confissão, como forma de vigilância (Foucault, 2008-c).

Finalmente, é importante ressaltar que apesar da importância do exercício tanto do “poder


político” quanto do “poder pastoral”, no estabelecimento dos Estados modernos, na temática do
“governo dos homens”, não se discute sobre o poder político, pois o “governar” não é fazer uma lei,
ou administrar um território, como mostra Foucault, mas sim, governar os homens:

[...] esse pastorado, esse poder pastoral não pode ser assimilado ou
confundido com os procedimentos utilizados para submeter os homens
a uma lei ou a um soberano. Tampouco pode ser assimilado aos
métodos empregados para formar crianças, os adolescentes e os
jovens. Tampouco pode ser assimilado às receitas que são utilizadas
para convencer os homens, persuadi-los ou arrastá-los contra a
vontade deles. Em suma, o pastorado não se confunde nem com uma
política, nem como pedagogia, nem com uma retórica. É uma coisa
inteiramente diferente. É uma arte de governar os homens (Foucault,
2008-c, p. 219).

No processo que conduziu à formação dos Estados modernos, o pastorado cristão constituiu
um prelúdio do que denomina governamentalidade, por constituir “[...] um sujeito cujos méritos são
identificados de maneira analítica, de um sujeito que é sujeitado em redes contínuas de obediência,
de um sujeito que é sujeitado pela extração da verdade que lhe é imposta” (Idem).

Considerando que as Racionalidades políticas fornecem informações sobre os paradigmas de


exercício de poder pelo governo, a seguir se se analisará o início do proibicionismo no século XX e
sua relação com as diferentes racionalidades políticas trabalhadas por Foucault, que são, a “razão de
Estado”, O “Liberalismo” e o “Neoliberalismo” até os dias atuais da chamada “guerra contra as
drogas”.
3. O SURGIMENTO DO PROIBICIONISMO NO SÉCULO XX: DISCURSOS
JURÍDICOS E EFEITOS POLÍTICOS NA CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA
MUNDIAL DE DROGAS A PARTIR DA ÓTICA DAS RACIONALIDADES
POLÍTICAS.

Buscando analisar os discursos declarados na trajetória internacional do proibicionismo das


drogas até o presente momento, em que se tem a chamada “guerra contra as drogas” ou “política de
drogas internacional”, o início certamente pode ser indicado nos encontros decorrentes da Guerra do
Ópio no início do Século XX.

A“Guerra do Ópio” permite a visualização da utilização das drogas orientada por fins
econômicos mercantilistas na Inglaterra. Tais medidas, à época, buscaram neutralizar interesses
econômicos e políticos, como forma de combater a sucesso da China na balança comercial em
relação aquele país, resultando na reinserção do Opio na China, ao passoque aInglaterra lucrava
reativando o vício popular em ópio, forçando a China a abrir sua economia.

Como se percebe, não havia qualquer contradição entre objetivos declarados e efeitos
políticos desejados, pois o determinante da utilização dessa política de drogas foi simplesmente o
objetivo da potência Inglesa de enriquecer com a venda do ópio. O perfil dessa política pode ser
decifrado pela análise de um estilo de racionalidade política que até o século XVII foi predominante
na Europa Ocidental, a “razão de Estado”, que se manifestou como consideração política para todas
as questões públicas, tendo como objetivo a preservação, a expansão e a “felicidade” do Estado.

Nesse período de ascensão do Estado moderno, o objetivo era expandir a presença estatal para
possibilitar dominação, não só por pelo alargamento de suas instituições por todo o território, mas
também, na fiscalização de fronteiras e principalmente, para toda a vida das pessoas. Como se
percebe, nesse período, não havia preocupação com saúde, vida ou direitos humanos, pois a
tendência política não era a da exploração da força de trabalho do homem, mas do enriquecimento
pelo acúmulo de riquezas, algo que se relacionava à lógica do mercantilismo, o que justificou
inclusive as grandes navegações.

Contudo, essa “arte de governar” não conseguiu alcançar amplitude e consistência antes do
século XVIII, se manifestando limitada no interior da forma da monarquia administrativa. Tal
racionalidade política permaneceu assim, “prisioneira de suas estruturas” por algumas razões
históricas que bloquearam essa arte de governar como a “guerra dos trinta anos”, com devastações e
ruínas, grandes revoltas rurais e urbanas, além do problema do exercício da soberania ao mesmo
tempo como questão teórica e princípio de organização política (Foucault, 2008-c).

Outro motivo para as dificuldades da racionalidade em questão foi o bloqueio do


mercantilismo pela estrutura institucional e mental da soberania, uma vez que “[...] ao mesmo
tempo que se acomodava, não podia deixar de integrar essa espécie de modelo completo que era o
da família”. A visão da economia estava exclusivamente voltada ao governo pela gente da casa de
um lado e de outro, o Estado e o soberano (Foucault, 2008-c, p. 137).

A grande mudança na política de drogas se dá com o final da Guerra do Opio, em que surge
um ação inversa: o proibicionismo e com ele um tendência de ocultar os objetivos políticos, e
manifestar objetivos jurídicos.

Nessa esteira, destacam-se os principais marcos dos proibicionismos, anteriores à


internacionalização do sistema da ONU,a partir da Convenção de Haia de 1912.Nos Estados
Unidos, foi possível identificar o surgimento do discurso do proibicionismo a partir de uma mistura
de puritanismo e xenofobia, seja inicialmente pelas propagandas oficiais que relacionou o uso de
drogas às pessoas das classes menos privilegiadas, como negros, mexicanose chineses, política
iniciada com o Harrisson Anti-NarcoticAct de 1914, que definiu qualquer viciado como delinqüente
(RODRIGUES, 2003).

Na análise das relações de poder, a transição do perfil da política de drogas pode ser explicada
por uma transição das Racionalidades políticas que se dá com o surgimento do Liberalismo. As
consequências desta mudança de modelo de governo, que agora terá como objetivo a população
são: 1) o desaparecimento do modelo familiar; 2) a população como objetivo último do governo; 3)
o surgimento de um saber próprio do governo que se denomina “economia política”.

O surgimento do saber sobre a população representará a passagem da dominação social, das


estruturas da soberania a um sistema de técnicas, amplamente desenvolvido no século XVIII, e que
se dará em torno da população.

Assim, rapidamente, percebe-se que mudam, também, as relações de tolerância, intolerância e


forma de punir e prescrever o castigo, em que o corpo passa a ser objeto de proteção da política,
saindo-se dos espetáculos de suplício, que passam a ser vistos como intoleráveis num regime de
tolerância criado por iluministas e que busca se desvincular da religião e aproximar-se da razão pela
moral, fazendo surgir garantias de direito e a punição humanitária, como modelo do tolerável.

O objetivo do Liberalismo de contemplar a população, considerada não mais como soma de


pessoas, como se verifica nas teorias jurídicas, mas como entidade biológica, é governá-la para
produzir riquezas e bens. “[...] O descobrimento da população é, ao mesmo tempo em que o
descobrimento do indivíduo é o outro núcleo tecnológico em torno do qual, os procedimentos
políticos do ocidente, se transformaram” (Idem, p. 114).

Ao mesmo tempo em que se dá o que Foucault denomina de descobrimento da população,


surgem novas tecnologias que guardam coerência com novos objetivos, que eram a população, mas
a população produtiva e, portanto, viva, o que é perceptível nas teorias do direito e teoria política
dos séculos XVII e XVIII em que se buscou retirar do soberano, o poder de “fazer morrer ou deixar
viver” que se substitui pelo poder de “fazer viver e deixar morrer” (Foucault, 1999-b, p. 214-215).

Com a “economia política”, percebeu-se no Liberalismo que seria mais lucrativo investir na
vida da população, mas não como se fez na “razão de Estado”, em que se buscou com isso o
enriquecimento e expansão do próprio Estado, mas de usar tal conhecimento, para governar a
população em um determinado sentido, em que possibilitasse utilizá-la para produzir e criar
riquezas.

No Liberalismo, se reativou uma nova formatação do poder pastoral, que a partir do século
XVIII, se apresentará como “biopoder”, que faz intervenções no corpo, individualmente
considerado, e também enquanto população e que irá determinar novos regimes de tolerância e
punição.
Considerando o Liberalismo, enquanto racionalidade política, o poder pastoral foi
desempenhado mediante a sociedade disciplinar que buscava criar sujeitos úteis e dóceis pela
normalização, sendo o inimigo será tudo aquilo que se relaciona ao anormal e à desordem. Cabe
informar que o tratamento do inimigo se deu mediante os saberes que buscavam atestar a
normalidade como a medicina e a psiquiatria.

Em uma sociedade da normalização buscava-se remediar o anormal pelo retorno do “monstro


humano”. Conforme explica Foucault, a referência para a caracterização desse monstro é o campo
“jurídico-biológico”, pois, o que “[...] define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua
existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma
violação das leis da natureza” sendo em uma forma de “registro duplo” que é entendido como
exceção.

Dessa forma, o que liga o monstro humano à figura do anormal do século XIX é justamente o
fato de tratar-se de indivíduos incorrigíveis, e que requerem intervenções especificas. As
intervenções normalizadoras devem ser relacionadas às técnicas familiares corriqueiras de
educação, disciplina e correção consolidadas com a expansão do carcerário. Situando-se no eixo da
incorrigibilidade, o anormal no século XIX será um monstro “empalidecido e banalizado”,
incorrigível, sendo o centro de toda aparelhagem social.

A "degeneração" foi formulada em 1857 por Morel em uma época em que “[...] Baitlarger,
Griesinger, Luys propõem modelos neurológicos do comportamento anormal [...] época em que
Lucas percorre o domínio da hereditariedade patológica” (Foucault 2002, p. 401).

Neste sentido, o conceito de degeneração surge como a peça fundamental da medicalização


do anormal:“[...] o degenerado, digamos, numa palavra, que é o anormal mitologicamente - ou, se
preferirem, cientificamente - medicalizado. Ora, a partir daí, e a partir justamente da constituição
desse personagem do degenerado reposto na árvore da hereditariedade e portador de um estado que
não é um estado de doença, mas um estado de anomalia” Foucault (2002, p. 401).

A construção do degenerado permitirá além de uma recuperação do poder psiquiátrico a


possibilidade de “[...] referir qualquer desvio, anomalia, retardo a um estado de degeneração”,
possibilitando uma “ingerência indefinida nos comportamentos humanos” (Idem).

Nesse momento foi a “ciência biológica, anatômica, psicológica, psiquiátrica” que permitiu o
que poderia ser “validado e o que deve ser desqualificado ”. Segundo Foucault, a combinação do
“impossível e o proibido” foi utilizada por Lombroso para lidar com os delinquentes, tendência
adotada no final do século XIX e início do século XX. O anormal passa a ser entendido como um
monstro cotidiano, um monstro banalizado, que representa os indivíduos a serem corrigidos.

No Brasil, no período 1870-1920, houve a adoção de um discurso “evolucionista” para


elaborar uma nova “política da verdade” sobre as diferença internas na população, discurso oriundo
da “política imperialista européia”, que exercia um racismo fundado nas diferenças sociais que
incluía principalmente negros, africanos, trabalhadores, escravos e escravos recém libertos que
passaram a ser vistos como “classes perigosas” efeito similar ao alcançado pelo mencionado
Harrisson Anti-NarcoticAct.

Com o fim da escravidão, será o tema da “mestiçagem” como condição de inferioridade que
vai substituir a inferioridade que era atribuída ao escravo negro, fazendo com que a relação entre
“raça” e “crime” ganhe nova dimensão. No relato dos antropólogos, a mistura das raças era vista
como um empecilho ao progresso social. Segundo Foucault (1999-b, p. 73), trata-se de um aspecto
do racismo:
Todos os discursos biológico-racistas sobre a degeneração, mas
também todas as instituições que, no interior do corpo social, vão
fazer o discurso da luta das raças funcionar como principio de
eliminação, de segregação e, finalmente, de normalização da
sociedade [...] Não será: ‘Temos de nos defender contra a sociedade’,
mas, ‘Temos de defender a sociedade contra todos os perigos
biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, a que estamos, sem
querer, constituindo’. Nesse momento, a temática racista não vai mais
parecer ser o instrumento de luta de um grupo social contra um outro,
mas vai servir de estratégia global dos conservadorismos sociais.

Assim, isso pode ser vislumbrado no exemplo da utilização do modelo sanitário. Tanto no
Brasil quanto nos EUA, a utilização desse modelo rendeu efeitos diferentes motivados por
necessidades políticas internas, contudo, pode-se dizer que a utilização do discurso como forma de
atuação política, decorreu da racionalidade política liberal. Segundo os diagramas de poder do
Liberalismo, a solução para as classes indesejadas percorreu necessariamente essa relação médico-
tribunal.

A criação do Harrisson Anti-NarcoticActrepresentou uma sediciosa estratégia de


criminalização desse contingente de pessoas indesejadas, sendo possível verificar a verdade
defendida pelos meios institucionais, - de que as drogas são hábitos inferiores de pessoas migrantes
oriundos países subdesenvolvidos - como uma relação que discurso e poder mantem entre si, uma
vez que esses migrantes representavam obstáculos, mas como se pode observar, o discurso passa a
ser a proteção de valores importantes como a ordem e saúde pública.

Neste primeiro exemplo, segundo Rosa del Olmo (1975, p. 52) as condenações por drogas nos
Estados Unidos aumentaram em 10 vezes entre 1916 e 1926, período satisfatório para as
autoridades que viabilizaram a retirada de pessoas, em sua maioria migrantes e pobres, pessoas
marginalizadas dos grandes centros, remetendo-os às periferias mostrando que a utilização da
política de drogas permitia o “governo de pessoas”.

Antes do surgimento da ONU, é possível anotar ainda a 2ª Convenção sobre o ópio de 1925
que determinou aos governos nacionais a implementação de medidas proibicionistas visando a
produção, a fabricação e mesmo o consumo, com a criação do sistema de monitoramento de drogas
em nível internacional e as Convenções de Genebra de 1931 e 1936 direcionadas principalmente
àcontenção do tráfico de drogas inaugurando o que Nilo Batista (1998) e Salo de Carvalho (1997)
denominaram de “controle internacional das Drogas” mediante o sanitarismo que perdurou até a
década de 60.
Com o surgimento da ONU,inicia-seuma segunda ordem mundial que encerrou o sistema
westfaliano de Estados. A nova ordem mundial, trazida pela ONU, no pós-guerra em 1945
representou as condições necessárias para a consolidação de algo como uma política mundial de
drogas, uma vez que o novo sistema estava pautado na relativização das soberanias externas e
internas e na cooperação internacional por parte dos Estados signatários (PIOVESAN, 2013).

É a partir de 1961 que a ONU cria um novo paradigma do controle de drogas mundial com a
criação da Convenção Única sobre Entorpecentes responsável pela tradicional base do
“proibicionismo internacional” – proibição tanto do uso como da venda – determinando a aplicação
de tipificação e de penas para o simples uso não medicinal trazendo pela primeira vez a articulação
entre proibição de substância e tutela de Direitos Humanos(ZAFFARONI; PIERANGELLI, 1997).

Buscou-se tornar a questão da droga, uma pauta não só internacional, mas também, universal
a partir de monitoramentos de órgãos de controle internacional que buscaram além do controle, a
erradicação da droga em países onde esta era culturalmente aceita, como na Bolívia e Colômbia
manifestando a difusão internacional de uma “política de verdade sobre as drogas” pautadas no
proibicionismo, demarcando o fim do “sanitarismo” e o início de uma política que representou o
início da “guerra contra as drogas” mas que nesse momento tinha como maior determinante , a
“guerra fria”

Em 1972, um protocolo à Convenção de 1961 foi responsável por incluir na proibição, os


psicotrópicos. Assim, entraram para o controle o conjunto dos opiáceos, os narcóticos e os
psicotrópicos como o LSD, que inicialmente foram livremente comercializados nos Estados Unidos.
Além desse alargamento na atuação foi ativada internacionalmente a Justiça terapêutica que deveria
ser implementada pelos Estados (PEDRINHA, 2008).

No período da ditadura militar, já estava em vigência a Convenção Única sobre


Entorpecentes, regulamentada pelo Decreto 54.216/64. No período, o STF, passa a criminalizar o
usuário com pena idêntica àquela imposta ao fornecedor representando a adoção do Brasil ao
modelo internacional de proibicionismo sobre as drogas (IDEM).

Com a instalação do regime militar no Brasil, mais uma vez o controle das drogas passa a ser
instrumento de combate aos contestadores do sistema. Surge a política da Segurança nacional que
coloca tal valor acima de qualquer outro e usa a justificativa de combate as drogas como forma de
capturar insurgentes.

Neste período, foi evidente a visão seletiva do sistema, o que pode ser constatado não
raciocínio deNilo Batista, abaixo:
A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a
diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos, ao
lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas, permite-nos
afirmar que o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle
específico daquela parcela da juventude considerada perigosa. (BATISTA,
2003, p. 135)

Com o fim da década de 60 ocorreu uma nova transição, e com Nixon, em 1969, que se
retorna ao proibicionismo mais rigorosos com as drogas, o que permitiu um ambiente fértil para que
Reagan, na década de 80. Ao passo em que passa a prevalecer as lideranças neoliberais, o
consumidor deixa de ostentar a condição de doente e passa a ser considerado cliente de um sistema
que lucra com o comércio ilegal de drogas. Nesse sentido, o consumidor passa a ser visto mais uma
vez como delinquente que apóia o crime organizado.

A partir do governo do neoconservador Ronald Reagan é que se intensifica a “Guerra contra


as drogas” com uma maior preocupação das autoridades com a internacionalização da produção,
distribuição e uso de drogas e utilização de operações internacionais, seja nos países considerados
produtores como Colômbia e Bolívia ou com os países que são rota como o Brasil.

Nesse momento, a utilização desse tipo de política de drogas permite o controle dos
imigrantes, o controle de países da América Latina, a partir da justificativa do combate as drogas.
Uma nova imposição surge: os países desenvolvidos passam a ser os maiores consumidores e, os
países em desenvolvimento com pouco desenvolvimento passam a ser mal vistos e suscetíveis a
intervenções justificadas pela defesa dos Direitos Humanos.

A guerra contra as drogas declarada explicitamente a partir de Nixon e continuada por Reagan é
posteriormente desenvolvida pelo George W. Bush na década de 90 e, início do Século XXI pelo
Bush filho.

A consolidação mundial da política estadunidense de guerra contra as drogas se deu


finalmente em 1988, com a Convenção resultante da Conferência Internacional sobre o Uso
Indevido e o Tráfico Ilícito de Entorpecentes, em Viena (1987), responsável pela nova ótica de
visualização do tráfico como parte do crime organizado e que exige cooperação internacional com
ênfase no dispêndio de gastos exorbitantes na militarização do combate às drogas e da demonização
da figura do traficante (CARVALHO, 2001).

Atualmente se assiste a utilização tática de discursos jurídicos como forma de assegurar


objetivos políticos. No mundo moderno essa prática se enraizou com a expansão dos ordenamentos
jurídicos, instalação consolidada de forma mais predominante com a codificação, na transição do
absolutismo para o Liberalismo e hoje se consolidou após o advento do sistema internacional de
proteção dos Direitos Humanos da ONU.

Neste sentido, segundo Oliveira (2005-b), esse investimento tão amplo e grande e em escala
mundial é explicado pela utilização tática da prevenção. A partir dos dispositivos jurídicos, será
possível conduzir qualquer discussão a um tribunal, que irá equacionar punições conforme a
necessidade de sobrevivência da política nos termos introduzidos inicialmente pelo Liberalismo:
por trás da defesa de um direito fundamental de liberdade da pessoa, está sempre uma possibilidade
de promoção de atividades econômicas, o que é condição de sobrevivência para o capitalismo.

Atualmente, a Política de Guerra às drogas e, diga-se também, a de “guerra ao terrorismo”,


asseguram não somente a proteção da política, mas também, uma blindagem, uma imunidade, algo
que já foi percebido por Nilo Batista (1998, p. 78):

De fato, se olharmos o atual cenário americano, que política criminal é essa que
contempla operações militares em territórios estrangeiros, que distingue grupos
aliados e beligerantes, promove acumulação e intercâmbio de informações em
âmbito internacional e intervenção permanente na rede diplomática, administra
orçamentos astronômicos, celebra crescentemente tratados que versam desde
compromissos criminalizadores até a erradicação de culturas e extradições, passando
por patrulhas marítimas e helicópteros, e na qual se pretende envolver a cada dias,
mais intensamente, as forças armadas.

Resta agora, buscar noNeoliberalismo, as marcas da “Guerra contra as drogas”, política de


drogas de abrangência mundial, atualmente adotada pelo Brasil que se inicia no final da década de
60 e perdura até os dias atuais.

4.RACIONALIDADE NEOLIBERAL: A SOCIEDADE DE EMPRESAS.

Considerando que os discursos são resultantes das relações de Poder e este, por sua vez, mais
da ordem do governo, como explica Foucault (2010, 2008-b), surgiu o objetivo de relacionar a
manutenção da atual política de drogas com os objetivos de governo neoliberal.
Em uma exposição sucinta é possível mostrar como o Neoliberalismo nasce na Alemanha e
nos Estados Unidos com uma lógica bem parecida: enquanto o Liberalismo procurou governar
menos e normalizar, o Neoliberalismo buscou a ascensão de uma ordem de mercado que permita
uma sociedade de empresas.

Na Alemanha, o Neoliberalismo teve seu início em idealizações de economistas alemães que


formavam uma corrente crítica à República de Weimar. Antes mesmo da Segunda Guerra Mundial,
já havia um crítica ao modelo Wellfare State e as intervenções do Estado na Economia para
assegurar uma igualdade econômica, uma vez que entendia a desigualdade econômica (de renda)
como uma necessidade de sobrevivência do sistema econômico capitalista.

No pós-guerra, com a Alemanha devastada, surgiram discussões, principalmente na “Bizona”,


uma unificação econômica formada pela Alemanha e pela Inglaterra no pós-guerra,sobre a
necessidade de ressurgimento do país e de qual seria modelo político e econômico, a partir daquele
período em diante. Nesse momento, se questionava se o mais adequado seria legitimar um Estado
do ponto de vista jurídico, pela criação de uma Constituição e de um determinado modelo de
Estado, ou se o mais adequado seria legitimar o funcionamento de um mercado, e a partir da
consolidação deste, criar um modelo de Estado e de ordenamento jurídico.

Apesar das pressões dos Estados Unidos que faziam imposição de modelos denominados de
“planismo”, como a política do New Deal, de ampla intervenção do Estado na economia e de
criação de planos econômicos que buscavam principalmente igualar rendas, a solução adotada pela
Alemanha foi o inverso: adotaram o Neoliberalismo que buscava assim, transformar a sociedade em
um jogo de empresas pautado na concorrência (FOUCAULT, 2008).

Essa opção surgiu, no momento em que os ordoliberais viabilizaram a crença de que o


problema não estava no Capitalismo, mas na forma de intervenção estatal. Para esta corrente alemã
dos ordoliberais, a concorrência é o valor chave para o sucesso do Neoliberalismo.

Foram frutos das teorizações dos ordoliberais a Gesselschaftpolitik (política da sociedade) e a


Vitalpolítik. Assim a partir da primeira, tem-se um princípio que determina que a intervenção deve
se dar no tecido da sociedade, ou seja, a atuação no ambiente e não na economia, atuação no
ambiente para neutralizar efeitos anti-concorrenciais, aqueles que minariam a possibilidade da
sociedade desejada.
A partir da Gessellschaftpolitik, se um país passasse por um problema econômico, o culpado
não seria o modelo econômico (capitalismo) e sim o tipo de intervenções realizadas pelo Estado,
sendo esse o responsável pela criação de uma moldura onde seria possível o jogo de empresas. Foi a
partir dessas teorias que surgem as atuais críticas ao Estado a partir de instituições representantes do
mercado como os Think Tank.

Assim a intervenção do Estado somente seria possível mediante a lei, intervenções formais –
o direito passa a ser regra de jogo econômico. Em razão dessa intervenção, o modelo foi
denominado por muitos de Liberalismo positivo.

Se as intervenções do Estado se dessem somente no tecido da sociedade, mediante a lei e


intervenções formais, seria possível criar uma moldura social em que uma ordem de mercado
definiria as atuações do Estado determinando os rumos do Direito Público, fazendo erigir o
significado mais profundo da expressão “lei e ordem” que é, antes mesmo de ser uma política
criminal, uma máxima do governo orientado pelo Neoliberalismo que permite a existência de uma
sociedade determinada por um jogo de empresas.

Já a Vitalpolitik seria uma intervenção com o viés de naturalizar a concorrência na sociedade,


uma vez que a desigualdade é um princípio muito mais dissociador do que “aproximador”.
Mediante a Vitalpolitik serão realizadas intervenções nos hábitos da sociedade de forma a
naturalizar a lógica da empresa e da concorrência (FOUCAULT, 2008).

Nos Estados Unidos pode-se dizer que se tem um Neoliberalismo muito mais radical. Partindo
da visão da Escola de Chicago, os neoliberais se inspiram em um dogma: qualquer relação pode ser
vista e decifrada pelo olhar econômico. Essa é uma tendência presente também na Alemanha, mas
desenvolvida de forma muito mais radical nos Estados Unidos.

Assim, a visão econômica migra para analisar campos “não econômicos” que a
tradicionalmente não se concebia uma análise econômica. Um dos exemplos extremosé o caso da
relação entre mãe e filho que integra inclusive a “teoria do capital humano”.

Segundo a Teoria do Capital Humano, o tempo e cuidados dispendidos na criação do filho


nada mais é do que um investimento para formar um ser produtivo, que produza o próprio sustento.
No âmbito das relações do trabalho, os neoliberais estadunidenses rompem com a visão marxista de
que o capital compra a força do trabalho, quando apontam que o trabalhador é um capital em si
mesmo (FOUCAULT, 2008).
A partir da teoria do capital humano toda pessoa é encarada como uma máquina que possui
atributos físicos e competências conquistadas, podendoser analisadas a partir de dados como
qualificações, idade, tempo de vida e defasagens. Tais análises econômicas de campos não
econômicos percorrem a técnica de buscar decifrar os fatos mediante o olhar individual do sujeito
objeto da análise.Neste sentido, o trabalhador representa um capital em si mesmo, perdendo o status
de mero consumidor, para atuar como uma empresa, como um produtor de si mesmo, uma vez que
produz, promove o seu próprio consumo (IDEM).

Sendo o objetivo da política, a criação de uma sociedade de empresas, o homem improdutivo


é o modelo humano indesejado, considerado pelos neoliberais como um entrave por representar um
transmissor de efeitos “anticoncorrenciais” o que permeia a visão dos neoliberais sobre a
criminalidade.

Segundo a Criminologia da Escola de Chicago, os neoliberais propõe um retorno ao


utilitarismo de Beccaria, aceitando a visão liberal de que o crime é um ato que gera uma punição,
mas não “caindo no mesmo erro” que os liberais, pois usando a lógica da visão individual, o
criminoso não é necessariamente um “anormal”, mas qualquer pessoa que aceite correr o risco da
punição.

A visão econômica de campos não econômicos somada à decifração do homem a partir do


olhar individual trouxe uma verdadeira grade de decifração do homem, verdadeira interface entre
homem e Poder que é sua qualificação como “homem econômico”.

Ao visualizar o homem como um ser racional, um homem econômico que dosa perdas e
ganhos nas relações, o criminoso é qualquer pessoa que tenha uma “oportunidade” de cometer um
ato pelo qual poderá sofrer uma pena, ou seja, disposto a correr um risco especial, não havendo
assim grande diferença entre o agente de um crime de trânsito e de um homicídio.

Se na vigência do Liberalismo, os anormais representavam o grande obstáculo, trazendo toda


uma análise da criminologia positivista que se debruçou sobre o “homem anormal”, na égide do
Neoliberalismo o obstáculo é definido pelo potencial de gerar efeitos anti-concorrenciais.

Se na vigência do Liberalismo, os anormais representavam o grande obstáculo, trazendo toda


uma análise da criminologia positivista que se debruçou sobre o “homem anormal”, na égide do
Neoliberalismo o obstáculo é definido pelo potencial de gerar efeitos anti-concorrenciais,
subvertendo o jogo de empresas e passa a ser representado pelo improdutivo.
No campo da política criminal foi a Escola de Chicago que forneceu o arcabouço teórico para
legitimação das políticas de tolerância zero. Toda a análise da criminalidade pela corrente
criminológica da Escola de Chicago parte de um pressuposto: o controle social informal é mais
efetivo que o controle social formal.

O controle social informal, aquele realizado pela família, pelos membros da vizinhança, da
escola e do clube é muito visível em pequenas cidades em que a criminalidade é quase inexistente.
Contudo, com o surgimento das grandes metrópoles, a noção de mobilidade social e migração, põe
abaixo a pretensão de utilização de um controle social informal, pois as pessoas habitam lugares
transitoriamente, trabalham durante todo o dia e retornam somente a noite, não permitindo a criação
de um elo social fundamental ao para o exercício de tal controle que é a proximidade afetiva
(SHECAIRA, 2004).

Além disso, outro elemento chave na compreensão dos teóricos de Chicago é o conceito de
desorganização social, em que os índices de criminalidade são mais altos em locais desfalcados em
condições de desenvolvimento humano, desvelando que existem cidades dentro de uma cidade
(IDEM).

O controle social formal, aquele formado pelas agências estatais e mais especificamente, do
sistema penal, como policiais civis, militares, delegados, promotores de justiça e juízes é tido como
menos eficaz, pois quase todos os seus representantes atuam após o cometimento do delito, o que
dificulta o controle penal (IDEM).

Dessa forma, partindo dessas premissas, a Escola de Chicago concebe que a criminalidade é
um efeito gerado pela cidade, e assim, a intervenção deve se dar na cidade, visão que rendeu ao
pensamento da Escola, a alcunha de Ecologia criminal.

Neste sentido, a forma de garantir a possibilidade de enformar a sociedade em um jogo


econômico de empresas é eliminar os efeitos anti-concorrenciais, não pela intervenção para igualar,
mas pela aplicação da regra do jogo (do direito). Essa lógica gerou a chamada política criminal “lei
e ordem” em que havendo uma violação das normas (do jogo) a lei dever ser aplicada (e com rigor)
e por isso, em comparação ao sistema do Wellfare State, é um Estado que resolve o problema da
criminalidade – geralmente relacionado à questão social – mediante intervenções penais
(FOUCAULT, 2008 b).

Para compensar a ausência do sistema formal tais criminólogos propõe a utilização do


controle penal, a partir de uma maior prevenção, lógica que permitiu a criação de teorias como as de
Q. Wilson, a “Teoria das janelas quebradas” em que se propôs uma atuação ambiental das agências
do sistema penal e uma vigilância redobrada pautada na prevenção.

Assim, além do movimento lei e ordem, muito propagado pela Mídia6 se tem também o
chamado “tolerância zero” um modelo de política criminal neoliberal inspirado na literatura de um
autor estadunidense neoconservador –Q. Wilson – que devaneou sobre a prevenção mediante o
conto “das janelas quebradas”. Para ele, aumentando a prevenção e assegurando a punição
(tolerância penal zero) seria possível um melhor controle do crime (MATHIESEN, 2003).

O Tolerância Zero é claramente uma inspiração neoliberal, uma vez que Q.Wilson buscou
analisar o comportamento humano pela grade de inteligibilidade do homem econômico. Segundo
trabalhou em sua obra, o criminoso pode ser qualquer pessoa, e é um ser racional que reage a
estímulos e considera em suas ações critérios de perdas e ganhos.

Dessa forma, já é possível decifrar a lógica da “guerra contra as drogas” a partir do


Neoliberalismo: existe uma verdadeira “intolerância” com qualquer efeito anti-concorrencial, que
não se preocupa com classe social ou injustiça social e neste sentido, serão as agências penais as
responsáveis pela aplicação da regra do jogo de empresas, a lei penal. Com a amplitude mundial da
ONU, a guerra se tornou mundial.

5.O NEOLIBERALISMO COMO CONTROLE DAS CLASSES BAIXAS E PRÁTICA DE


UM NOVO RACISMO.

Nils Christie em “A indústria do controle do delito” inicia suas análises a partir do tema do
excesso da população, destacando os “mãos vazias”como problemas surgidos desde o início da
industrialização considerados como tais, por causar pelo menos dois tipos de problema: distúrbios
relacionados à ordem pública e à criminalidade (CHRISTIE, 1993).

Em seu vislumbre sobre as formas de gerenciamento de tais contingentes, mencionou uma


primeira solução que foi a utilização dos trabalhos forçados. Tal solução perdurou até a segunda
guerra momento em que o problema foi em parte resolvido.

6
O discurso dominante das agências de criminalização secundária, entre as quais está a mídia, “é reforçado nas
chamadas campanhas de lei e ordem (law and order, GesetzundOrdnung), que divulgam uma ampla mensagem:
a)reivindicam maior repressão; b)afirmam, para isto, que não se reprime suficientemente”. O discurso dominante
está tão introjetado entre aqueles que são clientes dessas campanhas quanto entre aqueles que cometem ilícitos,
de modo que a própria campanha de lei e ordem tem um efeito multiplicador, à guisa de incitação pública.
ZAFFARONI, Raul E. e BATISTA, Nilo, Direito Penal Brasileiro I, Rio de Janeiro: Revan, 2003 (Pg. 63).
Segundo Christie, o“sistema das casas de trabalho forçado”falhou, pois os Estados eram
relativamente pobres e havia falta de infra-estrutura. No pós-guerra, com o fim desse
empreendimento, surgiram novos fatores que determinaram o aumento da busca pelo trabalho e isso
se intensifica com o ingresso da mulher no trabalho e o crescimento da sociedade industrial
(IDEM).

O problema neste momento não era a falta de trabalho, mas da falta de trabalho remunerado.
A solução no âmbito do modelo do Estado social buscou garantir que não houvesse pessoas
desempregadas e garantindo trabalho remunerado a todos.

As criticas foram no sentido de que essa forma de solução era antieconômica, aberta à fraude
e corrupção. Contudo representou uma garantia de que todos iam experimentar o trabalho
remunerado. A partir dessas críticas e do surgimento hegemônico de modelos concorrenciais
pautados nas forças de mercado Christie (1993) sinaliza uma ausência de alternativas, fazendo
surgir novamente a mesma questão de “como controlar os improdutivos” que em maioria formam as
chamadas classes perigosas.

O princípio básico do controle social era lidar com o contingente da população mais difícil de
lidar e quais seriam estas? A princípio se ouviu que as classes mais difíceis de gerir seriam as
classes mais altas, pois tudo podem e as classes mais baixas, por não ter nada a perder, fazem de
tudo, abraçando a visão deJongman (CRISTIE, 1993).

Contudo, uma crítica que se faz é que em tempos em que o desemprego é massivo, o melhor
controle é o da pobreza relativa e não da pobreza absoluta. Essa percepção é oriunda da observação
da crise na década de trinta em que houve um desemprego massivo, pois quando é irrisória a taxa de
desemprego, essas pessoas atribuem a culpa do desemprego a si mesmo, mas quando existe um
desemprego maciço, as pessoas acham que há uma má distribuição de oportunidades (IDEM).

Considerando o desemprego maciço somado á insatisfação desse contingente, imaginando o


atual ambiente industrial, em que as pessoas saem para trabalhar ao dia em que não há ninguém em
casa e a noite todos chegam do trabalho, mas estão dormindo, onde ninguém se conhece, onde não
há controle social informal, é difícil conter a delinquência (IDEM).

Assim os trabalhos das forças de segurança e da polícia passam a trabalhar a partir de


denúncias, dando ensejo a casos que dificilmente são solucionados. Com um aumento massivo da
criminalidade – conseqüências do desemprego – e com a situação nas cidades de difícil controle em
razão da deficiência do controle social informal se tornou difícil resolver problemas criminais, pois
como se sabe o índice de solução de crimes é do tamanho da cifra negra (IDEM).

Como realizar um controle das classes baixas que não seja por meio da investigação das
denuncias. Assim, a “guerra contra as drogas” surgiu como uma forma de controle dessa demanda
de pessoas improdutivas. As populações que se envolvem com a venda de drogas trazem dois
problemas: mostram que ganham sem trabalhar e que usam o dinheiro que ganham investindo em
outras formas delituosas.

Com a sugestão da guerra das drogas surge a possibilidade de controle. Nils Christie compara
a atual situação no Neoliberalismo com o período da lei seca em que houve um desemprego em
massa e a saída percorreu a “guerra contra as drogas” pelo controle das classes ociosas (CHRISTIE,
1993).

Essa equiparação é possível, uma vez que os efeitos no Neoliberalismo são devastadores
como já dissertou Nilo Batista (2002, p. 272):

O empreendimento neoliberal, capaz de destruir parques industriais nacionais


inteiros, com conseqüentes taxas alarmantes de desemprego; capaz de
flexibilizar direitos trabalhistas, com a inevitável criação de subempregos;
capaz de tomando a insegurança econômica como princípio doutrinário,
restringir a aposentadoria e auxílio , capaz de, em nome da competitividade,
aniquilar procedimentos subsidiados sem considerar o custo social de seus
escombros.

A guerra contra as drogas preparou um terreno para a guerra contra as populações perigosas e
pessoas consideradas inúteis, uma desculpa para violação de direitos. Representam uma fonte de
distúrbios e um indicativo de que os objetivos não estão sendo alcançados.

Então no período do Estado social a política do pleno emprego desenvolvia resultados quando
surgiram os hippies e depois, infratores além de traficantes. Os idealizadores do sistema social
começaram a se questionar o que estaria ocorrendo e a resposta teve as seguintes interpretações:
“existe uma deficiência no sistema”, ou “de alguma forma a desigualdade tomou conta” ou
simplesmente as“drogas são uma possibilidade de destruição de qualquer sociedade avançada”.
Obviamente os idealizadores de um sistema não iriam apontar uma deficiência e foi assim que
começou a luta contra as drogas sob a égide do Estado social.

Nesse período, na vigência do Estado social que buscava “proteger a sociedade”, a droga era
um male e deveria ser resolvido e em outro sentido as pessoas que cometem males devem ser
controladas. Os envolvidos com drogas passaram em alguns momentos a sofrer tratamentos típicos
dos Estados de bem-estar.Contudo, com o passar do tempo se percebeu o encarceramento de
usuários de drogas, que na verdade estavam lá por serem inúteis para a sociedade e não por serem
usuários.

No Neoliberalismo, com o contingente massivo de pessoas desempregadas, a solução foi


empresarial. Uma vez sejam tais pessoasimprodutivas, deverão se tornar matéria prima de uma
indústria, a “indústria do controle” do crime, em que nos Estados Unidos, permite que pessoas
passem a ser valiosas para economia, não por ostentar a condição de produtores, mas pelo que
consomem no presídio.

Tal constatação remete à política estatal denominada por Foucault de “o racismo moderno de
Estado”, que representa no domínio da vida (biopoder) um corte: “o corte entre o que deve viver e o
que deve morrer” pautado na qualificação de “certas raças como boas, e de outras, ao contrário,
como inferiores”, o que nos remete aos incivilizados tão reprimidos pelas práticas de tolerância zero
(FOUCAULT, 1999-b, p. 304).

O racismo biológico de Estado representa uma reinscrição do conceito de raça pelo Estado
moderno. Segundo Foucault, o conceito de raça pode ser entendido de duas formas: opondo-se duas
raças, em um primeiro sentido, se estaria falando de grupos que não têm a mesma origem local, nem
falam a mesma língua, nem a mesma religião. Em outro sentido nessa oposição de raças, haveria
dois grupos que coabitam a mesma sociedade, mas não tem os mesmos costumes e os mesmos
direitos (FOUCAULT, 1999-b).

No primeiro sentido de racismo pode-se vislumbrar o movimento nazista, ocorrido na


Alemanha em que esse primeiro sentido de raça, diferenciou judeus, ciganos e homossexuais
fundando genocídios, a guerra e a administração da criminalidade a partir de um modelo eugênico.

No segundo sentido, (este que orienta o racismo de Estado), raça é raça biológica. Essa nova
formatação do racismo estabeleceu uma ruptura na continuidade biológica da espécie humana
relacionada a quem deve e quem não deve viver estabelecendo uma seleção: “a morte do outro
melhora minha vida”.

Assim, em termos biológicos muda-se a ideia de guerra que não será mais a que retrata a
vitória sobre o adversário, mas da eliminação de um perigo com o qual se convive no interior da
sociedade.
Neste sentido, no Neoliberalismo, essas práticas estarão voltadas contra aquele considerado
biologicamente inferior, visualizado na teoria do capital humano dos neoliberais, como o que não
possui o aparelho biológico necessário para se comportar conforme as exigências dessa
racionalidade – viver como empresa – e a partir dos diagramas da sociedade de controle, por não
possuir a capacidade intelectual de produzir; fugindo as possiblidades de captura e práticas de
assujeitamento pelo intelecto, representando assim uma resistência aos objetivos da sociedade de
controle.

Foucault, explica nas linhas que se transcreve abaixo, como se deu esse retorno ao poder de
matar na sociedade disciplinar, plena sociedade de normalização:

De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida
e a morte do outro, uma relação que não é a relação militar e guerreira de
enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico: ‘quanto mais às espécies
inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem
eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie [...] A morte do
outro não é senão a minha vida, na medida em que seria minha segurança
pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar a vida em geral, mais sadia;
mais sadia e pura (FOUCAULT, 1999 b. 305).

Passetti explicabem a consolidação de um novo racismo, não mais relacionado às raças, mas
sim à pobreza, trazendo à tona, a configuração de um novo inimigo, não aceito, indesejado do ponto
de vista político:

No caso particular dos programas de “tolerância zero”, o racismo. O conceito


de cultura da pobreza, firmado até então com base em comportamentos
socialmente não aceitos gerando certo trânsito entre as pessoas que viviam na
marginalidade com a sociedade maior e constituindo um híbrido, deixa de ser
notado pelo Estado como anomia temporária para ser tratado como forma
acabada de deslocamento [...] amplia-se a genealogia do racismo
(PASSETTI, 2003, p. 170).

No caso particular dos programas de “tolerância zero” se enraíza, como se verá a seguir, nestas
guerras e em particular, a “guerra contra as drogas” partir de 1970, sendo o conceito de “classes
perigosas” o principal conceito a garantir legitimidade da gestão do contingente pobre, mediante a
orientação do “Racismo de Estado”, permitindo resultados após a realização de prisões em massa –
as populações carcerárias –mostram números que permitem dizer que já está em funcionamento
uma “Indústria do controle do delito” no Brasil que fatura altos valores.

A interpretação dos números da população carcerária deve ser orientada a partir de


considerações como tipo de estrutura social, distância social, revoluções ou distúrbios políticos, tipo
de sistema legal, interesses econômicos e impulso oficial (CHRISTIE, 1993).
Os números estadunidenses são importantes, pois para fins de política criminal, fica clara a
orientação neoliberal do país, poisse trata da maior população carcerária em todo o mundo, o que
se viu, pode ser entendido como resultado das políticas criminais de limpeza das ruas e de
investimento na segurança pública, em que se agrava a prevenção, que busca identificar como
criminalidade, meras “incivilidades”.

No vislumbre dos dados de população carcerária existe uma tendência em comum: a maior
porcentagem dos crimes é de delitos contra a propriedade, contra ordem e relacionados à droga:

As estatísticas nacionais mostram que a maioria (65 por cento) dos delinquentes são enviados
à prisão por delitos contra a propriedade ou contra a ordem e relacionados com drogas. Um número
considerável de detentos (15 por cento) não são julgados como culpados de nenhum delito, contudo
voltam ao cárcere por violar as “condições” da liberdade condicional. Por exemplo, violação de
horários, negativa a participar de algum programa, comprovado usa de drogas, etc. (IDEM, p. 99).

A partir da lógica neoliberal, a questão do controle do crime passa obrigatoriamente por uma
questão: como tornar o problema da eliminação dos efeitos anticoncorrenciais como a criminalidade
e os criminosos, uma atividade rentável? Descobriu-se que “cárcere quer dizer dinheiro, pois o
investimento será alto: se gastará em edifícios, equipamentos, administração, empresas privadas
(serviços de assistência médica, comida), compra de materiais de segurança” (IDEM, p. 106).

Com a explosão da população carcerária, o castigo se tornou um ótimo negócio. Se a


população carcerária continua crescendo ao mesmo ritmo que na década de 1980, terá um custo de
pelo menos 100 milhões de dólares por semana somente para a construção de edifícios novos.
Estima-se que em 1990 os gastos operativos e de capital do sistema penitenciário, estatal e federal
superou os 25.000 milhões de dólares (IDEM, p. 106).

CONCLUSÃO.

O aumento repentino dos dados relativos à população carcerária em todo mundo é um sinal
que demonstra que o empreendimento neoliberal está em pleno vapor. Segundo Thomas Mathiesen,
a eficiência dos modelos de “desabilitação coletiva”, como os propostos por políticas criminais de
tolerância zero em todo o mundo, nunca foi comprovada empiricamente pelos seus defensores,
sendo seus efeitos considerados imprecisos e somente secundários em relação ao índice da
delinquência e da segurança dos cidadãos (MATHIESEN, ANO, 157-158).
Quanto à prevenção geral, tão presente nas justificativas das propostas de tolerância zero, que
crê na lógica de que a resposta pela punição faz com que pessoas não cometam delitos, sendo
obedientes, esta também se mostrou um fracasso, pois como já mostrou Nilo Batista, o Direito
Penal não pode ser utilizado para solucionar problemas sociais.

Embora os defensores dessas políticas não tenham comprado suas eficácias, elas continuam
sendo implementadas por governos neoliberais em todo mundo. A escolha dessa política, como se
viu, não está relacionada a uma vontade dos Estados em resolver o problema da criminalidade, mas
em uma necessidade de dar uma solução a essas classes perigosas que são, por sua vez, também
resultantes da sistemática neoliberal.

O Brasil atualmente possui a 4ª maior população carcerária do mundo7, com 496.251 presos,
ficando atrás somente dos Estados Unidos, China e Rússia, tendo duplicado desde 2000 e triplicado
desde 19958.

Entre 1995 e 2005 a população carcerária do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos
para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma década. A taxa anual de
crescimento oscilava entre 10 e 12%.

Em 2012, o número de pessoas encarceradas dobrou, segundo dados do Departamento


Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça, 34.995 pessoas foram presas no
primeiro semestre deste ano, enquanto foram criadas apenas 2.577 vagas nas penitenciárias. No
mesmo período do ano passado foram 17.551 detidos.

Os motivos que levam estes milhares de pessoas para trás das grades são quase sempre os
mesmos: tráfico de drogas (125 mil presos) e crimes patrimoniais, como furto, roubo e estelionato
(240 mil presos). Em suma, o infográfico revela que apenas nove modalidades criminosas são
responsáveis por 94% das prisões.

Contudo, segundo representantes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) os 350%


de aumento da população carcerária nos últimos 20 anos está relacionada principalmente à política
de repressão contra as drogas, o que pode ser demonstrado pelos dados do INFOPEN que mostram
que em 2010, 21% de todos os presos, o correspondente a 106,4 mil pessoas, foram detidos por

7
Dados extraídos do King`s Collegge London, disponível emhttp://www.kcl.ac.uk/index.aspx. Acesso em 20 de
Dezembro de 2011.
8
Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-jun-13/populacao-carceraria-dobrou-dez-anos-taxa-
crescimento-caiu. Acesso em 20 de Dezembro de 2011.
crimes de tráfico. Entre as causas para o aumento súbito da população carcerária está a reincidência
no crime de tráfico ambém é uma das causas da superlotação carcerária

Das 15.263 mulheres que passaram nos últimos cinco anos, a fazer parte da população
carcerária brasileira, 9.989 (65%) foram acusadas de tráfico de drogas. “Basicamente são mulheres
não brancas, têm entre 18 e 30 anos e baixa escolaridade”, afirmou a ministra do Superior Tribunal
de Justiça Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça.9

Em termos de evolução histórica da população carcerária brasileira desde ganha importância a


verificação da representatividade dos condenados por tráfico de drogas nesse total, diante da
constatação de que tal crime tem, hoje, a segunda maior incidência de presos (91.037) no sistema,
ficando atrás penas dos crimes patrimoniais (217.762)68, que tradicionalmente ocupam a primeira
posição.

Omais importante dado, observado é certamente, o da escolaridade das pessoas encarceradas,


o que comprova a hipótese de que a política da guerra contra as drogas busca o gerenciamento das
classes baixas e isso é decifrado na ótica do Neoliberalismo, que propondo um novo projeto para a
sociedade, criou um novo inimigo, o improdutivo. Dos detentos, 275,9 mil terminaram o ensino
fundamental, 89,2 mil terminaram o ensino médio, 58,4 mil são apenas alfabetizados, 26,6 mil são
analfabetos e 5,6 mil concluíram o ensino superior (INFOPEN) .

Esse dado sobre a escolaridade é particularmente importante, pois como já disse Nilo Batista
(1998), “(...) quando a Polícia mensalmente executa (...) um número constante de pessoas,
verificando ademais que estas pessoas tem a mesma extração social, faixa etária e etnia” se percebe
o exercício de uma política direcionada. No caso do tráfico de drogas, os que respondem pelo crime
são comprovadamente, pessoas improdutivas.

À luz da teoria do capital humano, que define os critérios desse novo racismo, o racismo
contra aquele que não possui o aparelho biológico necessário para comportar-se como empresa, se
seleciona aqueles que serão aproveitados não pela capacidade de produzir, mas pela capacidade de
ser consumidor dos serviços de uma nova indústria, que é a indústria da prisão, que gera o
investimento.

9
Disponível em: http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/crack-chama-
a-atencao-para-dependencia-quimica/populacao-carceraria.aspx
O Brasil dá sinais de que adere ao mercado do controle do crime. Entre 2003 e 2009,
conforme dados oficiais da Secretaria Nacional de Segurança Pública10, o governo investiu mais de
R$ 1 bilhão na construção de 97 estabelecimentos penais, além de ter ampliado e reformado outros
37, valor que não inclui equipamentos ou reaparelhamento na área de segurança o que certamente
também deve ter autorizado o dispêndio grandes quantias.

A partir da leitura de tais efeitos foi possível achar a marca de guerra na política neoliberal.
Ao final da presente análise, se percebe como, após aproximadamente 15 anos da publicação do
artigo “Políticas criminais com derramamento de sangue”, os motivos apresentados por Nilo Batista
(1998) continuam atuais.

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10
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