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COLEÇÃO

volume X
Ensino e pesquisa em
literaturas de língua
portuguesa:
desafios e propostas
Organizadores
Luís Fernando Prado Telles
Simone Nacaguma
Valéria Sperduti Lima
Luciano Gamez
COLEÇÃO

Organizador es
Luís Fernando Prado Telles
Simone Nacaguma
Valéria Sperduti Lima
Luciano Gamez

volume X

Ensino e Pesquisa em Literaturas de Língua


Portuguesa: Desafios e Propostas

Leonardo Silva Rocha Juliana dos Santos Padilha


Renato Alessandro dos Santos Larissa da Silva Lisboa Souza
Lineker Rodrigo Lima da Cruz Sabrina Novais Lima e Silva
Nani Junilia de Lima Patrícia Pedrosa Botelho
Daniela Morales Monteiro Isabel Cristina Furtado de Medeiros Sampaio
Monique Alves Vitorino Gabriela Manduca Ferreira
Priscila Manfré Juliana Camargo Mariano
Mary Nascimento da Silva Leitão Deisi Luzia Zanatta
Denilson Barros Nunes da Silva Osvando de Melo Marques
Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli Karla Menezes Lopes Niels
Lídia Juliana Rodrigues Moraes Marcos Vinícius Modro
Lilian do Rocio Borba Rita de Cássia Lamino de Araújo

São Paulo
2022
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL ORGANIZAÇÃO DA COLEÇÃO
Carlos Cezar Modernel Lenuzza Luís Fernando Prado Telles
Diretor - DED/CAPES Simone Nacaguma
Valéria Sperduti Lima
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Luciano Gamez
Nelson Saas
Reitor
AUTORIA
Raiane Patrícia Severino Assumpção Leonardo Silva Rocha
Vice-reitora
Renato Alessandro dos Santos
Lineker Rodrigo Lima da Cruz
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA Nani Junilia de Lima
Taiza Stumpp Teixeira Daniela Morales Monteiro
Pró-reitora
Monique Alves Vitorino
Simone Nacaguma
Priscila Manfré
Pró-reitora adjunta
Mary Nascimento da Silva Leitão
Denilson Barros Nunes da Silva
COORDENAÇÃO UAB/UNIFESP Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli
Valeria Sperduti Lima Lídia Juliana Rodrigues Moraes
Coordenadora
Lilian do Rocio Borba
Luciano Gamez
Coordenador Adjunto
Juliana dos Santos Padilha
Larissa da Silva Lisboa Souza
Sabrina Novais Lima e Silva
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM
Patrícia Pedrosa Botelho
LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
Isabel Cristina Furtado de Medeiros Sampaio
Luís Fernando Prado Telles
Coordenador Gabriela Manduca Ferreira
Simone Nacaguma Juliana Camargo Mariano
Vice-Coordenadora Deisi Luzia Zanatta
Osvando de Melo Marques
Karla Menezes Lopes Niels
Marcos Vinícius Modro
Rita de Cássia Lamino de Araújo
EQUIPE DE PRODUÇÃO DO E-BOOK EQUIPE MULTIDISCIPLINAR DE
APOIO AO CURSO
COORDENADORES DE PRODUÇÃO
Luciano Gamez DESIGNERS EDUCACIONAIS
Valéria Sperduti Lima Felipe Vieira Pacheco
José Adriano Silva de Oliveira
COORDENADORA DE MATERIAIS Margeci Leal de Freitas Alves
DIGITAIS ACESSÍVEIS Rafael Dias de Souza Ferreira
Cícera Aparecida Lima Malheiro Vanessa Itacaramby Pardim

DESIGNER GRÁFICO/DIAGRAMADORA ANALISTA EM TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO


Ágatha dos Santos Tarrataca Daniel Lico dos Anjos Afonso

EDITOR DE TEXTO PRODUTORES DE AUDIOVISUAL


Rafael Dias de Souza Ferreira Daniel Gongora
Laura Videira Pragana
REVISORAS DE TEXTO
Carina Carvalho DESIGNER GRÁFICO/DIAGRAMADORA
Lilian do Rocio Borba Ágatha dos Santos Tarrataca
Susi Lena Gobbo
WEB DESIGNER
João Luiz Gaspar

ASSESSORA DE ACESSIBILIDADE
Cícera Aparecida Lima Malheiro

EQUIPE DE TUTORIA
Julio Cesar de Carvalho Santos
Larissa da Silva Lisboa Souza
Nani Junilia de Lima
Raimundo Nonato da Silva Filho
Thais Fernanda Rodrigues da Luz Teixeira

COORDENADOR DE TUTORIA
Josemar Monteiro Silva
Ministério da Educação
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Sistema Universidade Aberta do Brasil
Universidade Federal de São Paulo
Universidade Aberta do Brasil - Unifesp

Coleção Literaturas de Língua Portuguesa:


Identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares.

Volume X
Ensino e pesquisa em literaturas de língua portuguesa: desafios e propostas

São Paulo
2022

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ensino e pesquisa em literaturas de Língua Portuguesa [livro eletrônico]:


desafios e propostas / Organização: Luís Fernando Prado Telles, Simone
Nacaguma, Valéria Sperduti Lima e Luciano Gamez. -- São Paulo : UAB/UNIFESP,
2022.
PDF. - (Literaturas de Língua Portuguesa: Identidades, Territórios e
Deslocamentos : Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares; v. X)

Vários autores
ISBN 978-65-998436-1-7 (Coleção Completa)
ISBN 978-65-998436-3-1 (v. X)

1. Língua Portuguesa – Estudo e ensino. 2. Literatura em Língua Portuguesa.


I. Telles, Luís Fernando Prado. II. Nacaguma, Simone. III. Sperduti, Valéria. IV.
Gamez, Luciano. V. Título. VI. Série.

CDD 469

Elaborado por Cristiane de Melo Shirayama – CRB 8/7610

Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir deste trabalho para fins não comerciais,
desde que atribuam o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.
APRESENTAÇÃO

A coleção Literaturas de Língua Portuguesa: Identidades, Territórios e Deslocamentos:


Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares consiste na publicação de parte do material
didático do curso de pós-graduação lato sensu homônimo, com carga horária total de 630
horas e duração de 18 meses, ofertado entre os anos de 2020 e 2021, pela Universidade
Aberta do Brasil (UAB) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com financiamento
da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Esse curso de especialização é fruto do termo de cooperação entre a UNIFESP e a


Universidade de Coimbra (UC) e teve a participação de professores de instituições de ensino
superior públicas brasileiras e de professores de instituições de ensino superior estrangeiras
pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em especial, de Portugal
e Moçambique.

O curso foi selecionado pela CAPES, por meio do Edital No. 05/2018, destinado a
receber propostas de Instituições Públicas de Ensino Superior (IES) integrantes do Programa
Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) para ofertas de cursos superiores na modalidade
à distância, com vagas prioritárias para cursos na área de formação de professores, em
atendimento à Política Nacional de Formação de Professores, conforme Decreto 8.752, de 9
de maio de 2016.

Considerando as novas tendências teórico-metodológicas de configuração do currículo


da educação básica, o curso buscou formar professores de língua portuguesa voltados para a
inovação na sala de aula, ao mesmo tempo em que, de forma crítica e responsável, possam
refletir acerca de questões sobre o ensino das literaturas de língua portuguesa não apenas a
partir de um contexto local ou nacionalista, mas, sim, a partir do âmbito mais abrangente da
comunidade dos países de língua portuguesa.

Esse professor precisará, pois, responder aos desafios educacionais nesse contexto
mais abrangente, globalizado, em que o paradigma da hierarquia de culturas passa a ser
substituído pelo paradigma da integração comunitária que rompe as barreiras das fronteiras
nacionalistas.

Assim sendo, em linhas gerais, esta coleção objetiva proporcionar aos professores da
educação básica a ressignificação do estudo das literaturas portuguesa e brasileira a partir de

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suas relações com as literaturas dos demais países de língua portuguesa e a instrumentalização
para o trabalho de elaboração de material didático inovador, o que, acreditamos, conduzirá
para a melhoria da qualidade do ensino da educação básica, especialmente do segundo ciclo
do ensino fundamental e médio, período da formação em que os estudantes brasileiros têm
um contato mais direto com as literaturas de língua portuguesa.

Organização e estrutura da coleção


A presente coleção compreende o total de 10 volumes, dos quais os nove primeiros
correspondem ao material didático de cada uma das disciplinas do curso. Trata-se de material
inédito produzido por professores doutores exclusivamente para esse fim.

Alinhado ao título do curso e à ideia de diálogo e integração entre os países de língua


oficial portuguesa, o curso, bem como esta coleção, fazem uso da metáfora da navegação
para estruturá-lo e organizar os objetos de aprendizagem. Trata-se da ressignificação da ideia
de navegação na medida em que se propõe como uma proposta de integração entre os
países de língua oficial portuguesa por meio da navegação pelas suas diferentes culturas,
ao mesmo tempo em que o percurso se faz também por meio da navegação pelo imenso e
diverso mar de objetos de aprendizagem, sejam os produzidos especificamente para o curso,
sejam aqueles de acesso aberto.

Desse modo, todas as disciplinas que deram origem aos volumes desta coleção foram
organizadas em semanas. Para as disciplinas com carga horária de 45 horas, a distribuição do
trabalho do aluno com o material pedagógico correspondeu a 4 semanas. Já para as disciplinas
com carga horária de 60 horas, a distribuição do mesmo trabalho se deu em 6 semanas. Cada
disciplina contou com os seguintes objetos educacionais que ficaram dispostos no ambiente
virtual de aprendizagem:

Ponto de partida: vídeo de apresentação da disciplina pelo professor responsável;

Carta de Navegação: leitura básica semanal produzida pelo professor, que se constitui
como um roteiro de estudo, pelo qual o cursista poderia navegar pelo conteúdo da disciplina,
com indicações de leituras e links para diversos objetos de estudo;

Desafio de Navegação: correspondeu à atividade avaliativa semanal, podendo variar de


formato em cada semana (atividade dissertativa, fórum de discussão, exercícios de feedback
automático, chat; webconferência; tarefa de envio de texto; glossário; Wiki; diário; vídeo;
entrevista; podcasts, etc.);

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Diário de Bordo: consistiu na produção de um texto reflexivo pelo cursista acerca do
percurso de estudo realizado ao longo da disciplina; no qual ia registrando as suas experiências
de aprendizado e que deveria ser entregue ao final de cada disciplina;

Memória de Navegação: correspondeu a um texto breve de fixação dos principais


aspectos trabalhados ao longo da disciplina feito pelo professor, preparando o cursista para
continuar a jornada ao longo do curso.

Assim sendo, cada volume desta coleção apresenta parte do conteúdo de cada uma das
disciplinas que compuseram o curso de especialização em literaturas de língua portuguesa,
mais especificamente, as Cartas de Navegação que correspondiam aos textos básicos
semanais de cada disciplina.

Por fim, o décimo volume da coleção compreende uma coletânea das versões finais
dos Trabalhos de Conclusão de Curso produzidos pelos cursistas. Foram doze turmas de
orientação, sendo que foi selecionado um trabalho de cada turma para constar na presente
publicação. Os trabalhos finais tiveram formato de artigo acadêmico, por essa razão cada
capítulo desse décimo volume corresponde a um artigo.

Cara leitora e caro leitor, é, portanto, com grande satisfação que os convidamos para
realizarem conosco essa rica viagem!

Prof. Luís Fernando Prado Telles


(Coordenador do curso e organizador da coleção)

Profa. Simone Nacaguma


(Vice-coordenadora do curso e organizadora da coleção)

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SUMÁRIO

Introdução����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������11

1. O letramento literário a cruzar a ponte: a leitura dos contos de Ferréz e a formação de


alunos leitores em escolas periféricas��������������������������������������������������������������������������������16
Leonardo Silva Rocha e Renato Alessandro dos Santos

2. O racismo e alguns de seus desdobramentos em Esse cabelo: uma tragicomédia de um


cabelo crespo que cruza fronteiras, de Djaimilia Pereira de Almeida�������������������������������� 37
Lineker Rodrigo Lima da Cruz e Nani Junilia de Lima

3. Letramento literário na educação de jovens e adultos: as vozes femininas em Brasil e


Moçambique���������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 57
Daniela Morales Monteiro e Monique Alves Vitorino

4. Olhos d’água e Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo: uma proposta de letramento


literário na educação de jovens e adultos (EJA)��������������������������������������������������������������� 83
Priscila Manfré e Mary Nascimento da Silva Leitão

5. Reunindo-se às margens dos Rios: uma proposta de letramento literário a partir de


discussões identitárias nas obras de Mia Couto e Guimarães Rosa�������������������������������� 108
Denilson Barros Nunes da Silva e Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli

6. A leitura na prática escolar: encontros com a poesia falada �������������������������������������� 134


Lídia Juliana Rodrigues Moraes e Lilian do Rocio Borba

7. A busca da palavra em dois contos de Mia Couto: uma proposta de letramento literário�� 162
Juliana dos Santos Padilha e Larissa da Silva Lisboa Souza

8. Clube virtual de leitura pelo WhatsApp: uma possível prática de letramento literário no
ensino médio��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 191
Sabrina Novais Lima e Silva e Patrícia Pedrosa Botelho

9. Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida e a literatura identitária: práticas para a


formação da identidade de estudantes do Ensino Fundamental������������������������������������ 214
Isabel Cristina Furtado de Medeiros Sampaio e Gabriela Manduca Ferreira
10. Para além-mar: Despertando o gosto e a fruição artístico-cultural em crianças por
meio da Literatura Infantil e Juvenil de textos pertencentes à Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa�����������������������������������������������������������������������������������������������������������237
Juliana Camargo Mariano e Deisi Luzia Zanatta

11. Em território literário de Moçambique: �um olhar sobre literatura e sociedade a partir
de dois contos de Dany Wambire������������������������������������������������������������������������������������257
Osvando de Melo Marques e Karla Menezes Lopes Niels

12. Da leitura literária à interpretação do sujeito leitor: perspectivas ideológicas e


constituição de identidades���������������������������������������������������������������������������������������������279
Marcos Vinícius Modro e Rita de Cássia Lamino de Araújo
INTRODUÇÃO

O presente volume corresponde a uma seleção dos trabalhos de conclusão de curso


realizados no âmbito da Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa: Identidades,
Territórios e Deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares. Ao todo,
são doze trabalhos que foram desenvolvidos em formato de artigo acadêmico, que incluem
projetos propositivos de ensino de literatura elaborados a partir do percurso de formação
trilhado pelos cursistas e que se constituem como objetos de análise e reflexão por parte de
seus autores.

Trata-se de um conjunto de artigos com temáticas e objetivos bastante diversos, o


que, certamente, oferece uma riqueza de experiências e de reflexões que interessam a um
público também amplo e diverso no contexto da docência na educação básica, do ensino de
literatura, da formação de leitores e da mediação da leitura.

Relacionados a esses amplos contextos, podemos, todavia, dizer que todos os trabalhos
aqui selecionados se estruturam em dois pilares ou eixos fundamentais: a experiência docente
na educação básica, sobretudo na escola pública, e a experiência do percurso formativo
neste curso de especialização. Experiências essas que culminam, assim, em reflexões sobre a
prática docente no ensino de literatura bem como na elaboração de um projeto de ensino-
aprendizagem baseado em mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
, isto é, de uma proposta prática de intervenção, ou de inovação, que visa à transformação
desses contextos, o que, por sua vez, corresponde ao terceiro elemento comum a todos
os trabalhos. Tal proposta de intervenção foi baseada no caminho de letramento literário
proposto por Rildo Cosson, como descrito no oitavo volume desta coleção.

É nesse quadro, ainda, que encontramos aqui trabalhos que tratam mais especificamente
de questões identitárias, por exemplo, reflexões sobre o racismo, sobre o lugar da voz
feminina na literatura, sobre a literatura de autoria feminina, sobre o perfil dos alunos das
escolas públicas que, em sua grande maioria, correspondem a moradores da periferia.

É pensando nesse público de estudantes, por exemplo, que o artigo O letramento


literário a cruzar a ponte: a leitura dos contos de Ferréz e a formação de alunos/leitores em
escolas periféricas, de Leonardo Rocha e Renato dos Santos, questiona a prevalência na
escolha de obras do cânone da literatura ocidental para o trabalho com a literatura com esse
público, que, segundo os autores, não dialogam com esses jovens e, nesse sentido, defendem
o desenvolvimento do letramento literário por meio de obras que se enquadrem na chamada

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literatura periférica ou literatura marginal. Com esse objetivo, os autores constroem a sua
proposta elegendo como objeto os contos de Ferréz e analisam a sua linguagem e os aspectos
sociais e políticos relacionados tanto aos textos quanto ao contexto da obra.

A problematização do racismo articulada a uma reflexão sobre a identidade negra e


sobre o feminismo negro constitui a temática central do trabalho O racismo e alguns de
seus desdobramentos em Esse cabelo: uma tragicomédia de um cabelo crespo que cruza
fronteiras, de Djaimilia Pereira de Almeida, de Lineker da Cruz e Nani de Lima, cujo objetivo
do desafio de ensino-aprendizagem é contribuir para uma reflexão social acerca do racismo e
do conceito de violência ética. O artigo defende a importância da discussão desses temas em
face da realidade do racismo estrutural na sociedade brasileira, razão de tanta violência sobre
pessoas negras. Espera-se, como resultado deste trabalho, que o estudante do Ensino Médio
se coloque no protagonismo da construção do conhecimento, oferecendo-lhe ferramentas
para que se supere a falta de interesse pelas leituras literárias por meio da prática dialógica
entre os textos e a realidade de vida desse estudante.

O artigo Letramento literário na Educação de Jovens e Adultos: as vozes femininas em


Brasil e Moçambique, de Daniela Monteiro e Monique Vitorino, também objetiva, por meio
de sua proposta de intervenção, o fomento do protagonismo estudantil no desenvolvimento
do letramento literário, concebido por Rildo Cosson. A partir dessa metodologia baseada no
círculo de leitura, isto é, na prática de leitura coletiva e compartilhamento da experiência de
leitura, foi elaborada uma proposta de letramento literário tomando como objeto o romance
Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, e o poema Súplica (1951), de Noêmia Souza, que
retratam o período e a experiência colonial no Brasil e em Moçambique, respectivamente. A
proposta pretende ressignificar as experiências dos estudantes com a literatura e desenvolver
o seu protagonismo na construção do sentido das obras e, ao mesmo tempo, na construção
da imagem de si mesmos a partir dessas novas reflexões. Vale ressaltar o endereçamento
dessa proposta, que são os estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), que tem um
perfil muito singular não contemplado pelos materiais didáticos disponíveis aos professores
da rede pública; por essa razão, o presente artigo vem contribuir para essa lacuna.

Do mesmo modo, o artigo Olhos d’água e Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo: uma


proposta de letramento literário na Educação de Jovens e Adultos, de Priscila Manfré e Mary
Leitão, centra a sua reflexão e o desafio de ensino-aprendizagem no estudante da EJA. Além da
especificidade do público-alvo, a proposta objetiva, a partir da escolha dessas obras de autoria
feminina, chamar a atenção dos alunos para a especificidade dessa escrita para que, desse
modo, possam explorar a potência de significados dos textos. Dentre os resultados esperados,
espera-se estimular reflexões acerca da condição da mulher negra na sociedade brasileira.

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Ainda na perspectiva da construção identitária, o artigo Reunindo-se às margens dos Rios:
uma proposta de letramento literário a partir de discussões identitárias nas obras de Mia Couto
e Guimarães Rosa, de Denilson Silva e Conrado Fogagnoli, discute temas relacionados à ideia
de pertencimento, à percepção do tempo como um fenômeno culturalmente condicionado e
à representação do idoso e do jovem nas sociedades brasileira e africana para, a partir dessas
reflexões, criar as condições e o contexto de leitura para que os estudantes desenvolvam a
compreensão crítica e o valor literário tanto das obras literárias quanto midiáticas às quais
estão expostos.

Articulando esses três elementos ─ reflexão sobre a prática docente, reconhecimento


da identidade, construção de proposta de letramento literário ─, e trazendo um quarto
elemento que também figurará como central neste volume, que é valorização da experiência
subjetiva do sujeito na sua formação crítica, a reflexão das autoras Lídia Moraes e Lilian
Borba ampliam a discussão pautada na identidade articulando-a à ideia de territorialidade, e,
desse modo, ao desenho geral do curso.

Assim, as autoras, no artigo A leitura na prática escolar: encontros com a poesia falada,
problematizam o processo de mediação da leitura literária no contexto das práticas escolares
e defendem a valorização do sujeito-leitor como parte que dialoga com a literatura e essa com
suas narrativas e vivências. Para tanto, a proposta de intervenção baseia-se na organização
de grupos em círculos de leituras com a obra Não vamos nos calar: poemas para serem lidos
em voz alta, produzidos por jovens autoras negras, cujos temas ecoam nas juventudes atuais.

Na esteira do artigo anterior, que reflete sobre a formação do sujeito-leitor articulada à


questão da territorialidade e dos intercâmbios entre Brasil e Moçambique, o artigo A busca
da palavra em dois contos de Mia Couto: uma proposta de letramento literário, de Juliana
Padilha e Larissa Lisboa, apresenta uma proposta de letramento literário a partir da leitura
compartilhada de dois contos: A menina sem palavra e O embondeiro de pássaros, de Mia
Couto (2018), que visa trabalhar a prática da leitura de modo a mobilizar os estudantes
a construírem sua própria interpretação dos textos e, ao mesmo tempo, promover uma
aproximação entre as culturas do Brasil e Moçambique por meio do encontro de cada leitor
com a sua própria palavra, enquanto sujeito reflexivo e crítico.

Com o objetivo de aproximar o estudante das escolas públicas de educação básica, em


especial alunos do terceiro ano do Ensino Médio, da literatura moçambicana, reforçando o
diálogo Brasil-Moçambique, a proposta do artigo Clube virtual de leitura pelo whatsapp: uma
possível prática de letramento literário no ensino médio, de Sabrina Lima e Patrícia Botelho,
como já anuncia o seu título, considerou no seu desafio de ensino-aprendizagem o contexto

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de isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19 e, desse modo, inseriu o whatsapp
como plataforma para o desenvolvimento da proposta.

Os textos literários escolhidos para a atividade foram Eu, mulher, de Paulina Chiziane, o
conto A gata, a cadela e a dona de casa grávidas, publicado no livro Contos de Moçambique,
adaptado por Luana Chnaiderman de Paiva Almeida, e o primeiro capítulo do romance
Niketche: uma história de poligamia, também de Paulina Chiziane.

A proposta levou em conta a realidade dos estudantes de escolas públicas, os quais


têm pouco acesso a obras literárias, e buscou estratégias que possam auxiliar professores de
Língua Portuguesa no trabalho pedagógico com a literatura fazendo uso dessa plataforma,
levando-se em conta um cenário de ensino híbrido, isto é, remoto e presencial.

Também no contexto do trabalho com a literatura identitária, junto com a preocupação


em desenvolver uma atividade que considere a especificidade de um determinado público
de estudantes, o artigo Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida e a literatura identitária:
práticas para formação da identidade de estudantes do Ensino Fundamental, de Isabel Sampaio
e Gabriela Manduca, como o próprio título já anuncia, objetivou refletir sobre a importância
de se trabalhar a literatura identitária com estudantes dessa faixa etária. Espera-se que a
proposta desperte a identificação necessária nesses estudantes a fim de provocar neles o
gosto pela leitura literária e a percepção da sua importância na formação de sua identidade.

Igualmente interessado nesse público de alunos bem jovens, o artigo Para além-mar:
despertando o gosto e a fruição artístico-cultural em crianças por meio da Literatura Infantil
e Juvenil de textos pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de Juliana
Mariano e Deisi Zanatta, coloca em diálogo as obras de Ruth Rocha ─ O reizinho mandão, de
José Cardoso Pires ─ Dinossauro excelentíssimo ─, e de Pepetela ─ A montanha da água lilás:
fábula para todas as idades.

O trânsito entre essas obras busca trabalhar a relação da ficção com a realidade
dos países envolvidos, mostrando aos pequenos a importância da leitura literária para se
ampliar o repertório artístico-cultural, como disposto no texto da Base Nacional Comum
Curricular. O artigo busca também refletir sobre a importância e o valor da Literatura Infantil
e Juvenil no desenvolvimento do letramento literário desse segmento de estudantes, uma
vez que, segundo destacam as autoras, até recentemente, os escritores e críticos desse tipo
de literatura eram desvalorizados, já que ela era considerada uma literatura menor ou um
subgênero.

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Por fim, também seguindo uma perspectiva mais teórica, o artigo Em território literário
de Moçambique: um olhar sobre literatura e sociedade a partir de dois contos de Dany
Wambire, de Osvando Marques e Karla Niels, problematiza a primazia da presença do cânone
das literaturas em língua portuguesa no trabalho com a literatura no contexto da Educação
Básica, inserindo essa discussão na proposta a ser desenvolvida, explicando como o cânone
se constitui e se perpetua, explicitando os elementos histórico-sociais e culturais implicados.

A proposta também está endereçada a um público estudantil bem específico, que são
estudantes do primeiro ano do curso técnico em Agropecuária, integrado ao Ensino Médio,
do Instituto Federal do Triângulo Mineiro, campus Uberlândia. E a obra escolhida para o
projeto de letramento literário foi A adubada fecundidade e outros contos (2017), do autor
moçambicano Dany Wambire, a partir da qual se objetiva desenvolver com os alunos uma
percepção crítica sobre o cânone literário em língua portuguesa, que tende a privilegiar
certas culturas e narrativas em detrimento de outras.

Por fim, no artigo que fecha o volume, intitulado Da leitura literária à interpretação do
sujeito leitor: perspectivas ideológicas e constituição de identidades, Marcos Modro e Rita
de Cássia Lamino de Araújo procuram investigar os efeitos de sentido implicados no ato de
ler, principalmente os elementos ideológicos e de constituição da identidade a partir de uma
reflexão acerca de uma proposta de círculos de leituras focados nos poemas Ninguém e Poema
do futuro cidadão de José Craveirinha, Vício de fala de Oswald de Andrade e Naturalidade de
Rui Knopfli.

Como já destacamos no início desta apresentação, trata-se de um volume bastante


rico, tanto no que se refere à diversidade de obras literárias e de autores representativos das
literaturas brasileira, moçambicana e portuguesa, aos diferentes públicos de estudantes a que
se endereçam as várias propostas desenvolvidas, como também à qualidade e consistência
das referências teórico-metodológicas aqui reunidas.

Temos certeza de que vocês, cara leitora e caro leitor, estão diante de um material rico
e muito inspirador.

Boa leitura!

Luís Fernando Prado Telles


e Simone Nacaguma

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1 O letramento literário a cruzar a ponte:
a leitura dos contos de Ferréz e a formação de alunos
leitores em escolas periféricas

Leonardo Silva Rocha1


Renato Alessandro dos Santos2

RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo o projeto literário, destinado a alunos
do nono ano do fundamental II e de todos os anos do ensino médio de escola pública, que
envolve a leitura do livro de contos Os ricos também morrem (2015), do escritor Ferréz. O
letramento literário (COSSON, 2006), A teoria literária (BAUTZ, 2019) e O ensino de literatura
(SOARES, 2008), além de textos de (DIAS, 2009) e de (SOUZA, 2014), são a base teórica de
revisão bibliográfica do que é abordado neste trabalho. Por se tratar de objeto de análise
que tem como proposta a leitura de contos de um escritor associado à literatura marginal/
periférica, busca-se compreender a relação entre leitores periféricos de escola pública e
uma obra que, em suas narrativas, aborda vivências conhecidas por alunos que estudam
em escolas de áreas menos privilegiadas. O foco principal de análise parte da relação de
identidade que pode irromper no interesse pela leitura de textos da literatura marginal/
periférica e em práticas promissoras de letramento literário com a formação de um círculo
de leitores em escolas de periferia.

Palavras-chave: Ensino; Literatura Marginal/Periférica; Identidade; Letramento


Literário; Periferia.

1 Minibiografia do autor: Possui licenciatura em Letras - Português/Inglês e em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho.
Pós-graduando em Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Leciona na rede estadual de
São Paulo desde 2012 e atua como professor efetivo de Língua Portuguesa e Literatura (Ensinos Fundamental II e Médio) na Escola
Estadual Professor Flavio La Selva. E-mail: rochaleonardo01@gmail.com.
2 Minibiografia do orientador: Possui graduação em Letras; é mestre e doutor (na área de Estudos Literários) pela Universi-
dade Estadual Paulista (UNESP). Atua como professor no Centro Universitário Moura Lacerda e no Ensino Médio do Colégio Marista,
ambos de Ribeirão Preto. É orientador do MBA em Gestão escolar, do Pecege (USP/Esalq), e atuou, no segundo semestre de 2021,
como orientador no curso de especialização em Literaturas de Língua Portuguesa da UAB/UNIFESP (Universidade Federal de São
Paulo). E-mail: realess72@gmail.com.

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1. Introdução
Foi pensando em minha formação continuada que me inscrevi para o curso ofertado
pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) em Literaturas de Língua Portuguesa
– Identidades, Territórios e Deslocamentos e na oportunidade de aprofundar meus
conhecimentos nas diversas literaturas escritas em nossa língua que existem pelo mundo.

Passei por diversas disciplinas que abordavam desde a questão estética da literatura à
questão da identidade que ela pode causar em seus leitores, estudei literaturas em verso e
prosa de Moçambique, Portugal e Brasil. Apesar de ter um grande interesse pela literatura
moçambicana e pela literatura contemporânea produzida em Portugal, estudar a literatura
brasileira da forma que o curso a apresentou me despertou o interesse de querer pesquisar
mais sobre ela, pois na nossa literatura há tantas vozes, tantos locais e tantos povos
desmerecidos que despertam ainda mais a vontade de navegá-las.

A disciplina sobre a literatura brasileira me trouxe a possibilidade de observar a produção


literária do Brasil por meio das identidades, dos territórios e dos deslocamentos. Rever a
literatura brasileira por essa perspectiva faz com que deixemos de hierarquizar as produções
literárias pelo mundo e até mesmo deixemos de desvalorizar nossa língua portuguesa ou
brasileira.

Durante todo o curso as reflexões sobre meu trabalho, enquanto docente, com a
literatura, eram constantes, mas foi ao estudar a disciplina sobre Projetos Integrados para o
Ensino de Literaturas de Língua Portuguesa que pude pensar e elaborar algo para ser posto
em prática na sala de aula por mim e até por outros colegas. Para a criação deste projeto de
leitura literária quis utilizar uma obra que conversasse diretamente com alunos de periferia
da escola pública, pois é com eles que trabalho. Leciono em uma escola localizada no bairro
Jardim Ângela, na zona sul da capital paulista, mais especificamente da ponte pra cá3, o que
explica a escolha do título para este artigo.

A obra escolhida chama-se Os ricos também morrem (2015), de Ferréz, pois creio que
os contos dela, através de um projeto de leitura, dialogam com a vivência, o cotidiano, a
localidade e a identidade de meus alunos. Também acredito que, com a leitura dela, através
de um círculo de leitura literária o letramento literário e outros possam ocorrer justamente
por estar ligada ao conhecimento de mundo que eles já trazem consigo. Porém, o trabalho
com a literatura em prosa feita por vozes periféricas ainda está distante do ambiente escolar,
3 Expressão presente na letra da música (homônima) do grupo de rap Racionais MC´s e comumente usada por moradores
da região paulistana, refere-se ao lado periférico da ponte do Rio Pinheiros, que é considerada uma separação sociogeográfica entre
bairros pobres e ricos na zona sul da capital paulista. Este fato é mostrado detalhadamente no documentário A Ponte (2006). Ambos
(letra e documentário) são referenciados no projeto de leitura inserido neste artigo.

17
ausente nos livros didáticos, nas salas de leitura e na escolha dos próprios professores que,
muitas vezes, priorizam a leitura de obras consideradas clássicas e que evidenciam uma
visão burguesa do mundo, o que faz com que alunos periféricos não se identifiquem com
uma leitura que os exclui da fruição da leitura literária por terem problemáticas e linguagem
de uma classe social a qual eles não pertencem. No entanto, o trabalho com a literatura
marginal/periférica não visa substituir as leituras canônicas, mas sim a ampliar o universo de
leitores que antes precisamcompreender criticamente os espaços que ocupam e o porquê
suas vozes sempre foram silenciadas em detrimento da hegemonia do pensamento das
classes dominantes (FREIRE, 2011, p. 30-31).

Por isso, no presente artigo, a relação de alunos periféricos com uma obra que narra
o cotidiano plural da periferia será analisada dentro do projeto de leitura proposto a um
público que conversa diretamente com as histórias ferrezianas, bem como verificar de que
forma o letramento literário pode ocorrer através de vozes não consideradas canônicas na
literatura, considerando de que modo podem causar identificação e interesse pela leitura a
alunos/leitores que vivem em situação de desigualdade social e educacional, assim como as
personagens dos contos do escritor Ferréz.

2. Contextualização
O início do curso deu-se após o período da pandemia que ainda perdura pelo mundo e,
após uma espera, ele finalmente teve seu começo. Estava ansioso para começar os estudos
da pós-graduação, a possibilidade de estudar as diversas literaturas em língua portuguesa
pelo mundo com professores de outros países e falantes de português me agradava muito,
pois era algo novo para mim.

Poder conhecer mais sobre literatura e refletir sobre minha prática como docente
no ensino de literatura ocorreu logo nas primeiras disciplinas do curso, pois elas traziam
embasamento teórico imprescindível aos estudos literários. Logo depois, começamos a
navegar sobre as literaturas produzidas no Brasil, Moçambique e Portugal. A forma não
linear do curso de apresentá-las foi impactante, pois também penso que a literatura deva
ser ensinada e apreciada assim; e a visão não eurocêntrica e não hierarquizante de abordar
as literaturas, que notei e vivenciei em cada semana de estudo, enquanto registrava essas
impressões em meu diário de bordo, iam cada vez mais me fazendo entender que a literatura
pode e deve ser trabalhada de outra forma, tanto na universidade quanto na educação básica.

18
Estudamos a literatura brasileira nas variadas expressões que teve e tem, do Barroco
ao Slam, lembro-me de que questionei em meus diários de bordo sobre a possibilidade
dos mitos indígenas brasileiros e africanos estarem em algum lugar na nossa literatura ou
oratura, a língua portuguesa e as várias possibilidades de entender sua história política,
social e ideológica e a disciplina de teor mais prático sobre o trabalho com a literatura em
sala de aula nos propôs que criássemos um projeto de leitura literária em acordo com os
conceitos de letramento literário e círculo de leitura de Rildo Cosson.

Como mencionado anteriormente, escolhi a obra de contos de Ferréz e a literatura


marginal/periférica, pela pluralidade com que a literatura brasileira nos foi apresentada.
Assim, para a criação do projeto de leitura literária e para a análise no artigo, pretendo
compreender como se dá a relação entre os escritos periféricos e os leitores de escolas
públicas de periferia, pois ainda observo a literatura de expressão periférica sendo relegada
nas escolas, o que traz uma problemática a se investigar, já que ela é produzida por escritores
à margem do que é tido como exemplar e educativo no que tange ao ensino de literatura,
porém, não podemos nos esquecer de que, em sua temática, geralmente, conversam
diretamente com jovens que, como quaisquer outros de classes mais abastadas ou não, têm
direito à fruição da arte literária em todas as formas de expressão (CANDIDO, 2013, p. 193).
E o contato com a literatura periférica pode ser a retomada desse direito, assim como a
possibilidade de refletir criticamente sobre suas condições, enquanto moradores de bairros
periféricos, e reivindicando dessa maneira, esse e tantos outros direitos que lhes são negados.

3. Fundamentação teórico-metodológica
O presente artigo tem como proposta analisar os aspectos identitários de um projeto de leitura
que tem, como prática, a leitura de contos de um escritor intrinsicamente associado à literatura
marginal/periférica, como Ferréz, assim como entender de que forma o contato de alunos de
periferia com a obra Os ricos também morrem (2015) pode desenvolver, em sala da aula, o apreço dos
estudantes pela leitura literária e pela consciência político-social que possa ampliar, criticamente, o
olhar deles sobre suas realidades de exclusões sociais, econômicas, educativas e culturais.

Desta maneira, busca-se compreender se a literatura marginal/periférica quando inserida em


salas de aula, nas escolas da periferia, e sendo mediada por um projeto que vise ao letramento
literário, pode obter efeitos diferentes da abordagem retilínea com a qual a literatura ainda é utilizada.

Os modos utilitários de ensino da literatura são encontrados nas práticas dos professores em

19
suas aulas, nas questões dos vestibulares, nos textos oficiais que legislam sobre ensino e educação no
Brasil e no conteúdo dos livros didáticos selecionados para as aulas de Língua Portuguesa e Literatura
dos ensinos fundamental e médio.

Tais métodos, na maioria das vezes, passam aos alunos uma visão de literatura como: uma arte
apenas arcaica, ao priorizar a apresentação dos estilos de época, burguesa, pela escolha de obras
que retratam apenas o estilo de vida da classe média e da elite, distante, porque não se conecta à
realidade de alunos periféricos que não tiveram a herança cultural pertencente à classe dominante e
até mesmo eurocêntrica, ao evidenciar os autores que se enquadram nos padrões artísticos europeus.
Ou seja, a presença da literatura na escola ainda está na contramão do que se vê na arte literária e
nos estudos atuais sobre ela, o que exemplifica abordagens utilitárias e retilíneas dela, atualmente, no
ensino, as quais almejam bons resultados em exames estudantis, seguindo tradicionalmente a trajetória
cronológica da história da literatura brasileira em seus estilos de época (COSSON, 2006, p. 21).

Nos estudos literários das últimas décadas, a literatura tem sido contestada no que nela é
considerado tradicional, em decorrência disso, uma investigação do que é produzido por vozes
plurais, no universo literário, lhe é dedicada. E a escola — independentemente da localidade social
que ocupa — pode e deve estar em consonância com todas as manifestações artístico-literárias que
despertam a conscientização humanística de um leitor.

Portanto, a compreensão de como a literatura na escrita de um autor periférico pode formar


novos leitores, proporcionar a fruição estética e auxiliar nas práticas de letramentos, dentro das
escolas periféricas, implica em uma prática de leitura literária a ser considerada no ambiente escolar.
Assim, a base teórica deste artigo se dá por meio do diálogo com autores que trataram das questões
que envolvem a leitura de literatura marginal/periférica na sala de aula.

O fator de identidade que a literatura marginal/periférica pode apresentar com leitores


periféricos, inicialmente, é um ponto de partida para a prática de leitura dela com alunos que
demonstram desinteresse pela leitura. Para Soares (2008), a literatura marginal/periférica
foi utilizada como uma opção, na sala de aula, após o insucesso com a tentativa de leituras das
literaturas já legitimadas, no âmbito acadêmico e escolar, as quais não geravam interesse aos alunos.
Ela identificou, empiricamente, que a leitura de textos da literatura marginal/periférica causava
identificação em estudantes de uma escola localizada na zona norte da periferia de São Paulo. Os
alunos se interessaram pelos textos de autores periféricos por causa das temáticas contidas nas
narrativas como drogas, amor, violência, sexo, pobreza e luta social. No entanto, a autora aponta
que a literatura produzida por escritores periféricos é insuficiente para a formação do leitor literário,
e acrescenta que, para tal feito, obras com maior exigência do leitor devem ser lidas na escola.

20
Dias (2009) propõe a inserção da literatura marginal, nas escolas, como um meio de
conscientização social, analisa as diferenças na linguagem da escrita de Ferréz a diferentes públicos
(infantil e adulto) e acredita que a representatividade de um grupo social, na arte da cultura urbana
periférica, pode gerar futuros leitores. As contribuições dela ajudam a elucidar o processo prático da
leitura dos textos de Ferréz na escola voltada ao ensino de alunos periféricos.

Souza (2014) expõe de que forma práticas educativas menos excludentes podem ser feitas a
partir da leitura da literatura marginal/periférica, contribuindo para um ensino crítico inserido em
uma sociedade opressora e capitalista.

Leite (2014) analisa, do ponto de vista estético, obras da literatura marginal/periférica, a qual
ele divide cronologicamente em literatura hip hop e literatura periférica. As análises dele sobre a
literatura da periferia paulistana contribuem para o olhar sobre os escritos periféricos para além do
âmbito de conflito social que existe dentro e fora do texto. Desta forma, é possível entendê-la como
uma expressão artística que permite a fruição estética do leitor, bem como a reflexão a respeito da
realidade de exclusão que ela narra.

Bautz (2019) estuda os contos do escritor Ferréz e a relação que eles têm com os temas e a
escrita das letras do rap nacional e, apesar dos poucos estudos sobre os aspectos estilísticos da
nova literatura marginal, os estudos dele são fundamentais para maior compreensão do processo de
construção de linguagem do autor paulistano.

Cosson (2006) defende que o processo de letramento literário, se posto em prática dentro das
escolas, estimula a leitura na educação básica e pode também ressignificar a relação entre escola
e literatura. O autor tece diversas críticas em relação ao uso da literatura na educação e pontua
que ele não é eficaz para a formação de alunos/leitores e ressalta que o letramento literário é uma
prática social de responsabilidade da escola. Nesse sentido, o autor nos auxilia no desafio de se
colocar em prática o letramento literário por meio da leitura de uma obra considerada não-canônica.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
Na obra Os ricos também morrem de Ferréz (2015), inserida no projeto de leitura
elaborado na disciplina Projetos Integrados para o Ensino de Literatura de Língua Portuguesa,
há diversos contos que relatam a vida de personagens que vivem na periferia e apresentam

21
problemas que se assemelham, pela situação econômica de exclusão em que se encontram,
à realidade de pessoas que moram em bairros periféricos de cidades como a de São Paulo.

Posto isso, o estudo apresentado tem como objeto de análise o fator de identificação
que leitores periféricos podem ter ao se deparar com narrativas que envolvem personagens
que vivenciam realidades próximas as suas; e, buscará compreender como isso pode colaborar
no incentivo à leitura prazerosa e aprofundada de textos literários assim como promover os
letramentos literário e crítico por intermédio de um projeto de leitura a ser desenvolvido
dentro de escolas periféricas.

O trabalho com os alunos começa com a exibição do documentário A Ponte (2006);


com ele os alunos passam a ter uma visão aprofundada das diferenças sociais que existem
entre moradores de bairros pobres e nobres da zona sul paulistana. O filme conta com as
participações de Ferréz e Mano Brown. Assim, os alunos têm conhecimento do contexto em
que as narrativas da obra escolhida se passam, podendo observar como as desigualdades
sociais que vivenciam são construídas, o que resulta em uma prática de letramento crítico.
Após isso, a leitura dos contos de Ferréz ocorre de modo individual e coletivo, e alguns contos
são lidos e debatidos em sala de aula.

Durante os encontros para a leitura da obra, textos jornalísticos são lidos e comparados
com os fatos narrados na leitura dos contos.

É incentivado que os alunos mantenham registros sobre suas impressões de leitura em


um diário de leitura; nele, podem apontar suas reflexões, questionamentos, dificuldades e
conclusões.

A forma de avaliação é a escrita dos diários de bordo, feita pelos alunos e lida pelo
professor, e a produção, criada em grupo, é a de um episódio de podcast sobre um conto
analisado do livro. A intenção desta etapa do processo de letramento literário é a de colocar
os alunos em contato com outros gêneros textuais que permitam a reflexão, a exposição e o
compartilhamento sobre a leitura do conto que analisaram.

Um dos principais objetivos do projeto literário é o de promover a leitura como um meio


de interação social, gerando leitores críticos na relação que estabelecem com a sociedade.

O projeto citado encontra-se na íntegra no final do artigo (Apêndice A) para a observação


do que ele se propõe e para a ilustração dos aspectos dele que servem de análise no presente
trabalho.

22
5. Análise, discussão e resultados esperados
A literatura marginal/periférica ampliou-se, no fim do século XX, com o lançamento do
romance Capão Pecado, de Ferréz (2000). Após a publicação do livro, o autor é convidado a
ser colaborador da revista Caros Amigos, e nela organiza o projeto Caros Amigos/Literatura
Marginal: a cultura da periferia Ato I, II e III, em três edições nos anos de 2001, 2002 e 2004
que contém um manifesto de apresentação, escrito pelo organizador, e textos de diversos
autores periféricos contemporâneos. Inicialmente, a ideia de publicar textos literários, de
escritores que se consideravam à margem do eixo mais prestigiado da cultura, surge nas
periferias paulistanas e depois se expande para regiões semelhantes do Brasil. De certa forma,
ela é herdeira direta da literatura negra brasileira produzida na década de 1960 (SILVA, 2011,
p. 101-102).

As temáticas dessa literatura, dado o seu contexto de surgimento, geralmente, tratam


das vivências de moradores de bairros periféricos e das dificuldades enfrentadas por eles no
dia a dia. É uma expressão literária que apresenta engajamento político, utiliza linguagem
coloquial, dialoga com a cultura hip hop, repercute nas lutas sociais e contrasta as relações
entre as classes baixa e alta (LEONARDI, 2016, p. 84-91).

Segundo Cosson (2006, p. 90), a abordagem temática é o modo mais familiar de


trabalhar com a leitura literária, ela desperta o interesse do aluno e faz com que ele comente
sobre a leitura com pessoas ao seu redor. Tal fato ocorre, principalmente, por conta de temas
polêmicos. Entretanto, é preciso, durante o processo de leitura na escola, não se ater apenas
às temáticas, mas observar a repercussão delas dentro da obra.

No livro Os ricos também morrem (2015), de Ferréz, há narrativas curtas com


temas comuns à literatura marginal, como crime e drogas, mas também histórias sobre
relacionamento amoroso, conflitos familiares, violência policial, suicídio, preconceito, racismo
e a rotina de trabalhadores nos centros urbanos. Ou seja, a leitura dos textos de Ferréz coloca
o leitor em contato com temáticas diversas, polêmicas e atuais. Cosson (2006, p. 34) afirma
que as práticas de letramento literário devem trabalhar com o atual, contemporâneo ou não,
pois é a atualidade da obra que traz facilidade e interesse pela leitura aos discentes.

A leitura de obras com temas múltiplos realizam funções entre valores, história, cenários
e tempos, todos esses conteúdos fazem com que a sua formação pedagógica atue como um
transformador de consciências (SOUZA, 2014, p. 21). Por isso, é preciso que o professor tenha
o preparo adequado para mediar a leitura e manter o foco dos alunos, durante a fruição da
obra, diante de tais temas (DIAS, 2009, p. 25).

23
A escolha de uma obra como essa para a leitura literária, na escola, parte da premissa
de formar alunos/leitores de bairros periféricos que, ao se depararem com textos literários
que retratam aspectos das realidades deles, passem a ter contato mais significativo com
o texto literário, o que estabelece uma relação mais producente com a prática social de
letramento, a qual Cosson descreve da seguinte forma:

Ser leitor de literatura na escola é mais do que fruir um livro de ficção ou se deliciar com as
palavras exatas da poesia. É também posicionar-se diante da obra literária, identificando e
questionando protocolos de leitura, afirmando ou retificando valores culturais, elaborando
e expandindo sentidos. Esse aprendizado crítico da leitura literária, que não se faz sem o
encontro pessoal com o texto enquanto princípio de toda a experiencia estética, é o que
temos denominado aqui de letramento literário. (COSSON, 2006, p. 120).

Outro fator a ser considerado, sobre a inserção da literatura marginal na sala de aula,
é o processo de identificação que os textos causam, ou podem causar, em jovens leitores de
bairros periféricos e estudantes de escolas públicas. A respeito disso, Soares diz:

Mediante personagens anti-heróis, com trajetórias de pobreza, miséria, agressividade e


abandono, ocorre, durante a leitura da narrativa, uma identificação (repúdio, indignação e
compadecimento) que possivelmente gera uma relação mais intensa e próxima entre obra e
leitor (SOARES, 2008, p. 92).

De acordo com Dias (2009, p. 22-24), se existe uma literatura que propicia o interesse
pela leitura a alunos que, muitas vezes, são considerados pouco motivados para a leitura
literária, ela pode passar a ser uma opção dentro das escolas, justamente, pelo caráter de
identidade que possui com o leitor e com a realidade dele. Mas só a identificação não basta:
o trabalho com a literatura marginal precisa ter a mediação do docente; somente assim, a
leitura dela poderá gerar futuros leitores.

As narrativas da literatura marginal/periférica, apesar de não registrarem a realidade


factualmente, mantêm relação com o real periférico, às vezes de crueldade e violência, e, por
isso, a identificação ocorre no processo de leitura delas (SOARES, 2008, p. 111).

Tendo isso em vista, reconhecer as várias manifestações literárias, conhecer a realidade


dos estudantes e apresentar-lhes textos literários que trazem conhecimento de mundo que
já compartilham é um modo de formar sujeitos leitores dentro do ensino de literatura, como
elucida Cosson:

[...] adotamos como princípio do letramento literário a construção de uma comunidade de


leitores. É essa comunidade que oferecerá um repertório, uma moldura cultural dentro da
qual o leitor poderá se mover e construir o mundo e a ele mesmo. Para tanto, é necessário

24
que o ensino da Literatura efetive um movimento contínuo de leitura, partindo do conhecido
para o desconhecido, do simples para o complexo, do semelhante para o diferente, com o
objetivo de ampliar e consolidar o repertório cultural do aluno. Nesse caso, é importante
ressaltar que tanto a seleção de obras quanto as práticas de sala de aula devem acompanhar
esse movimento (COSSON, 2006, p. 47-48).

A desigualdade e diversidade existentes no Brasil aparecem também nas escolas de periferia. Em


um mesmo local, como o ambiente escolar, é possível notar diferenças sociais, econômicas e culturais
entre os alunos. Logo, referente aos níveis de aprendizagem não é diferente, os alunos apresentam
muitas disparidades entre si, por isso é importante pensar em uma obra que seja acessível a todos
para que o trabalho de leitura literária, dentro de um projeto, forme uma comunidade de leitores.

Assim, os alunos podem se ajudar, mutuamente, na leitura, na compreensão, na


discussão e na análise dos textos. Posto isso, trazer a literatura marginal/periférica para ser
lida na escola inclui a formação de sujeitos leitores periféricos que se tornem capazes de
observar suas próprias realidades e as diferenças entre elas, a partir do pensamento crítico,
pois:

Ler o texto literário leva o ser humano a compreender diferentes realidades, contribuindo
para que ele ou ela se posicione criticamente diante da sua própria realidade. Qualquer
pessoa, seja criança ou adulto, possui a “capacidade” da ficcionalização, de imaginar antes
de realizar, portanto construir conhecimento com a literatura significa estabelecer relações
dialógicas com outros saberes, textos e concepções. Assim, a literatura promove em sua
leitura a aprendizagem do próprio indivíduo e sua condição em um universo múltiplo e de
diversos acúmulos de racionalidades (SOUZA, 2014, p. 20-21).

A leitura da obra de Ferréz traz outro aspecto a ser observado dentro da literatura: a linguagem.
A respeito da linguagem da literatura marginal, Soares (2008, p. 60) diz que a coloquialidade dela
apresenta facilidades para o leitor, não exigindo dele maiores esforços para a compreensão do texto.
Contudo, Dias (2009, p. 34-41) afirma que a linguagem coloquial presente nos textos da literatura
marginal periférica de Ferréz é dinâmica, envolvente e possui facilidades e complexidades no
processo de leitura. O uso de gírias, ortografia própria, calões e marcas de oralidade causam fascínio
e estranhamento a quem lê.

Leite (2014, p. 19-20) categoriza a literatura marginal/periférica, por razões estéticas, em dois
segmentos: o da literatura hip hop (2000 a 2005), este é fortemente influenciado pelo movimento
cultural hip hip e nele predomina a escrita em prosa, e o da literatura periférica (a partir de 2005), o
qual é marcado pela escrita em verso e surge das trocas literárias dos saraus periféricos na cidade de
São Paulo. Dentro dessa categorização, Ferréz está inserido no primeiro segmento, que tem como
característica o teor de denúncia sobre o sofrimento e o abandono do povo periférico por parte

25
das políticas dos governos, o que também é denunciado nas letras de música do rap nacional deste
período.

Bautz (2019b, p. 180-181) concorda com a comparação entre a escrita da nova literatura
marginal e as letras de rap. Para ele, os contos de Ferréz e as obras relacionadas ao local de enunciação
das periferias possuem características fundamentais como: marcas de oralidade, tendência por
construções mais aditivas a subordinativas (por conta da aproximação ao cotidiano dos artistas),
a empatia com os fatos narrados, o uso de rimas e repetições, o tom de combate e o modo como
dados fictícios e documentados se misturam nas entrelinhas das obras.

Cosson (2006, p. 71) diz que, quando a leitura de uma obra, no processo de letramento
literário, possui textos muito curtos, é interessante dividi-la em dois momentos: um, para a leitura
de reconhecimento, feita pelos alunos, e outro para a leitura oral, que pode ser feita pelo professor,
pois este já conhece o texto e consegue realizá-la, expressivamente, com competência. Essa prática
é possível de ser aplicada à leitura dos textos de Ferréz; a análise dos contos do autor, feita por Bautz
reforça tal afirmação, visto que:

[...] a oralidade se apresenta como uma característica determinante no rap, assim como nos
textos de Ferréz. No prefácio de Os Ricos Também Morrem, o escritor paulistano já adianta
a técnica de sua composição: a oralidade relacionada à memorização. Assim, as rimas e
repetições do conto “Meu Querido Crime”, por exemplo, podem ser avaliadas como recursos
mnemônicos, da mesma forma que o tom agonístico presente não apenas em diálogos que
emulam contatos em presença, mas no próprio tom combativo do prefácio e de considerável
parte dos narradores da obra pode indicar um modo de expressão fundado na oralidade
(BAUTZ, 2019a, p. 11-12).

Além dessas características descritas por Bautz, pode-se observar também, nos textos
de Ferréz, um teor tragicômico que coloca em oposição situações que geram, ao mesmo
tempo, revolta e humor, o uso de palavrões que indicam a indignação na narração e a
não nomeação de personagens, o que causa um efeito de real que indica a possibilidade
de a história ter ocorrido com qualquer pessoa próxima ao leitor. Como é o caso do conto
Odeio amar ele: escrito em primeira pessoa, narra a história de uma mulher (personagem
inominada) que desabafa a uma amiga os problemas que passa, após o pai de seu filho ter
ido embora e ajudar precariamente nas despesas da criança. Depois de descrever os detalhes
de sua relação amorosa, a narradora-personagem relativiza, na crença de reatar a relação, os
defeitos morais e físicos apontados em Juliano por ele ainda ser o pai de Henrique, seu filho.
Tais observações podem ser vistas no seguinte trecho:

Bom, cê viu que o Juliano foi embora, né?


Cê viu o que ele fez comigo?

26
Filho da puta, grande filho da puta mesmo, parece cachorro cruzando por aí.
Engravida, pizza e coca-cola.
Deixou eu e o filho dele, filho dele, porque querendo ou não é filho dele o pobre do menino.
[...]
[...], mas hoje vou falar, vou no bar, vou no serviço dele, vou no campinho onde ele joga bola,
vou falar da bola dele, cansei de ser boba.
Engravida, pizza e coca-cola. [...] (FERRÉZ, 2015, p. 111-113).

Leonardi (2016, p. 216-217) mostra, em suas pesquisas, que há pouca presença da


literatura marginal e periférica em livros didáticos e no acervo das escolas. Dias (2009, p. 51-
54) apresenta em sua pesquisa imagens de um livro didático e indica que houve omissões e
até mesmo alterações dos textos originais de Ferréz. Leite (2014, p. 17) aponta para o fato que
são poucos os estudos que analisaram a literatura marginal em sua estética, a maioria deles
ocupa-se dos fatores sociais intrínsecos e extrínsecos ao texto. Diante de tais constatações,
nota-se que a literatura produzida por vozes periféricas ainda não atingiu uma análise mais
profunda, em comparação com outras expressões literárias, isto é, desvencilhada da análise
convencional, como comumente feita em salas de aula por meio dos materiais de apoio; ou
seja, mesmo quando se tem a presença da literatura periférica, a apresentação dela é feita
sob uma ótica conservadora. Silva ajuda a compreender essa problemática:

Na história literária brasileira, passou-se ver o escritor negro como uma espécie de avis
rara. Dadas as condições sociais de produção e surgimento dos autores, não raras vezes se
questionou como foi possível a criação literária ter aparecido em cenários tão inóspitos ou
deslocados. O insólito opera não como um elemento do universo fantástico; mas sim, como
uma via de mão dupla do quotidiano. Pauta-se, por um lado, pela história e condições sociais
a que negros e periféricos majoritariamente se encontram e vivenciam; por outro, a negação
da negação, o princípio de afirmação do eu e do sujeito social, que faz com que o ativismo
político e a criação literária de autores negros e periféricos se tornem possíveis. Contudo, o
insólito se apresenta assim também porque se constroem prejulgamentos sobre os lugares
naturais e naturalizados para sujeitos nascidos e socializados em determinadas condições
sociais. Quando ocorre a negação da negação, gera-se a pergunta de espanto. O insólito
existe, portanto, porque, apesar de tudo existe a História e nela se desvelam horizontes de
possibilidades, que se confirmam ou não (SILVA, 2011, p. 16-17).

A relevância da inserção da literatura marginal/periférica em escolas de periferia se


dá pela urgência de um ensino de literatura que não exclua uma parte da população de sua
história, produção cultural e identidade. Espera-se que, com a prática do projeto de leitura
literária, inserido neste artigo, os alunos apreciem a leitura literária por verem a si e aos
seus nas histórias narradas, que também associem o que leem à realidade político-social e
busquem, conscientemente, modificá-la naquilo que lhe é desigual e segregacionista, pois:

27
A educação baseada em interesses capitalistas desconstrói o sujeito de sua própria história
e, dessa maneira, a língua, as relações religiosas, crenças e valores constituem as concepções
de quem os explora. Assim, a história do dominador passa a se sobrepor à do dominado,
suprimindo suas concepções de mundo (SOUZA, 2014, p. 37).

Outra expectativa é a de que os alunos percebam os aspectos estéticos do texto


literário manifestado em linguagens e recursos múltiplos, ao analisarem como e por que se
dá a construção da escrita de um autor como Ferréz, que escreve na variante coloquial do
português brasileiro. Guiar-se por esse percurso é o que permitirá a formação de leitores
dentro da escola, como explica Cosson:

[...] na leitura formativa a literatura ocupa uma posição capital. É assim que, por meio da
leitura da literatura, temos acesso a uma grande diversidade de textos, pois é próprio do
discurso literário a multiplicidade das formas e a pluralidade dos temas. Sendo menos língua,
no sentido de um sistema gramatical determinado, e mais linguagem, compreendida como a
competência de fazer o mundo com palavras, a literatura não tem outro limite que a própria
capacidade de significar (COSSON, 2014, p. 49).

Portanto, propor um projeto de leitura que almeja o letramento literário dentro das
aulas de Literatura se faz necessário para que se forme leitores capazes de refletir sobre suas
próprias identidades e as condições das localidades onde vivem. Por meio da sensibilização e
identificação que as narrativas dos contos de Ferréz podem promover aos alunos de escolas
localizadas em áreas menos favorecidas, um trabalho efetivo pode ocorrer por despertar
interesse, principalmente, naqueles que não possuem o hábito prazeroso de ler.

6. Considerações Finais
Buscou-se, até aqui, compreender as questões de um projeto de leitura literária criado
a partir da leitura de uma obra da literatura marginal/periférica; dentre elas: o fator da
identidade entre leitor e obra; a linguagem nos contos de Ferréz e como sua construção
pode ser analisada e lida; bem como entender que os aspectos sociais, presentes dentro e
fora do texto, podem ser trabalhados sem que um se sobreponha ao outro, durante a leitura
e interpretação dos textos.

As possibilidades e potencialidades de trabalho com a linguagem literária são vastas e


devem ser exploradas nos espaços escolares, adequando-se ao contexto social em que elas
podem acontecer, porque é pelo reconhecimento das muitas vozes literárias que o letramento
literário poderá cruzar as barreiras sociais existentes no acesso amplo à literatura.

28
A proposta de formação de círculo de leitura, inserida neste artigo, tem como objetivo
primordial o de despertar, em alunos de escolas periféricas, o gosto pelo aspecto literário dos
textos. Logo, não exclui a possibilidade de que se leiam outras expressões literárias (canônicas
ou não), durante e depois do processo de letramento literário proposto com a obra de contos
de Ferréz. É o prazer de ler que leva o leitor de uma obra a outra:

Ler não tem contraindicação, porque é o que nos faz humanos. Todas as formas de ler valem
a pena. Todas as formas de ler são diálogos entre o passado e o presente. Todas as formas
de ler são modos de compartilhar saberes, experiências e concepções da vida e do mundo.
Os círculos de leitura são espaços de compartilhamento organizados para que o diálogo em
torno de uma obra seja também um lugar onde leitores se reconheçam como membros de
uma comunidade. (COSSON, 2014, p. 179)

Por conseguinte, depreende-se que a leitura de uma obra não-canônica não implica
na necessidade de ser complementada com a leitura de uma obra canônica, de tema
parecido e com linguagem mais difícil, pois ambas são expressões da arte literária e trazem
complexidades semelhantes e distintas, ao serem lidas em sala de aula. Porém, é preciso que
se tenha ciência de que, para o trabalho com textos da literatura, clássica ou não, antes, é
fundamental formar alunos/leitores que apreciem a leitura e que entendam a transformação
que a literatura pode causar, socialmente, em suas vidas. Nessa perspectiva, cabe ressaltar
que a formação do aluno/leitor é o que permitirá a escolha reflexiva e crítica de suas próprias
leituras.

29
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAUTZ, Diego Kauê. Os contos de Ferréz: das relações entre a nova literatura marginal
e o rap. 2019a. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras). – Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019.

______________ . Os Contos de Ferréz, a Nova Literatura Marginal e o Rap. Opiniães, [S.


l.], n. 14, p. 178-190, 2019. 2019b. DOI: 10.11606/issn.2525-8133.opiniaes.2019.154669.
Disponível em: <<https://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/view/154669>>. Acesso
em: 13/07/2021.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2013.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª ed,. 10ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2006.

___________ . Círculos de leitura e letramento literário. 1ª ed,. 4ª reimpressão. São


Paulo: Contexto, 2014.

DIAS, Maria Isabel Martins Teixeira de Gavino. Literatura Marginal, uma proposta de
leitura para formação de futuros leitores: a leitura pode fazer parte da vida dos alunos,
pois a vida deles também faz parte da literatura. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras).
Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2010.

FERRÉZ. Os ricos também morrem. São Paulo: Planeta, 2015.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51ª ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

LEITE, Antonio Eleilson. Mesmo céu, mesmo CEP: produção literária na periferia de São
Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos Culturais). Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2014.

LEONARDI, Sandra Eleine Romais. A Literatura Marginal-Periférica e sua inserção no


Ensino Médio. 2016. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná,
2016. Curitiba, 2016.
SILVA, Mario Augusto Medeiros da. A descoberta do Insólito: literatura negra e literatura
periférica no Brasil (1960-2000). 2011. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 2011.

SOARES, Mei Hua. A literatura marginal-periférica na escola. 2008. Universidade de São


Paulo. Dissertação (Mestrado em Educação). São Paulo, 2008.

SOUZA, Eliabe Gomes de. Literatura marginal e periférica: práticas educativas na periferia
de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Nove de Julho.
São Paulo, 2014.
APÊNDICE A

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do Cursista: Leonardo Silva Rocha

1.
1.1. Público-alvo:
9º ano do Ensino Fundamental – II e todos os anos do Ensino Médio (Adolescentes).
1.2. Tempo de Duração:
1 bimestre (aproximadamente 18 aulas/encontros).
1.3. Definição da prática de letramento literário:
Círculo semiestruturado – dentro de um contexto escolar e com leitores de diversos níveis. Cabe a escolha
dessa prática de letramento por ter a orientação de um coordenador dos encontros, no caso, o professor.
Nesse tipo de círculo, o condutor é responsável pela mediação do debate e aprofundamento sobre a obra
selecionada.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
A leitura ocorrerá dentro e fora dos encontros, com foco na leitura total da obra escolhida fora dos dias de
encontro, sendo esses dias mais voltados à discussão, dúvidas e debates de forma orientada.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
Buscar a interação entre todos de forma organizada e orientada durante a leitura, permitindo a ampliação
de repertório a partir da experiência de leitura de cada um sobre os temas motivadores que a obra
escolhida propõe.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
Os ricos também morrem (40 contos) – Ferréz
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário(s):
Um livro de contos bem curtos e com temáticas diversas que abordam o dia a dia da realidade periférica,
apresenta linguagem que pode causar identificação com o público-alvo, retrata a diversidade das muitas
pessoas que vivem à margem dos privilégios burgueses numa sociedade capitalista e que permite o
encontro com o retrato dessa parte da população dentro da literatura.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

32
Nome do(a) Cursista: Leonardo Silva Rocha
Polo: Interlagos

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Apresentar o contexto em que os contos da obra ocorrem, a periferia. Dentro desse ambiente urbano,
nos contos de Ferréz, diversos conflitos éticos, morais e existenciais são possíveis de serem colocados
em discussão. Sabe-se que dentro dos bairros periféricos uma diversidade de pensamentos ideológicos
coexistem e, muitas vezes, não há uma reflexão crítica da própria condição em que o ser periférico vive, já
que muito do que é negativo nos bairros menos abastados se dá por questões políticas.
Então, propor meios de reflexão sobre a condição de desigualdade social, racial e cultural na qual o morador
periférico está inserido se torna fundamental para iniciar a leitura da obra proposta. E para começar essa
reflexão sobre a vida do próprio público-alvo será proposto um debate após a exibição do documentário
“A Ponte” dos diretores Roberto T. Oliveira e João Wainer, o qual tem a participação de Ferréz e Mano
Brown, e a audição da música “Da ponte pra cá” do grupo Racionais, seguida da análise literária da letra
dela. Posteriormente, esses dois textos serão novamente abordados para a compreensão de como eles
dialogam com as narrativas curtas do livro Os ricos também morrem (2015).
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
Propor a reflexão sobre as condições e desafios que o ser periférico vive, tentar compreender a ausência
da política pública na vida dele, discutir sobre a ética e a moralidade na periferia como descreve a obra
proposta, são meios de se aprofundar nas temáticas recorrentes nos escritos de Ferréz.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
Apresentar a literatura através da obra de um autor periférico que está intrinsecamente ligado aos
movimentos culturais da periferia como o hip hop e a literatura marginal, apresentando vídeos e uma
breve biografia de Ferréz. Nessa etapa, vídeos do canal no Youtube do próprio autor podem ser utilizados.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
Permitir aos alunos que conheçam a literatura como algo próximo aos seus cotidianos e vivências que,
corriqueiramente, permeiam os bairros de onde vêm através das palavras de um autor que também
carrega a jornada de alguém que conhece profundamente os dramas e as carências da periferia.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário
Nome do(a) Cursista: Leonardo Silva Rocha
Polo: Interlagos

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Encarar a leitura como uma inserção crítica no meio social e na relação pessoal com o mundo.

33
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
A obra escolhida permite a reflexão do indivíduo em relação ao mundo que o cerca e no qual se pode agir
e modificar por meio de maior compreensão que a literatura propicia sobre a política e a identidade das
localidades periféricas. Cabe aqui também observar como todas essas discussões são possíveis por meio
da linguagem construída no texto. Portanto, a análise, durante a leitura, da linguagem é fundamental para
a compreensão do texto da obra de Ferréz.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
O acompanhamento se dará através de conversas sobre o conto selecionado para leitura no encontro
em questão, textos curtos (escritos e orais) que auxiliem e conversem com a leitura feita também serão
utilizados. A leitura em voz alta de alguns contos também serão feitas pelo professor e/ou por algum
aluno.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Pelo fato de os contos tratarem de temas corriqueiros nos bairros dos alunos, o acompanhamento se dará
por conversas, pois a vivência e a ótica que eles têm são fundamentais para o aprofundamento da leitura
literária.
As leituras de textos adicionais serão usados para que a percepção de como temas e assuntos tratados nos
contos lidos propiciam maior visão e repertório sobre eles, um exemplo disso é o fato da violência policial
contra seres periféricos, a qual é retratada na obra e muito presente nos jornais.
A leitura expressiva é uma forma de se notar a importância das marcas de oralidade, nos contos do escritor
Ferréz, e como elas dão “vida” às narrativas escritas por ele.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária
Nome do(a) Cursista: Leonardo Silva Rocha
Polo: Interlagos

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
A atividade consistirá na elaboração, em grupos, de um episódio de podcast sobre um conto do livro. Os
grupos serão numerados e um sorteio será feito, conforme os grupos são sorteados, a escolha do conto é
feita pelo próprio grupo de alunos para ser lido, interpretado, analisado e apreciado.
Um roteiro sobre o que deverá conter no áudio do podcast será disponibilizado para que os grupos criem
o conteúdo.
Por fim, as produções serão ouvidas por todos com o acréscimo de comentários sobre o que foi dito nelas
pelos demais grupos e o professor.
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
Integrar a literatura com outros gêneros midiáticos que estejam presentes na vida dos alunos é uma
opção que permite a interação entre eles, e até mesmo com outros possíveis ouvintes através de
compartilhamento nas redes sociais.

2.

34
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
Os alunos irão realizar um diário de bordo coletivo por escrito ou em áudio sobre a leitura que foi realizada
especificamente do conto sorteado para o grupo, a leitura coletiva na sala de aula dos outros contos e
leituras grupais que possam ocorrer novamente para a realização da atividade de exposição, compreensão,
reflexão e argumentação. Assim como a coloquialidade está presente em toda a obra lida e gera o efeito
verossímil na representação da linguagem usada na periferia, os alunos terão a liberdade de utilizar níveis
de formalidade ou informalidade linguísticos na produção do diário de bordo.
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
O diário de bordo é uma prática que permite a reflexão sobre a leitura que vem sendo realizada e até
mesmo o registro de dúvidas que podem servir de pesquisa para um maior aprofundamento na leitura dos
contos. A ideia é que o aluno exponha opiniões, reflexões, compreensões e críticas sobre todo o processo
do projeto de leitura literária no qual esteve presente.

3.
3.1. Referências:
A PONTE. Direção de Roberto T. de Oliveira e João Wainer. Instituto Ruhka. Brasil: 2006. São Paulo:
Sindicato Paralelo, 2006. [DVD]. (42 minutos), colorido.
BROWN, Mano. Da ponte pra cá. In: Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro dia [CD]. São Paulo:
Cosa Nostra, 2002.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
____________. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
DE CARVALHO LARCHER PINTO, L. O diário de bordo e suas potencialidades pedagógicas. ouvirOUver, v.
15, n. 1, p. 100-111, 18 jun. 2019.
EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM,
2017. E-book Kindle.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF; revisão da tradução e texto final Monica
Stahel. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FERRÉZ. Os ricos também morrem. São Paulo: Planeta, 2015.
MACHADO, A.; BERLEZZI, F. L. Produção de podcast como metodologia ativa no ensino-aprendizagem de
Literatura Portuguesa. Letras & Letras, v. 37, n. 1, p. 237-249, 30 jun. 2021.
MALMACEDA, Ana Laura Boeno. A literatura nas canções dos Racionais MC`s: uma análise comparatista
à luz de Rubem Fonseca, Paulo Lins e Férrez. 2017. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Estudos
Brasileiros. Universidade de Lisboa, 2017.

35
O racismo e alguns de seus
2 desdobramentos em Esse cabelo:
uma tragicomédia de um cabelo crespo que cruza
fronteiras, de Djaimilia Pereira de Almeida

Lineker Rodrigo Lima da Cruz1


Nani Junilia de Lima2

RESUMO
Este artigo apresenta um recorte das questões do racismo através da análise da obra
Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras, de Djaimilia Pereira
Almeida. O objetivo é contribuir com uma reflexão social acerca do racismo e alguns de
seus desdobramentos, como a questão da identidade negra e do feminismo negro, além
do conceito de violência ética. O contexto deste artigo encontra-se na importância de
fomentar a discussão desses temas em face da realidade do racismo estrutural vivido no
país. A fundamentação teórico-metodológica abarca artigos que apontam para conceitos e
manifestações dos temas. O resultado esperado considera, além de propiciar o debate dessas
questões, estabelecer uma forma de trabalho que coloque o estudante de literatura do Ensino
Médio no centro do processo de construção do conhecimento, oferecendo ferramentas para
que a falta de interesse pelas leituras seja superada e a prática dialógica entre os textos e a
realidade seja possível.

Palavras-chave: Djaimilia Pereira de Almeida; racismo; identidade negra, aquário


literário; literatura portuguesa.

1 Bacharel em Teologia e Licenciado em Letras Português e Inglês. Docente na área de Gramática, Literatura e Produção
Textual do Ensino Fundamental II e Ensino Médio. linkdrums@hotmail.com
2 Doutora em Ensino de Ciência e Matemática pela Universidade Cruzeiro do Sul. Técnica em Assuntos Educacionais na
UNIFESP. Orientadora de TCC na UAB/UNIFESP. nj.lima@unifesp.br

37
1. Introdução
Sempre acreditei que histórias escritas em livros carregavam, de alguma forma, ligações
com seus escritores. Como estudante de teologia, interessado na habilitação para docência
religiosa, busquei possibilidades para transmitir mensagens a partir de textos em língua
hebraica e em língua grega. Essa habilidade veio após muito trabalho com as gramáticas,
as hermenêuticas e as exegeses. Cada escritor vivia em um contexto e possuía um objetivo,
informações preciosas para a compreensão da mensagem. Inspirado por esses saberes,
busquei qualificação para trabalhar com os textos em nossa língua materna, querendo
encontrar, entre os escritos, as mensagens deixadas por seus escritores. Além de expandir
minha área de atuação, consolidando os textos como objetos a partir dos quais alunos podem
aprender a ler as letras e o mundo, deparei-me com os temas que precisam ser discutidos em
sala de aula para mudar algumas vidas. 

Este trabalho tem por mote tecer algumas considerações a respeito do racismo,
abordando, ainda, recortes sobre a identidade negra e o feminismo negro, a partir da análise
da obra Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras, da escritora
angolana Djaimilia Pereira de Almeida.

Através da análise da obra, buscarei contribuir com uma reflexão social pertinente à
sociedade brasileira, caracterizada pela miscigenação, mas que, a exemplo de outras nações
colonizadas pelos europeus, assumiu como padrão social e estético ideal a figura caucasiana
europeia, fenômeno que é fruto do período das grandes navegações, iniciando com a
violência contra os nativos e, atualmente, através da influência cultural, política e econômica
no mundo (CARVALHO, 2007).

Como objetivo geral, apresento uma proposta de trabalho que visa o letramento
literário de uma turma de 1º ano de ensino médio através de atividades com a referida obra.
Tal abordagem do assunto em voga, a partir de uma obra literária, vai ao encontro de uma
das competências gerais da BNCC (2017):

Compreender os processos identitários, conflitos e relações de poder que permeiam as


práticas sociais de linguagem, respeitando as diversidades e a pluralidade de ideias e
posições, e atuar socialmente com base em princípios e valores assentados na democracia,
na igualdade e nos Direitos Humanos, exercitando o autoconhecimento, a empatia, o diálogo,
a resolução de conflitos e a cooperação, e combatendo preconceitos de qualquer natureza.

Essa competência específica diz respeito à compreensão e análise de situações e


contextos de produção de sentidos nas práticas sociais de linguagem, na recepção ou na

38
produção de discursos, percebendo conflitos e relações de poder que caracterizam essas
práticas. Para desenvolver essa competência, os estudantes de Ensino Médio precisam
analisar e compreender as circunstâncias sociais, históricas e ideológicas em que se dão
diversas práticas e discursos.

A análise textual proposta em sala de aula é um método propício para estimular o


exercício da opinião crítica diante de uma sociedade que, de forma estrutural, continua a
tratar o negro, suas identidades, suas culturas e suas vozes como subprodutos da humanidade
multiétnica.

A obra em questão acompanha a vida de Mila, que mostra, através de um itinerário


entre Luanda e Lisboa, em vários salões de beleza, diversas indelicadezas, estereotipagens
e violências éticas que sofre por ter o cabelo crespo, o que remonta suas origens e gera
os questionamentos da sociedade europeia lisbonense. A partir desse panorama, é possível
refletir sobre identidade, na medida em que essa história pode refletir a vida de tantas pessoas;
e, também, sobre o feminismo negro, pois a obra aborda a relação da mulher com o seu
corpo, especificamente com o seu cabelo, ante os valores estabelecidos em uma sociedade
constituída sob égides patriarcais que ditam, entre outras coisas, a aparência adequada às
mulheres.

2. Contextualização
Em minha vivência como professor, tenho acompanhado o drama de alguns dos alunos
que sofrem, muitas vezes calados, com o racismo que se manifesta em diversos segmentos
da sociedade, inclusive na escola. O racismo, principalmente o que envolve o fenótipo da cor
da pele, é uma realidade vivida por milhões de pessoas ao redor do mundo.

Os recentes casos de torcedores que proferiram ofensas racistas a jogadores de futebol


negros em partidas de futebol em todo o mundo, bem como o movimento Black Lives Matter
– Vidas Negras Importam, em português brasileiro – que voltou aos holofotes ao elevar a nível
nacional e internacional o caso da morte de George Floyd por um policial branco em 2020,
além de todas as notícias relacionadas às dificuldades de acesso de negros às universidades
e outros crimes de ódio racial, instauraram uma série de discussões sobre o racismo em
diversos segmentos sociais. Essas discussões surgem em ambientes familiares, nas redes
sociais e nas salas de aula.

39
Em que pesem os acontecimentos divulgados pela mídia como fatores motivadores para
as discussões, não podemos esquecer que, ao longo da história, os textos literários trazem
relatos e manifestações de racismo, passando pelas épocas em que tais manifestações eram
bem aceitas pelas sociedades de uma forma geral, até chegar aos tempos atuais, em que os
relatos são altamente questionados, fazendo até com que a visitação a obras mais antigas
sejam dotadas de avisos sobre a mentalidade das épocas em que foram escritas.

O uso de textos das literaturas de língua portuguesa, sejam brasileiras, portuguesas


ou moçambicanas, proporciona oportunidades muito ricas para trabalhos que abordem os
deslocamentos entre essas nações através de seus escritos que, apesar de terem em comum
a língua portuguesa, apresentam características peculiares de seus povos.

Questões relativas ao racismo, como identidade, noções de pertencimento, as diferenças


culturais entre colonizadores e colonizados, a imposição cultural e religiosa dos colonizadores
sobre os povos colonizados e as lutas e caminhos trilhados para o reconhecimento de um
povo autóctone, entre outros temas, podem ser fomentadas a partir dessa literatura. Foi o
que encontrei como docente de literatura em busca de formação para superar o desafio de
tornar a leitura literária significativa aos meus alunos em uma sociedade que valoriza muito
pouco esse hábito tão importante e poderoso. Em face do racismo estrutural da sociedade,
é possível que encontremos uma práxis libertadora dos manuais escolares que, em sua
maioria, apenas valorizam a reprodução de interpretações já consagradas e não a construção
do aprendizado em nível individual e coletivo.

Dada à relevância daquilo que não considero apenas um tema social para discussão,
mas, antes, uma dura realidade que afeta pessoas ao longo da história da humanidade, é que
se faz necessária uma reflexão contundente e contínua, realizada cada vez mais cedo, com
o objetivo de mudar o pensamento social, a fim de não mais tolerar o racismo em meio às
relações humanas. Tal ação pode ocorrer na escola por meio dos trabalhos com a literatura
em língua portuguesa.

Esse Cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras focaliza


experiências racistas a partir do cabelo crespo, comum à boa parte das mulheres negras,
além de marcar um tom crítico diante do olhar português para o outro negro, que já tem
consagrado alguns escritos com a sua própria visão do negro, ou seja, a negritude sendo
assunto da branquitude, não permitindo que aquela seja sujeito de sua autodefinição. Isso
culmina em uma reflexão que rebate os estereótipos já estabelecidos em parte da literatura
portuguesa de forma desconcertante, pois trata-se de uma portuguesa negra escrevendo
sobre ser negra. (GONÇALVES, 2019).

40
Pensando em termos de trabalho com literatura, levantar os temas relacionados à
negritude no livro de Djaimilia Pereira de Almeida é uma abordagem que busca sanar as
deficiências apontadas nas abordagens dos manuais escolares de literatura.

3. Fundamentação teórico-metodológica
A obra aqui tomada como objeto de estudo é Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo
que cruza fronteiras. Esse texto traz uma reflexão rica e inusitada, contando, a partir do ponto
de vista de um cabelo crespo, narrativas sobre a vida da personagem, que sai de Luanda e
chega à Lisboa aos três anos de idade. Na capital portuguesa, sofre indelicadezas referentes
às suas origens e seu tipo de cabelo, além de outras situações.

Para fundamentar as considerações relativas ao racismo, busquei artigos importantes


sobre a questão do racismo fenotípico, como Carolina Maria de Jesus e os discursos da
negritude: literatura afro-brasileira, Jornais negros e vozes marginalizadas, e Cultura afro-
brasileira: temas fundamentais em ensino, pesquisa e extensão, de José Carlos Gomes da
Silva, que é professor e pesquisador do departamento de antropologia da UNIFESP, além de
Racismo fenotípico e estéticas da segunda pele, de José Jorge de Carvalho. Sobre as questões
relacionadas à identidade e feminismo, sugiro um olhar sobre a violência ética, termo
empregado pela filósofa Judith Butler em sua obra Relatar a si mesmo: crítica da violência
ética.

Busquei, para uma proposta de trabalho com o texto de Djaimilia Pereira de Almeida em
sala de aula, o embasamento em algumas abordagens, como a de Willian Roberto Cereja, no
livro Uma proposta dialógica de ensino de literatura no Ensino Médio, que engloba algumas
faces da realidade do ensino de literatura nos anos finais do Ensino Básico, além de oferecer
algumas alternativas baseadas no pensamento de Mikhail Bakhtin sobre a linguagem humana.
É importante porque levanta o dialogismo entre obra, leitores e realidade.

Em relação à motivação para leitura, busquei algumas alternativas em perspectivas que


visam o letramento literário, como Leitura, voz e performance no ensino de literatura, de
Eliana Kefalás Oliveira, Como ler literatura: um convite, de Terry Eagleton e Círculos de leitura
e letramento literário, de Rildo Cosson, que serve como base para uma releitura de proposta
de trabalho em sala de aula com o texto escolhido como objeto de estudo.

Todas as fundamentações citadas vão ao encontro da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), do


ano de 1996, que preconiza como objetivo da educação de nível fundamental, em seu art.

41
32, inciso I: “o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o
pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo”, e no art. 35, inciso III, já tratando do ensino
médio, “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e
o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
As considerações sobre o racismo em Esse Cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo
que cruza fronteiras, dão-se em um contexto escolar, durante as aulas de literatura para
alunos do 1º ano do ensino médio.

Entretanto, durante os trabalhos nas aulas de literatura, percebo a grande dificuldade


em alcançar sucesso nas propostas de trabalhos com textos literários na escola. Em parte,
tal quadro remete ao resultado de pesquisa recente, como a Retratos da leitura no Brasil,
publicada em 11 de setembro de 2020, pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Instituto
Itaú Cultural. O teor da pesquisa aponta queda no percentual de leitores no país, de 56%
da população em 2015 para 52% em 2020, uma baixa de 4,6 milhões de leitores. Infiro que
avança a desvalorização do hábito da leitura literária, culminando na falta de interesse de
estudantes em conhecer e trabalhar com as obras literárias solicitadas em sala de aula.

Portanto, seria muita pretensão simplesmente lançar o texto que precisa ser lido em
sala de aula e esperar que um trabalho de discussão da obra direcionado ao tema proposto
ocorra com o máximo de aproveitamento. É preciso, de acordo com Cosson, “preparar o
aluno para entrar no texto” (COSSON, 2009, p. 54).

De início, podemos aplicar uma das estratégias para motivar a leitura literária, como
sugere Cosson (2009):

[...] antes de iniciar a leitura da obra, levantaríamos questões sobre o racismo a partir dos
casos recentes que ganharam destaque nas mídias sociais nos últimos meses, evocando os
conhecimentos prévios dos alunos para introduzir o trabalho. (COSSON, 2009, p. 55).

Em seguida, proponho buscar dois dos conceitos que serão trabalhados: o de racismo
fenotípico, caracterizado pela “manifestação de seres humanos classificados como caucasianos
de pele clara, olhos claros, cabelos lisos e narizes finos, que impuseram ao resto do mundo

42
um padrão de beleza marcando a imagem do homem branco e ocidental como superior aos
não-brancos” (CARVALHO, 2007), e de feminismo negro:

[...] entre as décadas de 1980 e 1990, emergiu no interior do movimento feminista brasileiro
uma pluralidade étnica, cultural e de classe. Esse processo resultou na fragmentação do
movimento em vários grupos de mulheres particulares. Em relação às mulheres negras, […]
a principal crítica centrava-se na falta de percepção, por parte do movimento feminista, da
temática racial e sua importância para a identidade das mulheres negras atuantes no interior
do feminismo. Esse fato foi crucial para que as ativistas negras brasileiras se mobilizassem
e fundassem um movimento próprio, denominado por elas mesmas de “feminismo negro”.
(DAMASCENO, 2009, p. 53).

Abertas as discussões, seguimos para um segundo momento proposto por Cosson,


de introdução à leitura, com uma apresentação da obra e da autora de Esse Cabelo: a
tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras, Djaimilia Pereira de Almeida. Obra
e autora podem ser apresentadas em uma perspectiva paralela, pois a escritora angolana-
portuguesa compartilha com a personagem Mila um pouco de sua própria história: ambas
nascidas em Luanda, mudaram para Lisboa ainda crianças, filhas de mães angolanas e pais
portugueses, autora e personagem sofreram com o racismo em salões de cabeleireiros, onde
buscavam, desde crianças, suas identidades. O racismo se caracterizava pelas violências
cometidas contra os cabelos crespos de ambas, despertando questionamentos e novas
buscas pela identidade e autodefinição. Essas informações podem provocar o senso crítico
dos estudantes, a fim de que comecem a pensar em como um tratamento de beleza capilar
pode se configurar em violência racista.

Esse paralelismo entre autora e personagem pode ser aproveitado para traçar
semelhanças com a história de outras pessoas, inclusive de estudantes, rompendo com a
possível falta de interesse e estimulando a leitura.

Para a realização do trabalho com os textos, a proposta de abordagem escolhida é uma


adaptação do círculo de leitura em seu modo estruturado, que “obedece a uma estrutura
previamente estabelecida com papéis definidos para cada integrante e um roteiro para guiar
as discussões, além de atividades de registro antes e depois da discussão” (COSSON, 2014, p.
158).

Partindo dessa orientação, proponho uma releitura dessa abordagem, intitulada


“Aquário Literário”. Em algumas reuniões, os estudantes, com as leituras já finalizadas,
formarão três círculos na sala de aula e cada círculo será responsável por uma tarefa. Cada
círculo menor estará cercado por um círculo maior, o que transmite a ideia de um aquário

43
que comporta um conteúdo que ocorre em sua redoma, mas que pode ser observado do
lado de fora.

O círculo menor e central é responsável por contar a história da obra escolhida, sem
opiniões ou discussões. O círculo médio, que estará ao redor do círculo menor, observará,
como em um aquário, a atividade do círculo menor e, a partir dessa atividade, será responsável
por formular questões que envolvam a história da obra, propondo as análises a serem feitas
sobre os temas do racismo, abarcando a busca pela identidade, noção de pertencimento,
e as manifestações do feminismo negro. O círculo maior, que envolve os outros dois, após
observar as atividades de relatos da narrativa e de questionamentos, ficará responsável pelas
discussões que buscam responder às questões formuladas.

Nesse círculo mais externo há liberdade para as impressões pessoais, desde que
estejam conectadas com o texto, a fim de que divagações não desviem o trabalho dos temas
tratados na obra. Dessa forma, temos a estrutura e o roteiro para o trabalho de cada círculo.
Para auxiliar o trabalho da turma, alguns secretários podem ser escolhidos para anotarem
os acontecimentos, perguntas e respostas, de modo que a turma tenha uma ata ao final da
reunião.

A dinâmica do aquário literário permite que os participantes transitem entre um círculo


e outro, cumprindo as funções específicas de cada círculo, criando um movimento que integra
habilidades como as memórias de leitura, capacidade de fazer inferências e desenvolvimento
de pensamento crítico.

Como o trabalho, que precisa de que as obras sejam lidas em sua integralidade, focará,
primordialmente, na questão do racismo e seus desdobramentos, a ênfase que se espera no
círculo mais interno, de contação das histórias, é a abordagem das passagens que remetam
ao tema, evocando a riqueza de detalhes que as memórias de leitura dos estudantes desse
círculo permitirem.

Ao círculo das perguntas, cabe fazer inferências que permitam questões que comparem
as passagens contadas, desafiando o círculo mais externo à análise mais aprofundada das
situações que levantem os temas pretendidos. A partir daqui, às perguntas, é possível evocar
os cinco aspectos da literariedade do texto, sugerida por Eagleton: início, personagem,
narrativa, interpretação e valor.

O círculo das respostas tem o trabalho de tecer as considerações sobre o tema,


respondendo às questões que foram levantadas. É nesse círculo que ocorrem as trocas de

44
considerações, impressões pessoais, análises, discussões e comparações.

A título de exemplo, em um turno, o círculo da contação da história pode relatar a


seguinte passagem:

Em dois mil e onze, com indisfarçável desgosto, cortei o cabelo para me esquecer dele ainda
mais. É claro que expliquei a mim mesma o esquecimento como simples sentido prático: lavar
e andar, etc. Não posso é esquecer-me deste cabelo sem me esquecer também de mim e
seguir à minha frente deixando-me para trás como duas pessoas que se perdem numa feira,
admiti para comigo mais tarde. [...]

Tinha o cabelo curto e via-me em casa no dia em que acordei com saudades de mim, mas
saudades do que nunca fora, de duas ou três ruas de Luanda, de um estereótipo: saudades,
meu Deus, de uma caricatura da pessoa que eu poderia ter sido, um exotismo. Acerca dessa
Mila que não existe, a pessoa que vim a tornar-me tem uma imaginação vedada por uma
ignorância exasperante a respeito da África. (ALMEIDA, 2017, p. 81).

Após o relato dessa passagem, o círculo das perguntas pode propor uma questão como:
podemos dizer que a busca pelas mudanças capilares gera arrependimento em Mila nessa
passagem?

Já o terceiro círculo, o das respostas, começa a discutir considerações, como a de que


a aparência e os formatos dos cabelos, que guiavam as mudanças interiores de Mila em
busca de sua identidade, eram instrumentos do racismo, ditando um jeito de ser que não
correspondia às origens da garota. O aparente sentimento de arrependimento, que pode
ser notado na segunda parte do relato, se dá porque Mila, em algum momento, assumiu o
discurso racista para tentar buscar sua identidade, que jamais seria encontrada porque sua
imaginação estava bloqueada pela exasperada ignorância das pessoas em relação à África.
Então, sim, há arrependimento. Essa resposta pode ser debatida entre os integrantes desse
círculo.

Ao final da atividade, os círculos se fundem em um grande círculo. Os secretários fazem


a leitura da ata da reunião e um momento de discussão é iniciado, trazendo a experiência
dos estudantes em relação à leitura e à atividade, bem à vontade, dando oportunidade para
que eles externem suas impressões, elencando aspectos positivos e negativos sobre toda a
dinâmica de trabalho e de que forma ela colaborou para o alcance do objetivo de se discutir
o tema.

45
5. Análise, discussão e resultados esperados
Fazendo uma análise da obra escolhida, verifica-se que é uma narrativa em primeira
pessoa, apresentada por Mila, uma jovem que pretende contar a biografia do seu cabelo.
Aqui, levantamos um dos aspectos da literariedade do texto, que é a personagem. Logo no
início, ela traz ao conhecimento do leitor o fato de que foi submetida a dores físicas em salões
de beleza por causa do cabelo. Logo, Mila é uma construção baseada na história de muitas
mulheres que sofreram violências nos salões de beleza, buscando um padrão europeu, ou
seja, completamente desligado de suas origens africanas. Relata, ainda, que a “aprendizagem
da feminilidade [...] não é o conto de fadas da mestiçagem, mas uma história de reparação”
(ALMEIDA, 2017, p. 11). A forma depreciativa como ela se refere aos salões de cabeleireiros,
demonstra o quanto Mila internalizou e compreendeu as violências que sofreu.

Podemos levantar a hipótese de racismo fenotípico desde os primeiros capítulos, pois o


relato das tentativas de fazer o cabelo de Mila se moldar aos padrões aceitáveis à sociedade
portuguesa corroboram a premissa desse tipo de racismo: a não aceitação do padrão não-
branco.

O tratamento, cuja química abrasiva obriga ao uso de luvas, consistia, segundo me explicaram,
em “abrir o cabelo”, torná-lo mais maleável. (Essa ida a Sapadores fora, na realidade,
precedida de um ensaio singular, perto de casa, na dona Esperança, a cabeleireira da avó
Lúcia. Inconformada com o estado do meu cabelo, agarrou num secador e numa escova e,
no intervalo de pentear a minha avó, esticou duas madeixas por caridade, para provar que
não era um caso perdido. “Estás a ver? Não lhe digo que a Mila tem um belo cabelo? É só
esticar um bocadinho e -veja!”. Saímos da dona Esperança de mãos dadas: a minha avó com
a mise do costume, eu com umas mechas esticadas um pouco acima das orelhas, que não se
pentearam para podermos mostrá-las em casa, ambas tentando esconder a descrença nesta
solução milagrosa) (ALMEIDA, 2017, p. 24).

De acordo com Silva e Silva (2017, p. 47):

“A ideologia racial – ao mesmo tempo em que transforma a marca ou traço fenotípico em


estigma e, simultaneamente, cria o objeto de seu racismo – serve também como símbolo,
emblema e traço identitário para que os indivíduos racistas racionalizem, legitimem e
naturalizem suas práticas: “o racismo pode ser um elemento básico, frequentemente essencial,
da ‘identidade’ com a qual se apresenta o indivíduo, grupo, coletividade ou povo” (IANNI,
1996, p. 19 – Grifo do autor).

É interessante (ao mesmo tempo em que é triste) notar que o racismo pode ser um
traço identitário de uma coletividade. No caso, Portugal, nova morada de Mila, não aceita as
formas de seu cabelo, o que gera uma crise na busca por um sentimento de pertencimento.

46
Para que isso ocorra, é necessário buscar sua identidade.

Geralmente, quando se fala em identidade, a busca e o estabelecimento de estereótipos


é um erro muito comum. Identidade é uma construção que depende de muitas variáveis,
como resultados das relações do corpo e da consciência com o mundo, dos diálogos entre
objetividade e subjetividade no contexto social (MAHEIRIE, 2002).

A identidade negra é “uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a


construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo
grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro” (GOMES, 2002, p. 171).

Na história de Mila, o racismo impede que ela busque sua própria identidade. Então, ela
passa a buscar uma identidade que seja aceita pela sociedade portuguesa.

A medida que Mila ruma entre os salões de beleza e segue resgatando a história de seus
ancestrais, de quem herdou seus traços e seu cabelo, vai descobrindo, antes de se descobrir,
um sentimento de culpa por se distanciar tanto de sua terra natal, desconhecendo a África.
Esse movimento da personagem mostra que a busca para satisfazer outra sociedade impacta
diretamente em seu modo de ser:

Não posso é esquecer-me deste cabelo sem me esquecer também de mim e seguir à minha
frente deixando-me para trás como duas pessoas que se perdem numa feira, admiti para
comigo mais tarde. Na sequência desse último corte começaria a vontade de saber a sua
história. (ALMEIDA, 2017, p. 81).

[...] Por difícil que seja admiti-lo, o desejável ambiente de igualdade no qual tive a felicidade
de ser educada em Portugal afastou-me de alguma coisa importante de que procuro
recordar-me: de uma noção clara das diferenças que me separam das pessoas entre as quais
me aconteceu crescer, que foram, aliás, quem me ensinou a perceber a importância das
diferenças de que sinto falta. (ALMEIDA, 2017, p. 82)

Outro aspecto notado por Mila, ao longo de suas viagens aos salões de beleza é a
realidade de violência ética, termo cunhado pela filósofa Judith Butler em sua obra Relatar a
si mesmo: crítica da violência ética.

Habitualmente, tomar decisões conforme a ética é um ato considerado bom. Entretanto,


quando, em nome da ética, estabelece-se pressões que descaracterizam um indivíduo em
relação à sua identidade, estamos diante de uma violência ética.

No caso de Mila, o padrão estético universalizado em Portugal é o cabelo liso. Entretanto,


apesar de tantos tratamentos para assumir essa forma, a jovem sofre diversas humilhações,

47
à medida que vai identificando traços que não podem ser alterados, como a sua pele e o
seu cabelo, que permanece “rebelde” diante das químicas. Todas as tentativas de moldar
o cabelo de Mila ao padrão universalizado português gera angústia, sentimento de culpa e
frustração.

Se uma apropriação vital é impossível, parece então seguir-se que o preceito só pode ser
experimentado como uma coisa mortal, um sofrimento imposto, de um exterior indiferente,
à custa da liberdade e da particularidade. (BUTLER, 2015, p. 10).

O levantamento do tema da violência ética serve tanto para considerar o problema do


racismo, quanto para suscitar questões relacionadas ao feminismo negro, já que é evidente
que as buscas das mulheres nos salões de beleza portugueses não consideram as dificuldades
impostas pela negritude de outras mulheres, fragmentando o próprio feminismo em sua
liberdade de ser mulher. Aqui, pode-se questionar onde fica a liberdade de ser mulher negra.

Com esses elementos analisados, espero fomentar debates ricos em alguns detalhes
entre os estudantes do 1º ano do ensino médio, que começam a estudar a literatura de
informação e os textos portugueses, a fim de que percebam que os temas aqui apresentados
perpassam todas as obras do período.

Essa percepção, a meu ver, é crucial para estimular o interesse pela leitura desses
textos, sempre propondo algum grau de reflexão. Além disso, esses temas podem estimular o
exercício dos paralelos com as situações atuais que podem despertar um constante exercício
de atualização hermenêutica e a dialética entre o passado e o presente, fazendo com que os
alunos olhem com outros olhos as situações de racismo que permeiam os noticiários recentes.

6. Considerações Finais
Esse cabelo é um relato que aborda o racismo fenotípico entre sutis e escancaradas
ofensas ao cabelo de Mila. Seu corpo sofre a violência ética em nome de uma padronização
que jamais pode apagar seus traços identitários.

Entre os desdobramentos desse tema, questões relevantes sobre a identidade negra


e o feminismo negro também são contempladas, na medida em que Mila resgata a história
de seus ancestrais, assumindo a importância deles para a constituição de seu modo de ser
mulher negra.

Considerada a importância da discussão desses temas no seio de nossa sociedade, a

48
abordagem na escola é essencial para proporcionar, cada vez mais cedo, uma consciência
liberta das amarras opressoras que se manifestam em diversos segmentos, inclusive na
própria escola.

Considero, ainda, que a forma de abordar o texto, bem como toda a dinâmica de
trabalho, utilizando o método do círculo estruturado de Cosson, constitui um importante
instrumento para sanar as deficiências dos manuais de literatura do ensino médio, libertando
os estudantes do caráter histórico passivo de abordagens textuais.

A leitura literária poderá, assim, se tornar significativa para nossos jovens.

49
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que
cruza fronteiras. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

CARVALHO, José Jorge. Racismo fenotípico e estéticas da segunda pele. In: Revista Cinética
- Programa Cultura e pensamento, 2007. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.
br/cep/jose_jorge.htm. Acesso em 07/09/2021.

CEREJA, Willian Roberto. Uma proposta dialógica de ensino de literatura no ensino


médio. São Paulo, Doutorado em linguística aplicada e estudos da linguagem, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2004.

DAMASCO, Mariana. Feminismo negro: raça, identidade e saúde


reprodutiva o Brasil (1975-1996). Rio de Janeiro, 2008. Dissertação
(Mestrado) – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2009.

EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto
Alegre: L&PM, 2017. E-book Kindle.

GOMES. N. L. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar


sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/
sGzxY8WTnyQQQbwjG5nSQpK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 07/09/2021.

GONÇALVES, Bianca Mafra. Existe uma literatura negra em Portugal? Disponível


em: file:///C:/Users/Linkdrums-PC/Downloads/155948-Texto%20do%20
artigo-361602-2-10-20190806.pdf. Acesso em 01/09/2021.

JACOB, S. Pentear-me por escrito. SEDA - Revista de Letras da Rural-RJ, v. 3, n. 7, p. 120-


123, 2 set. 2021.

MAHEIRIE, Katia. Constituição do sujeito, subjetividade e identidade in Universidade São


Marcos. Interações. São Paulo, vol. VII, núm. 13, pp. 31-44 , jan-jun 2002.

OLIVEIRA, E. K. Leitura, voz e performance no ensino de literatura. Signótica, [S. l.], v.


22, n. 2, p. 277–307, 2011. DOI: 10.5216/sig.v22i2.13609. Disponível em: https://www.
revistas.ufg.br/sig/article/view/13609. Acesso em: 29 jun. 2021.
ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de (Org.). Leitura subjetiva e
ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013.

SILVA, Maurício. Literatura e Experiência de Vida: novas abordagens no Ensino de


Literatura In Nau Literária. ISSN 1981-4526. VOL. 06, N. 02, JUL/DEZ 2010. Disponível
em:https://www.seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/14466/11687. Acesso em:
29 jun. 2021.
APÊNDICE A

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do Cursista: Lineker Rodrigo Lima da Cruz

1.
1.1. Público-alvo: alunos do 3º ano do Ensino Médio.

1.2. Tempo de Duração:


4 horas/aula em quatro encontros (intervalo de 2 semanas entre o 1º e o 2º encontro para fins de tempo
hábil para leitura):
1º - instruções para leitura e dinâmica do trabalho;
2º - contação das histórias dos livros, questionamentos e respostas;
3º - compartilhamento de impressões e experiências de leitura;
4º - considerações finais e leitura de registro único da classe.
1.3. Definição da prática de letramento literário:
O tipo de círculo escolhido é o semiestruturado, adaptado para a prática em sala de aula em uma atividade
de Aquário Literário.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
Após a leitura da obra, os alunos serão convidados para integração em círculos de trabalho: um círculo
menor, no meio da sala de aula, de alunos que recontarão as narrativas dos livros de forma sucinta; um
círculo médio, ao redor do círculo menor, formado por alunos que farão perguntas sobre os textos; um
círculo maior, em torno do círculo médio, de alunos que trarão as respostas para as perguntas. Os alunos
que desejarem poderão atuar entre os círculos, caso haja necessidade.
Após essa etapa, os círculos se fundem em um grande círculo para compartilhar as experiências de leitura
e impressões individuais dos textos.Todo o trabalho será anotado por 2 ou mais secretários que farão a
composição de uma ata dos encontros.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
Tal prática confere, em um primeiro momento, a atenção às instruções para exercitar o foco, quesito
importante para produção de textos escritos ou orais. A livre transição entre círculos aplica uma dinâmica
mais leve, buscando a interação entre todas as tarefas.
Num segundo momento, o compartilhamento das impressões permite a cada estudante compreender as
leituras internas feitas pelos colegas, contribuindo para uma ampliação dos entendimentos.
O registro em ata única fomenta um trabalho em equipe.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras. Rio
de Janeiro: Leya, 2017.
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário(s):
A obra portuguesa, de Djaimilia Pereira de Almeida, levanta temas relacionados à identidade, pertencimento,
racismo e feminismo. Tal assunto é, constantemente, alvo do interesse dos alunos do ano final do ensino
médio.

52
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário
Nome do Cursista: Lineker Rodrigo Lima da Cruz

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Formular frases de impacto que expressem a realidade referida a partir de diferentes perspectivas, como
origens, situação econômica, trabalho, escolaridade, políticas etc., para ornamentar a sala de aula ou
inaugurar um painel virtual para os trabalhos de leitura.

1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:


Diante das atuais notícias sobre crimes contra as mulheres, é imperativa, por parte dos alunos do
ensino médio, abordagens sobre esse tema, pois estão avançando para a vida adulta, querendo viver e
experimentar uma sociedade justa.
Logo, no afã das reivindicações, observar essas questões presentes em obras literárias femininas pode
ampliar a percepção e legitimar a recente luta que ainda é travada pela equidade, respeito, liberdade e
direito à vida.
A escritora levanta uma bandeira e isso pode trazer maior identificação dos alunos, principalmente das
alunas, com a obra.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras, de Djaimilia Pereira de Almeida,
traz uma reflexão muito rica e inusitada, contando, a partir do ponto de vista de um cabelo crespo,
narrativas sobre a vida da personagem, que sai de Luanda e chega à Lisboa aos três anos de idade. Na
capital portuguesa, sofre as indelicadezas referentes às suas origens e seu tipo de cabelo, além de outras
situações.
Djaimilia é uma escritora angolana que já esteve presente na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty),
com grande destaque da imprensa. A autora, abordando temas atuais, parece fugir de qualquer das
classificações das escolas literárias já estudadas.
2.2 Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
A introdução, abordando aspectos da história e da autora, mostra como, em alguns níveis, as questões
levantadas na obra se misturam à vida da escritora.
Esse jeito de abordar os temas pretendidos pode ser uma oportunidade para conhecer e refletir sobre
fatos históricos e como eles interagem com as ficções.
Abordar esses paralelismos complementa o trabalho de despertar o interesse dos alunos pela leitura
crítica da obra.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário
Nome do Cursista: Lineker Rodrigo Lima da Cruz

1.

53
1.3 Proposta de concepção de leitura do texto literário:
A leitura dos textos deve acompanhar alguns dos aspectos listados por Terry Eagleton, em sua obra Como
ler literatura, quais sejam: início, personagem, narrativa, interpretação e valor, pensados e discutidos em
sala de aula, a partir das leituras individuais dos alunos.
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
De acordo com resultados apresentados em indicadores nacionais e internacionais, há um baixo
aproveitamento da experiência de leitura no Brasil. Isso se deve, em partes, à constante mecanização das
relações do mundo, processo observado desde a revolução industrial, como aponta Ernest Fischer. Desse
modo, levar em conta aspectos relacionados a como o texto foi escrito, como é lido e como é interpretado,
traz uma nova interação entre a literatura escrita e as relações com o mundo que a cerca.
Terry Eagleton sugere os itens (citados em 1.1), buscando que não se perca a literariedade do texto,
evitando que o aluno vá diretamente ao texto, sem considerar tudo o que o rodeia.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
A leitura será acompanhada por meio de imersão através de questões-chave para discussão. Os alunos
poderão trazer termos colhidos das leituras para breves considerações. Todos esses momentos serão
registrados por escrito durante as aulas, tendo os secretários a função de anotar.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
O acompanhamento funciona, também, como incentivo à leitura, para que não se assuma o caráter
policialesco de cobrança por páginas lidas. Os alunos apreciam a discussão do tema proposto pela obra,
bastando o pertinente estímulo. As questões-chave são propostas para lembrar o texto, buscando
alguma interpretação nas considerações feitas pelos alunos. Os termos colhidos em dúvidas por alguns
alunos podem ampliar o repertório e as considerações para interpretação. As anotações visam não só
a lembrança de colocações importantes como, também, um registro conjunto que, após o término dos
trabalhos, mostre o quanto se pode extrair de uma leitura ou o quanto uma leitura pode oferecer em
termos de interação com a realidade.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária
Nome do Cursista: Lineker Rodrigo Lima da Cruz

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
As atividades de interpretação se darão durante a execução do Aquário Literário, dividido em três círculos:
um para comentar a leitura, outro para fazer perguntas ao texto e um terceiro para responder às perguntas.
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
A prática do Aquário Literário é muito versátil por oferecer aos leitores a transição entre os círculos, dando
oportunidade para comentar a leitura, fazer perguntas e elaborar as respostas. Em dados momentos,
pode-se adaptar um júri simulado, conforme sugestão do Prof. Rildo Cosson: os círculos de perguntas e
de respostas podem agir como promotoria e defesa, respectivamente, cabendo ao círculo de leitura um
papel de juiz. Logo, tal arranjo permite o debate e a exploração de ideias entre todos os envolvidos.

54
2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
A avaliação será aplicada conforme a participação dos leitores ocorrer no Aquário, ora comentando a
leitura, ora perguntando, ora respondendo às questões. Haverá, através da escolha da turma, secretários
que anotarão as atividades e interações durante a realização do Aquário Literário, a fim de elaborar uma
ata que contemple toda a evolução da atividade da turma.
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Busca-se, com todo o processo, a interação entre as visões individuais dos leitores e a busca por alguns
entendimentos globais. O estímulo ao debate com a participação de todos, de acordo com seus papéis,
permitindo, ainda, as transições entre papéis, oferece um dinamismo precioso para a construção dos
entendimentos. A anotação em um documento único, como a ata, dará, aos leitores, uma noção da
evolução do projeto, das concepções e das interpretações.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM,
2017. E-book Kindle.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF; revisão da tradução e texto final Monica
Stahel. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução de Cláudia Schilling. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

55
Letramento literário na educação
3 de jovens e adultos:
as vozes femininas em Brasil e Moçambique

Daniela Morales Monteiro1


Monique Alves Vitorino2

RESUMO
Este artigo tem como objetivo proporcionar uma experiência de leitura literária
a partir da metodologia de círculo de leitura proposta por Rildo Cosson (2014). A prática
de leitura coletiva e compartilhamento de textos foi elaborada para alunos da Educação
de Jovens e Adultos (EJA) do Ensino Médio. As obras que foram objeto do estudo são: o
romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, e o poema Súplica (1951), de Noemia
Souza, textos de diferentes épocas e gêneros, que retratam o período colonial vivido em
Brasil e em Moçambique. As obras de autoria feminina mostram a relevância dos temas
abordados para a época em que foram escritas, e também para a atualidade, contribuindo,
dessa forma, para um maior conhecimento da escrita feita por mulheres nos séculos XIX e
XX em países colonizados, como Brasil e Moçambique. Este estudo pretende ressignificar as
experiências dos estudantes com a literatura, a fim de desenvolver o protagonismo estudantil
na construção de si e de novos conhecimentos, mostrando que a “literatura não só cria o
mundo que habitamos, como também o modifica” (TELLES, 2020).

Palavras-chave: Letramento Literário; Círculo de Leitura; Literaturas de Língua


Portuguesa; EJA; Identidade.

1 Possui mestrado pela Universidade Cidade de São Paulo e licenciatura em Letras pela Universidade de Guarulhos. Espe-
cialista em língua inglesa pela Faculdade Cultura Inglesa (PUC-SP) e em Educação Inclusiva pelo Instituto Federal de Minas Gerais.
Bolsista da CAPES-IOE no Instituto de Educação da Universidade de Londres. Atualmente é professora efetiva nas redes Estadual e
Municipal de São Paulo. E-mail: monteirodani1979@gmail.com
2 Formada em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba (Campus I), possui especialização em Língua
Portuguesa pela mesma instituição, e Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora
Substituta do Departamento de Letras da UEPB/Campus III. E-mail: moniquevitorino@gmail.com

57
1. Introdução
O presente estudo busca respostas para algumas inquietações que foram latentes ao
longo da minha formação como professora e da minha atuação docente. O contato com a
literatura, quando estudante da educação básica, não apresentou momentos de aprendizagem
significativa a partir dos quais eu pudesse refletir sobre a importância do seu papel na minha
formação pessoal e profissional.

Ressalto que, no meu tempo de estudante, o ensino de língua e literatura (literatura


brasileira, portuguesa e língua portuguesa) fazia parte de uma disciplina denominada
português. Neste contexto, muitas vezes, a literatura era apresentada como forma de
contextualizar algum ponto gramatical ou mesmo como uma leitura obrigatória imposta pelo
professor para atender uma demanda dos vestibulares. Isto é, como aponta Leite (2011),
que observou nas escolas “um ensino tradicional da literatura que utiliza a literatura a partir
de uma visão elitista e ideológica dos textos, transformados em ilustração de um universo
hierarquizado e úteis à reprodução didática dos valores dominantes”.

Por outro lado, na graduação, tive um contato mais íntimo e profundo com a literatura,
e pude entender a riqueza proporcionada pela leitura literária, pois os professores
apresentavam o contexto histórico, aspectos culturais e a biografia dos autores antes de
estudarmos as obras.

Contudo, quando me deparei com a sala de aula, pude perceber uma lacuna entre a
teoria e a prática. A questão era que eu não havia sido preparada para ensinar literatura.
Com isso, surgiu a grande oportunidade deste curso de especialização em Literaturas de
Língua Portuguesa, Identidades, Territórios e Deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal,
diferentes olhares, que, para além do ensino da Literatura, trouxe uma perspectiva profunda
das noções de identidade, território e deslocamento no estabelecimento dos diálogos entre
as literaturas e as culturas brasileira, portuguesa e moçambicana.

Telles (2020) ressalta a escola como “um lugar menos de afirmação ou de imposição de
determinados postulados do que seja a literatura e mais como um espaço de abertura para
se pensar a literariedade dos discursos das mais diversas origens e naturezas, bem como
um espaço do exercício da não ingenuidade diante dos fenômenos discursivos tidos como
literatura”.

Nesta esteira, a partir da disciplina “Fundamentos teóricos para o estudo das literaturas
de língua portuguesa”, cursada nesta especialização, além de refletir sobre vários conceitos

58
relevantes, foi possível compreender que é possível desenvolver um outro olhar para o
trabalho na escola, mostrando que a “literatura não só cria o mundo que habitamos, como
também o modifica” Telles (2020).

Assim, conforme preconizado por Todorov (2012 apud TELLES, 2020, p. 70), o humanismo
que a experiência literária promove, “sendo o objeto da literatura a própria condição humana”,
já justificaria o seu lugar no contexto escolar (TELLES, 2020). Com isso, acreditamos que a
maior contribuição dos estudos como o que propomos é promover um deslocamento para
que o contexto do ensino da literatura seja algo significativo para os alunos, ressignificando
as experiências com a literatura para desenvolver o protagonismo estudantil na construção
de si e de novos conhecimentos.

Este estudo buscou refletir sobre as identidades e os distanciamentos que podem ser
provocados nos alunos a partir de uma proposta de intervenção didática com foco na leitura
dos textos literários: o romance Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis e o poema Súplica
(1951), de Noemia de Souza, textos de diferentes épocas e gêneros textuais que retratam o
período colonial vivido no Brasil e em Moçambique.

Nessa perspectiva, este artigo apresenta como objeto de estudo uma proposta de
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária, com os seguintes objetivos:
proporcionar uma experiência de leitura literária a partir da metodologia de círculo de leitura
proposta por Rildo Cosson; trabalhar a autoestima dos estudantes, valorizando seus saberes;
apresentar narrativas que permitam o conhecimento de manifestações e representações
culturais que conformam a cultura brasileira; valorizar, por meio da leitura literária, o legado
cultural da população afrodescendente.

Tendo em vista o público-alvo desta investigação, ou seja, estudantes da Educação de


Jovens e Adultos, a proposta de mediação foi ancorada na leitura dos textos literários na
perspectiva do Método Recepcional, elaborado por Hans Robert Jauss (1979), segundo o qual,
através da construção dialógica de sentidos durante a leitura, valorizam-se o repertório e os
conhecimentos prévios trazidos pelos interlocutores para o processo. Com isso, estudantes e
mediador da leitura têm um papel ativo, sendo protagonistas dentro do processo de ensino-
aprendizagem.

Zilberman (2008) destaca que o papel fundamental da leitura literária é a de promover a


solidarização dos sujeitos leitores, servir-lhes de veículo para manifestação pessoal e colaborar
para sua autoafirmação, na medida em que auxilia o estudante a ter mais segurança sobre suas
próprias experiências. Nesse sentido, segundo Leite (2011), o ensino da língua e da literatura

59
deixa de ser de reconhecimento e reprodução, passando a um ensino de conhecimento e
produção a fim de conceber a vivência com a obra literária como experiência transformadora
e não simplesmente como a assimilação de mecanismos codificados de escuta e apreciação.

Com isso, acreditamos que os círculos de leitura possuem “um caráter formativo,
proporcionando uma aprendizagem coletiva e colaborativa” (Cosson, 2021, p. 139),
oportunizando uma grande contribuição para os estudantes da EJA, pois amplia os horizontes
interpretativos da leitura individual por meio do compartilhamento e da discussão da obra
com outros leitores.

2. Contextualização
Nesta seção, procura-se situar o contexto em que se deu a motivação para esta
pesquisa a partir dos desafios de apresentar a literatura ou de promover leitura literária
para estudantes do ensino médio. Para tanto, os ensinamentos adquiridos no decorrer do
“Curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa, Identidades, Territórios e
Deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares”, promovido pela UAB/
Unifesp, foram essenciais no desenvolvimento das reflexões presentes neste artigo.

Apoiados em Antônio Candido, os estudos trazidos na disciplina “O ensino das literaturas


de língua portuguesa: problemas, desafios e perspectivas” sinalizaram para a escolarização
da literatura, convocando o conceito de função humanizadora, em busca de um caminho de
mediação segura para leitura literária.

Assim, considerando os alunos da Educação de Jovens e Adultos, as leituras feitas durante


as disciplinas do curso colaboraram para uma construção de experiência de letramento
literário significativa para os estudantes, tendo como ponto de partida o conhecimento
prévio dos estudantes, seus anseios e necessidades.

Além disso, uma das contribuições da disciplina “As literaturas de língua portuguesa
no contexto contemporâneo: integrativa” foi a problematização do ponto de vista histórico,
cultural e literário dos termos colonização/descolonização, bem como a reflexão sobre o
uso destes termos em contextos diversos. Para tanto, foi discutido o conceito de racismo
estrutural e refletido sobre a violência intrínseca e os danos ao homem, à sociedade e ao seu
desenvolvimento em amplo aspecto.

As leituras sobre “O desembarque de uma língua literária no Brasil” revelaram as

60
primeiras manifestações através de tratados, cartas ou sermões sempre ligados a ordens
religiosas, cultivando uma língua oral e literária como afirmação do império português. Nesse
sentido, todo texto da época teve uma clara função política de confirmar e ratificar o status
quo colonial, com destaque às sátiras de Gregório de Matos.

Da condição colonial para um país independente no século XIX, a Carta de Navegação


“Cultura Literária no Brasil República” trouxe grandes contribuições para a compreensão
acerca da construção da nacionalidade, da busca das origens, do sentimento de nativismo e
da valorização da terra através dos brasileiros letrados no Romantismo.

Neste período, sustentado pelo regime escravista em que o Brasil havia se tornado
politicamente independente e buscava a independência literária, destacamos Luiz Gama, com
o poema “Quem sou eu?”, apontando os defeitos e vícios de uma sociedade preconceituosa
e corrupta. Utilizando a palavra “bode” como metáfora, o autor se dirige aos diversos tipos
sociais na tentativa de mostrar que não há diferença entre as pessoas, sobretudo a diferença
de cor de pele.

Na perspectiva das Identidades, territórios e deslocamentos em Portugal, foram


discutidas as memórias de África com uma breve reflexão sobre o fim do império colonial
português e sua repercussão literária em A árvore das palavras, de Teolinda Gersão. A leitura
de fragmentos da narrativa Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida trouxe, ainda, a
discussão dos processos de formação de subjetividade a partir de antigas tensões coloniais,
adquirindo novas formas no século XXI.

Nesta esteira, foi estudado o contexto da revolução de 25 de abril de 1974, também


conhecida como Revolução dos Cravos, a qual se refere a um evento da história de Portugal
resultante do movimento político e social, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, e
que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático
e com a entrada em vigor da nova Constituição a 25 de abril de 1976, marcada por forte
orientação socialista, para compreender o teor celebrativo do romance Os memoráveis, de
Lídia Jorge.

Ainda nos estudos dessa disciplina, tivemos a webinar da professora Ana Maria
Machado ─ “Olhares imagológicos em A Costa dos Múrmurios entre o conflito e a hesitação”
─, em que analisou o romance de Lídia Jorge, discutindo alteridade e estereótipos do
africano e as identidades essencialistas que os colonos brancos lhes atribuíam com possíveis
complexificações desses imagotipos.

61
A disciplina Identidades, territórios e deslocamentos: a perspectiva moçambicana
enfatizou a existência de textos literários moçambicanos enraizados na tradição oral, o que foi
bastante significativo para as minhas práticas, pois dialogou com a aula sobre os Griots, que,
para alguns povos da África, são aqueles que contam as histórias, narram os acontecimentos
de um povo, passando as tradições para as gerações futuras.

Nessa perspectiva de estudo e construção sólida de base de conhecimento da


importância da literatura como componente curricular, foi elaborada uma proposta de
intervenção de ensino-aprendizagem: mediando e compartilhando experiências de leitura
literária. Tal proposta teve como principal objetivo oportunizar, através de círculos de leituras
(COSSON, 2009), um diálogo com textos produzidos em Portugal, Brasil e Moçambique,
direcionado à apropriação de conhecimentos sobre as relações históricas e culturais, referente
à reflexão sobre atitudes e valores no que diz respeito à construção da identidade.

O percurso de estudo realizado durante o curso foi basilar para o desenvolvimento


da fundamentação teórica da proposta de intervenção de prática de ensino de literatura
apresentada no “Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de
experiências de leitura literária”, produzido na disciplina Projetos integrados para o ensino de
literaturas de língua portuguesa.

Na próxima seção, discutiremos o arcabouço teórico que fundamentou esta pesquisa


sobre ensino de literatura e trataremos mais detalhadamente as concepções de Cosson
sobre o letramento literário e os círculos de leitura, além de outros pontos relevantes sobre
as questões do ensino na EJA.

3. Fundamentação teórico-metodológica

3.1 O ensino da leitura literária


Neste tópico, buscamos ampliar a apresentação das perspectivas que orientam o tema
ensino da leitura literária. Este estudo está ancorado nas obras Círculos de leitura (2009)
e Letramento Literário (2014), ambas de Rildo Cosson, que apresentam uma proposta de
organização e de funcionamento de círculos de leitura, orientando e oferecendo embasamento
e sugestões de atividades para auxiliar tanto educadores na formação de leitores quanto os
próprios leitores.

62
Para Souza e Cosson (2011), o objetivo maior do letramento literário escolar ou do
ensino da literatura na escola é nos formar como leitores, não como qualquer leitor ou um
leitor qualquer, mas um leitor capaz de se inserir em uma comunidade, manipulando seus
instrumentos culturais, a fim de construir com eles um sentido para si e para o mundo em
que se vive.

Para atender às necessidades da Educação de Jovens e Adultos, o projeto de experiência


em leitura literária aponta o círculo de leitura estruturado, como um guia para as práticas de
ensino, pois “obedece a uma estrutura previamente estabelecida com papéis definidos para
cada integrante e um roteiro para guiar as discussões, além de atividades de registro antes e
depois da discussão” (COSSON, 2014, p. 158).

O caminho de letramento literário traçado por Rildo Cosson (2009) é composto por
quatro passos principais: 1) motivação; 2) introdução; 3) leitura; 4) interpretação. Além
disso, é preciso ressaltar que esses passos devem ter como ponto de partida uma adequada
seleção dos textos que serão trabalhados com os alunos. A partir desses quatro pilares foi
desenvolvida a proposta de mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária.

Nesse sentido, Zilberman (2008) destaca que o papel fundamental da leitura literária é
solidarizar-se a seus usuários, servir-lhes de veículo para manifestação pessoal e colaborar
para sua autoafirmação, na medida em que auxilia o estudante a ter mais segurança nas suas
próprias experiências.

Corroborando desse mesmo pensamento, Resende (2009) afirma que se trata menos
de ensinar um conteúdo e mais de ensinar um modo de ler. Além disso, estudos de Souza e
Cosson (2011) revelam o papel da literatura como protagonista nas experiências de oficinas
de leitura, as quais buscam desenvolver a competência leitora dos alunos por meio de
estratégias específicas.

Nesse sentido, nas práticas de letramento literário propostas nesta investigação, para
a realização do acompanhamento das leituras literárias, adotou-se, em complemento à
estratégia de círculos de leitura (COSSON, 2009), o Método Recepcional elaborado por Hans
Robert Jauss (1979), que pressupõe conhecimento e aproveitamento do repertório do leitor,
respeitando suas expectativas e trabalhando no sentido de alargá-las. Com essa concepção,
deu-se a oportunidade para que os estudantes estabelecessem outros discursos possíveis a
partir da leitura de obras literárias considerando seus conhecimentos prévios e culturais.

De acordo com Bordini e Aguiar (1993), a aplicação do Método Recepcional de Jauss

63
pressupõe os seguintes objetivos: efetuar leituras compreensivas e críticas; ser receptivo
a novos textos e a leituras de outrem; questionar as leituras efetuadas em relação ao seu
próprio horizonte cultural; transformar os próprios horizontes de expectativas, bem como os
do professor, da escola, da comunidade familiar e social.

A aplicação do Método Recepcional, entre outros aspectos, considera o repertório e as


expectativas dos estudantes. Segundo Bordini e Aguiar (1993):

Parte do horizonte de expectativas do grupo, em termos de interesses literários, determinados


por suas vivências anteriores, o professor desempenha o papel de provocar situações que
propiciem o questionamento desse horizonte. Tal atitude implicaria um distanciamento do
estudante, uma vez que revisa criticamente seu próprio comportamento, redundando na
ruptura do horizonte de expectativas e seu consequente alargamento. Com o ajustamento
a essa nova situação, o passo seguinte é a oferta pelo professor de diferentes leituras que,
por se oporem às experiências anteriores, problematizam o aluno, incitando-o a refletir e
instaurando a mudança através de um processo contínuo. Como o sujeito é entendido como
um ser social, sua transformação implica a alteração do comportamento de todo o grupo,
atingindo a escola e a comunidade (BORDINI & AGUIAR, 1993, p. 85).

O percurso de interpretação de textos literários apoiados em Cosson (2009) e no


Método Recepcional elaborado por Hans Robert Jauss (1979), atendem às demandas da
Educação de Jovens e Adultos, que mobilizam os conhecimentos prévios e culturais trazidos
pelos estudantes para a escola, e, a partir deste ponto, desenvolver as estratégias de leitura
literária e a construção de novos saberes.

3.2 O letramento literário na EJA


Neste subitem traremos a definição do público-alvo, contexto desta pesquisa, bem
como as formas que se desenvolvem os processos de ensino-aprendizagem de leitura literária
para este público.

Curry (2000) apresenta a definição do público da Educação de Jovens e Adultos (EJA)


em parecer no Conselho Nacional de Educação:

[...] os alunos da EJA são diferentes dos alunos presentes nos anos adequados à faixa etária. São
jovens e adultos, muitos deles trabalhadores, maduros, com larga experiência profissional ou
com expectativa de (re)inserção no mercado de trabalho e com um olhar diferenciado sobre
as coisas da existência [...] para eles foi a ausência de uma escola ou a evasão da mesma que
os dirigiu para um retorno nem sempre tardio à busca do direito ao saber. Outros são jovens
provindos de estratos privilegiados e que, mesmo tendo condições financeiras, não lograram
sucesso nos estudos, em geral, por razões de caráter sociocultural. (CURY, 2000, p.33-34)

64
Oliveira (2009) chama a atenção para a construção dos saberes em rede para a educação de
jovens e adultos:

A ideia de tessitura do conhecimento em rede pressupõe [...] que as informações às quais


são submetidos os sujeitos sociais só passam a constituir conhecimento quando se enredam
a outros fios já presentes nas redes de saberes já existentes em cada um, ganhando nesse
processo, um sentido próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da informação
pressupõe. [...] Cada um tem uma forma própria e singular de tecer conhecimentos através
dos modos como atribui sentido às informações recebidas, estabelecendo conexões entre os
fios e tessituras anteriores e os novos. (Oliveira 2009, p.98-99)

Tendo na literatura e nas artes o fenômeno de representação do real, podemos dizer


que reproduzem os valores de uma determinada sociedade. Com isso, o papel da literatura
na escola não apenas é capaz de dizer algo sobre mundo, sobre a realidade, como tem a
capacidade de criar o próprio mundo que habitamos, bem como também tem o poder de
modificá-lo, conforme Telles (2020). Para este autor:

O fato de uma obra retratar ou representar o que é tido como inaceitável, condenável e
triste, não significa que ela deva ser, em si, inaceitável, ou que a devamos vê-la como uma
defensora daquilo que se encontra nela representado. Talvez isso possa servir de alerta para
o trabalho com a literatura na escola no sentido de nos colocarmos em estado de atenção
contra qualquer ameaça de cerceamento da liberdade de leitura e contra movimentos de
censura no tratamento do literário. (TELLES, 2020, p. 68)

Nessa perspectiva, Silva (2011) discute a relevância do letramento literário no contexto da


Educação de Jovens e Adultos, uma vez que se trata de uma modalidade de ensino que requer
atenção e metodologias de ensino diferenciadas. Sendo um dos objetivos deste estudo possibilitar
aos jovens da EJA um contato mais amplo e prazeroso com a leitura literária, pode-se, por meio do
conceito de letramento literário, despertar nos estudantes o interesse por este tipo de leitura.

Acerca das obras escolhidas para estudo na nossa proposta, salienta-se a obra Úrsula, de Maria
Firmina dos Reis (1859) (publicada apenas em 1975), escritora maranhense, que foi a primeira mulher
negra da América Latina a publicar um romance no Brasil, é precursora da temática abolicionista na
literatura brasileira.

Com esse romance, pretende-se levar os alunos a perceber como a escritora utilizou sua veia
literária na construção de discursos antiescravista no Maranhão do século XIX, que se configurava
nesse momento como umas das províncias com maior número de contingente escravo do período. É
nesse cenário que Maria Firmina dos Reis insere sua escrita antiescravista.

65
As obras de autoria feminina mostram a relevância dos temas abordados para cada época,
contribuindo dessa forma para um maior conhecimento da escrita feita por mulheres no século XIX
e XX, no Brasil e na África.

Telles (2020) afirma que “a cultura e a literatura são territórios capazes de demarcar a identidade,
de promoção da identificação e da noção de pertencimento do sujeito; mas também pode ser um
lugar de embate, de conflito, em que o sujeito se encontra deslocado”. Para o autor, a literatura
como um espaço de cultura mostra-se como lugar privilegiado de onde se pode pensar a dinâmica
das forças de tais deslocamentos na problematização da identidade.

Neste sentido, a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1859) e o poema Súplica, de Noemia
Souza, apesar de serem exemplos literários provindos de contextos heterogêneos, compartilham
de elementos comuns, como por exemplo: autoria feminina, textos escritos em língua portuguesa
(respeitadas as variações linguísticas de Brasil e Moçambique) representam conflitos, impasses e
sofrimentos que se comunicam em sua humanidade.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
O objeto de pesquisa deste estudo (ver Apêndice deste trabalho) tem como objetivo
proporcionar uma experiência de leitura literária que valorize o repertório trazido pelos
alunos da Educação de Jovens e Adultos para a sala de aula, orientados pelo Círculo de Leitura
Estruturado proposto por Rildo Cosson (2014).

Segundo Cosson (2021), o professor precisa considerar que os alunos não possuem
experiência prévia com círculos de leitura. Com isso, faz-se necessário uma aula para explicar
o funcionamento geral do círculo com o uso de vídeos e discussão de uma obra curta. Nesta
etapa de “treinamento”, será lido o poema Súplica (1951), de Noemia Souza, que apresenta
qualidade estética e temática atual, fazendo com que os receptores percebam a relevância
da literatura por meio de representação da realidade.

Apoiado em Daniels e Steineke (2004), Cosson (2021) afirma que nesta etapa de
treinamento o professor deve trazer questões relevantes para o desenvolvimento dos círculos
e de questões que abordem:

66
a. As habilidades sociais necessárias à participação na discussão e interação no grupo, a
exemplo de saber a sua hora de falar, ouvir com atenção, manter o foco na obra, discordar
com cortesia e cumprir as tarefas acordadas, entre outras;
b. As estratégias de leitura que ajudam a compreensão de textos, como visualizar, conectar,
questionar, inferir, avaliar, analisar, sumarizar e autoavaliar a leitura;
c. A análise literária que enfoca as questões sobre a elaboração da obra, a maneira como foi
construída. (DANIELS & STEINEKE, 2004, apud COSSON, 2021, p. 144)

O círculo de leitura estruturado “obedece a uma estrutura previamente estabelecida,


com papéis definidos para cada integrante e um roteiro para guiar as discussões, além de
atividades de registro antes e depois da discussão” (COSSON, 2014, p. 158).

Este círculo atende às demandas dos estudantes da EJA, uma vez que são alunos que
já possuem maturidade e vivências que permitem assumir as “fichas de função”, que o
estudante desempenha dentro dos círculos de leitura, elaboradas pelo professor.

Para essa experiência com círculo de leitura literária, utilizaremos como registro os
diários de leitura e as fichas de função preconizados por Cosson (2021) apoiado em Daniels
(2002):

a. Conector ‐ Liga a obra ou o trecho lido com a vida, com o momento;

b. Questionador ‐ Prepara perguntas sobre a obra para os colegas, normalmente de cunho


analítico, tal como por que os personagens agem desse jeito? Qual o sentido deste ou daquele
acontecimento?

c. Iluminador de passagens ‐ Escolhe uma passagem para explicitar ao grupo, seja porque é
bonita, porque é difícil de ser entendida ou porque é essencial para a compreensão do texto;

d. Ilustrador – Traz imagens para ilustrar o texto;

e. Dicionarista ‐ Escolhe palavras consideradas difíceis ou relevantes para a leitura do texto;

f. Sintetizador ‐ Sumariza o texto;

g. Pesquisador – Busca informações contextuais que são relevantes para o texto;

h. Cenógrafo ‐ Descreve principais cenas;

i. Perfilador ‐ Traça um perfil das personagens mais interessantes. (DANIELS, 2002, apud
COSSON, 2021, p. 143).

A avaliação desta experiência de leitura literária se dará através das observações


realizadas em cada etapa desempenhada pelos estudantes, bem como de uma autoavaliação
realizada pelos próprios estudantes.

67
Cosson (2021, p.147) afirma que o desenvolvimento da competência literária dos alunos
a partir dos círculos de leitura proporciona vários benefícios: desenvolvimento do pensamento
crítico, empoderamento dos estudantes no comando das discussões, aprendizagens mediadas
pelos próprios estudantes, desenvolvimento da compreensão dos textos, da capacidade de
resolução de problemas e das habilidades de tomada de decisão.

Nessa perspectiva, o desafio de ensino-aprendizagem de leitura literária, visa a um


diálogo estreito entre a leitura da obra e a leitura da própria vida, propiciando momentos
de construção de novos conhecimentos e identificação com o lido a partir da discussão de
temas próximos da realidade dos alunos.

5. Análise, discussão e resultados esperados


Este trabalho buscou discutir e apresentar uma proposta de letramento literário a
partir do círculo de leitura (COSSON, 2009). Para isso, a metodologia apresentada valoriza o
repertório trazido pelos alunos, o qual emerge nas discussões e nas práticas em sala de aula.
Em consonância com os estudos na disciplina de Literatura dentro do Currículo do Estado de
São Paulo (2019), que pressupõe a leitura a partir da interpretação do contexto de produção
do texto, articulando ao repertório pessoal de conhecimentos dos estudantes, o projeto
teve como objetivos: apresentar a leitura literária, valorizando os conhecimentos prévios e
culturais dos alunos; trabalhar a autoestima dos estudantes, valorizando os seus saberes;
apresentar narrativas que permitam o conhecimento de manifestações e representações
culturais que conformam a cultura brasileira e valorizar, através da leitura literária, o legado
cultural da população afrodescendente.

O trabalho com círculos de leitura proposto por Rildo Cosson (2014) atende aos objetivos
propostos na medida em que o estudante tem acesso à leitura efetiva da obra e não apenas a
fragmentos ou a resumos dela, com isso, contribuindo para o seu letramento literário.

De acordo com Cosson (2014), a etapa motivação, descrita no Passo 2 do “Desafio de


ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária”,
busca preparar e motivar o estudante para a leitura da obra. Desse modo, trabalha-
se a autoestima dos estudantes, valorizando os seus saberes, a partir das antecipações e
inferências realizadas durante a leitura literária.

No Passo 3, segundo Cosson (2009), a estratégia descrita busca motivar a leitura literária,
a partir de algumas questões temáticas feitas aos alunos, as quais tenham relações estreitas

68
com a obra a ser estudada. Nesse sentido, visamos valorizar o legado cultural da população
afrodescendente por meio da leitura de obras literárias produzidas por autoras negras.

A discussão de temas latentes nas duas obras, como, por exemplo, a indignação com a
escravidão e a condição do papel da mulher no século XIX, contexto da obra, com vocação
para o lar, família e submissas aos maridos, retratando o regime do patriarcado presente no
Brasil por séculos, insere os estudantes num momento histórico, com as diferentes matrizes
culturais que fazem parte da sociedade brasileira.

A reflexão sobre a fala da personagem Susana, na obra Úrsula (1859), de Maria Firmina
dos Reis, possibilita a construção da identidade da personagem a partir das vivências da
autora, além de promover a identificação e a noção de pertencimento à medida que o leitor
se compadece e se solidariza com as situações de lutas e de preconceitos sofridos pela
personagem.

Nessa perspectiva, este projeto de intervenção didática almeja uma proposta de leitura
literária de escritoras canônicas, que ampliem o repertório cultural e linguístico, bem como
a autonomia e o posicionamento crítico dos alunos, formando uma comunidade de leitores.
Assim, o trabalho com as obras clássicas de Maria Firmina dos Reis e de Noemia Souza,
além de estarem em consonância com o eixo temático do curso “Identidades, territórios e
deslocamentos nas literaturas de língua portuguesa”, trouxeram à reflexão o contexto da
exploração do negro no século XIX e XX no Brasil e em Moçambique.

6. Considerações Finais
Este artigo se propôs a apresentar uma experiência de leitura literária a partir da
metodologia de círculo de leitura proposta por Cosson (2014) para alunos da Educação
de Jovens e Adultos (EJA) do Ensino Médio. Para tanto, foram escolhidas obras à luz dos
estudos realizados no Curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa,
Identidades, Territórios e Deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares,
as quais trouxessem uma experiência de leitura literária significativa para os alunos. Para
tanto, apresentamos e discutimos um Projeto de Ensino com o objetivo de proporcionar
uma experiência de leitura literária voltada para obras produzidas por autoras negras
representativas do período colonial no Brasil e em Moçambique.

O Projeto de Ensino teve como foco as práticas de leitura coletiva e o compartilhamento


de textos que dialogam com o romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, e o poema

69
Súplica (1951), de Noemia Souza. Buscou-se possibilitar o entendimento do papel da literatura
como ferramenta para construção da identidade dos estudantes e para uma educação crítica
e emancipadora, na medida em que os conhecimentos destes aprendizes são considerados
nas práticas dialógicas de ensino.

Esta pesquisa mostrou o quanto a experiência do curso se constituiu numa prática


modificadora na minha formação como docente e, por consequência, serviu para reorientar
as minhas práticas em sala de aula na medida em que a proposta de intervenção de ensino
de literatura se propôs também a ressignificar as experiências com a literatura para os
estudantes e professores.

70
REFERÊNCIAS
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ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.
APÊNDICE

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Autora: Daniela Morales Monteiro

1.
1.1. Público-alvo: Alunos da Educação de Jovens e Adultos do Ensino Médio.

1.2. Tempo de Duração: Um bimestre.


1.3. Definição da prática de letramento literário:
Entendemos que círculos de leitura são diferentes ações ou práticas de letramento literário, tais
como oficinas, comitês, laboratórios ou clubes do livro ou de leitura, as quais visam à constituição de
“comunidades de leitores”. Cosson (2009) define três tipos de círculos de leitura: Círculo estruturado;
Círculo semiestruturado e Círculo aberto ou não estruturado. Para este projeto adotaremos o Círculo de
leitura estruturado.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
O círculo de leitura estruturado, “obedece a uma estrutura previamente estabelecida com papéis definidos
para cada integrante e um roteiro para guiar as discussões, além de atividades de registro antes e depois
da discussão” (COSSON, 2014, p. 158).
O caminho de letramento literário traçado por Rildo Cosson (2009) é composto de quatro passos principais:
1) motivação; 2) introdução; 3) leitura; 4) interpretação. Além disso, é preciso ressaltar que esses passos
devem ter como ponto de partida uma adequada seleção dos textos que serão trabalhados com os alunos.
A partir destes quatro pilares, além das fichas de função para mediação da leitura, será desenvolvida a
proposta de mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
A prática de letramento literário a partir de círculos de leitura estruturados dialoga com o perfil dos
estudantes da EJA, contexto desta pesquisa, na medida em que valoriza seus repertórios e proporciona
autonomia para atuação nas fichas de função.
Nesse âmbito de ensino, as metodologias devem ser diversificadas, valorizando o repertório trazido pelos
alunos, reconhecendo as diferenças de forma não excludente.
Objetivo Geral:
Apresentar a leitura literária, valorizando os conhecimentos prévios e a cultura dos alunos;
Valorizar a leitura literária como experiência estética;

2.
2.1. Escolha dos textos literários:
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis;1
Poema Súplica, de Noemia Souza;2
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):
Justificam-se as escolhas das obras do item 2.1 por trazerem a reflexão sobre o contexto da exploração
do negro no século XIX e XX no Brasil e em Moçambique, e estarem em consonância com o eixo temático
do curso de especialização Literaturas de Língua Portuguesa da UAB/Unifesp, qual seja: “identidades,
territórios e deslocamentos”.

1 Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/35999/ursula_obras_reis.pdf


2 Disponível em: https://peita.me/blogs/news/suplica-por-noemia-sousa

73
Apresentar obras de autoria feminina, mostrando a relevância dos temas abordados para época em
que foram escritas as obras, contribuindo dessa forma para um maior conhecimento da escrita feita por
mulheres.
Rosa (2018) revela que no Brasil no século XIX, existiu um discurso patriarcal, no qual a mulher era subjugada
pelos homens inclusive em sua capacidade criativa, sendo a função da educação formar mulheres para
atender as funções de mãe e esposas, sendo reclusas e subservientes, para agradar e servir ao homem.
A autora ainda destaca que ao longo da história, um número reduzido de mulheres e negros tiveram
acesso à educação formal, sendo uma delas a autora Maria Firmina dos Reis.
Com isso, a relevância de discutir a obra Úrsula (1858) da autora, considerado o primeiro romance
abolicionista brasileiro de autoria feminina, que apresenta a visão crítica da sociedade do século XIX vivida
por Maria Firmina dos Reis.
Maria Firmina dos Reis (1825-1917) escritora maranhense, foi a primeira mulher negra da América Latina
a publicar um romance. Foi precursora da temática abolicionista na literatura brasileira.
No romance “Úrsula” (1859) pretende-se perceber como a escritora utilizou sua veia literária na construção
de discursos antiescravistas no Maranhão do século XIX, que se configurava nesse momento como uma
das províncias com maior número de contingente escravo do período. É nesse cenário que Maria Firmina
dos Reis insere sua escrita antiescravista.
Na África, a contemporânea Noemia Souza, conhecida como a “mãe dos poetas moçambicanos”, nasceu
em Catembe, Moçambique, durante o período colonial. Trabalhou para o jornal da associação O Brado
Africano, criada com o objetivo de recolher as queixas dos “filhos da colônia”. Em 1951 publicou por conta
e financiamento próprios o seu livro Sangue Negro, que começou a circular ilegalmente.
As obras dialogam entre si, na medida em que trazem a indignação pelo escravagismo no século XIX, sendo
a indignação retratada por duas escritoras afrodescendentes. A leitura literária permite refletir sobre a
temática a partir de dois gêneros textuais (romance e poema), o que enriquece as discussões em sala de
aula.
Outro aspecto relevante é o fato de, apesar de serem de nacionalidades diferentes – brasileira e
moçambicana –, ambas retratam os sofrimentos vividos no período colonialista português em seus países.
Estudos de Rosa (2018) mostram no romance Úrsula, de Reis (1859) que a obra denuncia as injustiças
praticadas livremente em uma sociedade autoritária e patriarcal que, no Brasil, era percebida por alguns
intelectuais e, sobretudo, pelas minorias mais afetadas, como o negro e a mulher, além de apresentar as
personagens negras da narrativa conscientes quanto à sua condição e conhecedoras da própria cultura e
do passado africano, como é o caso da personagem Suzana.
Em Souza (1951), o poema Súplica aborda a opressão do povo moçambicano, das dificuldades que
enfrentavam cada dia e as dores que sofriam como resultado do colonialismo e da escravidão.
A escolha dessas obras justifica-se no sentido de atender a Lei 10.639/03 que foi modificada em 2008
pela Lei 11.645. A Lei supracitada modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96,
incluindo, em seu bojo, a obrigação do estudo da história e cultura afro-brasileira, como apontam os
artigos 26-A e 79-B, a seguir:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira.
§ 1° O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e
o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
§ 2° Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da
Consciência Negra (BRASIL, 2003).
Nesta perspectiva, a democracia é movimento plural, onde a diversidade de povos e sua participação
encontram natural participação no processo representativo.

74
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Passo 1
Objetivo:
Trabalhar a autoestima dos estudantes, valorizando os seus saberes, a partir das antecipações e inferências
realizadas durante a leitura literária;
Informar aos alunos que faremos um círculo de leitura, no qual leremos textos de escrita feita por mulheres
negras no Brasil e na África.
Antes das leituras das obras, apresentar, por meio de vídeo, a biografia das autoras, questionando aos
alunos:
• Vocês conhecem estas mulheres?
• Qual a nacionalidade das autoras?
• Em que época elas viveram?
• Como era a sociedade naquela época?
Apresentar aos alunos o vídeo com a biografia da autora Maria Firmina dos Reis3 pela professora Lilia
Scharkcz e a biografia de Noemia Souza4.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
Essas estratégias foram escolhidas por retratarem a temática através de linguagem multissemiótica e
pelo fato de usar recursos audiovisuais facilitadores do processo de ensino-aprendizagem para as aulas
híbridas, explorando as múltiplas inteligências.
Segundo Souza e Cosson (2011, p.4), ativar o conhecimento prévio é considerado por vários autores como
a estratégia “guarda-chuva”, pois, a todo momento, o leitor ativa conhecimentos que já possui com relação
ao que está sendo lido.
A proposta de motivação de leitura acima descrita busca acionar essas informações que interferem
diretamente na compreensão durante a leitura.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:

Passo 2

Objetivo: Apresentar as obras de autoria feminina Úrsula de Maria Firmina dos Reis e o poema Súplica de
Noemia Souza;
Apresentar o diário de leitura como forma de registro e acompanhamento da leitura;

Para Cosson (2014, p. 121-122), o diário de leitura “não se define como apenas a transposição do diário
íntimo para o ambiente escolar [...] é um registro das impressões do leitor durante a leitura do livro [...]”. É
uma forma de aprendizagem em que o aluno dialoga com o livro literário, o filme, a poesia, o teatro, etc.
Realizar a leitura compartilhada do texto “Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito”, de Danglei de
Castro Pereira, para apresentar a obra, a autora e o contexto em que foi produzida.5 Realizar discussão do
que é um prólogo, em seguida colocar a questão sobre as dificuldades das escritoras afrodescendentes
produzirem uma obra literária com críticas a uma sociedade patriarcal, tomada pelo colonizador
(eurocêntrico), que bania as formas diferentes de cultura e identidades.

3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UmlcAf3I9sM


4 Disponível em: https://www.ufrgs.br/africanas/noemia-de-souza-1926-2002/
5 Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/35999/ursula_obras_reis.pdf

75
Em seguida, perguntar aos alunos o que é prólogo. Apresentar a definição: “Prólogo é um texto ou uma
advertência, geralmente breve que antecede uma obra escrita e que tem por objetivo apresentá-la ao
leitor. Do grego “prólogos” que significa “escrito preliminar. É o mesmo que introdução, prefácio, prefação,
preâmbulo. É a introdução de um trabalho, onde o autor desenvolve as ideias preliminares sobre o assunto
que vai desenvolver no desenrolar da obra.”6

Após a explanação realizar a leitura compartilhada do prólogo do livro Úrsula.


2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:

Passo 3

Objetivos: Discutir narrativas que permitem o conhecimento de manifestações e representações culturais


que conformam a cultura brasileira e moçambicana;
Valorizar o legado cultural da população afrodescendente no Brasil e na África, por meio da leitura de
obras literárias produzidas por autoras negras.

Apoiada em Cosson (2009), essa estratégia busca motivar a leitura literária, a partir de algumas questões
temáticas feitas aos alunos, que tenham relações estreitas com a obra a ser estudada, como por exemplo:

a. Com base no título, sobre o que você acha que será o livro?
b. Em que época a obra foi escrita?
c. Quais elementos no texto confirmam sua resposta à questão b?
d. Quem é a autora do livro?
e. Você acredita que na época (séc. XIX) era comum um livro ser escrito por mulheres?

Souza e Cosson (2011) afirmam que passar rapidamente os olhos pela história na pré-leitura,
frequentemente, resulta na formulação de hipóteses baseadas no conhecimento prévio do leitor sobre
o assunto tratado na narrativa e a forma como ele é abordado. Os autores revelam que essas hipóteses
representam o começo da compreensão dos significados do texto e serão confirmadas durante a leitura
do livro.

6 Disponível em:https://www.significados.com.br/prologo/

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Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Este projeto foi desenvolvido a partir da concepção sociointeracionista de leitura, que está em consonância
com os documentos norteadores para a prática de ensino da leitura no Ensino Fundamental do Estado de
São Paulo (SÃO PAULO, 2020).

Atividades propostas para a obra Úrsula de Maria Firmina dos Reis:


Professor entrega as fichas de função para discussão após a leitura. As fichas poderão ser distribuídas
por grupo de alunos.
1-Após a leitura do primeiro capítulo do livro percebemos que o texto foi narrado em 3ª pessoa.
a) Descreva como era a sociedade daquela época a partir dos elementos indicativos de tempo e espaço
narrados.
b) Qual é a posição do narrador em relação a escravidão?

2- Após a leitura do terceiro capítulo, descreva Úrsula, a protagonista do livro.

3- Maria Firmina dos Reis destaca sua indignação com a escravidão presente no Brasil nas vozes de dois
personagens relevantes na narrativa Túlio e a preta Susana.
Após a leitura do capítulo 9 reescreva a cena em que Susana fala de sua saída forçada da África para o
Brasil.

4- “– Sou mãe, senhor! Vede minha pobre filha! É um anjo de doçura e de bondade, e abandoná-la, e
deixá-la só sobre este mundo, que ela mal conhece, é a maior dor de quantas dores hei provado na vida.”
(2018, p.61)
O trecho acima revela o contexto histórico do romance, que as mulheres eram idealizadas como cheias
de virtudes, com vocação para o lar, família e submissas aos maridos, retratando o regime do patriarcado
presente no Brasil por séculos.

Reflita sobre as colocações acima, você acredita que as mulheres ainda sofrem estes desafios nos dias de
hoje?
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Apoiadas em Bakhtin (1981, 2003), as diretrizes apontam uma concepção de leitura para além da dimensão
monológica da escrita, isto é, um processo interativo instituído pelo encontro de pessoas (o autor, o leitor
e as múltiplas vozes que eles representam), que incide sobre a construção e reconstrução de significados.
Trata-se de uma operação ativa que não só constitui as pessoas, como dá vida à própria linguagem,
resgatando, ainda, seus sentidos político e ideológico.
Na visão dialógica, o locutor constrói seu enunciado em função do interlocutor, que tem um papel ativo,
constitutivo na formulação dos enunciados. Visivelmente, é o outro (interlocutor) quem condiciona o que
o locutor diz e, desse modo, ambos são colocados no mesmo plano.
As obras escolhidas e as estratégias para o desenvolvimento do letramento literário coadunam com a
concepção teórica dos documentos norteadores oficiais para o ensino de literatura do estado de São
Paulo.

77
2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:

Para realizar o acompanhamento das leituras literárias, pretende-se adotar o Método Recepcional
elaborado por Hans Robert Jauss (1979), que pressupõe o conhecimento e o aproveitamento do repertório
do leitor, respeitando suas expectativas e trabalhando no sentido de alargá-las. Com essa concepção,
não se fará a imposição de conceitos que a crítica estabelece sobre as obras, embora se reconheça sua
validade e pertinência.
Daremos a oportunidade para que os estudantes possam estabelecer outros discursos possíveis a partir
da leitura de obras literárias, na medida em que se envolve cada uma das atividades que se desencadeiam
no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade das reações por ela
provocadas (JAUSS, 1979).
De acordo com Bordini e Aguiar (1993), a aplicação do Método Recepcional de Jauss pressupõe os seguintes
objetivos: efetuar leituras compreensivas e críticas; ser receptivo a novos textos e a leituras de outrem;
questionar as leituras efetuadas em relação ao seu próprio horizonte cultural; transformar os próprios
horizontes de expectativas, bem como os do professor, da escola, da comunidade familiar e social.
Neste sentido, a leituras das obras de Maria Firmina dos Reis e Noemia Souza contribuem para a construção
da apreciação estética, significativa para a constituição de identidades, a vivência de processos criativos,
o reconhecimento da diversidade e da multiculturalidade e a expressão de sentimentos e emoções (SÃO
PAULO, 2020 P.51).
A partir deste processo os estudantes terão a possibilidade de reconhecer, valorizar,
fruir e produzir tais manifestações, com base em critérios estéticos e no exercício da sensibilidade
adquiridos por meio da experiência da leitura literária.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:

Justifica-se a aplicação do Método Recepcional, pois, entre outros aspectos, ele considera o repertório e
as expectativas dos estudantes. Segundo Bordini e Aguiar (1993):

[...]parte do horizonte de expectativas do grupo, em termos de interesses literários,


determinados por suas vivências anteriores, o professor desempenha o papel de provocar
situações que propiciem o questionamento desse horizonte. Tal atitude implicaria um
distanciamento do estudante, uma vez que revisa criticamente seu próprio comportamento,
redundando na ruptura do horizonte de expectativas e em seu consequente alargamento.
Com o ajustamento a essa nova situação, o passo seguinte é a oferta pelo professor
de diferentes leituras que, por se oporem às experiências anteriores, problematizam o
aluno, incitando-o a refletir e instaurando a mudança através de um processo contínuo.
Como o sujeito é entendido como um ser social, sua transformação implica a alteração do
comportamento de todo o grupo, atingindo a escola e a comunidade (BORDINI & AGUIAR,
1993, p. 85).

Neste sentido, o método atende às demandas do grupo de estudantes a que se destina essa proposta de
desenvolvimento do letramento literário.

78
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.

1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:

Solicitar aos alunos, com base nas práticas interpretativas do letramento literário de Rildo Cosson (2009),
que realizem, individualmente, a leitura dos textos propostos.
Outrossim, solicitar que os alunos se atentem aos títulos, tema e contexto em que as obras foram
produzidas, com atenção especial ao vocabulário presente nas obras, considerando que uma das obras foi
escrita no século XIX e outra por autora moçambicana.

Atividades propostas para o poema Súplica de Noemia de Sousa:

1- Considere o conceito de autoidentidade por Gidenns (2002) “o processo de construção da identidade


não é algo que simplesmente depende dos elementos contingenciais sociais e históricos, mas também
depende de como o sujeito, o indivíduo se relaciona com tais elementos, que são culturais”.

Relacione o conceito de autoidentidade com o trecho do poema Súplica de Noemia de Sousa ‘’Tirem-nos
a terra em que nascemos, onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim:
um tabuleiro de xadrez…’’

Nota para o professor: Segundo Stanley (2017, p.2) estes versos são vitais no entendimento do tema. Aqui a
autora essencialmente diz que a África não deve ser o objetivo do africano ou que a terra de Moçambique
não define o que é ser moçambicano, contudo, os moçambicanos definem o que é a Moçambique.

2- Segundo Stanley (2017) afirma que o poema apresenta palavras que denotam a influência portuguesa
na descrição da vida moçambicana e que refletem a combinação dos portugueses com os moçambicanos,
como por exemplo: “as noites mulatas” referem-se à cor cinza da terra devido o brilho da lua; ‘’machamba
que nos dá o pão’’ porque pão não é uma comida moçambicana, mas uma importação de Portugal.
Você considera que o uso de palavras estrangeiras modifica a cultura e a identidade de um povo?
Quais palavras foram incorporadas no nosso idioma por influência de outros povos? Você acredita que o
uso destas palavras (termos) influencia em perda da identidade cultural do brasileiro?

*Destacar a ficha de função “Dicionarista” que aponta as palavras consideradas difíceis ou relevantes para
a leitura do texto.

cubata: choupana de negros africanos


machamba: terreno agrícola para produção familiar
magaíça: antiga denominação dada aos emigrantes moçambicanos que iam trabalhar nas minas da África
do Sul
mamparra: palavra depreciativa para o emigrante moçambicano que ia trabalhar nas minas da África do
Sul
xingombela: dança tradicional do sul de Moçambique

No segundo momento, ainda com base em Cosson (2009), propor uma roda de leitura para compartilhamento
e construção de sentido coletiva dos textos.

79
As atividades de interpretação dos textos literários propostos serão apoiadas nos pressupostos teóricos
de Cosson (2009, pp. 65-66), que afirma dois momentos de interpretação no processo de ensino-
aprendizagem de leitura literária. O primeiro é o interior: “aquele que acompanha a decifração, palavra
por palavra, página por página, capítulo por capítulo, e tem seu ápice na apreensão global que realizamos
logo após terminar a leitura. É o (...) encontro do leitor com a obra”. Já o segundo, chamado momento
exterior, “é a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em
uma determinada comunidade”. Sendo assim, as atividades de interpretação “devem ter como princípio a
externalização da leitura, isto é, seu registro”.
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
O percurso de interpretação de textos literários apoiados em Cosson (2009) atende as demandas da
Educação de Jovens e Adultos, que mobilizam os conhecimentos prévios e culturais trazidos pelos
estudantes para a escola para, a partir deste ponto, desenvolver as estratégias de leitura e a construção
de novos saberes.

2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:

Para Souza e Cosson (2011, p. 5), a última etapa do círculo de leitura é a avaliação e a conversa em grupo
sobre o texto lido. Esse momento serve para o professor avaliar a recepção de seus alunos, o envolvimento
no ato de ler e se os objetivos foram alcançados.
De acordo com Girotto e Souza (2010, p. 63), “[...] o professor precisa ainda retomar o processo de leitura
a fim de verificar o quê, para quê, como e em que momento os alunos utilizaram a referida estratégia de
leitura”.
Propomos aqui algumas atividades avaliativas para culminância das obras lidas:
Interpretação de alguma cena realizada pelos estudantes;
Apresentação de algum personagem com quem o estudante tenha se identificado;
Elaboração de pôster com informações retratando o contexto histórico das obras;
Cartazes com a localização de Moçambique em África, cultura, biografia da autora;
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Os instrumentos de avaliação- diagnóstico do que os alunos conhecem e envolvimento nas atividades
propostas- buscam valorizar o protagonismo estudantil na construção de novos saberes, respeitando os
pontos de vistas e negociação de interpretações diferentes.
Segundo (COSSON, 2009, p. 115), são essas negociações que conduzem à ultrapassagem das impressões
iniciais individuais e configuram o coletivo da comunidade de leitores.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Neide Aparecida et al. Linguagens e culturas: linguagens e códigos: ensino médio: educação de
jovens e adultos. Ação Educativa. São Paulo: Global Editora, 2013.
BAKHTIN, Voloshinov. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:Hucitec, 1981.
BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera T. de. Literatura a formação do leitor: alternativas metodológicas.
2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.
__________. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: Textos da Estética da Recepção. Coord. e Trad. Luís Costa
Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 43-82
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula e outras obras. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/
handle/bdcamara/35999/ursula_obras_reis.pdf. Acesso em: 09/08/2021.

80
SOUZA, Renata de Junqueira; COSSON, Rildo. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula.
Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.pdf. Acesso em:
09/08/2021.
STANLEY, Ryan. Súplica a quem? Uma análise do poema escrito por Noémia de Sousa. Disponível em: https://
medium.com/@ryanstanley_97822/s%C3%BAplica-a-quem-uma-an%C3%A1lise-do-poema-escrito-por-
no%C3%A9mia-de-sousa-4098c67eaec5.Acesso em: 10/09/2021
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.

81
Olhos d’água e Vozes-mulheres,
4 de Conceição Evaristo:
uma proposta de letramento literário na
educação de jovens e adultos (EJA)

 Priscila Manfré1
Mary Nascimento da Silva Leitão2
 

Resumo
A literatura pode ser uma ferramenta para que o homem compreenda de forma mais
lúcida o seu interior e o meio que o cerca. Todavia, na escola, nem sempre há para ela o lugar
que lhe cabe, especialmente na Educação de Jovens e Adultos (EJA), em que a abordagem
do texto literário geralmente é bastante superficial. Nesse contexto, apresentamos um
projeto para o ensino de literatura voltado aos Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino
Médio da EJA, a partir do estudo de dois textos de Conceição Evaristo: Olhos D’água (2015)
e Vozes-mulheres (2017). Nosso objetivo é criar possibilidades para que os alunos percebam
as especificidades do texto literário e explorem sua potência significativa; devido à temática
abordada nessas produções, espera-se ainda estimular análises acerca da condição da mulher
negra na sociedade brasileira. Para tanto, partimos da reflexão sobre a função social da
literatura em Candido (2012) e o ensino de leitura literária na escola em Jouve (2012) e Dalvi
(2013). Valemo-nos, também, das observações de Piconez (2003) quanto à aprendizagem do
adulto, da noção de lugar de fala e de racismo estrutural, sistematizadas por Ribeiro (2021)
e Almeida (2021), respectivamente. O projeto estrutura-se segundo a metodologia para o
desenvolvimento do letramento literário proposta por Cosson (2014).

Palavras-chave: Educação Básica; Educação de Jovens e Adultos; letramento literário;


literatura afro-brasileira, Conceição Evaristo.
1 Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Literaturas de Língua Portu-
guesa: identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares, pela UAB/UNIFESP. Professora
de Língua Portuguesa na Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. E-mail: pri_manfre@yahoo.com.br.
2 Doutora em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Universidade Federal do Ceará. Pesquisadora
nas áreas do ensino da literatura e da escrita feminina. Atualmente, professora temporária de Literatura Brasileira da Universidade
Estadual do Ceará. Orientadora da Priscila Manfré no processo de elaboração do TCC da Especialização em Literaturas de Língua
Portuguesa: identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares, pela UAB/UNIFESP. E-mail:
maryepoesia@gmail.com.

83
1. Introdução
É indiscutível a potência do texto literário para revelar ao leitor universos - externos e
internos – que lhe eram desconhecidos. Longe de ser um elemento acessório, a literatura
pode desconstruir distâncias e tornar tolerável a relação entre as pessoas. Contudo nem
sempre recebe a atenção devida, em especial na Educação Básica. Inserido no currículo de
Língua Portuguesa - já que não constitui disciplina autônoma -, o ensino de literatura carece,
principalmente, de métodos eficazes para formar adequadamente sujeitos leitores e na
Educação de Jovens e Adultos (EJA) ocorre de maneira ainda mais superficial do que em outros
segmentos. Minha trajetória como professora da Educação Básica deu-se, em grande parte,
em salas de aulas da EJA, e pude constatar que, embora os materiais didáticos específicos
para este público tragam conteúdos de literatura, é comum que as atividades se restrinjam a
análises pouco aprofundadas da linguagem, das estruturas textuais e da temática.

Nesse contexto, o curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa:


Identidades, Territórios e Deslocamentos apresentou muitas contribuições, pois apontou
conceitos e autores que mostraram ser possível um trabalho metodologicamente estruturado
com literatura na escola. Propusemo-nos, então, a expor, no presente artigo, um projeto
integrado para o ensino de literatura baseado na metodologia elaborada por Cosson (2014),
que visa a desenvolver o letramento literário em sala de aula. Sua aplicação tem potencial
para ocorrer durante as aulas regulares tanto de turmas de Anos Finais do Ensino Fundamental
quanto de Ensino Médio da EJA ou mesmo como um minicurso direcionado a esse público.

Importa destacar que os adultos retomam os estudos por motivos muito diversos,
trazendo, tanto do cotidiano doméstico quanto do trabalho, inúmeras experiências que os
constituíram como indivíduos e como cidadãos até aquele ponto. Um contato sólido com o
texto literário certamente pode estimulá-los a olhar a vida de forma mais ampla e aberta,
bem como permitir que ressignifiquem memórias e reinterpretem vivências. Além disso,
pode despertar reflexões e críticas sobre questões como ética e cidadania.

Trata-se de um público composto, em grande parte, por pessoas oriundas das camadas
menos abastadas. Com o intuito, então, de promover identificação dos alunos com os
contextos ficcionais e poéticos estudados, elegemos, como mote para esse estudo, dois
textos de Conceição Evaristo. A autora tem uma produção literária voltada à crítica social, em
que evidencia assuntos como racismo, patriarcado e desigualdades. Seus romances, contos
e poemas tornam concretas as agruras de cidadãos que boa parte dos brasileiros conhece
apenas como dados estatísticos. Dentre seus trabalhos, selecionamos o conto Olhos d’Água
(EVARISTO, 2015) e o poema Vozes-Mulheres (Idem, 2015), uma vez que contêm grande

84
potencial de análise e reflexão, além de seguirem uma linha temática repleta de possibilidades
para retomar personagens e fatos narrados. Ambos os textos enfatizam de modo sensível e
contundente a situação da mulher negra, que, no âmbito de uma sociedade de exclusão
como a nossa, sofre por ser a parcela mais subjugada da população.

O projeto estrutura-se nos moldes da sequência que Cosson (2014) categorizou


como básica e envolve os passos motivação, introdução, leitura, interpretação e avaliação;
compõe-se por diversas ações, entre elas círculos de leitura, culminando na elaboração de
um texto do gênero carta pessoal. Durante as atividades, os alunos serão levados a discutir
os textos literários ora mencionados, cujos sentidos se relacionarão à biografia da autora, a
um vídeo de declamação do poema e a reportagens que retratam a população afro-brasileira
na atualidade. A fim de analisar com profundidade essas produções literárias e debater os
privilégios de certos lugares sociais, pertencentes aos agentes do discurso dominante (homem
heterossexual branco), valemo-nos dos estudos de Ribeiro (2021) sobre o conceito de lugar
de fala e da noção de racismo estrutural, sistematizada por Almeida (2021).

O objetivo geral deste trabalho é criar possibilidades para que os alunos percebam
as especificidades do texto literário para realizarem leituras que explorem seus sentidos
e elevem a reflexão acerca de si e do seu entorno. Os objetivos específicos são: estimular
a leitura do texto literário dos gêneros conto e poema; promover a análise individual das
leituras realizadas; possibilitar a socialização de impressões de leitura; estimular a construção
de sentido coletivamente às leituras realizadas; estabelecer relações entre título e corpo
do texto; estabelecer relações entre texto verbal e não-verbal; reconhecer relações de
intertextualidade tanto entre textos literários quanto entre eles e textos de outros gêneros;
promover a reflexão sobre o lugar que ocupa a mulher negra na sociedade brasileira atual
e estimular o pensamento crítico acerca das desigualdades sociais e de gênero, a partir da
temática dos textos literários selecionados.

2. Contextualização
Como estudante da Educação Básica, lembro-me de que meus estudos de literatura
tinham, como base, o cânone ocidental, limitando-se a nomes e obras que refletiam e
valorizavam a cultura branca europeia. Era muito forte a perspectiva diacrônica e havia
pouco espaço para o debate ou mesmo para a fruição, bem como para as produções
contemporâneas, o que distanciava o texto literário do cotidiano dos alunos. Tal memória
traz a mim, hoje professora de Língua Portuguesa, a constatação de que o trabalho com
literatura, em contexto escolar, foi e continua a ser um grande desafio. 

85
Há alguns anos, leciono na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e noto que, nos livros
didáticos direcionados a esse segmento, a literatura recebe modesto destaque: muitas vezes,
as abordagens voltam-se a aspectos mais elementares da leitura, e são pouco explorados
os diálogos entre o texto literário e os de outras esferas, bem como as relações entre o
texto e a realidade que retrata ou revela. Entretanto, a leitura dessas obras pode inspirar o
desenvolvimento humano dos alunos, na medida em que estimula reflexões sobre si e sobre
o meio que os cerca, transformando pontos de vista e objetivos, o que vem ao encontro das
demandas do público da EJA. O adulto tem uma noção bastante concreta do que busca no
universo escolar, e, geralmente, é uma possibilidade de renovação de perspectivas, sejam
elas de ordem pessoal ou profissional.

Ao buscar novos caminhos para trabalhar o texto literário nesse contexto e, também,
conhecimento para abordar temáticas que refletem questões sociais contemporâneas, decidi
me inscrever para a seleção do curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa:
Identidades, Territórios e Deslocamentos, sobre o qual tive conhecimento na escola
onde leciono.  Os estudos desenvolvidos durante a trajetória do curso trouxeram muitas
contribuições, pois, a cada semana, pude conhecer novos autores e entrar em contato com
enfoques diferentes sobre língua e literatura, além de conceber de forma mais crítica assuntos
como identidade, colonização, racismo e patriarcado. Tais questões foram exploradas no
contexto social do Brasil, de Portugal e de Moçambique, e “costuradas” com reflexões sobre
a língua portuguesa e seus deslocamentos pelo mundo, partindo do território português
para os continentes africano e americano. 

Foram fundamentais as reflexões propostas nas disciplinas As literaturas de língua


portuguesa em contexto contemporâneo: integrativa e Identidades, territórios e deslocamentos:
a perspectiva portuguesa. Nelas se discutiu a posição de Portugal à época das Grandes
Navegações, no século XVI, quando se tornou um império com territórios em todo o globo.
A relação de exploração e aniquilamento cultural a que submeteu suas colônias durante
séculos foi tão intensa que ainda hoje há marcas nessas localidades, mesmo como Estados
independentes, como mostra Almeida (2021), ao expor o conceito de racismo estrutural. 
Além desse problema, outro foi abordado: o machismo impregnado na cultura portuguesa,
que mantinha a submissão da mulher branca e objetificava a negra. Tal perspectiva foi
apresentada principalmente sob a óptica crítica de Ana Maria Machado (2011), Isabel Allegro
Magalhães (1992) e Lídia Jorge (2009), que somaram à condição exploradora do colonizador
não só a questão da mulher branca europeia, mas também a da “outra”, a negra africana. 

Essas problemáticas foram aprofundadas com leituras oferecidas na disciplina


Identidades, territórios e deslocamentos: a perspectiva moçambicana, como nos textos de

86
Francisco Noa (2017), nos quais são descritos o nascimento e a periodização da recente
literatura de Moçambique, e de Nataniel Ngomane (2018), em que o autor discute o papel da
imprensa na construção de uma literatura nacional moçambicana. Os trabalhos de ambos os
estudiosos enfocam o estabelecimento de uma produção literária profundamente marcada
pela nociva relação da colônia com a metrópole, em que esta se autorizou a explorar a
população nativa e a dizimar a cultura e os sistemas linguísticos locais para impor a sua
forma de viver e a sua língua oficial. Mostraram, além disso, como a literatura retrata a
constituição da própria sociedade moçambicana, dividida entre diversos grupos étnicos, nos
quais se concentra uma cultura patriarcal bastante arraigada, em que a poligamia é aceita e
as mulheres devem servir aos seus filhos homens e marido, como retrata Paulina Chiziane no
romance Niketche, por exemplo. 

Já o enfoque que este curso de Especialização deu ao âmbito brasileiro dos deslocamentos,
nas disciplinas Identidades, territórios e deslocamentos: a perspectiva brasileira e Literatura
e língua: perspectivas plurais, partiu das diferentes nuances que a língua portuguesa ganhou
em nosso solo, recebendo influência das línguas indígenas nativas e dos falares africanos,
trazidos pelos negros escravizados. Apesar de essas diferenças serem fundamentais para a
construção e o reconhecimento de nossa identidade nacional, constata-se imenso desprezo
pelas variantes populares, enquanto se valoriza uma língua idealizada, muito mais próxima do
português europeu do que do vernáculo brasileiro. Evidentemente o preconceito linguístico
(BAGNO, 2012) não é nada mais do que o reflexo de outros preconceitos, de classe, de gênero
e de raça, e reflete a supremacia da cultura branca europeia sobre outras. Porém, observa-se
que um aspecto semelhante entre portugueses e africanos se intensificou em solo brasileiro.
O sistema patriarcal que caracteriza tanto a cultura portuguesa, como a de muitos dos povos
da África que aqui aportaram, deu à nossa sociedade contornos que sujeitam a mulher a um
papel de subserviência e apagamento. Para Djamila Ribeiro (2021), a mulher negra, nesse
contexto, é a mais subjugada, por ser o contraponto daquele que detém a hegemonia em
nossa sociedade, o homem branco.

Ao final da “viagem” pelos três territórios, Portugal, Moçambique e Brasil, foi possível
notar a unidade temática do curso e compreender que o fio condutor do trajeto, a língua
portuguesa, é muito mais do que um elemento de comunicação e coesão social. Ela,
inicialmente, tornou-se o instrumento que materializava um discurso muito específico: o do
europeu branco, que subjuga a cultura local, sobre a qual instala a sua. Compreendi, portanto,
mais claramente temas como identidade, descolonização, feminismo e racismo estrutural
e me permiti repensar muitas das questões que contornam minha vida, como brasileira e
mulher.   

87
Surgiram, entretanto, questões sobre como trabalhar textos literários na escola, de modo
a extrair deles tantas reflexões, e permitir que os alunos consigam também ressignificar o
olhar sobre si e sobre a sociedade em que vivem. A apresentação da metodologia desenhada
por Cosson (2014) para o desenvolvimento do letramento literário em contexto escolar
mostrou ser possível realizar um trabalho capaz de aproximar a literatura dos alunos, ao
mesmo tempo em que se preserva e valoriza tanto o conteúdo do texto literário quanto a sua
forma, elementos indissociáveis e que devem ser considerados da mesma maneira.

A partir dessa perspectiva, encontrei em Conceição Evaristo a voz que decidi estudar, pois,
em sua obra, é retratada a condição da mulher negra na sociedade brasileira contemporânea.
Tive contato com sua produção em um grupo de leitura entre amigos, e o primeiro conto que
li foi justamente Olhos dÁgua (EVARISTO, 2015), que faz parte deste trabalho. Nesse texto,
a narradora indaga-se sobre a cor dos olhos de sua mãe, indignando-se por não conseguir
se lembrar deles. Ao rememorar sua infância com a mãe e as irmãs, desfia o pano de fundo
da pobreza em que viviam. A partir da leitura, pensei em mim enquanto mulher, em minha
mãe e em tantas mulheres que conheço, pensei ainda em meus alunos e principalmente em
minhas alunas da EJA e no quanto poderiam também se emocionar e se identificar com o
texto. Após o contato com outros contos da autora, cheguei a seus poemas, e Vozes-mulheres
(Idem, 2017) foi um dos que mais me marcaram. Os versos tratam do sofrimento e subjugo a
que a mulher negra foi submetida, desde a chegada dos primeiros africanos escravizados ao
país, geração a geração, até os dias atuais, quando consegue manifestar resistência contra o
lugar que esperam que ela ocupe.

Ambas as produções da autora contêm diversos elementos que se entrecruzam e fazem


com que se enriqueçam mutuamente. Essa temática é condizente com os assuntos que estudei
no curso e emoldura o projeto de ensino de literatura a ser apresentado. Ademais, é próxima
do público da EJA, que experimenta constantemente as consequências das iniquidades
sociais, do preconceito racial e de gênero.

3. Fundamentação teórico-metodológica 
Entendemos que a literatura se presta a traduzir ao homem aspectos que constituem
tanto o âmbito social quanto o individual, dando-lhe elementos para desenhar mundos
imaginários e para compreender a si mesmo e ao seu entorno. Para Candido (2012), todo ser
humano tem necessidade de ficção e fantasia, e a obra literária possui a capacidade de suprir
essa demanda, embora não deva ser reduzida a mero arcabouço de imaginação e devaneios,

88
já que sempre está atrelada à realidade, e “é difícil pôr de lado os problemas individuais e
sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo onde vivemos.” (CANDIDO, 2012, p.
82)

A escola, como espaço que articula saberes culturalmente produzidos e acumulados


pelo ser humano, deve se ocupar em transmitir aos estudantes noções concretas de como
lidar com as estruturas próprias do texto literário. Segundo Jouve (2012), explorar esse tipo
de enunciado é “examinar as complexas relações entre o que é mostrado e o modo com que
se o mostra” (JOUVE, 2012, p. 91), tendo em vista que as informações veiculadas pela obra
literária tendem a ser assimiladas de forma não consciente. O papel do professor, então, é o
de transformar esses saberes em conhecimento, e “um saber não se torna conhecimento, a
não ser que seja objeto de uma reapropriação pessoal que passa pela tomada de consciência”
(Ibidem, p. 137). O texto literário constitui-se, inclusive, como um elemento fundamental na
formação do indivíduo, possuindo dimensão política, pois “ler um texto literário é um ato
histórico-social-culturalmente situado, ou seja, é um ato (ou um conjunto deles) que envolve
e comporta hipóteses e juízos.” (DALVI, 2013, p. 79).

Tal questão mantém sua relevância no contexto da Educação de Jovens e Adultos (EJA),
segmento da Educação Básica para o qual se volta este trabalho. Seu público é constituído por
alunos que retomaram seus estudos devido a motivos bastante variados e trazem à escola
uma grande bagagem de vida, cuja formação advém principalmente de suas práticas sociais
relacionadas ao ambiente laboral e domiciliar. Para Piconez, 

[...] na elaboração de alguns princípios psicopedagógicos de uma didática para adultos deve-
se partir do pressuposto de que o adulto - como aluno - é alguém  que traz consigo uma
gama de conhecimentos e de experiências anteriores que devem servir de ponto de partida
e enriquecimento para a elaboração de situações de aprendizagem tanto no que se refere ao
conteúdo quanto às técnicas (PICONEZ, 2003, p. 4).

O saber veiculado em sala de aula, portanto, deve fazer sentido para o aluno,
correspondendo a sua maturidade e se relacionando a seus conhecimentos prévios, assim
contribuirá “não somente para fornecer informações e procedimentos da cultura letrada, mas
também para consolidar sua inserção social, cultural e política na sociedade” (CARBONELL,
2012, p. 79). Nesse sentido, o trabalho com literatura na escola, desde que metodologicamente
estruturado e articulado às vivências do aluno, pode fazer da obra literária uma ferramenta
para que compreenda não apenas seus aspectos mais peculiares, mas se valha dela para
refletir sobre si e sobre o mundo que o rodeia. 

Elaboramos, então, um projeto para o ensino de literatura a ser aplicado em turmas de

89
Anos Finais do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio da EJA. Baseamo-nos na metodologia
proposta por Cosson (2014) para desenvolver o letramento literário. Tal conceito extrapola o
de alfabetização, já que vai além da decodificação da escrita, referindo-se ainda à assimilação
das práticas sociais que estão relacionadas a ela. Para Cosson, o letramento literário
“compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também,
e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio’’. (COSSON, 2014, p. 11).  

A proposta metodológica desenhada pelo autor divide-se em dois tipos de sequências,


a básica e a expandida. Neste trabalho, utilizaremos a primeira delas, pois permite que,
durante sua aplicação, haja espaço para que se relacionem textos de outros gêneros e
esferas discursivas, o que favorece o desenvolvimento de atividades dinâmicas e de leituras
profundas e ricas. Tal sequência é composta pelos seguintes passos:

a. Motivação: constitui-se por uma preparação para o aluno entrar em contato com o
texto. Segundo Cosson, “o sucesso inicial do encontro do leitor com a obra depende
de uma boa motivação” (COSSON, 2014, p. 54);

b. Introdução: é a apresentação da obra e do autor ao aluno; deve o professor estar


atento ao fato de que “a introdução não pode se estender muito, uma vez que sua
função é apenas permitir que o aluno receba a obra de uma maneira positiva.”
(Ibidem, p. 61)

c. Leitura: o papel do professor é acompanhar o processo de leitura do aluno,


identificando e sanando suas dificuldades. Cosson afirma a importância dessa
etapa dizendo que “a leitura escolar precisa de um acompanhamento porque tem
uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista”
(Ibidem, p. 62).

d. Interpretação: parte da decodificação do enunciado “para chegar à construção do


sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade”
(Ibidem, p. 64).

e. Avaliação: pode ser uma importante ferramenta para se analisar o desempenho dos
alunos, do professor e até mesmo da escola, há inclusive a possibilidade de serem
feitas autoavaliações. Contudo, Cosson ressalta que “cabe ao professor oferecer aos
alunos os instrumentos qualitativos e quantitativos da avaliação, mas a condução do
processo não pode mais ser unidirecional, antes deve ser compartilhada para que
possa ser efetiva” (Ibidem, p. 112).    

90
Os dois textos escolhidos para compor o projeto que apresentamos são de autoria
de Conceição Evaristo, a qual aborda, em sua obra, a vida de pessoas que estão relegadas
à margem da sociedade. Seus textos fazem com que esses indivíduos passem a existir de
maneira mais delineada em nosso imaginário. De acordo com Werneck,

[...] são histórias que insistem em dizer o que tantos não querem dizer. O mundo que é dito
existe. Suas regras, explícitas. O lugar de mero ouvinte é desautorizado. Nesta literatura/
cultura, a palavra reivindica o corpo presente. O que quer dizer ação (WERNEC, 2015, p. 14).

Tanto o conto Olhos d’Água (EVARISTO, 2015) como o poema Vozes-mulheres (Idem,
2017) retratam a condição da mulher negra na sociedade brasileira contemporânea. O que
motivou essa seleção foi o fato de o público da EJA ser, em sua esmagadora maioria, composto
por pessoas pertencentes às camadas mais pobres da população, principais vítimas das
desigualdades sociais e das injustiças relacionadas à raça e ao gênero. O estudo desses textos
em sala de aula pode provocar reflexões sobre estruturas sociais e manutenção do poder
de certos grupos sobre outros, bem como estimular questionamentos dos alunos sobre si e
sobre a sociedade. 

Como compreender tais problemas sociais é imprescindível para captar a essência dos
textos de Conceição Evaristo, recorremos ao conceito de lugar de fala, que ocupa o centro do
debate sobre a problemática posição da mulher negra no Brasil atual. Lugar de fala define um
lócus social em que ter voz equivale a poder existir. Fundamental, afirma Ribeiro (2021), é nos
questionarmos sobre a quem pertence o discurso dominante, quando diversos grupos foram
historicamente silenciados, considerando discurso como “sistema que estrutura determinado
imaginário social, pois estamos falando de poder e controle” (RIBEIRO, 2021, p. 55). 

Atrelada à noção de lugar de fala está a de racismo estrutural, elucidada por Almeida
(2021), segundo o qual “o racismo, como processo histórico e político, cria condições sociais
para que, direta ou indiretamente, grupos socialmente identificados sejam discriminados
de forma sistemática” (ALMEIDA, 2021, p. 51). O estudioso sinaliza ainda que as mulheres
negras estão no ponto mais fraco da corda do racismo, visto que, em uma sociedade racista
e patriarcal como a brasileira, recai sobre elas os maiores prejuízos econômicos e sociais
do problema, já que “recebem os mais baixos salários, são empurradas para os ‘trabalhos
improdutivos’ - aqueles que não produzem mais valia, mas que são essenciais.” (Ibidem, p.
186).

Com base, portanto, nas reflexões sobre o papel social da literatura e sua importância
em contexto escolar, apresentamos a seguir o projeto para ensino de literatura, no qual se
propõe desenvolver o letramento literário em turmas de EJA, a partir de duas produções de

91
Conceição Evaristo. As questões despertadas pelo estudo desses dois textos nos parecem
bastante pertinentes também para se repensar a imagem da mulher negra que nossa
sociedade construiu e os mecanismos de controle e segregação que sofre essa parcela da
população.

4. Projeto integrado para o ensino de literaturas de


língua portuguesa
O projeto integrado para o ensino de literatura que apresentaremos é voltado a turmas
de Anos Finais do Ensino Fundamental ou de Ensino Médio da Educação de Jovens e Adultos
(EJA). Pode ser aplicado durante as aulas regulares de Língua Portuguesa - já que os estudos
de literatura fazem parte do currículo deste componente -, ou mesmo ser oferecido como
um minicurso, em horário extracurricular. Para elaborá-lo, utilizamos os moldes da sequência
básica proposta por Cosson (2014) e selecionamos os textos literários Olhos d’Água, do livro
Olhos d’Água (2015), e Vozes-mulheres, do livro Poemas da recordação e outros movimentos
(2017), ambos de Conceição Evaristo. Com essa proposta, além de desenvolver o letramento
literário, pretendemos estimular reflexões sobre racismo e desigualdades sociais e de gênero
presentes em nossa sociedade.

Sugerimos que o projeto ocorra em três encontros, cada qual composto por duas aulas
de 50 minutos. No primeiro, deverão ser expostos à turma os objetivos da aplicação e seu
formato. Os alunos receberão uma cópia do primeiro texto a ser trabalhado, o conto Olhos
d’Água. A motivação será iniciada com um diálogo informal com os alunos a respeito do título
do conto, questionando-lhes sobre o que entendem por “olho d’água”. Provavelmente algum
aluno já terá ouvido a expressão referindo-se à nascente, ao lugar onde um rio nasce. Logo
após, será projetada a capa do livro, no qual o conto foi publicado e é homônimo a ele. Na
capa, vê-se pintado um olho castanho escuro, do qual escorre não uma lágrima caricatural,
mas um fluido azul que lembra o fluir de um rio. Nota-se que a pálpebra e a pele ao redor
do olho são negras. Depois dessa breve análise da imagem e da relação dela com o conceito
de olho d’água, o professor fará a sondagem sobre o que os alunos imaginam encontrar no
conto a ser lido. A intenção, com essa atividade, é promover maior interesse pela leitura e
antecipar alguns dos temas que serão encontrados no conto e no poema Vozes-mulheres,
que também será trabalhado.

Já a etapa da introdução compõe-se por uma breve explanação sobre a escritora


Conceição Evaristo, sua importância na literatura brasileira contemporânea e seu papel na

92
construção do retrato da desigualdade social e da mulher nesse contexto. A realidade retratada
nos textos selecionados é uma constante na obra da autora e ganha mais legitimidade quando
se conhece a sua biografia.

O próximo passo será a leitura. Nesse projeto, os alunos lerão tanto o conto quanto
o poema, inicialmente, de modo individual. Compreendemos que a leitura silenciosa é
importante, pois é o momento de decodificação dos enunciados e de reconhecimento da
temática, ou seja, é quando o leitor trava seu primeiro contato com o texto e conecta as
informações lidas ao seu conhecimento de mundo. Como os textos selecionados para este
projeto são curtos, é possível que sejam lidos em poucos minutos, inclusive no decorrer dos
encontros. Para Olhos d’Água, a turma também realizará a leitura parte a parte em voz alta. É
possível que o professor veja necessidade de interromper a atividade, em alguns momentos,
para esclarecer pontos capazes de gerar dúvidas. 

A interpretação do texto acontecerá da seguinte maneira: a turma será dividida em 6


grupos, cada um receberá uma questão referente à leitura e deverá anotar as conclusões
a que chegou sobre ela. As proposições podem ser: “Relate elementos do passado da
narradora.”, “Relate elementos do presente da narradora.”, “Relate o pano de fundo por
trás das memórias da narradora.”, “Conceitue ‘olhos d’água’ a partir do que é narrado pelo
texto”, “Descreva a narradora.”, “Descreva a mãe da narradora”. As respostas de cada grupo
deverão ser discutidas na classe, e as reflexões comporão um mural, fixado na sala. Ao final do
encontro, todos os alunos receberão uma cópia impressa do poema Vozes-mulheres. Como
atividade de casa, deverão ler o texto e anotar suas impressões da leitura, para o momento
seguinte.

O segundo encontro terá início com a retomada das considerações tecidas na aula
anterior, relacionadas ao conto Olhos d’Água. Para o trabalho da motivação com o poema
Vozes-mulheres, será feita a leitura da capa do livro Poemas da Recordação e outros
movimentos, que contém o poema. Os alunos deverão descrever oralmente o que identificam
na imagem, na qual se encontra uma figura feminina em preto e branco, de cócoras, à beira
de um rio, lavando roupa. Pode-se observar que seu rosto não aparece, e ela tem um pano
sobre a cabeça que lembra um turbante. Os alunos podem constatar ainda que a mulher negra
apresentada está aparentemente habituada ao trabalho que realiza, dado ao movimento
que é retratado, à posição de seu corpo e a seus braços grossos e fortes. Após a atividade,
propõe-se à sala articular a mensagem que a imagem passa com as conversas do encontro
anterior, acerca da forma como nossa sociedade vê e trata a população afro-descente, em
especial as mulheres.

93
A partir dessas observações, será iniciada a interpretação do poema. Poderão ser feitas
perguntas como: “O que vocês compreendem por desigualdade social?”, “Vocês acham
que hoje, em nosso país, homens e mulheres recebem remuneração igual para exercer o
mesmo trabalho?”, “Homens e mulheres brancos têm a mesma faixa de renda que homens
e mulheres negros?”, “Vocês acham que a população mais rica é branca ou negra? Por quê?”
Serão expostos, então, dados estatísticos referentes à situação da mulher brasileira negra,
veiculados pela reportagem Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial
no Brasil, da revista Piauí (AFONSO, 2019), na qual são expostos resultados de pesquisas do
IBGE, do Atlas da Violência, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre outros. Em
seguida, será feita uma breve análise com o grupo sobre a relação entre o fato de a mulher
negra ser a maior vítima das injustiças sociais e a desigualdade racial e entre gêneros. Depois
serão retomadas as questões apresentadas no início do encontro e as respostas dadas a elas,
à luz da análise dos dados que foram expostos.

A etapa posterior será a exibição do vídeo Vozes-mulheres, por Conceição Evaristo


(EDUCA PERIFERIA, 2020). A conversa sobre o poema poderá ocorrer com as carteiras
dispostas em círculo, e os alunos complementarão suas anotações individuais a partir
das colocações dos colegas, relacionando-as às ilustrações que aparecem na tela e às
discussões feitas anteriormente a respeito da condição da mulher negra na sociedade atual.
O compartilhamento das impressões de leitura com os pares pode viabilizar debates e
enriquecer a experiência de todos, já que possibilita rever opiniões e ampliar o olhar sobre o
que se leu individualmente. 

No terceiro encontro, após recuperar alguns pontos das aulas passadas, e com base
neles, chega-se ao último passo: a avaliação da leitura literária. Evidentemente, esta etapa
levará em conta toda a trajetória dos alunos no decorrer do projeto, considerando sua
participação nos encontros, a socialização das suas impressões de leitura e o aprofundamento
das interpretações. Como produto de toda trajetória, os alunos deverão redigir um texto do
gênero carta pessoal, cujo emissor fictício será a mãe da narradora do conto Olhos d’Água,
dirigindo-se à filha após a visita que esta lhe fizera e falando de seus sentimentos e do
que deseja para o futuro. Espera-se, com esta atividade, que o aluno consiga relacionar a
interpretação que fez do conto e do poema com a realidade que eles denunciam, ou seja, se
percebe que as memórias da narradora remetem à real situação da mulher negra em nossa
sociedade. É, portanto, uma estratégia para materializar a compreensão dos textos lidos e da
temática abordada, considerando as impressões individuais de leituras e as reflexões geradas
pelas conversas promovidas.

94
5. Análise, discussão e resultados esperados
Com vistas a estimular o trabalho com literatura na Educação de Jovens e Adultos (EJA),
este artigo apresentou um projeto passível de ser aplicado em turmas de Anos Finais do Ensino
Fundamental ou de Ensino Médio desse segmento da Educação Básica. As ações descritas
foram metodologicamente estruturadas segundo as etapas elencadas por Cosson (2014) -
motivação, introdução, leitura, interpretação e avaliação - para desenvolver o letramento
literário, definido como “uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras
que falam de palavras, transcendendo os limites de tempo e espaço, definido pelo autor”
(SOUZA, COSSON, 2011, p. 103). 

Tivemos também o cuidado de selecionar obras com as quais os alunos da EJA pudessem
se identificar e que, ao mesmo tempo, fossem pertinentes à temática estudada no Curso de
Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa: Identidades, Territórios e Deslocamentos
- Brasil, Moçambique e Portugal. Assim, chegamos ao conto Olhos d’Água e ao poema Vozes-
mulheres, de Conceição Evaristo, que refletem as desigualdades sociais e a situação da mulher
negra no contexto brasileiro contemporâneo – questões que compõem a realidade de parte
significativa do público-alvo do projeto. Além disso, valemo-nos da intertextualidade entre
esses textos e os de outros gêneros para embasar discussões sobre lugar de fala (RIBEIRO,
2021) e racismo estrutural (ALMEIDA, 2021). 

Com a eventual aplicação deste projeto, espera-se confirmar que as leituras moldadas
pela metodologia proposta por Cosson (2014) desenvolvam o letramento literário. Assim,
esperamos que as atividades de trocas de experiências de leituras e os debates deem aos
alunos a chance de validar ou mesmo ressignificar sua visão de mundo e sua interação com
o texto literário e com outros indivíduos. Afinal, segundo Cosson, “o bom leitor é aquele que
agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto
de muitas vozes e nunca um monólogo” (COSSON, 2014, p. 27).

6. Considerações finais
Este artigo procurou contribuir para a aproximação entre literatura e escola. Nele
apresentamos um projeto de ensino voltado aos Anos Finais do Ensino Fundamental e no
Ensino Médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a partir de dois textos de Conceição
Evaristo: o conto Olhos d’Água e o poema Vozes-mulheres. Certamente, os estudos
desenvolvidos para sua concretização contribuíram de modo significativo com a maneira

95
como abordo textos literários em minhas aulas, pois trouxeram alternativas aos tradicionais
caminhos para o ensino de literatura, os quais oscilam, normalmente, entre a leitura livre e a
rigidez da categorização dos textos como pertencentes a determinada escola literária.

A principal contribuição foi tornar mais clara a importância que a literatura pode ter
no desenvolvimento das pessoas e, em consequência, na construção de uma sociedade mais
lúcida e questionadora. A partir dessa constatação, procuramos suscitar reflexões sobre
toda a potência enunciativa que o texto literário possui, pois, como ensina Jouve, “os textos
participam da reorganização da experiência, logo, da produção e da reprodução de nossos
mundos” (JOUVE, 2012, p. 163). Sua abordagem na escola, em todos os níveis, modalidades
e segmentos, portanto, deve ser condizente com essa realidade.

Optamos por enfocar o aluno adulto, por notarmos não serem tão frequentes as
abordagens estruturadas para o ensino de literatura nas salas de aula da EJA, o que constitui
uma das muitas lacunas de nosso sistema educacional. Compreendemos que, para esse
público, já excluído de muitas esferas de nossa sociedade letrada, o texto literário pode ser
um importante meio para promover a identificação com o outro e a crítica social, e, também,
para instigar questionamentos e sugerir formas de vencer obstáculos que a própria sociedade
coloca em sua vida. 

Esperamos, portanto, que o contato com esse artigo seja capaz de encorajar professores
da EJA a olhar o texto literário como a ferramenta valiosa que é para a construção de saberes
que transcendam as esferas sociais às quais seus alunos estão habituados a se encontrar.
Afinal, assim como toda forma de arte, a literatura promove reflexão e amplia horizontes. Por
meio dela, podemos transformar nosso olhar, nossa ação sobre o mundo e, principalmente,
transformar a nós mesmos.

96
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AFONSO, Nathália. Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no
Brasil. Revista Piauí, São Paulo, 20 nov. 2019, Caderno Lupa. Disponível em:<https://piaui.
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EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê,


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JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Editora Parábola, 2012

JORGE, Lídia. Os gafanhotos. A costa dos murmúrios. Publicações Dom Quixote, 2009, pp.
04-22
MACHADO, Ana Maria, Do estereótipo à utopia do Outro: A Costa dos Murmúrios
e A Árvore das Palavras, in Imagotipos literários: processos de (des)configuração na
imagologia literária, Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2011, 161-196. 

MAGALHÃES, Isabel Allegro. Os véus de Ártemis: alguns traços da ficção narrativa de autoria
feminina. Revista Colóquio Letras nº 125 e nº 126, jul. de 1992, p.151-168. Disponível em
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NGOMANE, Nataniel. A Literatura entre a Imprensa e o Leitor. Caminhos possíveis.


Comunicação apresentada no Seminário Internacional “Arquivos e memória: África na
imprensa colonial e a imprensa colonial em África”, organizado pelo AHM-UEM/UP/
GIEIPC-IP, no dia 06 de Novembro de 2018, no Complexo Pedagógico da Universidade
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NOA, Francisco. Uns e outros na literatura moçambicana – Ensaios. São Paulo: Kapulana,
2017. (Série Ciências e Artes)

PICONEZ, Stela C. Bertholo. A aprendizagem do jovem e do adulto e seus desafios


fundamentais. São Paulo: Núcleo de estudos em Educação de Jovens e Adultos e
Formação Permanente de Professores, dez. 2003. Disponível em: https://scholar.google.
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RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Jandaíra, 2021. (Feminismos Plurais).

SOUZA, Renata Junqueira de; COSSON, Rildo. Letramento literário: uma proposta para a
sala de aula. In: Caderno de formação: formação de professores. Bloco 02 – Didática dos
conteúdos. Vol. 2. São Paulo: Universidade Estadual Paulista / Pró-Reitoria de Graduação;
Universidade Virtual do Estado de São Paulo; Cultura Acadêmica, 2011, p. 101-107.

WENEC, Jurema. Introdução. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’Água. Rio de Janeiro:
Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2015.

REFERÊNCIA DE VÍDEO

VOZES-MULHERES, por Conceição Evaristo, 2020. 1 vídeo (1min42). Publicado pelo canal
Educa Periferia. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GkRF3lredI8 Acesso
em 08 out. 2021
APÊNDICE
Projeto Integrado para o ensino de Literaturas De Língua Portuguesa

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome da Cursista: Priscila Manfré

1.
1.1. Público Alvo: Alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental ou de Ensino Médio da Educação de
Jovens e Adultos (EJA).
1.2 Tempo de Duração: 6 aulas de 50 minutos, divididas em 3 encontros.

Cronograma:

Encontro 1 (2 aulas): Explanação sobre as ações do projeto integrado para o ensino de literatura que serão
aplicadas à turma; motivação, a partir de conversa informal sobre o que a turma compreende por “olho
d’água”, seguida de análise da capa do livro Olhos d’Água; e a introdução, em que serão apresentadas a
biografia e a obra de Conceição Evaristo; leitura do conto Olhos d’Água (EVARISTO, 2015) e atividades em
grupo sobre ele; composição de um mural com as reflexões suscitadas pela atividade anterior; entrega de
cópia do poema Vozes-mulheres (EVARISTO, 2017), para que os alunos leiam em suas casas e anotem suas
impressões;

Encontro 2 (2 aulas): Análise da capa do livro Poemas da recordação e outros movimentos, no qual se
encontra o poema Vozes-mulheres. Reflexões sobre dados estatísticos que mostram as condições da
mulher negra em nossa sociedade e a relação entre eles e as informações presentes no mural elaborado
no encontro anterior; apresentação do vídeo Vozes-mulheres, por Conceição Evaristo (EDUCA PERIFERIA,
2020), com a declamação do poema; compartilhamento de anotações que os alunos fizeram sobre o
poema e a relação entre elas, os dados apresentados e o conto lido no encontro anterior;

Encontro 3 (2 aulas): Retomada das reflexões tecidas no encontro anterior; proposta de produção de
textos: os alunos deverão elaborar, individualmente, uma carta da mãe retratada no conto Olhos d’Água
(Idem) para a filha narradora, após a visita que esta lhe fizera, em que ela conta como se sentiu ao ver a
filha e o que espera para o futuro. Solicitação para que alguns alunos leiam à sala seus textos.
1.3. Definição da prática de letramento literário:
Este projeto integrado para o ensino de literatura é voltado às turmas dos Anos Finais do Ensino Fundamental
ou do Ensino Médio da EJA, podendo ser aplicado durante as aulas regulares de Língua Portuguesa, já que
os estudos de literatura fazem parte do currículo deste componente. Pretende-se promover o letramento
literário dos alunos e estimular reflexões sobre o racismo, o patriarcalismo e as desigualdades sociais e de
gênero presentes em nossa sociedade.

Tal projeto baseia-se na metodologia para o letramento literário desenvolvida por Cosson (2014),
denomina-se sequência básica e compõe-se dos seguintes passos: motivação, introdução, leitura,
interpretação e avaliação. Os encontros seguem um roteiro estabelecido e atividades de registro, embora
haja ênfase sobre a expressão oral dos alunos durante as conversas e debates, favorecendo a fala mais
livre e espontânea a respeito das leituras.

99
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:

Sugerimos que as ações do projeto sejam realizadas em três encontros, cada um de duas aulas de 50
minutos, durante as aulas regulares de Língua Portuguesa da EJA, dos Anos Finais do Ensino Fundamental
ou do Ensino Médio.

No primeiro momento, serão expostos à turma os objetivos do projeto e o formato no qual ele ocorrerá.
Os alunos receberão uma cópia do primeiro texto a ser trabalhado, o conto Olhos d’Água (EVARISTO,
2015), do livro homônimo de Conceição Evaristo. A primeira etapa é motivação, a qual, segundo Cosson
(2014, p. 77) consiste em “uma atividade de preparação dos alunos para entrar no universo do livro lido”.
Para isso, a estratégia será, primeiramente, conversa informal inicial sobre o que os alunos compreendem
por “olho d’água”; também será projetada a capa do livro Olhos d’Água, cuja imagem principal (o olho
lacrimejante em uma parte de um rosto negro), deverá ser analisada pela turma. A etapa da introdução é
aquela em que se apresentam aos alunos o autor e a obra a ser trabalhada. Será composta por uma breve
explanação sobre a escritora Conceição Evaristo, sua importância na literatura brasileira contemporânea
e seu papel na construção do retrato da desigualdade social e, também, da mulher nesse contexto. Em
seguida, os alunos farão a leitura do texto, primeiro individualmente e depois parte a parte em voz alta.
Inicia-se, então, a interpretação do conto. Para Cosson (2014, p.41), “interpretar é dialogar com o texto
tendo como limite o contexto”, o qual é oferecido pelo texto, mas também trazido pelo leitor: “um e outro
precisa convergir para que a leitura adquira sentido” (Ibidem, p. 41). A fase de interpretação acontecerá
da seguinte maneira: a turma será dividida em 6 grupos, cada qual deverá refletir e anotar suas conclusões
sobre uma questão referente ao texto, as quais serão: “ Relatar elementos do passado da narradora.”,
“ Relatar elementos do presente da narradora.”, “ Relatar o pano de fundo por trás das memórias da
narradora.”, “ Conceituar ‘olhos d’água’ a partir do que é narrado pelo texto”, “ Descrever a narradora.”,
“ Descrever a mãe da narradora”. As respostas de cada grupo serão debatidas na classe, e as reflexões
comporão um mural, fixado na sala. Ao final do encontro, todos os alunos receberão uma cópia do poema
Vozes-mulheres (EVARISTO, 2017), que deverão ler em casa e anotar suas impressões da leitura.

O segundo encontro terá início com a retomada das reflexões tecidas no momento anterior, relacionadas
ao conto Olhos d’Água. Em seguida, será realizada a análise da capa do livro Poemas da recordação e
outros movimentos (EVARISTO, 2017), no qual se encontra o poema a ser estudado. Os alunos deverão
descrever oralmente o que identificam na imagem, na qual se encontra uma figura feminina em preto e
branco, de cócoras, à beira de um rio, lavando roupa. Pode-se observar que seu rosto não aparece, e ela
tem um pano sobre a cabeça que lembra um turbante. Os alunos podem constatar ainda que a mulher
negra apresentada está aparentemente habituada ao trabalho que realiza, dado ao movimento que é
retratado, à posição de seu corpo e a seus braços grossos e fortes. Após a atividade, propõe-se à sala
articular a mensagem que a imagem passa com as conversas do encontro anterior, acerca da forma como
nossa sociedade vê e trata a população afrodescente, em especial as mulheres.

O próximo passo será a apresentação de dados estatísticos de diversas fontes que mostram as condições
da mulher negra em nossa sociedade. Então, os alunos serão estimulados a dizer como relacionam as
informações contidas no mural, produzido na aula anterior e aquelas presentes nos dados mostrados e a
relação entre eles e o conto lido. Após a discussão, será exibido o vídeo Vozes-mulheres, por Conceição
Evaristo (EDUCA PERIFERIA, 2020), em que o poema é declamado, enfatizando-se as ilustrações que
compõem o vídeo.

Neste momento, será solicitado aos alunos que apresentem as anotações feitas quando leram
individualmente o poema. A partir daí, passa-se ao compartilhamento de reflexões sobre a relação entre
o conto Olhos d’Água, os dados estatísticos e o poema Vozes-mulheres. A turma deverá produzir um
pequeno parágrafo com as considerações sobre os textos discutidos.

No último encontro, após recuperar alguns pontos das aulas passadas, e, com base nelas, chega-se ao
último passo: a avaliação. Evidentemente todo o percurso do aluno durante o desenrolar do projeto

100
é considerado, contudo esta etapa final busca condensar e tornar concreta a aprendizagem ocorrida neste
trajeto. Propõe-se, então, aos estudantes, que produzam, individualmente, um texto do gênero carta
pessoal, no qual o emissor fictício deverá ser a mãe da narradora do conto Olhos d’Água e ela escreve à
filha, após a visita que esta lhe fez, em que conta como se sentiu ao vê-la e o que espera para o futuro.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
Optamos por utilizar, neste trabalho, a sequência básica proposta por Cosson (2014), pois, além dessa
metodologia sistematizar o estudo de literatura, abre espaço para que se relacionem textos de outros
gêneros e esferas discursivas, o que favorece o desenvolvimento de atividades dinâmicas e de leituras
profundas e ricas. Ademais, ao privilegiar as trocas de impressões de leitura entre os membros do grupo,
abre caminho para que o texto se torne uma oportunidade de fomento e exercício da cidadania e da
empatia, estimulando a identificação tanto com o que foi lido quanto com o colega que fez a mesma
leitura. Como na EJA muitas vezes o ensino é pautado no que é mais funcional e técnico no ato de ler, este
trabalho com o letramento literário pode tornar-se um espaço transformador aos alunos desse segmento
da Educação Básica, que tanta bagagem de vida já trazem à escola.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
Conto Olhos d’Água, do livro Olhos d’Água (2015) e Vozes-mulheres, do livro Poemas da recordação e
outros movimentos (2017), ambos de Conceição Evaristo.

2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):


Os estudos das literaturas de língua portuguesa feitos no Curso de Especialização em Literaturas de Língua
Portuguesa - Identidades, territórios e deslocamentos - Brasil, Moçambique e Portugal tiveram, como fio
condutor, a problematização do lugar social das minorias, com ênfase, diversas vezes, na crítica ao racismo
e ao patriarcado, tanto no Brasil, quanto em Portugal e Moçambique. Os textos Olhos d’Água e Vozes-
mulheres foram escolhidos por obedecerem a essa linha temática. Possuem grande potencial de análise e
reflexão, além de abordarem de modo contundente as condições de vida de mulheres negras pertencentes
às classes mais pobres, parcela da população que tem grande representatividade no público da EJA. Esses
textos, portanto, podem permitir que os alunos se identifiquem com os personagens e situações narradas,
bem como suscitar reflexões e instigar o debate acerca das desigualdades e injustiças sociais.

101
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
A estratégia de motivação de leitura será, primeiramente, uma conversa informal com os alunos a respeito
do título do conto Olhos d’Água, questionando-se sobre o que entendem por “olho d’água”. É provável que
algum aluno já tenha ouvido a expressão ao se referir à nascente, ao lugar onde um rio nasce. Em seguida,
será projetada a capa do livro Olhos d’Água, de Conceição Evaristo, onde se vê pintado um olho castanho
escuro, do qual escorre não uma lágrima caricatural, mas um fluido azul que lembra o fluir de um rio. É
possível notar que a pálpebra e a pele ao redor do olho são negras. Depois de feita com a turma uma breve
análise da imagem e de como ela pode se relacionar ao que conhecem como olho d’água, desenvolve-se
uma sondagem sobre o que eles imaginam encontrar no conto que será lido.

Para o trabalho com o poema Vozes-mulheres, escolhemos, como motivação, também a análise da capa
do livro onde o texto foi publicado, Poemas da recordação e outros movimentos. Será solicitado aos alunos
que, no início, descrevam oralmente o que identificam na imagem. Eles podem ver que no centro há uma
figura feminina em preto e branco, de cócoras, à beira de um rio, lavando roupa. Pode-se observar que seu
rosto não aparece, e ela tem um pano sobre a cabeça que lembra um turbante. A turma pode constatar
ainda que a mulher negra apresentada está aparentemente habituada ao trabalho que realiza, dado ao
movimento que é retratado, à posição de seu corpo e a seus braços grossos e fortes. Após a atividade
de descrição, propõe-se à sala uma análise mais profunda, em que devem articular a mensagem que a
imagem passa com as conversas do encontro anterior, acerca da forma como nossa sociedade vê e trata a
população afrodescente, em especial as mulheres.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
Na primeira motivação, o levantamento de conhecimento prévio dos alunos acerca da expressão que dá
título ao conto e ao livro homônimos possibilita a ampliação de sentidos presentes no texto. Já as análises
com a sala da capa dos livros, nos quais constam os textos estudados, podem promover maior interesse na
leitura e antecipar alguns dos temas que serão encontrados tanto na leitura do conto Olhos d’Água quanto
do poema Vozes-mulheres.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
a) Breve apresentação de dados biográficos da autora Conceição Evaristo (nascimento em Mina Gerais,
mudança para o Rio de Janeiro, trabalho como professora, continuidade aos estudos: formação em Letras,
depois, Mestrado e Doutorado);
b) Breve histórico de suas publicações – romances e livros de poemas e contos - e da abordagem constante
da crítica ao racismo e à condição da mulher negra em nossa sociedade.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
A realidade retratada nos textos selecionados é uma constante na obra de Conceição Evaristo, e ganha
mais legitimidade quando se conhece a sua biografia. Conceição tem consciência do que é ser uma mulher
negra na sociedade brasileira, extremamente patriarcal e racista. Tão grande é o imbricamento entre sua
vida e seu trabalho que a autora chama seu processo de produção literária de “escrevivência”.

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Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
A leitura do texto literário é a que se dispõe a ir além da função referencial da linguagem, considerando
toda sua potência significativa e analisando a maneira como seus sentidos são construídos. Assim,
tanto quanto compreender o enredo de um conto, por exemplo, importa analisar seu foco narrativo,
os personagens, a construção do enredo, a elaboração das frases, a sonoridade das palavras, pois tudo
isso também o compõe. A leitura literária envolve ainda considerar as relações de intertextualidade que
podem ser estabelecidas entre dada leitura e outras, as marcas de subjetividade e o contexto de produção
da obra lida. Todos esses elementos fazem com que esse tipo de leitura seja uma possibilidade de reflexão
e de questionamentos do indivíduo a si e ao meio em que vive.

1.2. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:


A leitura de texto literário proposta acima é baseada na compreensão de que este é um artefato que se
diferencia dos outros tipos de textos em especial pela sua forma. Dessa maneira, a análise das construções
textuais, elementos narrativos, escolhas lexicais e semânticas, ou seja, da forma, é tão importante quanto
a do conteúdo. Segundo Jouve (2012, p. 90), “enquanto na linguagem corrente o poder evocativo do
significante geralmente é neutralizado (o importante é o conteúdo da mensagem), no texto literário –
assim como em todo objeto de arte – a forma não pode ser isolada do conteúdo: ela faz parte do sentido”.
Além disso, a leitura literária tem relevância na formação do cidadão que observa e questiona a si e à
sociedade na qual se insere, já que “ler um texto literário é um ato crítico histórico-social-culturalmente
situado, ou seja, é um ato (ou um conjunto deles) que envolve e comporta hipóteses e juízos” (DALVI, 2013,
p. 79).

2.
2.1. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Como os textos selecionados para este projeto de ensino são curtos, é possível que sejam lidos em poucos
minutos, inclusive no decorrer dos encontros. Para o conto Olhos d’Água, optamos por solicitar inicialmente
a leitura silenciosa realizada de modo individual, durante a aula. Em seguida, o texto deverá ser lido parte
a parte em voz alta pelos alunos. É possível que o professor veja necessidade de interromper em alguns
momentos para esclarecer pontos capazes de gerar dúvidas. Após essa etapa, abre-se um espaço para que
os estudantes socializem o que acharam do conto.
Já o poema Vozes-mulheres, o aluno deverá ler em sua casa e anotar suas dúvidas e impressões de leitura
para compartilhá-las com a turma no encontro seguinte.
2.2. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
De acordo com Cosson,
(...)a aprendizagem literária se faz em círculos concêntricos que começam com a leitura
individual do aluno em diálogo com a obra e avançam progressivamente para a leitura em
diálogo com os colegas da turma, com os colegas e o professor, com a turma, o professor e
outros leitores externos que são a crítica, a história, outros textos que também dialogaram
como aquele (...) (COSSON, 2020, p. 18)
Procuramos obedecer a essa proposição: a leitura de ambos os textos trabalhados neste projeto ocorre
inicialmente de modo individual. Compreendemos que esta etapa é importante, pois é o momento de
decodificação dos enunciados e de reconhecimento da temática, quando o leitor trava seu primeiro
contato com o texto e conecta as informações lidas ao seu conhecimento de mundo. O passo seguinte é o
compartilhamento das impressões de leitura com os pares, que viabiliza debates e enriquece a experiência
de todos, já que possibilita rever pontos de vistas e ampliar o olhar sobre o que se leu individualmente.

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Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.1. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
No primeiro encontro, após a leitura compartilhada em sala do conto Olhos d’água, a turma será dividida
em 6 grupos, cada qual analisará uma proposição diferente relacionada ao texto e deverá anotar suas
conclusões. As questões serão: “ Relatar elementos do passado da narradora.”, “ Relatar elementos do
presente da narradora.”, “ Relatar o pano de fundo por trás das memórias da narradora.”, “Conceitue
‘olhos d’água’ a partir do que é narrado pelo texto”, “ Descrever a narradora.”, “ Descrever a mãe da
narradora”. Cada grupo deverá expor à turma as reflexões que teceu e, a partir das respostas às questões
apresentadas, os outros alunos podem acrescentar mais observações e contribuir com a interpretação
exposta. As respostas às proposições que cada grupo recebeu comporão um mural afixado na sala.

No segundo encontro, a atividade de interpretação do poema Vozes-mulheres partirá da sondagem sobre


as percepções dos alunos acerca das desigualdades sociais, em especial, abordando as questões racial e
de gênero no Brasil. Poderão ser feitas perguntas como “O que vocês compreendem por desigualdade
social?”, “Vocês acham que hoje, em nosso país, homens e mulheres recebem remuneração igual para
exercer o mesmo trabalho?”, “Vocês acham que homens e mulheres brancos têm a mesma faixa de
renda que homens e mulheres negros?”, “Vocês acham que a população mais rica é branca ou negra? Por
quê?” Depois, haverá a exposição de dados estatísticos referentes à situação da mulher brasileira negra,
veiculados pela reportagem Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil,
da revista Piauí (2019), na qual são expostos resultados de pesquisas do IBGE, do Atlas da Violência, do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre outros.

Em seguida, será feita uma breve análise com o grupo da relação entre desigualdade racial e entre gêneros
e o fato de a mulher negra ser a maior vítima das injustiças sociais. Depois serão retomadas as questões
apresentadas no início do encontro e as respostas dadas a elas, à luz da análise dos dados que foram
expostos. A etapa posterior será a exibição do vídeo de declamação do poema Vozes-mulheres. A conversa
sobre o poema se dará com as carteiras dispostas em círculo e os alunos deverão complementar suas
anotações individuais a partir das colocações dos colegas, relacionando-as às ilustrações que aparecem
na tela e as discussões feitas anteriormente, a respeito da condição da mulher negra na sociedade atual.
1.2. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
As atividades em grupo e as rodas de conversa são importantes ferramentas a fim de que os alunos se
sintam mais confiantes para compartilhar suas reflexões e impressões da leitura. Tais dinâmicas ajudam
a concretizar o momento da interpretação. Igualmente favorável é a possibilidade de se relacionar textos
de gêneros distintos, que se articulam entre si especialmente pela temática. Dessa forma, ao se relacionar
o texto literário às informações estatísticas, propicia-se uma leitura em que a crítica social e a denúncia
podem também ser bastante exploradas, já que o conto e o poema têm o poder de dar forma e rosto aos
frios dados revelados nas pesquisas.

2.
2.1. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
A avaliação da leitura literária levará em conta toda a trajetória dos alunos no projeto, considerando sua
participação nos encontros, na socialização das suas impressões de leitura e no aprofundamento das
interpretações. Esse processo culminará na produção de um texto do gênero carta pessoal, na qual o
emissor fictício será a mãe da narradora do conto Olhos d’Água, dirigindo-se à filha após a visita que esta
lhe fizera e falando de seus sentimentos pela filha e do que deseja para o futuro.

104
Espera-se, com esta atividade, que o aluno consiga relacionar a interpretação que fez do conto com a
realidade que ele denuncia, ou seja, as memórias da narradora à situação da mulher negra em nossa
sociedade.
2.2 Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Observar o progresso na leitura dos alunos, encontro a encontro, avaliando, primeiramente, a maneira
como eles têm alcançado níveis de interpretação mais profundos, permite que seja reformulada a própria
prática pedagógica definida previamente, redirecionando-a, inclusive, caso haja necessidade. Já a proposta
de produção da carta, como “fechamento” do projeto, é uma estratégia para materializar a compreensão
dos textos lidos e da temática abordada, considerando as impressões individuais de leituras, as reflexões
geradas pelas conversas promovidas.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:

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106
Reunindo-se às margens dos Rios:
5 uma proposta de letramento literário a partir de
discussões identitárias nas obras de Mia Couto e
Guimarães Rosa

Denilson Barros Nunes da Silva1


Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli2

RESUMO
Utilizamos os círculos de leitura de Cosson (2014) e os cinco elementos primordiais da
análise literária propostos por Eagleton (2019) para elaborarmos um projeto de letramento
literário centrado na discussão de temas como o pertencimento a grupos, a percepção do
tempo como um fenômeno culturalmente condicionado e o papel e a representação do
idoso e do jovem nas sociedades brasileira e africana para, a partir de questões identitárias,
socioeconômicas e culturais, propiciar as condições de leitura e o contato com os elementos
da análise literária possibilitando que os leitores experimentem e os utilizem para a
compreensão, crítica e análise do valor literário das diversas obras literárias e midiáticas às
quais estão expostos.

Palavras-chave: letramento literário; círculos de leitura; literatura e identidade cultural;


literatura, estereótipos, representação e alteridade; literaturas de língua portuguesa

1 Bacharel em letras português pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
Licenciado em português pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, professor de língua e literatura portuguesa
na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, atuando junto a Escola Lygia de Azevedo Souza e Sá. E-mail para contato:
pronibarros@gmail.com
2 Doutor em Letras, Teoria Literária e Literatura Comparada, pela FFLCH-USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-
doutorado no Departamento de Teoria Literária da USP. É pesquisador associado ao Grupo de Pesquisas Brasil-França, do Instituto
de Estudos Avançados da mesma universidade, docente dos cursos de Letras e de Biblioteconomia da Faculdade de Educação e
Ciências Humanas da Universidade Metropolitana de Santos e professor colaborador do curso de especialização “Literaturas de
Língua Portuguesa - Identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares”, da Universidade
Federal de São Paulo. E-mail para contato: fogagnoliconrado@gmail.com

108
1. Introdução
A leitura literária situa-se entre a leitura pelo prazer e a leitura crítica da obra literária,
em um espaço que é delimitado, por um lado, pelo prazer do leitor e, por outro, pelo
reconhecimento do algo mais que distingue a obra literária das demais produções escritas.
Barthes (1987), situa essa distinção na oposição entre o texto de prazer e o texto de fruição
da seguinte forma: sobre o texto de prazer podemos discorrer, enquanto a fruição é uma
experiência que não se permite dizer. Envolve uma experiência que é do leitor-fruidor, que
Barthes conceitua como vivendo em um texto infinito, “quer esse texto seja Proust, ou o jornal
diário, ou a tela da televisão” (BARTHES, 1987, p. 49) e podemos acrescentar na atualidade,
pelas telas de nossos celulares.

A exposição a um número cada vez maior de produtos de entretenimento de rápido


consumo tem potencial para reduzir, na mesma escala, o tempo dedicado à leitura das obras
literárias. Essa disputa pela atenção do leitor só se torna mais eficaz porque a leitura literária
exige um grau de imersão nos temas da obra que as mídias atuais se esforçam por suprimir com
seu imediatismo. É esse processo de imersão que diferencia uma leitura literária das leituras
superficiais das fontes de conteúdo midiáticos fungíveis a que estamos constantemente
submetidos e é a ela que podemos recorrer para expor os leitores às necessárias experiências
que permitirão a compreensão dos conceitos que fornecem o instrumental teórico para que
a sua leitura se constitua em instrumento de resistência ao monopólio de seu tempo de lazer.
É essa a nossa compreensão da afirmação de Barthes de que “o livro faz o sentido, o sentido
faz a vida” (BARTHES, 1987, p. 49).

Recorrendo às rodas de leitura e discussão dos temas de obras literárias, cabe destacar
os círculos de leitura propostos por Cosson (2014), em que a experiência de leitura é
também construída como experiência de discussões identitárias e de pertencimento, de
problematização dos aspectos socioeconômicos e culturais, e pode contribuir para o processo
de letramento literário em um contexto de reflexão sobre a relação entre o autor, a obra e
o leitor como elementos de uma experiência que é sempre única e que pode se tornar mais
rica ao ser compartilhada.

A experiência desse algo mais que compõe a obra literária, se é individual na sua essência,
pois se estabelece na relação do leitor com a obra, é construída em um contexto sociocultural
com o qual dialoga. A reflexão sobre esse contexto a partir de elementos que o permeiam,
como as questões identitárias e a construção de estereótipos que reforçam políticas de
exclusão e de delimitação do que é cultura e do que é literário, exige o reconhecimento de
que a prática docente que não reflete sobre sua própria relação com esses processos torna-

109
se incapaz de proporcionar e reconhecer a leitura literária para além da leitura de obras
canônicas.

Essa reflexão torna necessário não apenas o reconhecimento de que há um contexto


em que a leitura literária ocorre, mas também de que é a partir desse contexto que a obra
se constitui em obra literária. Ao explorar os temas das obras a partir das suas intersecções
com temas que permeiam a experiência humana e, portanto, nossas experiências, é possível
discutir como o tratamento desses temas pelos autores diferencia as obras literárias das
demais formas de comunicação e arte que disputam nossa atenção. A obra literária, assim
compreendida, não se encerra no sentido do conteúdo apresentado entre capa e contracapa,
mas no diálogo que existe entre esse conteúdo e o sentido que a ele damos em nossas
leituras, que ainda que solitárias, compartilham o simbólico, a linguagem e a cultura que
tanto influenciam quanto são influenciadas por nossas leituras.

A partir desse reconhecimento e compreensão da leitura literária, torna-se possível


a proposta de uma prática docente que dialoga com a realidade dos alunos do 3º ano do
ensino médio para, a partir dela, constituir um espaço comum, compartilhado, de construção
e discussão das experiências individuais de leitura que, para além das obras literárias, deve ser
capaz de dialogar com a sociedade e a cultura. Uma prática que seja capaz de se reconhecer
também sujeita aos mesmos mecanismos socioculturais difusos de exclusão.

A convivência dos alunos com temas como o de construção identitária e pertencimento,


estereótipos e preconceitos que atuam difusamente na sociedade, sugere a possibilidade de
exploração desses temas para estabelecimento de dimensões de análise de suas relações
com as obras literárias. Para oferecer suporte aos processos de discussão dessas dimensões
adicionais, iremos utilizar as reflexões autoetnográficas de Franca (2018) e as discussões
sobre o papel do idoso na obra de Mia Couto, conforme apresentado por Rodrigues (2017)
como recursos adicionais para reflexão durante a leitura literária.

A nossa abordagem objetiva identificar se a discussão e o reconhecimento de temas do


cotidiano em obras literárias, segundo a proposta dos círculos de leitura literária de Cosson
(2009), pode contribuir para o desenvolvimento das competências de leitura literária e, para
fazê-lo, pretende que os alunos do 3º ano do ensino médio, público-alvo do presente projeto,
se tornem protagonistas da análise da diferença entre as abordagens realizadas nas obras
literárias e aquelas a que já estão expostos em obras como o DVD AmarElo (EMICIDA, 2019),
em que o tempo também é abordado.

110
2. Contextualização
A expectativa que nutria com a participação no curso de especialização “Literaturas
de Língua Portuguesa - Identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e
Portugal, diferentes olhares” era apenas a de conhecer a contextualização de autores
diversos e ter contato com as suas obras literárias. Reflexo de minha formação, com base na
qual compreendia a obra literária como expressão do autor diante de temas de seu interesse,
esperava esse conteúdo. Se já havia uma busca por ampliar minhas práticas didáticas para
o ensino de literatura, a reflexão ainda se limitava aos critérios de seleção de autores e
conteúdos alinhados aos conteúdos canônicos para esse ensino, mas não sobre os processos
de construção desses cânones.

A apresentação das discussões sobre a literariedade do texto, a revisão das abordagens


dos formalistas russos e a asserção de Culler (1999) de que a resposta à indagação sobre o
que é literatura é sempre obtida a partir de uma análise e não de uma definição, análise essa
que não deve ser baseada no relativismo individual, mas na busca da compreensão do que
orienta uma sociedade a considerar algo como literário, me forneceram alguns elementos
das alternativas que poderia utilizar para orientar o letramento literário de meus alunos.

Ainda faltava algo. Ainda compreendia o processo de letramento literário como de


apresentação de obras e da originalidade dos autores. O algo que faltava foi sendo elaborado
no contato com os temas de construção identitária e as reflexões sobre o pertencimento, os
estereótipos e os imagotipos3, que foram ampliando o alcance dessa elaboração: tratava-se
não mais de compreender as questões que eram trazidas pelos autores para suas obras, mas
de refletir sobre como essas questões podem ser compreendidas em um panorama mais
complexo e extenso em que a produção de obras na periferia de cidades como São Paulo,
e os movimentos de construção poético-literária realizados por seus integrantes são tão
privados de reconhecimento por suas produções quanto os diversos autores fora da tradição
acadêmica luso-brasileira, que começam a ser resgatados e considerados em sua capacidade
e qualidade da produção pela academia e pela análise literária.

Não se tratava mais unicamente de uma disputa entre produtos midiáticos e obras
literárias, mas também de uma oposição entre o ouvinte passivo e o leitor que se descobre
parte ativa do processo literário, da seleção de temas, de questões identitárias e de um
3 Destacamos a importância da compreensão do imagotipo na imagologia literária como uma representação complexa
capaz de reconhecer as relações entre auto-imagotipos e hetero-imagotipos nas obras literárias que buscam reproduzir a
complexidade das diferenças socioculturais entre os grupos retratados. Enquanto os estereótipos surgem para reduzir a
complexidade padronizando uma representação para diferenciação, as relações entre os imagotipos se mantém complexas
permitindo composições, contradições, oposições e muitas outras formas de relacionamento a partir das formas de pensar de
classe ou de grupo que são tão caras a complexa representação do real que constitui a obra literária. (SIMÕES, 2011)

111
senso de pertencimento que é negado aos integrantes das periferias, seja das cidades, seja
dos processos históricos. A pergunta que começou a se desenhar, dentro do contexto em
que as plataformas digitais de entretenimento relacionam as reuniões de amigos e a leitura
como concorrentes pela atenção de seus consumidores, passou a ser: como o uso de temas
do cotidiano dos leitores para aproximá-los de reflexões presentes nas obras literárias pode
desenvolver as competências da leitura literária a ponto de torná-la insubstituível no cotidiano
desses mesmos leitores?

Decorrente dessa primeira questão, outras começaram a tomar forma. O processo


social de construção de significado, realizado na discussão dos temas de obras literárias à
luz das experiências individuais dos leitores, conforme proposto por Cosson (2009) como
prática para o letramento literário, é elemento capaz de predispor esses leitores a novas
experiências de leitura literária e de formar um corpo de competências que poderá se impor
frente a ameaça do monopólio de seu tempo? E o quanto esse processo pode contribuir para
a formação de uma competência de avaliação crítica da obra para além do prazer da leitura,
conduzindo aos elementos para construção do significado de valor das obras de literatura de
língua portuguesa?

Não apenas a minha formação tomou um novo rumo: a minha compreensão consolidada
da obra literária como elemento de construção de realidades possíveis, como bem enunciado
pela professora Ana Maria Machado em sua palestra “Olhares Imagológicos em A costa dos
murmúrios: entre o conflito e a hesitação” (MACHADO, 2021), passou a ser complementada
pela percepção de que a obra literária é também elemento de reflexão e construção de
identidades, do senso de pertencimento e de discussões de estereótipos e construção de
imagotipos que tornaram mais sólida a minha capacidade de trabalhar seus conteúdos com
meus alunos.

Começava a se delinear uma possibilidade de trabalho a partir da sugestão de Culler


(1999) do exercício da atenção literária com a suspensão da inteligibilidade imediata do texto,
deslocamento da atenção para como o sentido é construído com vistas a produzir o prazer e
nas consequências que isso produz no uso da linguagem como meio de expressão. A literatura
se faz literatura ao mobilizar a atenção do leitor para uma tensão que se apresenta entre o
exposto na obra literária, o uso da linguagem para construir essa exposição e a realidade
do leitor. É resultado, portanto, de um processo social que não pode ser conduzido sem a
participação de todos os envolvidos.

112
Já não era mais possível apenas expor o que é literatura. Precisava compreender a
leitura realizada pelos alunos para, em conjunto, viver ou reviver as descobertas e realizar essa
análise. A proposta do trabalho passou a ter como foco o exercício dessas novas capacidades
e competências no contexto em que ele é mais necessário: na sala de aula. No prefácio da
obra homônima de Antônio Candido (2000), ele afirma que o seu trabalho é um artesanato
dependente de sua personalidade de artesão. Essa afirmação é eco de sua concepção de que
o verdadeiro exercício do ofício de professor está ancorado em uma arte de compreender
como mediar o contato dos alunos com as possibilidades que as obras nos oferecem.

Partindo desse pressuposto de Candido, nossa proposta orientou-se para oferecer aos
alunos, a partir de temas comuns identificados em obras de diferentes autores, a possibilidade
de se expressarem sobre as suas realidades e sobre como, a partir delas, eles constroem a sua
relação com as obras literárias. Essa proposta mostrou-se uma possibilidade a ser explorada,
principalmente a partir do reconhecimento de que as narrativas hegemônicas se associam
ao reforço de estruturas socioculturais de dominação, exclusão e exploração, e que sem uma
reflexão que se proponha a identificar, reconhecer e questionar os pressupostos estruturantes
dessas narrativas hegemônicas, não é possível desenvolver os instrumentos que poderão
permitir sua contestação. O contato com a “biografia do cabelo”, em Esse Cabelo, de Djaimilia
Almeida (2017), constituiu-se um marco no reconhecimento desse aspecto. Dar voz ao cabelo
negro como elemento de contestação do poder do estereótipo branco de beleza é ir além da
futilidade de discutir a estética do cabelo: é avançar sobre as estruturas políticas da exclusão
do negro que se beneficiam da existência desse estereótipo para exercerem sua influência e
se justificarem.

Consoante essa compreensão da obra literária e a partir da constatação de que a


figura do idoso tem conceituações diversas segundo diferentes realidades socioeconômicas
e culturais, bem como nas obras literárias de autores como Mia Couto e Guimarães Rosa,
iniciamos o desenvolvimento de um projeto em que os temas da passagem do tempo, do
papel do idoso e do jovem: são os elementos para iniciar a discussão de como as obras
literárias se situam neste contexto em uma abordagem que não apenas apresentasse as
obras, mas construísse um diálogo com a realidade dos alunos e com as outras obras que
são capazes de produzir o mesmo efeito de estranhamento e reflexão a partir do uso dos
recursos da linguagem e dos elementos que condicionam e permitem esse uso. Estava posto
o desafio de, a partir dessas reflexões, reconstruir minha prática didática, incorporando-as.

113
3. Fundamentação teórico-metodológica
A construção de uma proposta de prática docente para o letramento literário se
estabelece a partir da definição do que é literatura, do seu espaço no ensino e das relações
entre ambos. Para subsidiar nossa proposta, é necessário delimitar à qual concepção de
letramento literário ela se filia, qual a concepção de ensino e como a literatura se insere em
suas práticas.

Letramento literário, ensino e mediação


Para fundamentar nossa proposta de projeto de letramento literário, utilizamos como
eixo orientador o conceito de que a experiência da leitura é, a um só tempo, experiência
individual do leitor com a obra e experiência mediada por aspectos sociais que conformam
e delimitam o que é literatura, ecoando a conceituação de Eagleton (2019). A partir dessa
conceituação, a experiência de leitura literária é uma prática que se beneficia de processos de
mediação em que as trocas das experiências individuais dos leitores com as obras, permitem
que se desenvolvam as competências individuais de reconhecimento do que é avaliado como
literário, do que é canônico e do que ainda que não reconhecido é capaz de nos conduzir à
experiência da leitura literária, ainda que muito do que é literário nasceu com um fim ou
objetivo diferente, por exemplo, as Cartas de Caminha ou Os Sermões do Padre Vieira.

Diante dessa concepção de literatura, o processo de letramento literário não tem como
objetivo desenvolver uma métrica do gosto literário, mas, antes, despertar a reflexão própria
do leitor sobre a obra literária, dando-lhe os instrumentos para que exerça essa reflexão de
forma sistemática e à luz da sua própria vivência. E nesse processo, dar-lhe também elementos
para utilizar em suas avaliações, elementos que lhe permitam ir além do subjetivismo, o que
é também compatível com a compreensão de Compagnon (1999) da teoria literária como
algo distinto de uma historiografia e de uma crítica literária.

Souza (2014) demonstra como há imbricamentos entre as trajetórias da evolução


da cultura literária e da valorização de eixos como orientadores do ensino e como esses
imbricamentos percorrem, em sequência, orientações pelos eixos das humanidades, da
nacionalidade, da literariedade e, mais recentemente, da diversidade. Cada eixo se mantém
em destaque por um tempo cada vez menor e a questão final de Souza é por quanto tempo
a diversidade terá destaque na confluência da literatura com o ensino? Em uma nota, Souza
afirma que a sucessão linear que indica é mais um recurso narrativo do que um retrato fiel
de temas hegemônicos em qualquer momento histórico. Essa alternância de eixos apenas

114
reforça o caráter social conformador do que é considerado literatura e consideramos que
nossa abordagem se situa entre os eixos da diversidade e da literariedade, ao propor uma
prática em que ambos os elementos são utilizados para sustentar o processo de letramento
literário.

Partindo dos cinco elementos da análise literária de Eagleton (2019), que oferece uma
abordagem para preparar o processo de reflexão e acompanhamento da leitura, propomos
que, no lugar de uma prática do ensino de valores intrínsecos que caracterizem uma obra
como literária, que tanto Culler (1999) como Eagleton afastam como inexistentes, seja
conduzido um processo de mediação do contato do leitor com a obra que dê destaque, a partir
das realidades em que os leitores estão inseridos, a alguns temas para essa reflexão. Culler
identifica uma ambiguidade na literatura, referida por ele como uma instituição ancorada
nas práticas sociais que está sempre no limiar entre o convencional e o anticonvencional,
utilizando esse último para demolir e superar o primeiro. Essa ambiguidade origina-se no fato
de que o termo literatura concede prestígio aos discursos aos quais é atribuído e esse processo
de legitimação por ocorrer no meio social, é por ele influenciado, mas não completamente
determinado, o que está de acordo com a afirmação de Candido (1999) de que seu uso para
o ensino provoca conflitos para os educadores e moralistas que não sabem como lidar com o
rico espelhamento da vida que a literatura permite.

Ela pode ser um instrumento importante quando considerada em sua principal


característica: a humanizadora, ao nos expor a toda a complexidade e aos dilemas com os
quais nos confrontamos na vida e em nossas sociedades. Candido opõe ao ensino de literatura
idealizado pela pedagogia oficial, baseado no uso das obras literárias para construção de um
discurso da sociedade ideal, àquele baseado na fruição das obras literárias que, como a vida,
contém tanto o bem quanto o mal e é igualmente paradoxal. Em comum, ambos precisam
ser vividos e esse ser vivido é o que não pode ser ensinado. O professor, nessa acepção do
ensino, é o mediador do contato do leitor com a obra e esse contato é baseado no repertório
anterior do aluno.

Utilizando a metodologia proposta para os círculos de leitura de Cosson (2014) e o


reconhecimento proposto por Pinto (2013), de que a racionalização da relação entre leitor
e obra literária deve dar espaço a uma racionalidade própria da experiência literária, que
é mais complexa e que deve contemplar as várias dimensões humanas para que permita o
letramento literário, propomos uma mediação do contato dos alunos com as obras literárias
em que se possa discutir essas diversas dimensões humanas, os contextos e as contingências
que nos permitem classificar uma obra como literária ou reconhecer a literariedade de um

115
texto em um dado contexto. Nessa proposta, tanto o professor quanto os demais alunos
participam de um projeto em que todos colaboram para que os repertórios individuais
se ampliem pelas trocas de experiências no interior do grupo. A dimensão humanizadora
da literatura, citada por Candido (1999), pode ser exercitada e os diversos sentimentos e
experiências individuais permitem a potencialização desse exercício.

Como as diversas dimensões humanas se relacionam com os elementos de construção


identitária do leitor e com as construções literárias na sua busca por legitimação junto às
instâncias legitimadoras, propomos abrir espaços para que os alunos reflitam sobre esses
elementos a fim de que desenvolvam seu protagonismo e autonomia na leitura literária,
fornecendo-lhes as condições para que se tornem capazes de refletir sobre as relações
de poder que permeiam o estabelecimento dos espaços de legitimação e como atuam na
definição do que é literário.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
A individualidade da leitura literária é um dos principais elementos para permitir que
os alunos reconheçam que essa individualidade é consequência e condição da obra literária.
Com o objetivo de desenvolver esse reconhecimento da individualidade da leitura literária,
escolhemos duas obras que transcorrem na proximidade de rios e os colocam como elemento
da construção de uma reflexão mais profunda sobre o passar do tempo e a memória. Os
contos: “Nas águas do tempo” de Mia Couto e “A terceira margem do rio” de Guimarães
Rosa, permitem discutir temas como o da memória e do tratamento dispensado aos idosos
nas narrativas e confrontá-las com nossas realidades. Trabalhando o tema da perda de um
ente querido, a questão do distanciamento, do enigmático e a questão do uso do neologismo
e da ambientação às margens dos rios, em ambos os autores, será possível provocar a
reflexão sobre os elementos que compõem as obras literárias: o papel do idoso e dos jovens
nas culturas e sociedades.

Ao refletir sobre como as obras literárias dialogam com as nossas experiências e se


nutrem delas, os alunos poderão, a partir de suas leituras, discorrer sobre os temas que
permitem tanto o prazer quanto a fruição da leitura. A cada encontro serão lançadas
questões orientadoras da reflexão: Como vivemos esses temas? Nosso cotidiano permite
experiências como as dos personagens? O que nos distancia e o que nos aproxima das

116
narrativas? A aproximação dos jovens com as literaturas africanas, a partir da reflexão sobre
a universalidade de alguns temas e a originalidade das abordagens dos diversos autores, a
partir de suas experiências e realidades, pode conduzir para a descoberta de novos autores
e temas. Para atingir esse objetivo, a proposta é estruturada em torno da problematização
e reflexão sobre a passagem do tempo, tema comum a todos, para a compreensão de como
os temas universais podem ser tratados de forma diversa pelas diversas culturas e autores.
O processo se inicia com a formação de uma roda de discussões a partir da pergunta: “Como
você experimenta a passagem do tempo?”

A estratégia é a de deixar que os alunos construam as suas argumentações sobre


a percepção da passagem do tempo e, a partir de suas respostas, lançar o seguinte
questionamento: “Todos percebemos a passagem do tempo da mesma forma?” A passagem
do tempo é um tópico interessante para iniciar a discussão porque ela sempre envolve, de um
lado, a objetividade do tempo medido e, de outro, a subjetividade das nossas experiências de
sua passagem. É daí que surgem expressões como “quando nos divertimos, o tempo voa...”.
Iniciada a reflexão sobre a profundidade do tema e sobre como podemos ter experiências
diversas da passagem do tempo, vamos complementar as perguntas sobre se os alunos
consideram que essa passagem do tempo é experimentada da mesma forma nas cidades
e no campo; nos dias de hoje e no passado. O objetivo é o de resgatar os registros pessoais
ou histórias contadas por amigos ou parentes que demonstrem uma forma diferente de
encarar a passagem do tempo. Quem se lembra de ter lido ou visto algum filme que fala
sobre a passagem do tempo? Dependendo dos recursos disponíveis, pode ser preparada uma
aula com apresentação de vídeo ou música que aborde o tema para despertar o interesse e
diversificar a discussão.

Como podemos fazer para saber como a passagem do tempo é percebida por uma outra
cultura? Será que todas as culturas percebem o tempo da mesma forma? Qual o caminho
para conhecer como uma outra cultura compreende a passagem do tempo? E como avaliam
os idosos e os jovens a partir de suas experiências com o tempo? Os idosos são valorizados,
segregados ou estigmatizados de forma igual por todas as sociedades? E pelas famílias? Na
cidade e no campo, de forma igual?

A seleção dos contos foi efetuada para permitir que a sua leitura também seja utilizada
para explorar as diferenças culturais que os ambientam e como elas influenciam a própria
leitura: ao nos expormos ao pensamento de uma realidade que não é a nossa é que
podemos nos permitir pensar sobre como seria se… A catarse é construída pela reflexão
sobre as possibilidades postas diante do que é a realidade de cada um. Nessa concepção,
conhecer o que o outro, o autor literário, se permitiu pensar, pode ser libertador ao se

117
tornar o ponto focal da reflexão: se o autor se permitiu pensar isso, qual o limite do que nós
podemos pensar? Quais os limites que nós nos impomos ou nos permitimos superar? A nossa
proposta de concepção de leitura do texto literário está alicerçada sobre a compreensão
da obra literária como elemento para reflexão sobre a realidade, o cotidiano, a cultura e a
sociedade. Consideramos que essa reflexão deve ser realizada pelo indivíduo, a partir de suas
experiências e o seu resultado é o que poderá ser encarado como algo prazeroso, intrigante
ou inspirador, e é a indeterminação de como a obra é lida, de como ela se materializa no ato
da leitura que será o objeto do desenvolvimento da prática da leitura literária.

Ao explorar o uso da linguagem utilizada, por ambos os autores, para construir as


obras e os efeitos individuais que essa construção consegue obter nas nossas leituras, serão
oferecidos os elementos para que os alunos desenvolvam suas competências de leitura
literária e reconhecimento dos aspectos que são constitutivos do caráter literário de uma
obra. Com o desenvolvimento dessas competências, a distinção entre as diversas instâncias
de legitimação da produção e o seu papel como elementos de legitimação de padrões
estéticos e de discursos também poderão ser explorados a partir das reflexões dos leitores
sobre a sua atividade de leitura literária.

A partir das abordagens descritas por Cosson (2014) e Pinto (2013), propomos orientar
os encontros de leitura selecionando temas para aplicação dos elementos de análise literária
de Eagleton (2019). De acordo com essa estratégia, serão apresentados temas para que
os leitores teçam suas considerações sobre como os temas são conduzidos nas obras e
selecionem um elemento que, em sua leitura, se destacou. Assim, surgem como propostas
de trabalhos, a serem lançadas para os leitores:

1. O reconhecimento de que uma obra possui personagens. A partir desse


reconhecimento, quais as relações que esses personagens estabelecem entre si e
com o universo contextual da obra que os caracteriza como ficcionais ou que os
aproxima do real?

2. Identifiquem se há e qual o indicador do momento em que o autor, o narrador ou


algum personagem demonstra ou parece se sentir compelido a romper o silêncio e
narrar? Como leitor, você acha que a ruptura do silêncio desse personagem é algo
que também motiva o autor?

3. Que os leitores, a partir de suas respostas à segunda questão, avaliem o papel dos
narradores e como eles se relacionam com esse rompimento do silêncio? É quem
narra que se sente compelido a quebrá-lo?

118
4. Quando lemos, temos um papel na obra literária: a interpretamos a partir de nossas
vivências e de quão verossímil ou possível aquela narrativa nos parece. O que
chamou sua atenção na obra e como você interpreta essa passagem na relação com
sua visão de mundo?

Por fim, realizaremos uma discussão sobre como o valor de uma obra literária é
construído a partir dos diversos elementos elencados por Eagleton (2019), e como eles são
consequência ou expressão do valor da obra literária. O letramento literário deve despertar
para o prazer e para a reflexão sobre as realidades possíveis. Construir um ambiente em que
o compartilhamento das experiências seja o foco do processo é, também, abrir espaço para
que o próprio pensamento e a individualidade se manifestem, se fortaleçam e se estabeleçam
a partir das trocas de impressões. Os cinco elementos primordiais tomados como pontos
focais da atenção dos leitores entre os encontros podem funcionar como direcionadores
da análise e, ao mesmo tempo, permitir que seja desenvolvido um conjunto de fatores a se
considerar a partir da leitura.

Para oferecer subsídios aos processos de letramento literário serão utilizados como
referência, além da proposta dos círculos de leitura de Cosson, (2014) e dos cinco elementos
primordiais da análise literária de Eagleton (2019), o reconhecimento proposto por Pinto
(2013) de que a racionalização da relação entre leitor e obra literária deve dar espaço a uma
racionalidade própria da experiência literária que é mais complexa e que deve contemplar as
várias dimensões humanas para que permita o letramento literário. Para oferecer suporte
aos processos de discussão dessas dimensões adicionais, iremos utilizar as reflexões auto-
etnográficas de Franca (2018) e as discussões sobre o papel do idoso na obra de Mia Couto,
conforme apresentado por Rodrigues (2017) como recursos adicionais para reflexão durante
a leitura literária.

5. Análise, discussão e resultados esperados


A leitura das obras de Mia Couto e de Guimarães Rosa com ênfase na análise do uso
de elementos comuns para a construção literária, como instrumento de letramento literário,
realizado a partir da perspectiva de como as obras literárias são expressão dos autores em
uma relação única com o leitor, objetiva abrir espaço para que os leitores exercitem a sua
expressividade na construção dessa relação. O processo permite a ampliação da discussão
dos temas propostos e o seu aprofundamento para além das leituras audiovisuais permitidas
pelas novas mídias, e por isso mesmo, permite que essas leituras possam ser apreendidas como

119
elementos de construção da reflexão. A leitura de uma obra literária implica na contribuição
do leitor para a materialização dos elementos da obra e essa materialização ocorre a partir
do repertório de vida do leitor. A universalidade da obra literária reside na potencialidade
de permitir a cada leitor uma leitura única, particular, porque é constituída a partir de seus
repertórios. E os círculos de leitura permitem trazer à tona as diversas realidades individuais
e como cada uma delas contribui para a riqueza das leituras individuais e para as reflexões
identitárias e de pertencimento.

A adoção da prática preconizada no presente trabalho tem como principal objetivo


permitir que os alunos desenvolvam sua autonomia na avaliação das características que dão
a uma obra seu caráter literário. Esse desenvolvimento não pode ser imposto, na forma de
regras que são “ensinadas” como um molde para que as obras sejam comparadas: antes, é
experimentado na forma de prazer e inquietação, assombro ou desconforto. Desenvolvi a
compreensão do papel do professor como um mediador da leitura literária e da importância
dessa mediação para que os alunos adquiram autonomia e as competências individuais de
leitura nesse processo. A proposta de um mundo que pode ser, nos leva a reconhecer o mundo
que é. E esse mundo que é, sempre nos oferece material para reflexão, repertório e experiências
que são individuais, mas que quando reconhecidas como socialmente compartilhadas,
oferecem a possibilidade do pertencimento, do desenvolvimento de identidades coletivas e
do reconhecimento das instâncias de poder e legitimação. É a partir desse reconhecimento e
das práticas socioculturais que as estruturam, que os alunos podem ampliar suas capacidades
de compreensão das obras literárias não apenas como fonte de prazer, mas como elementos
da fruição proposta por Barthes (1987), da formação humanizadora proposta por Candido
(1999) e alinhadas a uma compreensão das diversas instâncias de legitimação do canônico
que Telles (2018) afirma que já não funcionam de modo hegemônico.

A partir dessa proposta e da mediação do contato dos alunos com autores atuais,
clássicos, canônicos e periféricos, podemos exercitar em conjunto a leitura que tanto
proporciona prazer quanto nos assombra ou incomoda, pelo uso da linguagem. Refletir sobre
esse uso da linguagem, em conjunto com os cinco elementos propostos por Eagleton (2019),
permite aprofundar a reflexão sobre a produção literária dos autores e sobre os processos
e instâncias de legitimação das obras. Objetiva-se assim, que os alunos construam seus
discursos sobre a experiência de leitura literária em seus próprios termos e possam discorrer
sobre essa experiência e sobre o prazer ou a fruição dela decorrentes. Da mesma forma, é
almejado que o direito à literatura, proposto por Candido (1995), a partir de uma abordagem
como essa, talvez possa nos conduzir a uma prática que a compreenda como formadora da

120
personalidade como Candido propõe, a partir da força poderosa da própria realidade que ela
abriga. É certo que não haverá unanimidade e o próprio processo de discussão irá contribuir
para que a percepção do valor da obra seja trazida à tona. Uma obra literária deve contribuir
para que saiamos das nossas zonas de conforto e certezas, e nos aventuremos no campo dos
mundos possíveis. Um processo de letramento não deve fazer menos do que despertar esse
mesmo espírito.

6. Considerações Finais
A compreensão da prática docente no letramento literário como uma prática de
mediação do contato do aluno com as obras literárias em que o exercício da leitura literária
é, a um só tempo, prática humanizadora e libertadora foi o resultado de uma formação
que, inicialmente, destinava-se apenas a acrescentar mais alguns autores e obras de
língua portuguesa a uma lista de obras canônicas para o ensino de literatura. Se já havia o
reconhecimento do caráter humanizador da leitura literária na educação, como afirmado
por Candido (1999), minha prática ainda era orientada pela leitura de obras canônicas com
pouca reflexão sobre os processos de legitimação desses cânones. O aprofundamento dessa
reflexão traz como consequência uma nova postura docente e uma nova compreensão das
obras literárias como elementos de organização e disseminação de visões de mundo.

É exatamente esse caráter de visões de mundo que foi mais impactado: o reconhecimento
dos temas do pertencimento e das construções identitárias não fazia parte de minha prática
docente. Já era motivo de inquietação, mas permanecia restrito à contextualização de
obras, tempos e autores. O desenvolvimento da reflexão durante a formação foi forjando
o elo que faltava entre minha prática docente e a compreensão dos alunos como leitores
literários. A experiência individual do leitor com a obra literária não pode ser ensinada, mas
apenas mediada e o docente, imerso na realidade dos alunos, adquire melhores condições de
desempenhar esse papel de mediação. A seleção de obras, nesse contexto, não deve se limitar
a contemplar conjuntos canônicos, mas fazê-lo com o intuito de desenvolver competências
que vão além do conhecimento do idioma e das características das obras: deve servir a
reflexão dos temas que já fazem parte do cotidiano dos alunos, dos processos de legitimação
de discursos e padrões e, acima de tudo, devem contribuir para o estabelecimento do que
Cândido (1995) elencou como o direito à literatura.

Se a leitura literária no Brasil é citada como o suprassumo do luxo por Hansen (2005), é
preciso lembrar que ele também afirma que ela pode ser, antes de tudo, crítica, permitindo

121
o esclarecimento democrático e a formação crítica do imaginário. As nossas escolas públicas
precarizadas, a serviço da exploração de classes, continuam a perpetuar as práticas de elencar
obras que “garantem” acesso ao ensino superior. E, sem perceber, eu endossava a cada aula
esse modelo de formação libertadora que nada faz além de inscrever a obra literária no rol
das impossibilidades dos alunos.

A compreensão dos processos de legitimação literária e de suas diversas nuances,


em um contexto em que as instâncias legitimadoras são produto e produtoras de padrões,
contribuiu para que eu refletisse sobre a minha participação na manutenção dessas instâncias
e desses padrões. Se a literatura está sempre no limiar entre ser e ser a contestação do que
é e nos convida a sempre refletir sobre o que pode vir a ser, a participação nessa formação
contribuiu para a minha própria reflexão sobre o que é e o que pode vir a ser minha prática
docente e, ao fazê-lo, abriu novas perspectivas sobre como trabalhar o letramento literário e
a leitura literária no contexto da sala de aula.

Essas novas perspectivas passam por reconhecer o caráter individual da experiência de


leitura literária, o protagonismo do aluno na sua relação com a obra literária e a necessidade
de mediar a leitura permitindo que a experiência individual de leitura ocorra em um contexto
de reflexão crítica, em que além do prazer e da fruição da leitura, ela se constitua em elemento
de reflexão do mundo, da sociedade e das experiências tanto do aluno quanto do professor.

122
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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N6VL1gm0aLlr0HQ6yl2lRXdSfuxMt-s&index=9. Acesso em: 20 jun. 2021.
APÊNDICE
Projeto Integrado para o ensino de Literaturas de Língua Portuguesa

Planejamento dos encontros dos círculos de leitura

1. Público Alvo:
3º ano – Ensino Médio.
2. Cronograma:

Tempo de duração total:


- 16 horas distribuídas em 04 encontros semanais de quatro horas

Os encontros deverão acontecer com periodicidades entre uma semana e quinze dias, obedecendo as
condições de tempo disponível pelos alunos para sua leitura.

3. Definição da prática de letramento literário:

Círculo aberto ou não estruturado com o objetivo de provocar a reflexão e o questionamento sobre como
registramos nossas experiências e nossos sentimentos. O círculo aberto convida para participação e facilita
que os alunos troquem suas experiências e impressões dando-lhes o papel de narrador em alternância
com o de ouvinte das narrativas.

4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:


Procederemos como preconizado por Cosson para a realização do círculo aberto ou não estruturado:
“Uma vez acordados as obras e o cronograma das reuniões, os participantes se revezam na condução
das reuniões e iniciam as discussões falando de suas impressões de leitura ou estabelecendo alguma
conexão pessoal” (COSSON, 2014, p. 159). Esse círculo aberto é semelhante a “uma conversa entre amigos
ou familiares, com a diferença que tem como fonte a leitura da obra. Não há regras a serem seguidas”
(COSSON, 2014, p. 159).

5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:

Com esse exercício será possível:

a. trabalhar o letramento literário;


b. desenvolver a compreensão dos alunos dos paralelos possíveis entre um autor brasileiro e outro
moçambicano;
c. da mesma forma, discutir quais as características que os distinguem: o que é particular de cada autor?
O que são expressões culturais demarcadoras de diferenças?
d. estimular o protagonismo juvenil, permitido pela estrutura ágil dos círculos de leitura e pela proposta
de que expressem suas próprias impressões resultantes das suas experiências com as obras,
confrontando-as com as suas experiências pessoais.

6 - Escolha do (s) texto(s) literário(s):

- “Nas águas do tempo” de Mia Couto


- “A Terceira Margem do Rio” de João Guimarães Rosa

126
7 - Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):

Ambos os textos transcorrem na proximidade de rios e os colocam como elemento da construção de uma
reflexão mais profunda sobre o passar do tempo e a memória. A cada encontro serão lançadas questões,
orientadoras da reflexão: Como vivemos esses temas? Nosso cotidiano permite experiências como as
dos personagens? O que nos distancia e o que nos aproxima das narrativas? A aproximação dos jovens
com as literaturas africanas a partir da reflexão sobre a universalidade de alguns temas e a originalidade
das abordagens dos diversos autores, a partir de suas experiências e realidades, pode conduzir para a
descoberta de novos autores e temas. Os contos “Nas águas do tempo” de Mia Couto e “A terceira margem
do rio” de Guimarães Rosa, permitem discutir temas como o da memória e do tratamento dispensado aos
idosos nas narrativas e confrontá-las com nossas realidades. Trabalhando o tema da perda de um ente
querido, a questão do distanciamento, do enigmático e a questão do uso do neologismo e da ambientação
às margens dos rios em ambos os autores, será possível provocar a reflexão sobre os elementos que
compõem as obras literárias, o papel do idoso e dos jovens nas culturas e sociedades.

8 - Proposta de estratégias de motivação de leitura:

A proposta é estruturada a partir da problematização e reflexão sobre a passagem do tempo, tema comum
a todos, para a compreensão de como os temas universais podem ser tratados de forma diversa pelas
diversas culturas e autores. Para atingir esse objetivo, a estratégia é a de formar uma roda de discussões a
partir da pergunta: “Como você experimenta a passagem do tempo?”
A estratégia é a de deixar que os alunos construam as suas argumentações sobre a percepção da passagem
do tempo, e, a partir de suas respostas, lançar o seguinte questionamento: “Todos percebemos a passagem
do tempo da mesma forma?”

9 - Justificativa das estratégias escolhidas:

A passagem do tempo é um tópico interessante para iniciar a discussão, porque ele sempre envolve de
um lado, a objetividade do tempo medido e, de outro, a subjetividade das nossas experiências de sua
passagem. É daí que surgem expressões como “quando nos divertimos, o tempo voa...”. Iniciada a reflexão
sobre a profundidade do tema e sobre como podemos ter experiências diversas de sua passagem, vamos
complementar as perguntas sobre se os alunos consideram que a passagem do tempo é experimentada
da mesma forma nas cidades e no campo. Nos dias de hoje, e no passado. O objetivo é o de resgatar os
registros pessoais ou histórias contadas por amigos ou parentes que demonstrem uma forma diferente de
encarar a passagem do tempo. Quem se lembra de ter lido ou visto algum filme que fala sobre a passagem
do tempo? Dependendo dos recursos disponíveis, pode ser preparada uma aula com apresentação de
vídeo ou música que aborde o tema, para despertar o interesse e diversificar a discussão.
Como podemos fazer para saber como a passagem do tempo é percebida por uma outra cultura? Será
que todas as culturas percebem o tempo da mesma forma? Qual o caminho para conhecer como uma
outra cultura compreende a passagem do tempo? E como avaliam os idosos e os jovens a partir de suas
experiências com o tempo? Os idosos são valorizados, segregados ou estigmatizados de forma igual por
todas as sociedades? E pelas famílias? Na cidade e no campo, de forma igual?

10 – Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:

Será que lendo algo que alguém escreve sobre isso, podemos compreender como o tempo é encarado?
Há culturas que valorizam a experiência de quem viveu mais, de seus idosos. Será que lendo uma obra
que aborda a passagem do tempo e o tratamento dispensado aos idosos podemos descobrir algo sobre
a cultura e sobre como ela avalia o papel do idoso e do jovem? Inserido nesse contexto será feita a
apresentação dos autores e de suas obras para que, a partir de suas narrativas, tentemos encontrar o que
há de comum e o que há de diverso entre suas abordagens. Como eles encaram suas relações com seus
ancestrais? Como abordam o afeto em suas relações?

127
11 - Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:

Recentemente, surgiu um conjunto de artigos da Folha de São Paulo intitulado “Quando o DNA diz de onde
eu vim” (GOMES, 2021), em que foram avaliados os perfis genéticos de afrodescendentes para identificar
qual a origem de seus ancestrais e comparar os resultados com as informações conhecidas e as histórias
contadas. Tempo é lembrar e lembrar ocorre da mesma forma por quem tem a árvore genealógica bem
traçada, a partir de raízes bem documentadas e por quem foi alijado de sua história e arrancado de seu
tempo e espaço? Será que quem nasceu e viveu na África ocupada e invadida tem uma experiência diferente
de sua ancestralidade daquela que é vivida pelos descendentes de pessoas escravizadas no Brasil? E como
ela se compara a autores que são descendentes dos que ocuparam a África e que hoje ali residem? Será
que eles também são influenciados por esses processos? A partir de autores distintos, pode ser buscada a
compreensão das respostas à essas perguntas, e com elas, podemos refletir sobre como elas contribuem
para nossa própria reflexão sobre esses temas.

12 - Proposta de concepção de leitura do texto literário:

A nossa proposta de concepção de leitura do texto literário está alicerçada sobre a compreensão da obra
literária como elemento para reflexão sobre a realidade, o cotidiano, a cultura e a sociedade. Consideramos
que essa reflexão deve ser realizada pelo indivíduo, a partir de suas experiências e o seu resultado é o que
poderá ser encarado como algo prazeroso, intrigante ou inspirador. É ao nos expormos ao pensamento
de uma realidade que não é a nossa que podemos nos permitir pensar sobre como seria se… A catarse
é construída pela reflexão sobre as possibilidades postas diante do que é a realidade de cada um. Nessa
concepção, conhecer o que o outro, o autor literário se permitiu pensar, pode ser libertador ao se tornar
o ponto focal da reflexão: se o autor se permitiu pensar isso, qual o limite do que nós podemos pensar?
Quais os limites que nós nos impomos ou nos permitimos superar?

13 - Justificativa da concepção de leitura do texto literário:

O contato com os cinco elementos primordiais da análise literária de Terry Eagleton se revelou como um
caminho promissor para preparar o processo de reflexão e acompanhamento da leitura. O objetivo não
é o de desenvolver uma métrica do gosto literário, mas, antes, o de despertar a reflexão própria do leitor
sobre a obra literária, dando-lhe os instrumentos para que exerça essa reflexão de forma sistemática e
à luz da sua própria vivência. Durante esse processo, dar-lhe também elementos para utilizar em suas
avaliações, que lhe permitam ir além do subjetivismo. A justificativa principal é a de que consideramos
que o hábito da leitura se consolida com a percepção e exploração do espaço das possibilidades que se
constroem a partir da leitura e é essa percepção que avaliamos que a abordagem dos cinco elementos
primordiais pode favorecer.

14 - Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:

A partir da nossa abordagem de problematização do tempo, de sua relação com o espaço do idoso na
sociedade e com a relatividade das nossas experiências com o tempo, consideramos que seja válido orientar
os encontros selecionando os temas a partir de considerações dos leitores sobre sua leitura. De acordo
com essa estratégia, ao final do segundo e do terceiro encontro, serão apresentados dois temas para que
os leitores teçam suas considerações sobre como os temas são conduzidos nas obras e selecionem um
elemento que, em sua leitura, se destacou. De acordo com essa estratégia, ao final do primeiro encontro
serão propostas aos leitores as seguintes reflexões:

1 – As obras possuem diversos personagens. Quais as relações que esses personagens estabelecem entre
si e com o universo contextual da obra que os caracteriza como ficcionais ou que os aproxima do real?
2 - Identifiquem se há e qual o indicador do momento em que o autor, o narrador ou algum personagem
demonstra ou parece se sentir compelido a romper o silêncio e narrar? Você acha que a ruptura do silêncio
desse personagem é algo que também motiva o autor?

128
Ao final do segundo encontro, será proposto:

1 - Que os leitores, a partir de suas respostas à segunda questão, avaliem o papel dos narradores e como
eles se relacionam com esse rompimento do silêncio? É quem narra que se sente compelido a quebrá-lo?
2 – Quando lemos, temos um papel na obra literária: a interpretamos a partir de nossas vivências e de
quão verossímil ou possível aquela narrativa nos parece. O que chamou sua atenção na obra e como você
interpreta essa passagem na relação com suas experiências e sua visão de mundo?
Por fim, no terceiro encontro, finalizaremos com a discussão do valor literário, mas sem a obrigatoriedade
de uma entrega: o objetivo dessa discussão será o de utilizar as experiências individuais da leitura para
discutir como o valor de uma obra literária é construído a partir dos diversos elementos elencados por
Eagleton e como eles são consequência ou expressão do valor da obra literária.

15 - Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:

O letramento literário deve despertar para o prazer e para a reflexão sobre as realidades possíveis. Construir
um ambiente em que o compartilhamento das experiências seja o foco do processo é, também, abrir
espaço para que o próprio pensamento e a individualidade se manifestem, se fortaleçam e se estabeleçam
a partir das trocas de impressões. Os cinco elementos primordiais tomados como pontos focais da atenção
dos leitores entre os encontros podem funcionar como direcionadores da análise e, ao mesmo tempo,
permitir que seja desenvolvido um conjunto de fatores a se considerar a partir da leitura. É certo que não
haverá unanimidades e o próprio processo de discussão irá contribuir para que a percepção do valor da
obra seja trazida à tona: uma obra literária deve contribuir para que saiamos das nossas zonas de conforto
e certezas e nos aventuremos no campo dos mundos possíveis e um processo de letramento não deve
fazer menos do que despertar esse mesmo espírito.

16 - Proposta de atividades de interpretação do texto literário:

A proposta de atividade é construída a partir de quatro eixos temáticos que, apesar de comuns em ambas
as obras, conduzem a desfechos diversos. A proposta é que os alunos discorram sobre os elementos das
obras, no contexto das obras e a elas limitados. Os eixos temáticos que serão propostos para reflexão
pelos alunos são os seguintes:

Eixo 1 - Em ambas as obras, os personagens narradores discorrem sobre sua convivência com um parente
que tem uma relação estabelecida com a canoa, com o rio e seu entorno. O tempo é o pano de fundo em
que os dois processos de sucessão podem ocorrer. Nas duas obras, há um contexto em que os mais novos
sucedem aos que os precederam. Todos fazemos escolhas e os personagens narradores nos contam sobre
as suas escolhas. Agora é a sua vez de escolher: entre as duas escolhas, com qual você se identifica mais?
Para essa atividade, a sala é dividida em quatro grupos:

1. Os que não agiriam como nenhum dos dois personagens: nem como o filho de “A Terceira Margem do
Rio” e neste caso, embarcaria na canoa em substituição ao pai, e nem como o neto de “Nas Águas do
Tempo” e, neste caso, não ensinaria o filho a vislumbrar os panos brancos da outra margem.
2. Os que agiriam como o neto nas duas obras, aceitando realizar a sucessão nos dois casos.
3. Os que agiriam como o filho, nas duas obras, não aceitando realizar a sucessão em nenhum dos dois
casos.
4. Os que agiriam como os dois personagens: como o filho de “A Terceira Margem do Rio”, não embarcando
na canoa e como o neto de “Nas Águas do Tempo”, ensinando o filho a vislumbrar os panos brancos.
Eixo 2 – Os personagens narradores demonstram relações diferentes com os seus entes? Essas relações
causam algum impacto no nível de conhecimento que os personagens têm de sua situação, de suas certezas
e incertezas e da extensão de suas escolhas? Agora, considerando o que cada personagem narrador sabe
e afirma sentir sobre sua realidade, você acha que eles tomaram decisões esclarecidas e fundamentadas
sobre suas condições descritas nas obras ou foram conduzidos por suas emoções, também descritas no

129
contexto das obras? A partir dessa reflexão, você mudaria de grupo? Os alunos podem, então, declarar
o motivo de sua mudança de grupo, justificando suas escolhas a partir do conteúdo das obras e de suas
interpretações pessoais dos contextos expostos pelos narradores.

Eixo 3 – Qual mudança no contexto apresentado nas obras, poderia provocar uma mudança em sua
decisão? Cada aluno deve elencar aquilo que poderia mudar sua decisão. Durante todo o processo, os
alunos podem rever suas escolhas e mudar de grupo, justificando o motivo de sua mudança a partir do
contexto das obras e da explicação dos outros leitores.

Eixo 4 – Passagem do tempo e sucessão, são temas com os quais todos nos deparamos. Nossas vidas são
sucessões de escolhas e elas ocorrem em contextos que, tal como para nossos personagens narradores,
vão se desnudando enquanto vivemos. Você considera que é possível afirmar que é o que é peculiar na
narrativa de cada personagem que os torna universais? O papel desempenhado pelo tempo, pelo idoso e
pelos jovens nas três narrativas tem características que os tornam universais, compreensíveis por qualquer
pessoa? E quais as características que diferenciam o idoso de Mia Couto do idoso de Guimarães Rosa e que
tornam cada um deles uma criação singular, única?

17 - Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:

Nas atividades anteriores foi explorada a potencialidade dos textos literários como elementos de reflexão
a partir dos quais podemos reinterpretar nossas próprias realidades. O objetivo agora é o contrário: a
partir de nossas realidades, como interpretamos o que nos é apresentado e o que torna o que nos é
apresentado peculiar e único? A obra apresenta-se como um todo, um universo, em que nos refletimos e
que reflete nossos próprios sentimentos, saberes e universos. Esse caminho dual, em que nos permitimos
pensar sobre uma realidade diversa, repleta de poder ser, que amplia nossos horizontes, agora se volta
para a reflexão do que é peculiar à obra para obter esse efeito. A leitura nos apresenta uma realidade
própria, que somente pode ser compreendida a partir de seus elementos e são esses elementos que
caracterizam as obras literárias.

18 - Proposta de avaliação da leitura literária realizada:

A partir das reflexões desenvolvidas, os alunos devem agora responder: a frase “ano passado eu morri,
mas esse ano eu não morro” de Belchior, reproduzida por Emicida no DVD Amarelo (EMICIDA, 2019),
pode ser mais bem compreendida a partir das reflexões sobre o tempo desenvolvidas pelos personagens
narradores nas duas obras? O que torna essa frase única e como ela se relaciona com as narrativas das
sucessões dos personagens?

19 - Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:

A compreensão do tempo como um elemento de reflexão universal, que nos conduz a situações
paradigmáticas que podem ter desfechos diversos de acordo com as nossas realidades é um indicador
importante da aquisição de instrumental para análise da capacidade de leitura literária. Dar abertura
para que os próprios leitores construam suas reflexões sobre essa reflexão universal e, ao mesmo
tempo, apresentar os instrumentos para conduzir essa avaliação a partir da própria obra e não da mera
opinião pessoal, pode ser medido pela capacidade de interligar os conceitos sem recorrer exclusivamente
aos julgamentos do prazer obtido com as obras. A aplicação dos instrumentos em um outro contexto
de avaliação, pode indicar melhor se os alunos compreenderam e assimilaram os conceitos afeitos ao
letramento literário.

20 - Referências Bibliográficas:

ABDALA JUNIOR, B. Literaturas de língua portuguesa: histórias e estórias. Matraga, Rio de Janeiro, v. 19, n.
31, p. 10-24, jul.-dez. 2012. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/
view/22594 /16139. Acesso em: 07 de mar. 2021

130
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COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009

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131
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em https://www.youtube.com/watch?v=uJcjV6g5mV8&list=PL_N6VL1gm0aLlr0HQ6yl2lRXdSfuxMt-
s&index=9. Acesso em: 20 jun. 2021.

132
A leitura na prática escolar:
6 encontros com a poesia falada

Lídia Juliana Rodrigues Moraes1


Lilian do Rocio Borba2

RESUMO
O presente artigo propõe o desafio de que ensino-aprendizagem não seja mais uma
estratégia escolarizada, mas uma experiência de dar sentido à leitura literária pautada
no reconhecimento da identidade e da territorialidade diante da perspectiva plural de
apreciação do texto literário com estudantes concluintes do ensino médio. Assim, pretende-
se colocar também em discussão o processo de mediação da leitura literária no contexto das
práticas escolares, de modo que o docente reflita sobre suas ações. O objetivo é considerar
o papel do sujeito-leitor como parte que dialoga com a literatura e essa com suas narrativas
e vivências. Para tanto, a proposta de intervenção baseia-se no desenvolvimento de grupos
organizados em círculos de leituras com a obra Não vamos nos calar: poemas para serem
lidos em voz alta, produzidos por jovens autoras negras, destaques em performances de
Slam, com temáticas que ecoam nas juventudes atuais. Após a análise e discussão, percebeu-
se o quanto é fundamental a atuação investigativa docente livre de preconceitos e práticas
pouco reflexivas, de modo a abrir caminhos para novos olhares nos modos de ler na escola e
as diferentes possibilidades que a leitura literária permite a todos que se propõem mergulhar
em tal universo.

Palavras-chave: Leitura literária. Círculo de Leitura. Práticas escolares. Poesia falada.


Ensino.

1 Mestre em Educação na Linha de Pesquisa História e Teoria do Trabalho Docente e do Educador Social – LIPHIS
(UNINOVE), graduada e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professora de Língua Portuguesa e
coordenadora da área de Linguagens e Suas Tecnologias na rede estadual de ensino de São Paulo. E-mail: jujurodrigues@alumni.
usp.br
2 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), possui pós-doutorado pela mesma
universidade com a pesquisa intitulada “Pronunciamentos de D. Obá II, edição crítica para a história da escrita de afrodescendentes
no século XIX”. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPr). Atualmente é professora voluntária na área de
gramática no cursinho popular pré-vestibular Lélia Gonzalez em Campinas/SP. E-mail: lilianbor@yahoo.com.br

134
1. Introdução
Discutir práticas escolares de leitura literária para o público de estudantes do Ensino
Médio ainda é um grande desafio, a começar pela conceituação entre ensino ou mediação
do processo de apreciação e fruição literária, conforme prevê o documento norteador, a
Base Nacional Comum Curricular, a que se refere não somente no componente de Língua
Portuguesa, mas nas diferentes áreas do conhecimento, chama a atenção para a formação
dos jovens nessa etapa de ensino que deve se articular ao Projeto de Vida e às escolhas
de estilo de vida, preparando-os para desafios sociais, mais sustentáveis e éticos a fim de
fortalecer o exercício da crítica na formação de leitores autônomos e na promoção de ações
protagonistas.

Se ainda há um imaginário na escola em associar as leituras literárias às listas sugeridas


pelos vestibulares percebe-se contrastes nas diferentes metodologias adotadas, além da vasta
possibilidade de caminhos escolhidos pelos docentes que ora optam por uma abordagem
dos estilos literários, ora por unidade temática, ou ainda em torno dos gêneros literários.
No entanto, o que se nota é que ao escolarizar, tais práticas de leitura literária, perdem a
noção do sujeito-leitor, ou seja, a apreciação do texto literário fica em segundo plano, pois,
na maioria das vezes, a análise crítica do texto, enquanto objeto de ensino e aprendizagem
de linguagens, acaba sendo o fator mais relevante das aulas de literatura. Mais que refletir
sobre tais questões, a aprendizagem ou o papel de identidade do leitor nas obras deve ser
um fator em pauta no planejamento das aulas, aliado à sensibilidade docente em perceber
como ocorrem os diferentes modos de ler das juventudes e a recepção do texto literário.

Sem dúvida, temas cada vez mais urgentes e necessários atraem o interesse dos
jovens leitores que estão buscando ecos que reverberem suas vivências e pensamentos nas
diferentes culturas juvenis. Nesse sentido, estabelecer caminhos nos espaços e nas práticas
escolares para uma leitura literária mediada pela sensibilidade e livre de preconceitos nos
diálogos entre textos, autores e autoras que “falam a mesma língua” e produzem arte com
estética e estilística da melhor qualidade é, no mínimo, atraente.

Enquanto docente da rede pública paulista há mais de vinte anos, sinto que o discurso
de que os jovens não gostam de ler se tornou, infelizmente, um lugar comum. Longe da
crença romantizada de que a escola é o principal espaço de formação de leitores, entendo
que a escola é privilegiada para reiterar ou romper com tais pensamentos. Assim, ao
concluir o curso de Literaturas de Língua Portuguesa oferecido pela UNIFESP pude reafirmar
a importância do papel investigativo docente e o quanto é preciso estar atento aos sinais
latentes dessa juventude que se coloca como protagonista de suas escolhas e narrativas.

135
Neste trabalho, considerando como estratégia a prática da leitura do texto literário, na
proposta de Rildo Cosson (2014), por meio da formação dos círculos de leitura para turmas
de ciclo final do Ensino Médio (3ª série), entendo que há uma articulação que antecede
qualquer proposta ou metodologia que se pretende inovadora. Conforme mencionei, a
noção de sujeito-leitor que, por vezes, não está posta ou se perde na relação escolarizada
das práticas de leitura do texto literário, isso passa também pela identidade docente, visto
que se não houver prazer no leitor que ensina, tampouco haverá entusiasmo no estudante.
Portanto, pretende-se colocar em discussão o processo de mediação da leitura literária no
contexto das práticas escolares, de modo que o docente reflita sobre suas ações. Além disso,
espera-se propor possíveis caminhos ou desafios de ensino aprendizagem que não sejam
mais uma estratégia escolarizada, mas uma experiência de dar sentido à leitura literária no
que a aproxima de questões identitárias e territoriais de quem lê, seja na escola ou fora dela.

O percurso interpretativo do sujeito-leitor sugerido por Rouxel (2012) apresenta


possibilidades relevantes nas práticas escolares, em especial na leitura que propomos a partir
de jovens autoras negras, na obra organizada por Mel Duarte, escritora, poeta, slammer,
destaque no sarau de abertura da Flip 2016 e a primeira mulher a vencer a Rio Poetry Slam, e
prefaciada por Conceição Evaristo. O livro dá voz na poesia a quinze escritoras representantes
das cinco regiões do Brasil, mulheres periféricas que se utilizam da poesia escrita e falada
como instrumento de luta em uma sociedade em que temas como machismo, sexualidade,
racismo, acesso ao conhecimento, feminismo são cada vez mais urgentes e necessários. É
a partir do universo feminino e da subjetividade artística dessas autoras que se propõe o
reconhecimento e a construção de identidades e territorialidades.

Dessa forma, as vivências dos estudantes, bem como seu repertório e suas narrativas são
fatores que interferem, fazem parte e reverberam nas diferentes linguagens e manifestações
artísticas que se aproximam do universo escolar e não somente fora dele, acreditando assim
que temos a contribuir nesse vasto universo que é o mergulho do jovem na literatura, diante
da pluralidade de sentidos que ela nos permite.

2. Contextualização
O curso Literaturas de Língua Portuguesa trouxe grande contribuição para a construção
do meu processo formativo como docente, além de atender plenamente às minhas
expectativas iniciais na ampliação do repertório literário. O processo da escolarização do
texto literário sempre foi gerador de diferentes inquietações na minha prática docente. Certa

136
ocasião, ao vibrar com uma letra do Racionais MC’s em uma aula, vi que o repertório de
todo o álbum já era conhecido da turma e, sem titubear, grande parte dos estudantes me
apresentou (na ponta língua) as outras canções. Paralelo a isso, o material didático sugerido
pela Secretaria de Educação trazia para turmas do Ensino Médio a leitura de trechos do poema
Navio Negreiro de Castro Alves. Houve aproximação imediata a questões latentes daquele
público: como um texto do séc. XIX poderia ser tão atual nas questões de desigualdade social
como a que vivemos? Tomados os devidos deslocamentos na leitura das obras literárias, o
diálogo estabelecido com a realidade vivida pelos estudantes foi imediato. O desdobramento
disso, resumidamente, foi um campeonato de Slam totalmente organizado pelos estudantes
que produziram suas próprias poesias. Coube a mim mediar o convite para a escritora Mel
Duarte, também já conhecida da turma por suas performances de poesia, participar do
evento na escola.

Poderia apresentar outras bem-sucedidas e outras nem tanto na minha prática de


mediação literária escolar, porém reconheço que se não houver o “desconforto” docente em
promover sentido verdadeiro e sensível de experimentação com o texto literário, não será a
proposta de intervenção uma fórmula pronta.

Em tempos difíceis, diante da terrível pandemia que vivemos, no distanciamento social


e interrupção das aulas presenciais, me vi, em diferentes momentos, seguindo em alto mar
sem rumo. A alegoria de navegar por mares desconhecidos me levou a uma etapa formativa
na qual utilizei meu colete salva-vidas na certeza de que, até aqui, sobrevivi a fortes temporais
e naufrágios ao longo dessa viagem pelas Letras.

Foi no curso de especialização que encontrei a possibilidade na releitura de autores


importantes da minha formação inicial, como Antonio Candido e João Adolfo Hansen,
essenciais nessa etapa de aprendizagem, em especial, os estudos sobre oralidade e origem
da literatura brasileira. O resgate de tais conceitos muito me auxiliaram na estruturação da
proposta de intervenção literária, visto a necessidade de se voltar para a formação do Brasil e
às diferentes constituições de nossa (minha) identidade. Desse modo, as leituras de Florbela
Espanca e a subjetividade feminina na voz e escrita dessas autoras foram extremamente
marcantes - desde Teolinda Gersão a Djaimilia Pereira, tratando especificamente da literatura
portuguesa ─, foram fundamentais para a compreensão dos aspectos de territorialidade
dos quais o Brasil possui importantes pontos de convergência com Portugal. Sem deixar
de mencionar a contribuição de Rita Chaves às análises da literatura africana, bem como,
Francisco Noa e importantes autores e obras moçambicanas como a marcante Nós matamos
o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana e os poemas de Paulina Chiziane, para citar alguns
momentos do curso que foram direcionando minha própria perspectiva de estudo. Outro

137
aspecto marcante desse período foi passar pelas disciplinas que problematizaram o ensino
de literatura na atualidade – daí as reflexões propostas pela profa. Maria Amélia Dalvi, bem
como os artigos da profa. Neide Luzia de Rezende a respeito das práticas escolares de leitura
literária e os estudos sobre esse campo me atraíram demasiado interesse, visto que dilemas
nesse campo de ensino, sem dúvida, são incentivadores para o enfrentamento de muitos
desafios na escola atual.

Por fim, mas sem esgotar as tantas vertentes que o percurso formativo me permitiu
vislumbrar, foi nas aulas e, em especial, nas orientações da profa. Lilian do Rocio Borba, que
tratou das pluralidades narrativas das literaturas na história, na língua e na sociedade, bem
como, a desconstrução de Marcos Bagno nessa preciosa jornada de redescoberta linguística
e seus impactos na educação formal que encontrei o caminho deste trabalho.

Mais que apresentar autores e obras nas minhas aulas de Literatura compreendo a
necessidade constante do papel docente de transformação nos modos de dialogar com as
juventudes, além de repensar os modos de ler o texto literário, assim, acredito cada vez mais
na formação do estudante que se reconhece em diferentes culturas e narrativas, atribuindo
significados identitários na experiência humana, vislumbrando a própria complexidade nesse
diálogo de vozes e sentimentos, na diversidade de pensamento, além de proporcionar viagens
a lugares inimagináveis.

Nesse sentido, acredito que o papel (e o grande desafio) do professor de Língua


Portuguesa é ler junto, caminhar junto, compreender junto, como bem aborda o Prof. Rildo
Cosson sobre o campo das práticas de letramento, completando que o acesso ao livro não
é suficiente em garantir um leitor literário. Ainda na busca de me reconhecer e identificar, o
leitor não permanece imutável e estático, mas aflora em si algo novo, em um duplo percurso
feito em direção a si mesmo e ao mundo. Nessa jornada de pouco mais de vinte anos na
educação de jovens leitores, percebo o quanto valorizam aquilo que lhes dá sentido e a arte
literária está intimamente ligada ao que somos e como nos projetamos diante das múltiplas
possibilidades.

3. Fundamentação Teórico-Metodológica
Em consonância com o percurso de estudo realizado até aqui, apresentamos os
referenciais de pesquisa em que estão baseadas nossas discussões acerca da temática e do
problema destacado como objeto deste artigo acadêmico e que fundamentam a perspectiva

138
teórico-metodológica do processo de mediação da leitura literária no contexto das práticas
escolares.

Pesquisas atuais sobre leitura apontam a importância de se discutir as práticas


escolares no que diz respeito à leitura literária (REZENDE, 2018) e às diferentes abordagens
de se conceber o letramento literário (SOUZA & COSSON, 2011). Geraldi (1997) nos ajuda
a compreender o uso do texto na sala de aula como objeto de ensino prioritário das aulas
de Língua Portuguesa, além de destacar a relação do leitor na caminhada interpretativa do
texto literário. Quanto ao processo interpretativo, os apontamentos de Rouxel (2012) nos
esclarecem quanto à noção de sujeito-leitor a partir de experiências de leitura e como a
escola atual lida com essa relação. Por fim, compreendendo a necessidade de estabelecer
processos identitários na perspectiva cultural e de territorialidade, nossa proposta prática
de intervenção retoma os trabalhos de Rezende (2018) e Rouxel (2012), bem como se apoia
nas propostas do círculo de leitura (COSSON, 2014) como caminho possível para fruição e
apreciação estética do texto literário e práticas de ensino que se fundamentam nos modos
de ler que despertem o interesse e, mais, o prazer na leitura literária.

3.1. Práticas Escolares

Quando se trata de discutir as práticas atuais escolares no que concerne à leitura literária,
sabemos que é matéria escolar, por excelência, objeto de ensino previsto nos documentos
orientadores como fundamental na educação básica e, portanto, muito relevante na formação
do jovem. Não se discute, no entanto, sua importância, mas de fato como é conduzida tal
tarefa. Rezende (2018, p. 95) aponta o negativo modo escolarizado dessas práticas “sem
abertura para momentos de efetiva leitura, fruição e percepção estética”, afirmando que
o prazer da leitura tende a se encerrar na conclusão do ciclo fundamental I, ainda nos anos
iniciais. Há um distanciamento entre a idealização do professor e a realidade vivida pelo
aluno, já que a prática de associar as leituras literárias às listas sugeridas pelos vestibulares3
não têm sido atrativas nem na escola pública nem na privada, conforme destaca a autora em
outro estudo (REZENDE, 2011).

Tal abordagem tem se tornado alvo de pesquisadores, visto que há um consenso na


maneira como se conduz o processo de leitura na escola de modo fragmentado e pouco
estimulante para os estudantes do ensino médio, como exercícios de compreensão do texto
do ponto de vista composicional e estrutural e menos do ponto de vista estético. A oferta
de diferentes possibilidades de leitura, na maioria das vezes, é oportunizada na escola, como

3 em São Paulo poucas universidades públicas mantêm as listas de livros para o vestibular, como USP, UNESP e UNICAMP.

139
previstas no Currículo Paulista (2020) a partir de gêneros literários como a literatura juvenil,
a literatura periférico-marginal, o culto (próximo ao erudito), o clássico (no que diz respeito
ao cânone), o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias e as culturas juvenis. No
entanto “mais comum é encontrar situações fragmentadas e dispersas” (REZENDE, 2018, p.
96) em torno dos estilos de época, história da literatura, leitura de resumos ou biografias,
“transformando o que é literário em pedagógico” (SOUZA & COSSON, 2011, p.103). A
proposta oficial do governo estadual paulista alerta ainda que é preciso evitar simplificações
didáticas “como o cinema e as histórias em quadrinhos, que relegam o texto literário a um
plano secundário do ensino” (CP, 2020, p. 70).

Não se pode desvincular a prática de seu agente, nesse sentido, é muito importante que
o docente se coloque atento a essas questões de escolarização da literatura e seus impactos
na aprendizagem, visto que há uma subjetividade no processo de leitura que deve considerar
o leitor e não somente a perspectiva analítica do professor enquanto especialista, tampouco
dos materiais didáticos (ou de apoio) utilizados para ensinar o conteúdo.

Se considerarmos as referências de Geraldi (1997), sendo a materialização do texto o


principal objeto de ensino no componente de Língua Portuguesa, é ele (o texto) também o
próprio objeto de leitura, e, durante muito tempo, a escola retira ou unifica o sentido de algo
que por natureza possui pluralidade, mas não se estagnou, visto que:

(...)as formas de apropriação das reflexões sobre o texto permitiram uma virada, ao menos em
nível de proposta, à medida que se vulgarizaram as reflexões que apontam para a produção
de sentidos, para a importância de conhecimentos prévios do leitor, para os “espaços em
branco” do texto, para suas virtualidades. A escola passa a admitir [...] que o sentido que vale
é aquele que lhe atribui o leitor. (GERALDI, 1997, p. 108).

A questão que se coloca então é sobre o processo de leitura e suas possibilidades. Toda
interpretação é livre na leitura literária? É possível ensinar modos de ler?

O fenômeno do letramento literário aponta na perspectiva da “construção de sentido”


(SOUZA & COSSON, 2011) em que o leitor atribui sentido ao que lê, a partir de seu repertório
de vida e cultura. Dentre os diferentes e variados letramentos (também conceituado como
multiletramentos) existe o literário, com toda sua singularidade. A aproximação do que
Rouxel (2012) vai chamar de implicação do leitor surge a noção de sujeito leitor que “passa
a ser abertamente discutida e levada em conta dentro da esfera didática” (ROUXEL, 2012,
p. 274) entre estudiosos franceses desde o início dos anos 2000, e sem dúvida, alia-se aos
estudos realizados na realidade brasileira.

140
Rouxel (2012, p. 278) apresenta a compreensão/recepção do texto como algo inerente
ao investimento subjetivo do leitor “é o leitor que completa o texto e lhe imprime sua forma
singular”, diferenciando o conceito de leitura analítica (com pouca liberdade interpretativa
do leitor) e leitura cursiva (prevendo a subjetividade do leitor), sobre essa última “leitura
autônoma e pessoal, ela autoriza o fenômeno da identificação e convida a uma apropriação
singular das obras. Favorecendo outra relação com o texto, significa um desejo de levar em
conta os leitores reais” (ROUXEL, 2012, p.276).

A problematização condiz com o fato de romper com uma prática social em que se limita
o texto literário às explicações de um especialista no assunto, seja o docente ou as respostas
dadas pelo material didático. Nesse caso, a leitura cursiva pressupõe uma “liberdade”
na leitura literária, no sentido de significação (ou ressignificação) a partir da realidade e
experiência do sujeito-leitor. A autora sugere ainda que as práticas escolares desenvolvam
uma “didática da implicação”, ou seja, incentivando a apreciação estética do texto, “acolher
os afetos dos alunos” e promover as impressões de prazer ou desprazer sobre a leitura, livre
de censuras e preconceitos. (ROUXEL, 2012, p.281).

Sendo assim, a aprendizagem está também relacionada à condição de lidar com a


pluralidade na produção de diferentes sentidos, desde o sentido dado pelo autor, como as
pistas fornecidas pelo próprio texto que dialoga também com o sentido que o leitor atribui. A
percepção de um sujeito-leitor que se coloca como interpretante4 do texto é algo fundamental,
se pressupomos as possibilidades de sentidos desse objeto, daí a importante clareza docente
sobre a intencionalidade pedagógica, com estratégias de leitura propositadas, visto que “o
texto se oferece sempre como uma tensão entre as leituras que lhe são previstas e as leituras
que, imprevistas, podem ser construídas” (GERALDI, 1997, p.110). Sobre a total liberdade de
interpretação, além do que o texto permite compreender, Geraldi complementa:

(...)a questão já não é ‘corrigir’ leituras com base numa leitura privilegiada e apresentada
como única; mas também não é admitir qualquer leitura como legitimável (ou legítima), como
se o texto não fosse condição necessária à leitura e como se neste o autor não mobilizasse
os recursos expressivos em busca de uma leitura possível. Trata-se agora de reconstruir,
em face de uma leitura de um texto, a caminhada interpretativa do leitor [...] Não é por
nenhuma opção ideológica prévia que é necessário dar a palavra a quem foi silenciado: é uma
necessidade linguística ouvi-la se se quiser compreender a atividade com textos como uma
atividade de produção de sentidos. (GERALDI, 1997, pp.112,113)

4 Vide a noção de interpretante de Peirce. Apud Geraldi, 199, p.109.

141
3.2. Prazer em ler: processos identitários na perspectiva cultural e de
territorialidade

A relação do jovem leitor com o texto literário na escola atual passa pela relação dele
com a própria escola, enquanto comunidade que o identifica. Como promover a motivação, a
vontade de ler, premissas necessárias para a ação docente, se há outros instrumentos muito
mais imediatistas e atraentes como o universo das redes sociais nos meios eletrônicos e
digitais? Nesse caso, é de suma importância que o professor também seja um leitor que
encontre prazer no ato de ler e consiga despertar o mesmo nos estudantes. Assim como
questionado por Rezende (2011) a questão que se coloca a partir daí é, portanto, “para que
ensinamos o que ensinamos”?

Além de ser o espaço formal de sistematização do conhecimento, a escola representa o


lugar possível de interlocução da cultura juvenil. Sem dúvida, essa cultura não está limitada
pelos muros da escola, mas é nela (na escola) que despontam manifestações das mais variadas
e plurais formas. No entanto, é fundamental que os formadores estejam atentos aos sinais
e anseios da juventude, tal como dar “voz” e possibilidade de intervenções no interior da
escola, permitindo aos jovens conhecerem-se respeitando as diferenças. Neide L. Rezende
(2018, p. 101) citando os estudos de Dussel sobre cultura, diz que:

(...)o respeito à diferença parece ser uma característica da cultura desses jovens, como
também a defesa ferrenha de suas identidades – como os movimentos étnico-raciais, os
artistas de literatura marginal-periférica, as mulheres poetas do slam etc. Uma característica
desses movimentos é que a separação entre produção e recepção é pouco evidente. Em São
Paulo, nos saraus da periferia, por exemplo, todos são chamados a se expressar. (REZENDE,
208, p.101).

A leitura literária passa por tal identificação quando: “torna possível ao leitor espelhar-
se no que lê, sendo a identificação um primeiro e importantíssimo passo para experimentar o
prazer na leitura” (REZENDE, 2018, p. 98). Assim, a leitura pode ser tão significativa, do ponto
de vista cultural, territorial e identitário “mais que um lugar de expressão do sujeito leitor, a
leitura é um lugar de existência” (ROUXEL, 2012, p. 278).

Como acompanhar ou até avaliar a aprendizagem dos estudantes? Diante das práticas
escolares, como saber se de fato a prática de leitura literária está possibilitando a apreciação
estética? Ora, ainda que as impressões sejam compartilhadas em encontros colaborativos
ou registros de experiências com a leitura, a expressão do que realmente se sente não é
facilmente verbalizado:

142
Se o espaço privado parece ser por excelência o lugar da expressão do sujeito-leitor, vemos
que as modalidades de seu dizer são variáveis, indiretas e pouco explícitas. A ele é permitido
escolher o silêncio (...) (ROUXEL, 2012, p.277)

Nesse sentido, uma sugestão para o acompanhamento avaliativo seriam os diários de


leitura que permitem:

[...]a existência de uma relação pessoal com a obra lida e de traços do processo de elaboração
identitária. O jovem leitor exprime suas reações diante do texto e se interroga sobre aquilo
que sente (ROUXEL, 2012, p.276)

como também as propostas do círculo de leitura, na estratégia apresentada por Cosson (2014)
enquanto forma de promover o reconhecimento cultural e identitário nas narrativas, abrindo
caminhos possíveis na prática escolar para a leitura de textos literários.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
Em que medida a apreciação e fruição da leitura literária na escola promovem a
autonomia e identificação nessa juventude? A escola atende à necessidade dos jovens
mergulhados na comunicação, informação de todo tipo em um universo de empoderamento
e distanciamento de realidades e interesses? Ou será que os interesses são os mesmos, mas
seguem caminhos diferentes?

Os movimentos de resistência estão cada vez mais no universo dos nossos jovens de
periferia, com o qual eu me identifico e compartilho dos anseios.

Assim, ao concluir o curso de Literaturas de Língua Portuguesa oferecido pela UNIFESP


pude reafirmar a importância do papel investigativo docente e o quanto é preciso estar
atento aos sinais latentes dessa juventude que se coloca como protagonista de suas escolhas
e narrativas.

Além de apresentar uma proposta possível para prática de leitura do texto literário,
vislumbrando a fruição e apreciação estética, na consideração do sujeito-leitor (do docente
e do estudante) é imprescindível colocar em discussão o processo de mediação da leitura
literária na perspectiva docente, assim o objeto de pesquisa consiste também na relação
entre a prática de mediação do texto literário, dos participantes dos círculos de leitura,
refletindo sobre práticas escolares que antecedem esta ou qualquer outra proposta.

143
A obra sugerida foi organizada por Mel Duarte e tem como título Querem nos calar:
poemas para serem lidos em voz alta. Considerando como estratégia os círculos de leitura
(COSSON, 2014) tendo o público específico turmas de ciclo final do Ensino Médio (3ª série).
A intervenção prevê a duração de um semestre com encontros semanais, preferencialmente
com duração de uma hora e meia. A prática de letramento literário baseia-se no conceito
de círculo de leitura estruturado, que obedece a uma organização previamente estabelecida
com papéis definidos para cada integrante e um roteiro para guiar o encontro, além de
atividades de registro das impressões antes e depois das discussões. Além disso, auxilia o
docente no direcionamento de ações para uma leitura mais fluida com o objetivo de motivar
os estudantes a se envolverem na leitura literária e conduzir a compreensão, a partir das pistas
que os textos fornecem. A escolha da coletânea de poemas deve-se ao fato de considerar
os interesses dos estudantes ao trazer temas que reforçam a identidade local, valorização da
cultura territorial e culturas juvenis. A reflexão sobre o processo de formação histórica no
período de colonização, questões que afligem o universo feminino e que por muito tempo
estigmatizou o papel da mulher na sociedade, sexualidade e orientação sexual entre tantos
temas marcados por uma linguagem que fere e cala grupos menos favorecidos. O que tudo
isso (e mais tanto na apreensão subjetiva do leitor) diz de nossa identidade e territorialidade?

Como motivação inicial sugere-se a apreciação de vídeos de campeonatos do ZAP! (zona


autônoma da palavra, cuja idealizadora foi a poeta Estrela D’Alva) e campeonatos brasileiros
e internacionais como Slam BR e Copa do Mundo de Poesia Slam (D’ALVA, 2019).

Considera-se fundamental apreciar e ler junto desde o título e o que ele nos antecipa
dessa antologia de poemas no levantamento de hipóteses sobre a temática e suas abordagens.
Na sequência, a efeito dos títulos e história de vida das autoras, organizar coletivamente uma
ordem de escolha para a leitura dos poemas. O diálogo estabelecido pelas possibilidades de
interpretação será mediado pelas pistas que os textos apresentam (GERALDI, 1997).

Quanto à concepção de leitura do texto literário, é essencial a leitura integral da obra


durante os encontros, estabelecendo uma pausa entre um poema e outro para apreciação,
fazendo diferentes levantamentos de compreensão da leitura e recondução das próximas.
A julgar que a leitura proposta pode ser de fácil realização no tempo da aula, mas de ampla
pluralidade de compreensão para os leitores iniciantes, dada a linguagem com diferentes
referências sociais, históricas e culturais. Para isso, as estratégias de acompanhamento
de leitura preveem a socialização oral e coletiva das impressões de leitura, aproximações
com outros textos, leitura pontual de trechos a fim de analisar estilisticamente os recursos
expressivos e seus efeitos de sentido, também em uma leitura em voz alta e seu impacto na
recepção. Vale lembrar que o Slam proporciona um momento de apreciação artística tanto

144
na declamação dos poemas, quanto nas performances dos poetas, respeitando a escuta dos
ouvintes e atenção à apresentação.

Consideram-se pertinentes algumas intervenções no acompanhamento da leitura


literária de modo a promover experiências diversas na leitura dos poemas a começar pela
interpretação lógica: superfície textual (compreensão das palavras no texto), pelas questões
linguísticas mais simples (chamar atenção para as vozes femininas e o lugar de luta possibilitado
pelas palavras), pelos significados mais aparentes (impressões no enunciador do poema). Por
fim, aprofundar na interpretação hermética, nas questões linguísticas mais complexas (como
por exemplo, alegoria ou metáfora do ponto de vista da identidade cultural ou territorial da
voz feminina). Tal estratégia de leitura consiste em um modelo sugerido por Humberto Eco
(2016) e Rildo Cosson (2014) que, por sua vez, considera dois momentos de interpretação no
processo de ensino-aprendizagem de leitura literária: interior e exterior.

Para a avaliação da leitura literária algumas etapas precisam ser previstas. Em primeiro
momento, durante o processo de leituras com a produção de diário de bordo (registros escritos),
relatos de experiência (registros orais). Após o processo de leituras com exposição cultural em
curadoria de temas sobre identidade, territorialidade nas obras estudadas (relações culturais,
sociais, econômicas e políticas no Brasil) e a promoção de um campeonato de poesia falada
– Slam – em grupos organizados pelos próprios estudantes. A promoção de uma reflexão
no qual o sujeito-leitor resgata seu repertório cultural e suas vivências pode promover uma
riqueza na apreciação e fruição do texto literário. A organização do campeonato coloca o
estudante no centro das ações, evidenciando o protagonismo juvenil.

5. Análise, Discussão e Resultados Esperados


(...) eu o convoco pra essa guerra não declarada. Vamos
usar a nossa arma, que é a palavra, e sim, se for preciso,
pegaremos em armas. Nossos irmãos já morrem por
nada, então dessa vez morremos por uma causa, que é a
luta pela vida, a luta pela liberdade.
(Convocação, Negafya)

O processo de mediação da leitura do texto literário no espaço escolar de modo


estruturado, seja utilizando uma determinada metodologia ou outra, não significa desassociar
ou desconsiderar o repertório que os estudantes possuem. Pelo contrário, pressupõe que tais

145
conhecimentos dialoguem entre si e produzam possibilidades de assimilação das obras com a
própria vivência do leitor, provocando assim o interesse por mais e mais leituras, em especial,
as literaturas de língua portuguesa no reconhecimento de identidades, deslocamentos e
territorialidades.

Ainda que o círculo de leitura seja a metodologia adotada em nossa sugestão de


leitura, vale destacar que o conflito de práticas permanece no bojo das discussões, espera-
se, portanto, conduzir caminhos facilitadores para o sujeito-leitor em sua interpretação, em
sua trajetória individual (mas não solitária) e/ou coletiva, potencializando as multiplicidades
de leituras dos textos literários.

Para nos ajudar em tal proposta de leitura da obra Querem nos calar – poemas para
serem lidos em voz alta, sugerimos um olhar atento ao que diz o documento norteador Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) em sua última homologação, de 2018, para a etapa do
Ensino Médio no modelo atual, nas duas primeiras competências da área de Linguagens e
suas Tecnologias

Compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas culturais (artísticas,


corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos
nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de
participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica
da realidade e para continuar aprendendo [...]
Compreender os processos identitários, conflitos e relações de poder que permeiam as
práticas sociais de linguagem, respeitando as diversidades e a pluralidade de ideias e
posições, e atuar socialmente com base em princípios e valores assentados na democracia,
na igualdade e nos Direitos Humanos, exercitando o autoconhecimento, a empatia, o diálogo,
a resolução de conflitos e a cooperação, e combatendo preconceitos de qualquer natureza.

Em consonância à proposta do Currículo Paulista (CP), com homologação em agosto


de 2020 para a etapa do Ensino Médio, no que trata a prática de leitura literária tem como
fundamento a formação dos jovens na construção do projeto de vida, bem como a promoção
do protagonismo juvenil nas práticas socioculturais que envolvem o uso de diferentes
linguagens. No campo artístico-literário, ainda pressupõe a BNCC:

[...] a ampliação do contato e a análise mais fundamentada de manifestações culturais


e artísticas em geral. Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário e do
desenvolvimento da fruição. A análise contextualizada de produções artísticas e dos textos
literários, com destaque para os clássicos, intensifica-se no Ensino Médio. Gêneros e formas
diversas de produções vinculadas à apreciação de obras artísticas e produções culturais
(resenhas,  vlogs  e  podcasts  literários, culturais etc.) ou a formas de apropriação do texto
literário, de produções cinematográficas e teatrais e de outras manifestações artísticas

146
(remidiações, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc.) continuam a ser considerados
associados a habilidades técnicas e estéticas mais refinadas. (BNCC, 2018, p. 503)

Quanto ao Currículo Paulista (2020), o documento se refere à prática de leitura tanto nas
habilidades previstas para a área de Linguagens e suas Tecnologias como especificamente no
componente de Língua Portuguesa que busca atender a formação na contemporaneidade,
bem como às expectativas dos jovens, fortalecendo a sua capacidade em se posicionar e
participar dos debates das diferentes esferas do conhecimento ou de temas das comunidades
locais, sociais, políticos e econômicos, a saber:

O contato com literaturas não canônicas também deve ser privilegiado, assegurando ao
aluno a possibilidade do desenvolvimento de um olhar crítico sobre as obras produzidas,
seus contextos de produção e de circulação, valorizando as diversas possibilidades de olhar/
refletir sobre o mundo (CP, 2020, p.70)

Nessa perspectiva a prática escolar de leitura literária, portanto, intenta proporcionar


uma leitura de mundo dos contextos de produção e recepção estética, além de estabelecer
diálogos e sentidos às próprias vivências do sujeito-leitor. Desse modo, nosso olhar ao sugerir
tal obra centra-se no reconhecimento identitário do estudante nas experiências da poesia
falada, no livro que apresenta uma coletânea de poemas escritos por mulheres, organizado
pela artista Mel Duarte.

5.1. A luta pela palavra

Nesse caminho de leitura entende-se a importância revolucionária que se centra na


escrita feminina, mas sobretudo, na produção da mulher que revela historicamente sua
subjetividade na voz que ecoa dos textos, conforme Rezende (2018, p. 97): “quando lida, a
obra dialoga e mobiliza ideias e sentimentos do sujeito que a lê no seu presente”.

A oralidade sugerida desde o subtítulo da obra (poemas para serem lidos em voz
alta) simboliza, portanto, o rompimento com a limitação de públicos determinados, ou
seja, aqueles que dominam o código da escrita, extrapolando o universo da palavra nas
diferentes manifestações e sentidos (inclusive a linguagem corporal na performance do slam)
aproximando assim da identidade das autorias femininas e de quem possa se reconhecer
representado nessa arte. Entende-se que há uma luta travada que ocorre no campo das
ideias, sendo a principal arma a palavra.

A historiadora e poeta recifense Bell Puã (DUARTE, 2019, pp. 30-31) explícita e sintetiza
que a guerra feminina está travada nos espaços físicos “na mais movimentada das avenidas/

147
de short, saia ou calça comprida/ espaço público é cenário de guerra” (...) e na subjetividade
que sabe se deslocar temporal e territorialmente para ressignificar seu presente, visto que as
batalhas travadas por quem já lutou por esse espaço serão fortalecidas nas conquistas atuais:

(...)eu sou isto: apenas uma moça latino-americana/ me agarro às lutas do passado/ pra
ter força no presente/ não defendo vidraça de banco/ defendo gente/ ao que é injusto,
sou desobediente (...) os pobre cheirando cola/ e os rico, cocaína/ era uma vez um Brasil
conservador / que revolucionou/ com o poder das minas.

Ainda nos versos apresentados, a despreocupação com a norma culta da língua revela
a identidade de quem quer marcar seu espaço de fala. Para a consagrada idealizadora dos
poetry slams (batalhas de poesia falada) no Brasil, Roberta Estrela D’Alva (DUARTE, 2019, p.
194), não tem como negar que há objetivo e estratégias para se vencer essa guerra “a arte
como espada pra vencer a opressão/ empunho palavras”.

Aqui nos propomos a uma possibilidade de trabalho na rede estadual de ensino de São Paulo,
oportunizando no tempo escolar organizado a cada semana, a leitura dos poemas em grupos
estruturados nos círculos de leitura que permite, além da apreciação artística, a réplica e possível
coproduções na discussão de questões latentes da juventude como aponta a BNCC “os processos
identitários (...) respeitando as diversidades e a pluralidade de ideias e posições” como a luta feminina
por colocar temáticas como sexualidade, luta de classe, machismo, feminismo branco, feminismo
negro, entre tantas outras possibilidades.

Ainda sobre a importância da palavra como reconhecimento da identidade feminina, reforça


nossa análise o depoimento em entrevista de Paulina Chiziane, escritora moçambicana:

[...] reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha


volta. A condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no papel
as aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as veja, as conheça e reflita
sobre elas. Se as próprias mulheres não gritam quando algo lhes dá amargura da forma
como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam [...] Muitas pessoas
acreditavam e ainda acreditam que a mulher não é capaz de escrever mais do que poeminhas
de amor e cantigas de embalar. Consideraram-me uma mulher frustrada, desesperada,
destituída de razão. Foi um momento terrível para mim. Mas, por outro lado, estas atitudes
tiveram um efeito positivo porque forçaram-me a demonstrar pela prática que as mulheres
podem escrever e escrever bem. (grifo nosso, CHIZIANE, 2013)

Tal vivência reafirma a invisibilidade da mulher na sociedade moçambicana, que muito se


aproxima da realidade de outras territorialidades, inclusive do Brasil, em que as necessidades,
vontades e capacidades da mulher são anuladas violentamente em prol de atender a uma
expectativa social. A pós-modernidade em que vivemos revela a transformação desses

148
paradigmas, daí a importância de colocar em alto e bom tom as vozes femininas que não
querem (nem podem mais) se calar.

5.2. O feminismo negro, a periferia e o acesso ao conhecimento

Na pluralidade da escrita das autoras selecionadas para antologia organizada por Mel
Duarte, vale destacar o cuidado em representantes de todas as regiões do Brasil. Enquanto
artistas, militantes, integrantes de coletivos essas mulheres escritoras conhecem muito bem
onde vivem e a realidade social segmentada em classes, portanto, o lugar de onde falam,
contam sobre histórias vivenciadas, narram uma nova (antiga) história da sua ancestralidade
e o acesso limitado aos bens de consumo e conhecimento daqueles que nascem e vivem nas
periferias do Brasil. Histórias que, muitas vezes, se mantiveram à margem de um protagonismo
na história contada nos livros didáticos, ao menos pelo recorte do que se conhece até nossos
dias. Ocupar o lugar de autoras, protagonistas no discurso possibilita às mulheres negras
dessa obra muito mais do que contar sob sua perspectiva, mas revelar e transmutar uma
relação de poder explícita desde o período colonial e implícita nas simbologias por uma
dominação que se manteve velada. Assim nos mostra a poeta Mariana Felix:

Eu quebro ele é na palavra/ Eu ando armada! Da melhor arma! Consciência e sensibilidade


é marca/ Em cada uma de nós que é registrada!/ Também sangro a cada mina violentada!/
Eu entendo a guerra! (...) Empoderar as minas também é ensiná-las a não marcar bobeira (...)
Eles não conseguirão me transformar em uma pessoa violenta/ Pra que com a minha ideia ele
concorde (...) Sabemos pensar, olha que sorte!. (DUARTE, 2019, pp. 145-146)

O empoderamento passa pelo conhecimento que Meimei Bastos, arte-educadora


comprometida com a população negra e periférica, reitera em diferentes poemas e vários
versos:

(...)mesmo que a mim fique imposto/ o nada/ que me obriguem a ser/ um ser sem direito/ sou
calo em mãos e pés/ resistentes/ a teimosia nas universidades/ excludentes/ o compromisso
da continuidade/ a luta de um povo/ sou a resistência ao não! (DUARTE, 2019, p. 173)

A luta é resistência, que, por sua vez, passa pelos saberes da educação formal e não-
formal. Daí que a autora fortaleça a necessidade de lutar! - com o uso do ponto de exclamação
para evidenciar que há sentimento - como forma de sobrevivência (para não se abater) e
deixar um legado para as próximas gerações - pelos que ainda vão nascer –

(...) (em tempos sem esperança) em tempos como este/ é ainda mais importante/ lutar (...)
é preciso lutar!/ ao lado e pelas/ muitas minorias/ que dia a dia/ enfrentam e/ resistem/ à
escassez imposta (...) há coisa nas entrelinhas/ que não foram escritas/ nem lidas,/ mas são

149
verbo./ é preciso lutar!/ pra não se deixar abater./para que o horizonte esteja mais próximo/
para os nossos,/ pelos que ainda vão nascer (DUARTE, 2019, pp. 174-175)

Assim vivenciamos diariamente a necessidade de um reparo histórico tão bem expresso


pela poeta que se reconhece marginal em sua arte, Bor Blue, o que faz dela um instrumento
de transformação dessa realidade, na certeza de que a luta travada pode ser vencida pelo
poder da palavra:

(...) vamos continuar lutando lado a lado, corpo a corpo, na palavra ou no soco, não vamos
aceitar mais mortes, ninguém cala, não tá dando pra dá o outro lado do rosto pra bala. Eu
pego a caneta, tu pega arma, eu conquisto na palavra e tu dispara, eu atinjo vários e tu,
apenas um, a gente vai crescendo até não caber em lugar nenhum. (DUARTE, 2019, p. 41)

Desse modo, anseios e histórias de povos negros, há tempos silenciados, poderão cada
vez mais anunciarem suas vozes em narrativas de representação e identidade.

5.3. O poder na subversão da/na língua

A língua, como parte da cultura, revela a origem e identidade de um povo e pode ser uma
forte arma de poder na dominação de outros. Conhecedores dessa lógica, os colonizadores
portugueses souberam utilizar essa força a seu favor. Sabemos que a língua portuguesa
foi essencial para a instauração de uma cultura europeia no Brasil e nos países africanos.
No prefácio do livro analisado, Conceição Evaristo (DUARTE, 2019, pp. 13-15) chama de
“gramática do cotidiano” a forma de expressar das escritoras, no modo inventado, nascida
no meio do povo, um “instrumento de proposição de luta começa pelo próprio não uso da
norma da língua” passa pelo processo de produção artístico dessas mulheres.

É Bell Puã quem explícita ao provocar e questionar o uso da norma culta: “eles querem
que/eu use língua formal/e muitas metáforas/que eu jogue o jogo da vida/com suas táticas/
fazer rap? ” (DUARTE, 2019, p. 34). Sabe-se que a formalidade na língua é uma forte maneira
de se incluir no meio elitizado da sociedade e conquistar algum prestígio, que, por outra
natureza, é negado ou inacessível ao pobre, morador de periferia. O rap (mencionado por
Bell Puã), assim como foi o samba no início do séc. XX, é o ritmo da periferia, “questiona
silenciamentos, o desconhecimento, possibilita e dá voz, nomeia, dá existência ao que
estava invisibilizado” (Borges, 2018), daí a importância da representatividade. A jovem poeta
recifense continua em seus versos de protesto:

(...) literatura marginal é coisa de/não intelectual? (...)vou de Platão/e também de Racionais/
saio da caverna/pra escutar fatos reais/pode pá/808 crew, Femigang, Alquimia/sem masságe

150
na mensagem/no meu mundo das ideias/ mentalizo Sabotage/ o meu amor platônico/ é um
mundo sem maldade/ rap é compromisso/ não é viagem!/é verdade, Freud explica.../ mas
Criolo e Emicida/escancaram a verdade! (DUARTE, 2019, pp. 34-35)

As referências são claras – grupos e rappers a quem se refere são pessoas negras e
periféricas: Alquimia, Racionais, Sabotage, Emicida, Criolo, 808 Crew e Femigang, sendo os
dois últimos grupos de rap feministas e pernambucanas. Dar voz a um público excludente é
forte instrumento para atingir todas as camadas sociais, como a música, mas também, o slam
ou poema falado. Nesse aspecto, o rap e a poesia falada têm em comum serem gêneros que,
desde sua origem, trazem a voz dos pobres, produzidas pelos trabalhadores, moradores da
favela, do morro, das comunidades que retratam a realidade em que vivem e a musicalizam,
atingindo classes que de outro modo não poderiam conhecer tais vivências. É a legitimação
da arte popular como instrumento de luta.

Em Je ne parle pas bien (“Eu não falo bem”) a poeta Luz Ribeiro faz um trocadilho a partir
da irônica repetição de versos que intitula seu poema confrontando a tradição europeia e
completa:

(...)eu tenho uma língua solta/ que não me deixa esquecer/ que cada palavra minha/ é
resquício da colonização // cada verbo que aprendi a conjugar/ foi ensinado com a missão/ de
me afastar de quem veio antes (...) esse meu português truncado/ faz soar em meus ouvidos/
o lançar dos chicotes/ nas costas de couros pretos (...) tiraram de nós o acesso/ a ascensão
(...) nossa revolução surge e urge/ da nossa boca/ das falas aprendidas/ que são ensinadas/
e muitas não compreendidas/ salve, a cada gíria (...) o que era pra ser arma de colonizador/
está virando revide de ex-colonizado/ estamos aprendendo as suas línguas/ e descolonizando
os pensamentos/ estamos reescrevendo o futuro da história/ não me peçam pra falar bem (...)
eu não falo bem de nada/que vocês me ensinaram”. (DUARTE, 2019, pp. 130-132)

A aparente contradição em reescrever (ou escrever de novo) mas sem repetir uma ação
que não aconteceu e se afirma realizar no futuro (reescrevendo o futuro da história), ou seja,
um porvir que muda o rumo do que se viu até então. A negação do falar bem ─ “não me
peçam pra falar bem” ─ torna ambígua a ideia: atender a norma culta da língua seria o falar
no padrão culto da língua portuguesa e a outra possibilidade o inverso do falar mal de algo
ou alguém. E conclui dizendo que “eu não falo bem de nada” e completa no verso seguinte
(lembrando que na poesia falada é possível além de uma entonação na leitura, uma pausa
intencional) para então finalizar “que vocês me ensinaram” reside na revolução que está
posta e é urgente.

Nesse sentido, destaca-se que a espontaneidade da manifestação da arte oral produzida


pelos falantes no Brasil, desde os povos indígenas às tribos africanas que se misturavam aos

151
povos do sertão do país, portanto, muito popular e pouco valorizada, ficou estigmatizada sob
a perspectiva do status quo pós-escrita:

A oralidade é mais natural que a escrita, artificial por definição. Entendido, ao tempo, como
aquele que não está entre os melhores, o “vulgo” todo fala, mas só o “aristocrata”, de origem
e por direito, escreve. Antes dos ideais iluministas, não se entendia como obrigação do estado
a alfabetização da população. Só sabia ler e escrever o cristão que tivesse recurso para pagar
preceptores particulares ou conseguisse estudar numa das ordens religiosas (MARQUES &
LIMA, 2020, p. 5).

No Brasil colonial, parâmetros estéticos se contrapõem a uma oratória chamada literária


que, por sua vez, vincula-se, necessariamente, a uma produção escrita que a antecede.
Sendo assim, Querem nos calar – poemas para serem lidos em voz alta, revela a necessidade
de ocupar os espaços antes negados, no caso a escrita e a fala, aos menos favorecidos. O
privilégio da escrita era para poucos, bem poucos, mas se ainda o é, a palavra falada insere e
não exclui. Faz parte da luta, agregar, ampliar e reiterar a ocupação que lhes foi negada.

Conceição Evaristo, em entrevista, ao falar de sua admiração pela autora de Quarto


de despejo, Carolina Maria de Jesus, traduz a importância de povos desprivilegiados em
ocupar espaços antes negados e inacessíveis, passa pela ampliação de uma criação literária
brasileira que exige novas formas de compreensão da literatura “quebra com a hegemonia
literária liderada por autores brancos – homens e mulheres -, e chega se apropriando da
língua, do texto literário, desse desejo da literatura a partir das classes populares” ratificando
seu entendimento sobre a gramática do cotidiano e uma linguagem acessível como forma de
resistência e ocupação (Conceição Evaristo, 2021).

Ainda sobre a transgressão de um padrão linguístico que dita normas, a poeta Luiza
Romão (DUARTE, 2019, p. 118) no poema Número de registro alegoriza a luta no rompimento
do padrão das normas linguísticas como a discordância (e nova ordem) de artigos, substantivos,
adjetivos “a filho não ter o filiação da pai/ no certidão de nascimento/ é hábito antiga/ agora
a mãe exigir direito à aborto/ é uma crime de vida// em alguns casos/ não só a gramática
sofre concordância de gênero” e toca na ferida de privilégio masculino em detrimento ao
silenciamento da mulher em suas escolhas e decisões.

5.4. Voz e grito, história e existência, oralidade e identidade

Tratar de questões tão próprias do universo feminino, marcado pela violência simbólica
nas mais variadas formas e relacionar a categorias interpretativas que se convergem: luta
e palavra (falada e escrita), foram pressupostos da análise dos poemas, revelando assim,

152
autorias de literatura de Língua Portuguesa e a construção identitária. Não se trata de uma
voz isolada, mas o coro de várias vozes cansadas de sofrer.

Ao que parece, há certa subversão da ordem ao ler em voz alta, como se um ciclo se
cumprisse para dar início ao novo, num futuro reescrito, também sob a perspectiva histórica,
de existência e resistência, visto que:

(...) a experiência de ler algo em silêncio, como hoje, é algo muito recente na história da
leitura. À época [séc. XVI e XVII], tudo era pensado para ser lido em voz alta ou, pelo menos,
de maneira murmurada (...) um bom texto literário, neste período, é aquele que cai bem aos
ouvidos, para além de sua escrita bela e rigorosa (MARQUES & LIMA, 2020, p.9).

Não mais rigorosa do ponto de vista linguístico como no período em questão, pondo
fim às amarras da língua que se pretende dominadora, mas sem dúvida bela e representativa
aos tempos em que vivemos.

[Somente] A partir de meados do século XVIII, o vocábulo literatura vai assumindo acepções


mais próximas das que conhecemos hoje [...] ler e escrever era, de saída, uma ação política,
uma confirmação de posições estamentais imóveis. Muitos anos vão se passar para que a
literatura seja considerada um gesto subversivo, tanto para quem a produz quanto para que,
a consome (MARQUES & LIMA, 2020, p. 13).

Sim, fazer arte é também fazer política, romper regras, viver o que se quer viver, liberdade
em exprimir o que quiser. A síntese da identidade feminina na escrita e na oralidade se traduz
na voz da poeta Rayane Leão no poema de encerramento do livro e de nossa análise:

não serei anônima

falarei meu nome repetidas vezes


contarei sobre todas as que vieram
antes de mim
uma por uma
não adianta tapar os ouvidos
porque cicatriz aberta
não ecoa só por fora
mas por dentro
verão minha existência
escorrendo
em todos os becos
em todos os muros
em todas as margens
em todos os centros

153
se toda história importa
e se só podemos mudar
aquilo que nomeamos
então seremos obras
com título, início, meio
e sem fim

audre lorde já dizia


se erga, diga EU SOU
e ninguém poderá te apagar
teu silêncio
não vai
te proteger

então grite
isso não vai te fazer
inabalável
mas toda mulher que fala
é invencível.

(DUARTE, 2019, pp. 203-204)

5.5. Resultados Esperados

Em nossa proposta de intervenção com a leitura dos poemas falados baseada em práticas
escolares que se detenham na intencionalidade docente, apoiadas nos diferentes modos de
ler e compreender das juventudes, espera-se contribuir para que tais ações promovam o
desejo, a vontade de ler, diante da pluralidade de sentidos que a subjetividade literária nos
permite, mas também a ação reflexiva docente ao utilizar o texto literário como objeto de
ensino.

A identidade do leitor e seu reconhecimento territorial na obra são pontos urgentes e


necessários para a atração do interesse do público em questão, que, por sua vez, significam e
ressignificam suas vivências, seus pensamentos, nas diferentes culturas juvenis. Dessa forma,
é com a literatura que esperamos abrir caminhos para tais práticas escolares mediadas pela
crítica e livre de preconceitos nos diálogos textuais, autores e autoras que produzem arte,
estética e estilisticamente qualitativa.

154
6. Considerações finais
O objetivo desta pesquisa centrou-se na proposta de intervenção, pautada no
reconhecimento da identidade e da territorialidade na perspectiva plural de apreciação do
texto literário para estudantes do final da educação básica, mais precisamente, concluintes do
ensino médio. Ainda que tal intervenção não tenha sido colocada em prática, neste momento
conclusivo da pesquisa reafirmo o quanto o curso de especialização me proporcionou uma
experiência formativa no sentido de reorientar algumas práticas escolares, em certos
momentos, pouco reflexivas e que pouco dialogavam com os interesses dos estudantes,
lembrando o que me disse em certa ocasião uma colega professora, isto é, que “a arte precisa
ser frequentada”. É isso, o texto literário precisa ser lido e, se for o caso, lido junto, lido nas
diferentes formas que se quiser ler, dar voz e reconhecimento a quem lê.

Acredito que a leitura da obra sugerida, Não vamos nos calar: poemas para serem
lidos em voz alta, diante do que hoje compreendo a partir da noção de sujeito-leitor e dos
processos de recepção do texto literário, nos aproximam de universos temáticos muito
ligados ao jovem da periferia, com quem tenho direto contato em minha realidade como
professora da rede pública estadual do município de Jandira na grande São Paulo. Assim
como as culturas juvenis estão em constante transformação, o fazer docente também deve
estar. A literatura é libertadora e transformadora, mas para que haja essa compreensão nos
jovens leitores, é essencial que o seja, antes, na identidade docente.

Aliás, o mote da análise deste trabalho foi me colocar no papel do sujeito-leitor livre
das preocupações com a mediação sob os moldes de uma prática condicionada a “conduzir
leitores”. Do contrário, encerro essa etapa na certeza de caminhos abertos para novos
olhares quanto aos modos de ler na escola e às diferentes possibilidades no reconhecimento
identitário e territorial que a leitura literária permite a todos que se propõem a mergulhar
em tal universo.

155
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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pesquisa em literaturas de língua portuguesa. In: Identidades, Territórios e Deslocamentos:
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ROUXEL, A. Práticas de Leitura: Quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor?
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SOUZA, R. J. de; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. In:
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Virtual do Estado de São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 101-107.
APÊNDICE A

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do(a) Cursista: Lídia Juliana Rodrigues Moraes

1.
1.1. Público-alvo: estudantes da 3ª série do Ensino Médio.

1.2. Tempo de Duração: um semestre com encontros semanais de 1h30.

1.3. Definição da prática de letramento literário: círculo de leitura estruturado no contexto escolar.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida: obedece a uma organização previamente
estabelecida com papéis definidos para cada integrante e um roteiro para guiar as discussões, além de
atividades de registro das impressões antes e depois dos encontros.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos: auxiliar o
docente no direcionamento de ações para uma leitura mais fluida com o objetivo de motivar os estudantes
a se envolverem na leitura literária e conduzir a compreensão, a partir das pistas que os textos fornecem.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s): Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. Livro
organizado por Mel Duarte com poesias de 18 escritoras.
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário(s):
A escolha da coletânea de poemas deve-se ao fato de considerar os interesses dos estudantes ao trazer
temas que reforçam a identidade local e valorização da cultura territorial e culturas juvenis.

158
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário
Nome do(a) Cursista: Leonardo Silva Rocha
Polo: Interlagos

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura: motivação inicial é apreciação de vídeos de
campeonatos do ZAP! (zona autônoma da palavra, cuja idealizadora foi a poeta Estrela Dalva) e campeonatos
brasileiros e internacionais como Slam BR e Copa do Mundo de Poesia Slam.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas: considera-se fundamental apreciar e ler junto desde o título e
o que ele nos antecipa dessa antologia de poemas no levantamento de hipóteses sobre a temática e suas
abordagens.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária: na sequência, a efeito dos títulos e história
de vida das autoras, organizar coletivamente uma ordem de escolha para a leitura dos poemas.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação: é fundamental que haja o diálogo
possível que será estabelecido pelas possibilidades de interpretação e mediado pelas pistas que os textos
apresentam.

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário: leitura integral da obra durante os encontros,
estabelecendo uma pausa entre um poema e outro para apreciação, fazendo diferentes levantamentos de
compreensão da leitura e recondução das próximas.
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário: a julgar que a leitura proposta pode ser de
fácil realização no tempo da aula, mas de uma pluralidade de compreensão para os leitores iniciantes,
dada a linguagem com diferentes referências sociais, históricas e culturais.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária: socialização oral/coletiva das
impressões de leitura, aproximações sobre outros textos, leitura pontual de trechos a fim de analisar
estilisticamente os recursos expressivos e seus efeitos de sentido, também em uma leitura em voz alta e
seu impacto na recepção.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária: o Slam proporciona um
momento de apreciação artística tanto na declamação dos poemas, quanto nas performances dos poetas,
respeitando a escuta dos ouvintes e atenção à apresentação.

159
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário: começar pela interpretação lógica:
superfície textual (compreensão das palavras no texto), pelas questões linguísticas mais simples (chamar
atenção para as vozes femininas e o lugar de luta possibilitado pelas palavras), pelos significados mais
aparentes (impressões no enunciador do poema). Por fim, aprofundar na interpretação hermética, nas
questões linguísticas mais complexas (como por exemplo, alegoria ou metáfora do ponto de vista da
identidade cultural ou territorial da voz feminina).
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas: tal estratégia de leitura
trata-se de um modelo sugerido por Humberto Eco (2016) e Rildo Cosson (2014) que, por sua vez, considera
dois momentos de interpretação no processo de ensino-aprendizagem de leitura literária: interior e
exterior. Tais intervenções no acompanhamento da leitura literária promovem experiências diversas na
leitura dos poemas.

2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada: Em primeiro momento, durante o processo de
leituras com a produção de diário de bordo (registros escritos), relatos de experiência (registros orais). Após
o processo de leituras com exposição cultural em curadoria de temas sobre identidade, territorialidade
nas obras estudadas (relações culturais, sociais, econômicas e políticas no Brasil) e a promoção de um
campeonato de poesia falada – Slam – em grupos organizados pelos próprios estudantes.
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária: a promoção de uma reflexão no qual o
sujeito-leitor resgata repertório de suas vivências pode promover uma riqueza na apreciação e fruição
do texto literário. A organização do campeonato coloca o estudante no centro das ações, facilitando o
protagonismo juvenil.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:
DUARTE, Mel (org.). Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. Ilustrações de Lela Brandão.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2016.
E-book Kindle.
ROUXEL, A. Práticas de Leitura: Quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? In: Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, v. 42 n. 145, p 272-283, jan./abril. 2012.

160
A busca da palavra em dois
7 contos de Mia Couto:
uma proposta de letramento literário

Juliana dos Santos Padilha1


Larissa da Silva Lisboa Souza2

RESUMO
Nosso projeto de pesquisa consiste em uma proposta de letramento literário para
alunos do Ensino Fundamental II a partir da leitura compartilhada de dois contos de Mia
Couto: “A menina sem palavra” e “O embondeiro de pássaros”, de Mia Couto (2018). O
objetivo é trabalhar de forma prática a leitura e mobilizar os estudantes a construírem sua
própria interpretação dos textos, promovendo uma aproximação entre as culturas do Brasil
e Moçambique e um encontro de cada leitor com a sua própria palavra, enquanto sujeito
reflexivo e crítico. A metodologia empregada será o percurso de letramento de Rildo Cosson
(2014): motivação – introdução – leitura - interpretação, usando-se o círculo de leitura no
formato de oficina. Para as etapas de leitura e interpretação, usaremos as estratégias de
Isabel Solé (1998): ler, resumir, questionar, prever. Esperamos que os jovens leitores ampliem
sua noção de leitura literária em sala de aula e conheçam o valor da palavra para a construção
da memória e identidade de um povo.

Palavras-chave: Letramento literário; Literatura Moçambicana; linguagem; identidade;


memória.

1 Professora de Português do Ensino Fundamental II da rede SESI São Paulo de Ensino, Mestre em Comunicação Midiática
pela UNESP-Bauru, Especialista em Português e Literatura Brasileira pela Universidade Metodista. E-mail: juliana@epatriani.com.br
2 Doutora em Estudos comparados de literaturas de língua portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra em
Estudos Literários e Especialista em educação para as relações étnico-raciais, ambos os títulos pela Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora substituta na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: lari.lisboa@gmail.com

162
1. Introdução
Este projeto propõe um estudo sobre dois contos de Mia Couto, “A menina sem palavra”
e “O embondeiro de pássaros”, do livro A menina sem palavra (2018), que representam o
valor da palavra na construção da identidade do povo moçambicano, justamente porque é
da palavra que nascem as histórias e as línguas locais dos diferentes povos do país.

Essa obra foi escolhida porque apresenta uma particularidade interessante: grande
parte de seus protagonistas são crianças – aspecto que me levou a pensar que geraria mais
interesse nos alunos de Ensino Fundamental II. Além disso, são pequenos contos, o que
facilita a execução desta proposta de letramento literário em sala de aula.

E por que Mia Couto? Porque sua obra representa um grande legado da cultura e
literatura moçambicana: os conflitos das personagens são universais mesmo com a paisagem
e cultura local. Mia Couto é um escritor contemporâneo que aborda os problemas e a vida
cotidiana de Moçambique. Sua linguagem manifesta uma mestiçagem entre o português
“culto” e as várias formas dialetais introduzidas pelas populações e línguas moçambicanas.
Nesse sentido, o escritor recria e renova a Língua Portuguesa, trazendo para seus contos uma
parte do imaginário africano. Segundo Paulo Roberto Machado Tostes (2007, p. 41):

A escrita coutiana nos afirma que no espaço das identidades africanas, não basta ouvir os
ancestrais, mas é preciso continuar ouvindo a linguagem dos tambores e de todo o seu
imaginário, pois são estes, que muitas vezes, melhor nos conduzem às imagens culturais para
além daquelas que foram impostas, como únicas, pela tradição ocidental.

Nosso problema de pesquisa, “Como desenvolver o letramento literário no Ensino


Fundamental II a partir da Literatura Africana”, parte de uma constatação: a palavra é
o alicerce da cultura de qualquer país, sobretudo das nações africanas, que têm em sua
literatura de tradição oral a memória viva de sucessivas gerações. E como fica o Brasil diante
dessa questão: seja no âmbito pessoal ou coletivo, estaríamos reconhecendo o valor da
palavra no momento atual? Quais são as histórias que estão sendo ouvidas e quais estão
sendo silenciadas? As aulas de literatura estão acolhendo histórias de outras culturas?

Como docente de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II, de uma escola da rede
Sesi São Paulo de Ensino, vivencio a Literatura na sala de aula e nas visitas regulares à biblioteca.
Faz parte do meu trabalho desenvolver não só a leitura de paradidáticos e de textos variados,
mas também fomentar a participação de meus alunos em um concurso literário que ocorre
anualmente nas escolas da rede SESI-SP: a Semana do Livro e da Biblioteca, conhecida como
SELIBI. Nesse evento, primeiro estudamos a vida e a obra de um escritor, para depois nos

163
dedicarmos à produção literária em diversos gêneros. E é nesses momentos que a Literatura
é vivenciada enquanto comunidade de leitores: eu e outros professores propomos rodas de
leitura, vídeos e palestras são promovidos pela bibliotecária, os empréstimos de livros são
constantes, de modo que aos poucos os alunos vão sendo inseridos no universo ficcional do
autor homenageado. Depois, em sala de aula, tento ajudar cada estudante a encontrar a sua
palavra, produzindo no papel ou computador o seu próprio conto, crônica ou texto em outro
gênero, estabelecendo-se assim um diálogo de cada leitor com as obras literárias.

Acredito que a cultura africana tem muito a nos ensinar e precisa ser mais explorada
nas escolas brasileiras. Lembro que conheci a obra de Mia Couto já adulta e que na minha
trajetória acadêmica acabei estudando mais as Literaturas Brasileira e Latino-Americana. É
importante lembrar que a história do povo brasileiro também foi escrita pelo povo africano
e que a literatura africana, apesar de relativamente nova, é riquíssima. Conhecer e refletir
sobre a cultura e a Literatura dos diferentes países africanos nos faz entender melhor quem
somos. Um exemplo marcante é a questão do mar: se para os europeus é um lugar para se
aventurar, para os africanos é um lugar de separação, morte e tristeza, afinal, era por onde
saíam os negros que seriam escravizados nas Américas. Essa visão é bastante recorrente nos
romances e poesia angolanos. Segundo A. Hampâté Bâ (2010) a cultura africana envolve uma
visão particular do mundo, uma espécie de presença particular no mundo – onde todas as
coisas se religam e interagem, sendo sua grande riqueza a tradição oral, porque conduz o
homem à sua totalidade.

Este trabalho é uma proposta de sequência didática para desenvolver o letramento


literário com alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, tomando-se como objeto de
leitura, discussão e escrita dois contos do escritor moçambicano Mia Couto. Espera-se
que esta proposta promova uma aproximação entre as culturas do Brasil e da África e um
encontro dos estudantes com a sua própria palavra, enquanto sujeitos reflexivos e críticos
de seu mundo. Nossos objetivos específicos são: ampliar a noção de leitura dos estudantes,
de modo que esta seja compreendida como prática e discurso; contribuir com o repertório
cultural dos estudantes e suas competências leitora e escritora (estratégias de interpretação
do texto literário e de escrita); divulgar a cultura e a literatura moçambicana, aproximando-
as com as do Brasil; desenvolver a capacidade de reflexão, expressão oral e escrita dos
estudantes, ou seja, “o encontro de cada um deles com as suas palavras”.

Partimos das concepções metodológicas de Rildo Cosson (2014), que adota como
princípio de letramento a construção de uma comunidade de leitores. Para a formação dessa
comunidade, é necessário que o ensino da Literatura realize um movimento contínuo de
motivação, leitura e discussão das obras em sala de aula, que culminará com a construção

164
individual e coletiva de possíveis sentidos para o texto literário. Nossa proposta metodológica
seguirá o modelo de sequência didática básica sugerido por Cosson (2014), que desenvolve o
letramento literário mediante quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação.

Além disso, nossa proposta didática dialogará com outras teorias do letramento,
como a de Magda Soares (2007) e Mirian Zappone (2008), com o estudo bastante sólido de
Regina Zilberman (2003) sobre leitura e ensino de literatura e com os estudos africanos que
contemplam a obra de Mia Couto sob a perspectiva da linguagem, como Carmen Lucia Tindó
Ribeiro Secco (2006) e Everton Fernando Micheletti (2017). A obra de A. Hampâté Bâ (2010)
será luz na nossa jornada de compreensão sobre a cultura africana e suas tradições.

2. Contextualização
Ao começar o “Curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa-
identidades, territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares”,
da Universidade Federal de São Paulo por meio da UAB, estava com grandes expectativas de
aprendizagem sobre a Literatura Moçambicana. Eu já tinha lido alguns contos de Mia Couto,
mas queria conhecer outros autores e tentar compreender uma das tantas facetas culturais
da África.

Na disciplina específica de Literatura Moçambicana, gostei de conhecer a periodização


dessa literatura proposta por Fátima Mendonça. O terceiro período abarca o período após
1975, justamente o ano em que se dá a independência de Moçambique. Fazem parte dessa
literatura mais contemporânea romances e contos de temáticas diversas, e é nesse período
que se situa a literatura de Mia Couto. Hoje, um dos mais conhecidos escritores moçambicanos
no Brasil e no mundo, Mia inicia suas publicações com a poesia, em “Raiz de orvalho” (1999),
em 1983. De sua produtiva carreira literária, também destaco seu primeiro livro de contos,
“Vozes anoitecidas” (2013), publicado em 1986 pela AEMO.

A Literatura Moçambicana é escrita também em outras línguas, que não a portuguesa,


além de contar com a fortíssima presença de textos de tradição oral: provérbios, lendas,
mitos... E é essa oralidade que se destaca na obra de Mia Couto, especialmente em “A
menina sem palavra” (2018), livro de contos que me proponho pesquisar. Essa obra reúne
vários contos, cujos protagonistas são, na maioria das vezes, crianças. As histórias mostram
as dificuldades da vida adulta, de um país que viveu por anos em guerra, que são impostas
aos pequenos.

165
Foi pensando no poder das palavras – sobretudo no contexto de pandemia pela Covid-19
em 2020, que gerou uma apatia muito grande entre as pessoas devido ao distanciamento
social, sendo esse efeito potencializado entre as crianças e adolescentes –, que me ocorreu
a ideia deste projeto. Atualmente, dou aulas presenciais de Língua Portuguesa para sextos
e sétimos anos e me deparo com um grande abismo no hábito de leitura dos alunos.
Diante deste cenário, sinto mais latente a necessidade de promover o letramento literário,
despertando em meus estudantes não só a sua palavra individual, mas também a coletiva,
de modo que possam cada vez mais se interessar pela leitura literária e tornar-se cidadãos
atuantes e críticos nas práticas de leitura e escrita do mundo contemporâneo.

Nesse sentido, proponho uma sequência didática para ler e interpretar dois contos
de Mia Couto e refletir sobre a aproximação e o distanciamento cultural entre Brasil e
Moçambique. Compreender a relação entre essas nações foi uma das grandes aprendizagens
do curso da UNIFESP e UAB. Os dois países foram colonizados por Portugal e tiveram seu
período colonial marcado pela exploração de recursos naturais e escravidão. Apesar de a
literatura moçambicana ter cerca de 100 anos de existência e ser muito jovem em relação à
brasileira, houve em ambas a busca por uma identidade nacional. E, no caso de Moçambique,
alguns escritores usaram suas obras para lutar pela independência do país, como Noémia de
Sousa (1926-2002), José João Craveirinha (1922-2003) e Luís Bernardo Honwana (1942-). Nas
últimas décadas, o Brasil vem descobrindo a literatura moçambicana, com destaque para a
obra de Mia Couto e Paulina Chiziane.

Assim como Guimarães Rosa, Mia Couto trabalha metaforicamente a linguagem e recria
a língua portuguesa, com neologismos e subversão de sentidos habituais, além de evocar
os mitos e crenças moçambicanos. Por esse motivo, suas histórias sempre me inquietaram,
levando-me a terras distantes e a grandes ensinamentos. Foi então que comecei a sentir
vontade de trabalhar suas histórias em sala de aula, fazer meus alunos terem outras
experiências de leitura. E foi assim que fui definindo meu problema de pesquisa: como
promover o letramento literário com uma Literatura Africana e levar alunos do Ensino
Fundamental II à reflexão sobre o valor da palavra na construção da identidade de cada
indivíduo e de uma nação?

Além da disciplina específica de Literatura Moçambicana, as outras disciplinas que


foram muito importantes para mim e que me ajudaram a dar corpo teórico para meu
projeto foram: “Projetos Integrados para o Ensino de Literaturas de Língua Portuguesa” e
“Literatura e Língua: perspectivas plurais”. A primeira, porque me permitiu conhecer novas
metodologias de leitura do texto literário, entre elas a leitura mediada e compartilhada
e o percurso de letramento proposto por Rildo Cosson (2014); outra contribuição valiosa

166
foi rever as estratégias de leitura de Isabel Solé (1998), que colocam o aluno no centro do
processo interpretativo. Já a última disciplina me mostrou o quanto Moçambique é um país
multilíngue e que há um rico leque de possibilidades de emprego de língua(s) por parte dos
seus autores de literatura. Essa diversidade linguística e cultural está presente na obra de Mia
Couto, e situação semelhante também ocorre no Brasil. Portanto, explorar as potencialidades
de sua narrativa será apresentar aos estudantes uma nova cultura como também buscar seus
pontos de aproximação.

3. Fundamentação teórico-metodológica
Começaremos com a análise dos dois contos de Mia Couto (2018) escolhidos para
integrar essa proposta de sequência didática: “A menina sem palavra” (2018, p. 31) e “O
embondeiro de pássaros” (2018, p. 57).

A primeira história tem um narrador heterodiegético que começa contando um caso


curioso: o de uma menina que não falava a língua de seus pais e que se comunicava em um
dialeto bastante pessoal. Alguns achavam que ela cantava e mesmo sem entender alguma
palavra ficavam presos em sua entonação. O pai, certa noite, implorou que ela falasse. A
menina beijou sua face molhada de lágrimas e disse a palavra “mar”. A partir desse momento,
o pai passou a acreditar que ao ver o mar a filha poderia falar outras palavras e decidiu levá-
la ao seu encontro. Ao chegar diante das águas, a menina se definhou: sentou-se na areia e
começou a chorar, pois tinha se dado conta de que o mundo era pequeno. Então ficou imóvel,
sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, o mar subia em ameaça, a menina fincara
como pedra. O pai fez de tudo para distraí-la, mas nada, a pequena tinha ganhado raiz. Então
teve a ideia de contar-lhe uma história: a de uma menina que pediu para o pai pegar a lua
para ela. Esse saiu num barco e quando puxou com força o astro, esse se estilhaçou em mil
pedaços. O mar se encrespou, o barco afundou e a praia se cobriu de flocos de luar. A menina
da história se pôs a recolher os pedaços de lua, quando olhou o horizonte e viu uma fenda
profunda se abrir nas águas. Dali brotava sangue, as águas sangravam, então o narrador da
história, o pai, se assustou com os rumos de sua imaginação. A menina de repente se ergueu
e avançou para dentro das ondas. O pai a seguiu e a viu apontar para o mar. E ambos viram
uma fenda profunda: um espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Seria
o fim? – pensou o pai. A menina se adentrou mais, não cedendo aos pedidos paternos de
recuo. Depois, parou e passou a mão pela água, e a ferida se fechou. A menina disse ao pai
que tinha terminado sua história.

167
Nesse conto, temos a manifestação do gênero fantástico, permitindo várias leituras. A
realidade se funde com a ficção, fazendo o leitor caminhar por suas bordas. E o poder vem da
arte de fabular, porque foi contando uma história que o pai conseguiu trazer a filha de volta
para o mundo, para as palavras. Assim, percebemos nesse conto a força da tradição oral ─
essa que é uma característica marcante da cultura moçambicana. Mia Couto nos chama a
atenção para o valor da palavra, essa que sai da boca e pode dar vida às memórias de um
povo. Lembremos que Moçambique sofreu vários anos com a guerra e que talvez o escritor
queira abrir os olhos e os corações daqueles que ficaram enevoados pela violência ou pelo
progresso e modernização das cidades, fazendo o homem distanciar-se das suas tradições.
Segundo Secco (2006), Mia Couto nunca abandona a dimensão social e filosófica da história.
Apesar da sua prosa poética e da ludicidade do fazer literário, o escritor sempre faz uma
reflexão crítica contra qualquer forma de opressão, arbítrio ou crueldade.

A segunda história aborda o preconceito racial e já tem um tom mais direto. Mia Couto
nos apresenta um vendedor de pássaros que, ao passar pelas ruas, causava alvoroço e
alegria entre as crianças de uma pequena cidade. Os adultos, “moradores dos bairros dos
brancos”, começaram a se incomodar com a sua presença, sobretudo com a mobilização
que causava em seus filhos. Entre as crianças, estava Tiago, que toda vez que via o vendedor
o acompanhava, voltando para casa só no final do dia. Era uma dupla afronta: um menino
desobediente dedicando-se ao misterioso passarinheiro.

Do homem, personagem principal, pouco se sabia: vivia cercado de pássaros de rara


beleza e tinha como residência o buraco de um tronco de árvore, o “embondeiro”. Tiago
compartilhava com a mãe as histórias sobre a árvore: os mais velhos diziam que o embondeiro
é capaz de grandes tristezas e que em desespero se suicida pelas chamas sem ninguém lhe
pôr fogo. Até que os colonos começaram a sentir-se incomodados também pelo fato de não
saberem como e onde o vendedor fazia para conseguir aves de tamanha beleza: “teria aquele
negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?” (2018, p. 65). Até que os
pais proibiram as crianças de saírem às ruas, fechando-lhes sua pequena e infinita alma, e coisas
estranhas começaram a acontecer: portas e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam
revirados, alpiste, cagados de aves e até um pássaro foi parar dentro do armário. A sentença
foi dada: o vendedor seria preso, e Tiago foi correndo avisá-lo. O homem, sereno, disse ao
garoto que já esperava pela prisão. Então lhe explicou que era natural daquelas terras e que
devia receber os visitantes, competindo-lhe o respeito de um anfitrião. Também lembrou ao
menino uma lenda que havia sobre a flor daquela árvore: quem fizesse mal ao embondeiro
seria perseguido até o fim da vida. Os colonos chegaram, e Tiago se escondeu. O vendedor
foi levado para a prisão, e as flores caíram da árvore e suas brancas pétalas se avermelharam.

168
O garoto foi atrás da comitiva e ficou espreitando seu amigo, que fora detido e
interrogado com violência. O vendedor não tinha palavras para enfrentar tamanha injustiça:
apenas pediu para tocar sua gaita - o que não conseguira devido aos ferimentos. No dia
seguinte, o prisioneiro não estava mais lá, e milhares de pássaros cobriam a esquadra. Tiago
voltou para a mata com os pássaros e decidiu esperar pelo velho dentro do embondeiro. Por
fim, vieram os colonos e puseram fogo na árvore, achando que era o vendedor quem estaria
lá dentro soprando sua muska.

É interessante pensar no silêncio do vendedor de pássaros e que, quando ele fala, está
na condição de um ancião sábio. Se no conto anterior as palavras são as histórias que movem
os homens, neste último a palavra (“kuma”) representa a força fundamental que emana do
próprio Ser Supremo, Maa Ngala, sendo instrumento de criação: “Aquilo que Maa diz, é”. No
conto, o velho vendedor fala pouco, uma espécie de sábio ancião. Assim, Hampâté Bâ nos
explica que a tradição africana concebe a fala como um dom de Deus. Além disso, segundo
as tradições orais de alguns povos africanos, o ser humano “está ligado à palavra que profere.
Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo
que ele é” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 168, grifo do autor). Essa verdade é uma das marcas do
vendedor: suas poucas palavras espelham sua simplicidade. Segundo Micheletti (2017, p.
1170),

Se Hampaté Bâ, ao tratar da força e valor da palavra, está preocupado, acima de tudo, com
formas de preservação das tradições orais, Couto o faz, de alguma forma, na escrita de suas
obras. Vale ressaltar que, por diversas vezes, Couto falou a respeito do que seria o “poder
divino da palavra”, sua “vocação divina” que “não apenas nomeia mas que inventa e produz
encantamento” (COUTO, 2011, p. 109; 14).

Em geral, o culto do sobrenatural faz parte das crenças africanas e está presente nos dois
contos. Conforme Secco (2006), o discurso literário de Mia Couto tece uma rede intertextual
e simbólica com os mitos e as crenças dos povos moçambicanos. No primeiro, as figuras
cheias de sentido são o mar e a lua, no segundo é uma árvore, que dá abrigo aos pássaros e
homens e cuja flor é moradia dos espíritos. E a diegese apresenta alguns elementos insólitos
(uma fenda se abriu no mar/ o velho que mora dentro de um tronco de árvore e depois
desaparece), mas todos são narrados com uma prosa poética que nos envolve em imagens,
saberes e ritmos locais.

Na linguagem, Mia Couto faz sua artesania verbal: explora neologismos formados por
afixação e aglutinação, como por exemplo, “A menina chegou àquela azulação”, “vendedeiro”,
“a lua se cintilhaçou”, “temedroso”, entre outras. Para Secco (2006, p. 72),

169
(...) a recriação de vocábulos e frases, o uso de neologismos, o humor pela subversão de
sentidos habituais, o emprego de uma sintaxe especial, a técnica do “desenredo” aproximam
o discurso do escritor moçambicano do de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Manuel de
Barros.

Por que escolhemos esses contos para trabalhar o letramento literário? Essas histórias
de Mia Couto revelam um outro mundo a nossos estudantes: o primeiro conto mostra o
sobrenatural narrado em uma linguagem poética, quase como a de um sonho, e o segundo
revela aspectos da realidade social e histórica de Moçambique, de um passado colonial e
escravidão, de crenças populares e oralidade. Nesse sentido, levar Mia para a sala é expandir
os horizontes e, sobretudo, refletir sobre o poder da palavra.

Acreditamos que ler é um procedimento, e apenas conseguimos ter acesso ao domínio


dos procedimentos através de seu exercício. Por esse motivo, não basta que o professor
mostre como se constrói a leitura. São os alunos que precisam explorar os sentidos do
texto e suas relações com outros textos. Segundo a concepção de leitura de Isabel Solé
em “Estratégias de Leitura” (1998), o professor assume seu papel de moderador, e os
alunos assumem progressivamente quatro estratégias para uma leitura eficaz (ler, resumir,
questionar, prever). Optou-se por esta concepção de leitura, porque dá mais protagonismo
aos alunos, rompendo com a tradicional “leitura guiada” pelo professor. Nesse processo, os
alunos são sujeitos partícipes da leitura e interpretação, lendo em voz alta ou em silêncio
junto com a turma, questionando sua própria leitura (“O que entendi?”; Por que entendi
assim?”).

Em “Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. Caderno de formação:


formação de professores”, Renata Junqueira de Souza e Rildo Cosson (2011) apresentam uma
proposta de letramento que julgo interessante, pois fica claro que o objetivo maior é formar
leitores, que saibam explorar os sentidos do texto, respeitando seus limites interpretativos
e tratando de relacionar o texto a seus conhecimentos e experiências. A leitura é acima de
tudo um processo de partilha e socialização.

Segundo os autores, ler é fundamental, porque tudo o que somos, fazemos e


compartilhamos passa necessariamente pela leitura e escrita. Segundo Magda Soares (2007),
o letramento é visto como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que
envolvem a língua escrita, e de exigências sociais de uso da língua escrita. O letramento
literário faz parte dessa expansão do uso do termo letramento e conduz ao domínio da
palavra a partir dela mesma, precisando da escola para se concretizar, já que demanda
um processo educativo específico. Nas palavras de Zappone (2008), o letramento literário

170
pode ser compreendido como o conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária,
compreendida como aquela cuja especificidade maior seria a ficcionalidade. E nesse sentido,
não apenas os textos canônicos devem ser trabalhados em sala de aula, mas textos de caráter
ficcional e práticas sociais variadas, como por exemplo, adaptações de obras literárias para
o cinema, produção de vídeos ou podcasts com resenhas de livros, entre outros. Na visão de
Zappone (2008), as práticas de letramento literário são plurais.

Promover esse tipo de letramento implica, primeiro, uma indagação ao texto: quem e
quando diz, o que diz, como diz, para que diz e para quem diz. Respostas que só podem ser
obtidas quando se examinam os detalhes do texto e se insere a obra em um diálogo com
outros tantos textos. Dessa maneira, na sala de aula, a primeira coisa a se fazer é selecionar o
livro que será lido e discutido pela turma. A leitura ocorrerá na sala de aula ou na biblioteca?
Será preciso definir. Quais aspectos nesse processo são salientados por SOUZA e COSSON
(2011)? São dois: escolher o texto em seu suporte original (livro) e respeitar a integralidade
da obra. Essa parte é bastante útil ao docente, porque funciona como dicas sobre aquilo que
ele não deve fazer nas aulas de Literatura.

Assim, a partir do texto escolhido, o professor pode trabalhar com oficinas de leitura
- momento em que o docente planeja o ensino das estratégias de leitura do texto literário.
De acordo com Pressley (2002 apud COSSON, 2011), são sete as habilidades ou estratégias
no ato de ler: conhecimento prévio, conexão, inferência, visualização, perguntas ao texto,
sumarização e síntese. Ao ler, todas essas habilidades são colocadas em ação e sem uma
ordem específica. Caberá ao professor trilhar seu percurso exploratório do texto juntamente
com a turma.

A leitura compartilhada é bem importante, na medida em que os estudantes explicitam


as estratégias que estão sendo usadas na leitura. Cosson (2014) denomina “círculos de
leitura” um grupo de pessoas que se reúnem com certa frequência para discutir uma obra.
Os círculos quando promovidos nas escolas têm sempre um caráter formativo. Qualquer
professor pode adotar a estratégia da leitura compartilhada, configurando ou não o círculo:
os alunos podem ler individual e silenciosamente e, posteriormente, conversar sobre o texto
lido; ou ler coletivamente e em voz alta o texto, de modo que o mediador faça as pausas e
questionamentos. Cosson (2014, p. 169), nessa obra sobre os círculos de leitura, divide a fase
de compartilhamento em duas etapas:

(...) a preparação para a discussão ou pré-discussão e a discussão propriamente dita. A


preparação para a discussão ou pré-discussão começa com a anotação de impressões
diversas durante e logo após o ato de ler. É um trecho que se sublinha ou se anota à parte

171
porque o consideramos difícil de entender ou particularmente bem elaborado. É o uso de
determinada palavra ou expressão que nos surpreendeu pela beleza ou pelo inesperado. É
uma questão que aquele evento descrito na obra nos levou a refletir sobre o que já vivemos
ou lemos em outro lugar ou que está acontecendo agora ao nosso redor. É uma personagem,
imagem ou metáfora que diz algo exatamente da maneira como queríamos dizer.

Conforme Regina Zilberman (2003), o professor só não deve reduzir a obra literária
a observações e análises. Cabe-lhe a tarefa de desencadear múltiplas visões, enfatizando
várias interpretações pessoais, que decorrem da compreensão de que o leitor alcançou o
objeto artístico, em razão de sua percepção singular do universo representado. Em tom
de crítica, a estudiosa comenta também que muitas vezes a criança é subestimada em sua
capacidade de construir sentidos ao texto. E aqui, em nossa proposta didática, nem estamos
nos dirigindo a crianças, mas sim a pré-adolescentes, cuja bagagem de leitura e vivências
poderão ser mobilizadas pelo professor nas aulas de Literatura, potencializando as atividades
de motivação, introdução e interpretação. Segundo Nascimento (2020, p. 45):

A leitura literária forma, pois, o indivíduo por meio de sua participação ativa e crítica ao
concordar ou discordar com os pontos apresentados no texto, ao fazer inferências com seus
saberes prévios, ao intertextualizar com outras produções ou formas de arte... (...) O professor
como figura principal no processo de mediação do aprendizado precisa reconhecer tais
aspectos para promover o prazer pela literatura e atuar positivamente no desenvolvimento
do leitor.

Resolvemos adotar a sequência básica de letramento proposta por Rildo Cosson (2014),
porque acreditamos que as aulas de Literatura podem envolver os alunos em diferentes
práticas de leitura e escrita que realmente mobilizem seus conhecimentos e experiências.
Nosso percurso metodológico está fundamentado na concepção de um leitor ativo na
interação com o texto. Nesse sentido, temos como pressuposto teórico as contribuições
de letramento literário de Rildo Cosson (2014), mas não poderíamos deixar de referenciar,
mesmo que brevemente, as contribuições da teoria da Estética da Recepção, que teve
origem na Universidade de Constança em 1967, a partir de uma aula inaugural de Jauss, e
colocou em xeque as propostas das correntes textualistas que privilegiam as obras e seus
autores, valorizando o trabalho interpretativo do leitor. Nascimento (2020, p. 61), ressalta a
relação entre a corrente sociológica de Jauss e o letramento literário, afirmando que ambos
se aproximam:

(...) tanto a teoria quanto a proposta educacional (que visa à formação do leitor) se preocupam
justamente em colocar o leitor no centro do debate, considerando, de certa forma, suas
expectativas e saberes prévios adotados para promover a construção de sentidos no ato da
leitura.

172
Em nossa sequência didática, queremos fazer um resgate da figura ativa do leitor em
sala de aula, por isso decidimos trabalhar dois contos de Mia Couto utilizando diferentes
estratégias, como a leitura, a pesquisa, a interação social e a produção de diferentes gêneros
discursivos, em uma tentativa de mobilizar cada estudante a refletir, buscar saber, dialogar
e ter o que dizer, seja na modalidade oral ou escrita. Assim, pretendemos apresentar uma
abordagem mais ampla de trabalho pedagógico com a Literatura, que vai além da simples
leitura e interpretação da obra literária. Cada professor poderá fazer as adaptações que
julgar necessárias a esta proposta didática, cabendo-lhe não perder de vista as necessidades
e os interesses de seu público-alvo: os estudantes do Ensino Fundamental II.

4. Apresentação e constituição do objeto de


pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
Ao cursar a disciplina “Projetos Integrados para o Ensino de Literaturas de Língua
Portuguesa”, do “Curso de Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa- identidades,
territórios e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares”, da
Universidade Federal de São Paulo, tive contato com a teoria do letramento de Rildo Cosson
(2014). O autor relata várias experiências de formação docente com letramento literário e
apresenta como pilar de sua proposta o acompanhamento da leitura dos alunos pelo professor.
Esse percurso poderá ser feito com leitura individual e socializada, e o mais importante é que
o docente perceba as dificuldades de leitura e acompanhe a relação de interação com o
texto.

Para Cosson a interpretação ocorre em dois momentos: um momento interior, que é


quando o leitor realmente lê palavra por palavra, capítulo por capítulo, e compreende a obra
em sua totalidade, ativando conhecimentos e vivências pessoais, e outro momento exterior,
que é a concretização da interpretação, ou seja, abarca as atividades propostas em sala de
aula para ampliar os sentidos do texto de forma compartilhada.

Fiquei fascinada por essa teoria, porque, embora eu já acompanhasse a leitura dos
meus alunos com diferentes atividades, pude refletir melhor sobre a importância da leitura
compartilhada em sala e o que de fato significa uma comunidade de leitores. Foi lendo
Cosson (2014) que percebi que precisava planejar mais o percurso de exploração dos textos
literários, contemplando esses dois momentos da interpretação: um mais interno e outro

173
mais externo. A seguir, defino as etapas que pensei para que qualquer professor de Ensino
Fundamental II trabalhe a leitura de dois contos de Mia Couto.

A proposta de letramento escolhida é a de oficina, que, segundo Rildo Cosson (2014),


consiste em levar o aluno a construir pela prática seu conhecimento. O princípio maior é
promover uma alternância entre as atividades de leitura e escrita – e aqui acrescentamos
a pesquisa e a interação social. O percurso da oficina é composto por quatro estágios: 1)
motivação; 2) introdução; 3) leitura; 4) interpretação.

Motivação

Na lousa, o professor registrará a seguinte pergunta: “Qual o poder das palavras?”. Para
enriquecer a discussão, sugere-se que o docente apresente aos alunos o poema “A palavra
mágica”, de Carlos Drummond de Andrade (<https://www.escritas.org/pt/t/10913/a-palavra-
magica>).

Após escutar as respostas à questão, o professor conduzirá a uma reflexão sobre a


mensagem principal do poema: a busca do poeta pela própria palavra. Então, levará
os alunos a pensar na sua própria busca individual da palavra, do seu lugar de fala e de
escuta. O importante aqui será fazer os alunos pensar que precisamos das palavras para
definir e expressar nossa identidade. Para concluir esta etapa, o docente questionará: “E
se nascêssemos sem as palavras”? Pedirá para a turma manifestar suas respostas através
de desenhos, os quais serão expostos em um mural digital Padlet (<https://pt-br.padlet.
com>) – marcando o final da motivação. Antes de concluir este encontro, será solicitada aos
estudantes uma pesquisa sobre o escritor Mia Couto e a socialização desse conhecimento na
próxima aula.

Uma estratégia para motivar a leitura literária, como sugere Cosson (2014, p. 55), é
fazer aos alunos uma ou algumas questões que tenham relações estreitas com a obra que
será lida. Nesse sentido, será muito enriquecedor refletir sobre o fato mais marcante de um
dos contos escolhidos para leitura e interpretação: uma menina que não fala, não porque seja
muda, mas porque não consegue elaborar os sons na sua língua. A ideia é discutir o poder da
palavra em nossas vidas: primeiramente, analisando a presença e a busca da palavra poética,
para depois ampliarmos esse sentido e relacioná-lo à busca identitária.

174
Introdução

A introdução contempla a apresentação do(a) autor(a) e da obra.  É importante que


esta etapa não se prolongue muito, para que o aluno faça por si só outras incursões pela
materialidade do texto literário.

Foi pensando em todas essas orientações que este percurso fora planejado. O objetivo é
ampliar o horizonte de conhecimentos culturais dos alunos, pois assim terão mais condições de
construir os sentidos do texto. Os materiais aqui propostos, áudio e vídeo, não são exaustivos
e tratam de destacar algumas informações sobre Mia Couto, sua escrita e seu país.

O professor começará esta etapa, pedindo aos alunos para socializarem suas pesquisas
sobre Mia Couto e Moçambique: divididos em grupo, registrarão os conhecimentos em uma
ficha. Depois, em uma roda de conversa, o docente apresentará as seguintes questões à
turma:

• Quem é Mia Couto?


• O que sabemos sobre suas obras?
• E sobre Moçambique?

Para fundamentar mais a discussão, sugere-se a escuta de um trecho de um podcast


feito por uma educadora de leitura da cidade de Tiradentes/MG sobre o escritor (até o
tempo de 2:22, (<https://www.youtube.com/watch?v=qPbKGeMvEuw>) e, na sequência, a
exibição da parte inicial de uma reportagem sobre Moçambique (<https://www.youtube.
com/watch?v=c3S_lzeRmWI>). Ficará a critério do professor usar estes materiais aqui citados
ou substituí-los por outros, a fim de adequar a presente proposta didática aos interesses e
necessidades da turma.

Leitura

Percurso: a proposta é ler com a turma e em voz alta um trecho do conto “A menina
sem palavra” (2018, p. 31). Em seguida, o docente recapitulará juntamente com os alunos os
acontecimentos principais da parte lida e proporá algumas questões, como por exemplo: O
que acontece quando ela fica diante do mar? Qual a atitude do seu pai?.

Em um segundo momento, perguntará a eles o que acham que acontecerá na história


(antecipação). Uma vez compartilhadas as respostas, a leitura será retomada para a validação
das hipóteses. Assim, o ciclo será novamente iniciado: ler um trecho da obra, resumir,

175
questionar, prever. Para esta etapa, o professor poderá usar algumas imagens no Canva ou
PowerPoint, a fim de envolver mais os alunos nas estratégias de leitura.

O mesmo processo será feito com o conto “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57).
Aqui merece uma atenção especial as palavras criadas por Mia Couto e a questão do racismo,
que é latente. Depois da leitura e recapitulação oral, ou resumo escrito, da primeira parte do
texto, algumas questões mostram-se importantes para a discussão na aula:

• Quem é Tiago?
• Como é a relação de Tiago com o vendedor de pássaros?
• Como o vendedor é tratado pelos adultos? Que passagens comprovam esse tratamento?

Os alunos conseguiram compreender a linguagem do texto? Que palavras são diferentes,


ou seja, neologismos?

Na sequência, os alunos poderão elaborar em grupo questões de antecipação e


compartilhá-las com a turma. Só então partirão para a leitura final do conto.

Acreditamos que estas estratégias permitem a apreciação do texto no nível da fruição e


também sua interpretação e análise através da leitura compartilhada. Outro aspecto positivo
é o intercâmbio de papéis: no lugar do professor, o próprio aluno pode formular perguntas
sobre o texto ou questões de antecipação, baseando-se na interpretação que está sendo
construída sobre o trecho lido e na sua bagagem de conhecimentos e experiências pessoais.

Interpretação

Primeiro, sugerimos que o docente promova uma roda de conversa sobre a primeira
obra lida, “A menina sem palavra” (2018, p. 31). Para mobilização, poderá usar uma caixa com
importantes questões sobre o enredo, contemplando as três partes principais da narrativa: 1)
a menina que não fala, um dia, fala a palavra “mar” (O que seu pai faz então?); 2) a menina,
sentada na areia e defronte ao mar, não se mexe, mesmo com a cheia da maré. O pai lhe
conta uma história (O que acontece com a Lua nessa história? Qual a reação da menina?); 3)
a garota se levanta, avança mar adentro e vê algo misterioso (Nesse instante, o que acontece
com o mar? Por que a história criada pelo pai se mistura com a história da menina?).

Em outro momento, os alunos pesquisarão aspectos históricos e culturais de


Moçambique: línguas, tradições, religião, processo de independência, compartilhando suas
descobertas com a turma e tentando relacionar esses aspectos à obra. A pesquisa, realizada

176
preferencialmente na escola, contará com a mediação docente, tendo em vista que esta
proposta didática se dirige aos alunos do Ensino Fundamental II.

Ao final, o docente questionará sobre o sentido metafórico deste conto: O que a


menina sem palavra e seu encontro com o mar pode representar? Que elementos culturais
de Moçambique são identificados no texto?. Depois desse percurso interpretativo, caberá
ao professor aprofundar a análise. Poderá, por exemplo, explicar que este conto pode ser
compreendido como uma metáfora para o próprio Moçambique no período pós-colonial,
que está perdido, sem voz e que busca ansiosamente por sua identidade.

Sobre o conto “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57), sugere-se que os alunos, em


duplas, façam um resumo do conto na forma escrita (texto) ou oral (podcast). Tal produção
será compartilhada e discutida em aula. Para concluir, cada aluno deverá refletir sobre o
sentido da figura do “embondeiro de pássaros” e deixar seu comentário crítico em um mural
(físico, feito em sala de aula, ou digital, no Jamboard <https://jamboard.google.com>):

O que este homem representa e por quê? A Liberdade? A natureza? A humildade? (...)

É importante ressaltar que essas atividades de registro podem variar, dependendo da


idade e do nível escolar dos estudantes. Segundo Nascimento (2020), nessa etapa diversas
situações podem ser propostas: produção de um desenho que retrate uma cena da narrativa;
seleção de uma canção que se relacione com a situação vivida por determinada personagem,
dramatização da história, realização de um sarau e declamação de fragmentos do texto,
entre outras.

Para Rildo Cosson (2014, p. 65-66), há dois momentos de interpretação no processo


de ensino-aprendizagem de leitura literária. O primeiro momento é o interior: “aquele que
acompanha a decifração, palavra por palavra, página por página, capítulo por capítulo, e tem
seu ápice na apreensão global que realizamos logo após terminar a leitura”. É o que chamamos
de encontro do leitor com a obra. Já o segundo momento é o exterior: “a concretização, a
materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada
comunidade”. Em outras palavras, os estudantes compartilham sua compreensão da obra e
ampliam os sentidos do texto, tornando-se sujeitos autores de outras produções discursivas.

As atividades de interpretação descritas acima seguem esse movimento do interior e


exterior: a roda de conversa sobre as partes principais de “A menina sem palavra” (2018, p.
31) e a produção de um resumo sobre “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57) buscam
promover uma aproximação à literariedade do texto, fazendo o aluno seguir a sequência

177
narrativa dos fatos e dominar sua compreensão. As outras atividades propostas são de
externalização: discutir uma obra literária a partir de sua contextualização histórica e cultural
e construir um ponto de vista sobre uma personagem, registrando-o em um mural.

Avaliação

Sugerimos que a avaliação seja formativa e classificatória. Acreditamos que observar


e avaliar qualitativamente esse percurso de exploração da obra literária seja muito rico,
afinal, o leitor mobiliza várias habilidades de leitura e escrita. Para ajudar nesse processo, o
professor poderá elaborar uma rubrica de autoavaliação, de maneira que o estudante reflita
e avalie sua participação em cada uma das etapas anteriores; poderá fazer registros sobre o
progresso dos alunos; entre outros.

Caso o aluno não tenha vivenciado esse percurso de forma satisfatória, porque não
se dedicou à leitura dos contos ou atividades propostas, ou por outro motivo, o professor
poderá solicitar a produção de uma resenha sobre os contos lidos, no formato de vídeo ou
texto escrito. Ler, resumir e assumir um posicionamento crítico diante do texto literário são
estratégias de letramento que mobilizam os alunos. Conforme Ferreira e Dias (2002, p. 40):

(…) a escrita ainda se coloca como um meio mais eficaz e fundamental de acesso à informação,
já que oferece a possibilidade de escolha e de liberdade face aos caminhos apresentados.
Ao ler, o indivíduo constrói os seus próprios significados, elabora suas próprias questões e
rejeita, confirma e/ou reelabora as suas próprias respostas. É ele quem inscreve ou reinscreve
o significado do escrito a partir de sua própria história.

Nossa proposta de avaliação está fundamentada na concepção de Rildo Cosson (2014)


de que a leitura literária e a avaliação são processos que precisam andar juntos. E foi também
pensada dessa forma, porque é importante valorizar as atividades literárias aqui descritas
como práticas sociais e espaços de negociação de diferentes interpretações, respeitando-se
sempre os limites do próprio texto. Assim, a leitura compartilhada e as discussões em grupo
a partir de questões orientadoras são centrais neste processo de letramento, sobretudo
porque implicam um repensar coletivo sobre a obra literária. Já as práticas de escrita
mobilizam diferentes conhecimentos e permitem ao leitor encontrar seu próprio lugar de
fala no mundo.

178
5. Análise, discussão e resultados esperados
Acreditamos que ler é um procedimento, por esse motivo propomos uma sequência
didática em que os alunos são sujeitos ativos, que pesquisam, selecionam indicadores,
elaboram e verificam hipóteses, reconstruindo o sentido do texto em diferentes práticas
discursivas.

As estratégias propostas aqui de mobilização e introdução servem para despertar o


interesse dos alunos e situá-los dentro da temática de cada conto. É claro que caberá ao
professor fazer suas próprias escolhas de contextualização da obra literária, sendo importante
que este momento não se transforme em uma longa e expositiva aula sobre a vida do escritor.

A leitura da obra é um processo coletivo em nossa sequência didática, embora poderia


ser individual em alguns momentos em que o professor julgasse necessário. Optamos pela
leitura compartilhada, porque os contos escolhidos são breves e porque o professor poderá
fazer suas pausas e instigar os leitores, verificando o que entenderam e quais antecipações
conseguem elaborar.

Já as atividades de interpretação, segundo Cosson (2014), devem ter como princípio a


externalização da leitura, isto é, seu registro. Tanto a exploração do sentido metafórico do
conto “A menina sem palavra” (2018, p. 31) em uma roda de conversa quanto a busca de um
sentido para “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57) e seu registro em um mural coletivo,
são etapas de materialização da interpretação em um nível comunitário. Para Cosson (2014),
estratégias de interação e produção a partir da leitura literária fazem com que os leitores
ganhem consciência de que são membros de um mesmo grupo, e essa coletividade fortalece
e amplia seus horizontes de leitura. Nesse sentido, as atividades de interpretação aqui
propostas implicam sempre um registro – este que poderá variar de acordo com o tipo de
texto, a idade do aluno, os objetivos da aula, entre outros aspectos. Por exemplo, com alunos
do 9º ano, ao invés de resumo da obra e uso de mural, o professor poderia solicitar uma
resenha literária. Segundo Cosson (2014), este é um exercício que mobiliza a argumentação
e condições de enunciação bem determinadas. O texto produzido poderia circular entre
os alunos e gerar futuras discussões. Escolhemos o mural do Padlet para promover uma
aproximação entre a Literatura e a cultura digital.

Espera-se que este trabalho sirva primeiramente para refletir mais sobre o letramento
literário e talvez ajudar o trabalho de algum professor que queira vivenciar a leitura literária
de forma compartilhada e planejada. Como docente dos anos finais do Ensino Fundamental
há dez anos, venho observando que, muitas vezes, o trabalho com a Literatura na sala de

179
aula está preso a análises de Teoria Literária ou a propostas de avaliações prontas, feitas por
editoras, ficando o processo de interpretação em um plano secundário. É como se o aluno
fosse um personagem coadjuvante na leitura da obra, deixando de vivenciar a leitura como
fruição e de desenvolver várias habilidades relacionadas ao letramento.

Acreditamos que as práticas de escrita atreladas à leitura literária favorecem muito


o contato do leitor com suas memórias, experiências e conhecimentos e mobilizam a sua
capacidade de comunicar-se e argumentar. Este é o momento de cada aluno encontrar as
suas próprias palavras, confrontando o silêncio e as ideias mais superficiais, redescobrindo
outras ideias sobre a narrativa literária.

Além disso, esperamos ter contribuído com os estudos da obra de Mia Couto, de modo
que alguma ideia aqui pensada possa somar-se à produção acadêmica que se debruça sobre
esse escritor.

Para concluir, esperamos que esta proposta de letramento literário possa ser total ou
parcialmente aproveitada nas aulas de Língua Portuguesa de algum professor, favorecendo a
reflexão, a leitura e a formação de um repertório leitor pelos alunos.

6. Considerações Finais
Este trabalho é resultado dos estudos realizados no “Curso de Especialização
em Literaturas de Língua Portuguesa- identidades, territórios e deslocamentos: Brasil,
Moçambique e Portugal, diferentes olhares”, ofertado pela Universidade Aberta do Brasil
da Universidade Federal de São Paulo. Partiu também de uma inquietação em 2020, ano em
que vivenciamos uma completa mudança de hábitos e um forte sentimento de insegurança
devido à pandemia da Covid-19: como docente de Língua Portuguesa tive que reinventar
minhas aulas e passei a conviver com a nostalgia e os silêncios dos alunos nas aulas online.

E foi cursando a disciplina voltada à Literatura de Moçambique que me reencontrei com


a Literatura: ao estudar os autores escolhidos, como Luís Bernardo Honwana, Ungulani Ba Ka
Khosa, Paulina Chiziane e Mia Couto, deparei-me novamente com a força das palavras e o
quanto as histórias nos ajudam a sobreviver em terrenos áridos de esperança.

Nosso problema de pesquisa, “Como desenvolver o letramento literário no Ensino


Fundamental II a partir da Literatura Africana”, adveio da vontade de levar essa literatura
para a sala de aula, sobretudo porque aprendi que a palavra é o alicerce da cultura africana,

180
que tem em sua tradição oral a memória viva de sucessivas gerações. Escolhemos Mia Couto
para ser o porta-voz desse rico cenário, e os dois contos aqui apresentados nos revelam a
força criadora das palavras: são elas que criam histórias que entrelaçam realidade e ficção,
histórias que nem sempre têm um final feliz.

Acreditamos que é possível desenvolver o letramento literário com a leitura


compartilhada e outras estratégias propostas por Rildo Cosson (2014). Nossa sequência
didática apontou um caminho, mas este poderá ser ressignificado por qualquer professor
que queira trabalhar a Literatura nas escolas e dar o protagonismo ao aluno, sujeito leitor,
uma espécie de descobridor dos sete mares.

181
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
COUTO, Mia. A menina sem palavra. São Paulo: Ed. Bonifácio, 2018. E-book Kindle.

__________. E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções. Ensaios. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011.

__________. Vozes Anoitecidas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013.

__________. Raiz de orvalho e Outros Poemas. Lisboa: Caminho, 1999.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014. E-book
Kindle.

__________. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

FERREIRA, S. P. A; DIAS, M. G. B. B. A escola e o ensino da leitura. Psicologia em Estudo.


Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/
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Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/49614. Acesso em
13/07/2021.

HAMPÂTÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO (Editor). História geral da África, I:
Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.

MICHELETTI, E. F. A palavra viva de Mia Couto. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), [S.


l.], v. 46, n. 3, p. 1167–1179, 2017. DOI: 10.21165/el.v46i3.1630. Disponível em: https://
revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/1630. Acesso em 09/10/2021.

NASCIMENTO, Gilles Villeneuve Souza. Letramento literário e Cordel: o ensino de literatura


por um novo olhar. Curitiba: Appris Editora, 2020. E-book Kindle.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Mia Couto: o outro lado das palavras e dos sonhos.
Via Atlântica, [S. l.], n. 9, p. 71-84, 2006. DOI: 10.11606/va.v0i9.50041. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50041. Acesso em 28/09/2021.

SILVA, Maurício; FUSARO, Márcia (orgs.) Mia Couto: uma literatura entre palavras e
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SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
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SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. 6ª ed. E-book Kindle.

SOUZA, Renata Junqueira de; COSSON, Rildo. Letramento Literário: uma proposta para a sala
de aula (2011). Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/handle/123456789/40143.
Acesso em 19/09/2021.

TOSTES, Paulo Roberto Machado, Entre Margens; O Espaço e o Tempo na escrita de


Mia Couto. 114 f. 2007. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-graduação em Letras:
Estudos Literários, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, 2007. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/2905. Acesso em
25/09/2021.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Modelos de letramento literário e ensino da literatura:


problemas e perspectivas. Revista Teoria e Prática da Educação, Maringá, v. 11, n. 1, p.
49-60, jan.-abr. 2008. Disponível em: https://docplayer.com.br/22217964-Modelos-de-
letramento-literario-e-ensino-da-literatura-problemas-e-perspectivas.html. Acesso em
21/09/2021.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. 11 ed. São Paulo: Global , 2003.
APÊNDICE A

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)

1.
1.1. Público Alvo: estudantes do EFII.
1.2. Tempo de Duração: 3 semanas/15 aulas.
1.3. Definição da prática de letramento literário:
Círculo estruturado no formato de “oficinas de leitura”, ou seja, momentos específicos em sala de aula em
que haverá o planejamento do ensino das estratégias de leitura.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
O caminho de letramento literário traçado por Rildo Cosson (2009), que é composto de quatro passos
principais: 1) motivação; 2) introdução; 3) leitura; 4) interpretação.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
Essa proposta de letramento trabalha de forma bastante prática a leitura e mobiliza os estudantes a
construírem sua própria interpretação do texto, respeitando os limites do texto e ampliando a própria
noção de leitura.
Objetivos:
Desenvolver o letramento literário de alunos do ensino fundamental II a partir de contos do escritor
moçambicano Mia Couto, promovendo uma aproximação entre as culturas do Brasil e Moçambique e um
encontro dos estudantes com a sua própria palavra, enquanto sujeitos reflexivos e crítico de seu mundo.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
Contos: “A menina sem palavra” e “O embondeiro de pássaros”, de Mia Couto (Ed. Bonifácio, 2018, p. 31;
p. 57).
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):
Esta obra foi escolhida porque apresenta uma particularidade interessante: grande parte de seus
protagonistas são crianças – aspecto que me levou a pensar que geraria mais interesse em meu público-
leitor. Além disso, são pequenos contos, o que facilita o trabalho de leitura em sala de aula, já que existe
uma grande demanda pelo ensino de Língua Portuguesa, sobrando menos tempo para a Literatura.
E por que Mia Couto? Porque sua obra representa um grande legado da cultura e literatura moçambicana:
os conflitos das personagens são universais, mesmo com a paisagem e cultura local.

184
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Na lousa, o professor registrará a seguinte pergunta: “Qual o poder das palavras?”. Para enriquecer a
discussão, sugere-se que o docente apresente aos alunos o poema “A palavra mágica”, de Carlos Drummond
de Andrade (<https://www.escritas.org/pt/t/10913/a-palavra-magica>).
Após escutar as respostas à questão, o professor conduzirá a uma reflexão sobre a mensagem principal
do poema: a busca do poeta pela própria palavra. Então, levará os alunos a pensar na sua própria busca
individual da palavra, do seu lugar de fala e de escuta. O importante aqui será fazer os alunos pensar que
precisamos das palavras para definir e expressar nossa identidade. Para concluir esta etapa, o docente
questionará: “E se nascêssemos sem as palavras”? Pedirá para a turma manifestar suas respostas através
de desenhos, os quais serão expostos em um mural digital Padlet (<https://pt-br.padlet.com>) – marcando
o final da motivação. Antes de concluir este encontro, será solicitado aos estudantes uma pesquisa sobre
o escritor Mia Couto e a socialização desse conhecimento na próxima aula.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
Uma estratégia para motivar a leitura literária, como sugere Cosson (2014), é fazer aos alunos uma ou algumas
questões temáticas que tenham relações estreitas com a obra que será lida. Nesse sentido, a proposta é fazer
os alunos pensarem sobre o fato mais marcante de um dos contos escolhidos para leitura e interpretação:
uma menina que não fala, não porque seja muda, mas porque não consegue elaborar os sons na sua língua.
A ideia é refletir sobre o poder da palavra em nossas vidas: primeiramente analisando a presença e a busca
da palavra poética, para depois ampliar esse sentido e abordar a construção identitária pela palavra.
Acreditamos que esse movimento pode gerar engajamento na aula e interesse pela leitura dos textos de Mia
Couto.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
O professor começará esta etapa, pedindo aos alunos para socializarem suas pesquisas sobre Mia Couto e
Moçambique: divididos em grupo, registrarão os conhecimentos em uma ficha. Depois, em uma roda de
conversa, o docente apresentará as seguintes questões à turma:
• Quem é Mia Couto?
• O que sabemos sobre suas obras?
• E sobre Moçambique?
Para fundamentar mais a discussão, sugere-se a escuta de um trecho de um podcast feito por uma
educadora de leitura da cidade de Tiradentes/MG sobre o escritor (até o tempo de 2:22, <https://www.
youtube.com/watch?v=qPbKGeMvEuw>) e, na sequência, a exibição da parte inicial de uma reportagem
sobre Moçambique (<https://www.youtube.com/watch?v=c3S_lzeRmWI>). Ficará a critério do professor
usar estes materiais aqui citados ou substituí-los por outros, a fim de adequar a presente proposta didática
aos interesses e necessidades da turma.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
A introdução contempla a apresentação do(a) autor(a) e da obra. É importante que esta etapa não se
prolongue muito, para que o aluno faça por si só outras incursões pela materialidade do texto literário.
Foi pensando em todas essas orientações que planejamos esse percurso. O objetivo é ampliar o horizonte
de conhecimentos culturais dos alunos, pois assim terão mais condições de construir os sentidos do texto.
Os materiais escolhidos, áudio e vídeo, não são exaustivos e tratam de destacar informações relevantes
sobre Mia Couto, sua escrita e seu país.

185
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Nossa concepção de leitura vai ao encontro da teoria de Isabel Solé, em “Estratégias de Leitura” (1998): o
texto literário precisa ser explorado pelo aluno de forma ativa. Nesse caso, o professor assume um papel
de moderador, e os alunos assumem progressivamente quatro estratégias para uma leitura eficaz (ler,
resumir, questionar, prever).
Acreditamos que ler é um procedimento, e apenas conseguimos ter acesso ao domínio dos procedimentos
através de seu exercício. Por esse motivo, não basta que o professor mostre como se constrói a leitura.
Os próprios alunos devem selecionar marcas e indicadores, fazer hipóteses, verificá-las, construindo o
sentido do texto de forma colaborativa. É preciso dialogar com o texto literário: indagar quem e quando
diz, o que diz, como diz, para que diz e para quem diz. Respostas que só podem ser obtidas quando se
examina o texto de forma contextualizada e se insere a obra em um diálogo com outros tantos textos.
A leitura compartilhada em sala de aula tem um caráter formativo, e caberá ao professor trilhar seu
percurso exploratório do texto juntamente com a turma. Além disso, para Cosson (2014), às aulas no
formato de oficinas podem propiciar o ensino das estratégias de leitura do texto literário, de modo que as
atividades sejam divididas em motivação, introdução e interpretação.
1.2 Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Optou-se por esta concepção de leitura, porque dá mais protagonismo aos alunos e rompe com a
tradicional “leitura guiada” pelo professor. Nesse processo, os alunos são sujeitos partícipes da leitura e
interpretação, lendo em voz alta ou em silêncio junto com a turma, questionando sua própria leitura (“O
que entendi?”; Por que entendi assim?”), atribuindo coletivamente sentidos ao texto, compartilhando as
próprias estratégias de compreensão da obra literária.

2.
2.1. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária
Percurso: a proposta é o docente ler com a turma e em voz alta um trecho do conto “A menina sem
palavra” (2018, p. 31). Em seguida, recapitula juntamente com os alunos os acontecimentos principais
da parte lida e proporá algumas questões, como por exemplo: O que acontece quando a personagem fica
diante do mar? Qual a atitude do seu pai?.
Em um segundo momento, perguntará o que acham que acontecerá na história (antecipação). Uma vez
compartilhadas as respostas, a leitura será retomada para a validação das hipóteses. Assim, o ciclo será
novamente iniciado: ler um trecho da obra, resumir, questionar, prever. Para esta etapa, o professor poderá
usar algumas imagens no Canva ou PowerPoint, a fim de envolver mais os alunos nas estratégias de leitura.
O mesmo processo será feito com o conto “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57). Aqui merece uma
atenção especial as palavras criadas por Mia Couto e a questão do racismo, que é latente. Depois da
leitura e recapitulação oral, ou resumo escrito, da primeira parte do texto, algumas questões mostram-se
importantes para a discussão na sala de aula:
• Quem é Tiago?
• Como é a relação de Tiago com o vendedor de pássaros?
• Como o vendedor é tratado pelos adultos? Que passagens comprovam esse tratamento?
• Os alunos conseguiram compreender a linguagem do texto? Que palavras são diferentes, ou seja,
neologismos?

Na sequência, os alunos poderão elaborar em grupo questões de antecipação e compartilhá-las com a


turma. Só então partirão para a leitura final do conto.

186
2.2. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Acreditamos que o percurso exploratório de resumir, questionar, prever, feito em diferentes etapas,
realmente engaja os alunos na leitura compartilhada em sala de aula. Nesse caso, abandona-se a prática
escolar da leitura totalmente individual e da tradicional “leitura guiada”, para dar lugar a uma interação
mais significativa com o texto literário: será em grupo que o aluno validará suas hipóteses de leitura e
construirá novas expectativas de desfecho da obra literária.

187
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.3. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
Primeiro, sugerimos que o docente promova uma roda de conversa sobre a primeira obra lida, “A menina
sem palavra” (2018, p. 31). Para mobilização, poderá usar uma caixa com importantes questões sobre
o enredo, contemplando as três partes principais da narrativa: 1) a menina que não fala, um dia, fala a
palavra “mar” (O que seu pai faz então?); 2) a menina, sentada na areia e defronte ao mar, não se mexe,
mesmo com a cheia da maré. O pai lhe conta uma história. (O que acontece com a Lua nessa história?; Qual
a reação da menina?); 3) a garota se levanta, avança mar adentro e vê algo misterioso. (Nesse instante, o
que acontece com o mar?; Por que a história criada pelo pai se mistura com a história da menina?).
Em outro momento, os alunos pesquisarão aspectos culturais de Moçambique: línguas, tradições, religião,
processo de independência, compartilhando suas descobertas com a turma e tentando relacionar esses
aspectos à obra. A pesquisa, realizada preferencialmente na escola, contará com a mediação docente,
tendo em vista que esta proposta didática se dirige aos alunos do Ensino Fundamental II.
Ao final, o docente questionará sobre o sentido metafórico deste conto: O que a menina sem palavra e seu
encontro com o mar pode representar? Que elementos culturais de Moçambique são identificados no texto?
Depois desse percurso interpretativo, caberá ao professor aprofundar a análise. Poderá, por exemplo,
explicar que este conto pode ser compreendido como uma metáfora para o próprio Moçambique no
período pós-colonial, que está perdido, sem voz e que busca ansiosamente por sua identidade.
Sobre o conto “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57), sugere-se que os alunos, em duplas, façam um
resumo do conto na forma escrita (texto) ou oral (podcast). Tal produção será compartilhada e discutida
em aula. Para concluir, cada aluno deverá refletir sobre o sentido da figura do “embondeiro de pássaros” e
deixar seu comentário crítico em um mural (físico, feito em sala de aula, ou digital, no Jamboard <https://
jamboard.google.com>):
• O que este homem representa e por quê? A Liberdade? A natureza? A humildade? (...)
É importante ressaltar que essas atividades de registro podem variar, dependendo da idade e do nível
escolar dos estudantes.
1.4. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
Segundo Nascimento (2020), nesta etapa diversas situações podem ser propostas: produção de um
desenho que retrate uma cena da narrativa; seleção de uma canção que se relacione com a situação
vivida por determinada personagem, dramatização da história, realização de um sarau e declamação de
fragmentos do texto, entre outras.

Para Rildo Cosson (2014, p. 65-66), há dois momentos de interpretação no processo de ensino-aprendizagem
de leitura literária. O primeiro momento é o interior: “aquele que acompanha a decifração, palavra por
palavra, página por página, capítulo por capítulo, e tem seu ápice na apreensão global que realizamos logo
após terminar a leitura”. É o que chamamos de encontro do leitor com a obra. Já o segundo momento é o
exterior: “a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma
determinada comunidade”. Em outras palavras, os estudantes compartilham sua compreensão da obra e
ampliam os sentidos do texto, tornando-se sujeitos autores de outras produções discursivas.
As atividades de interpretação descritas acima seguem esse movimento do interior e exterior: a roda de
conversa sobre as partes principais de “A menina sem palavra” (2018, p. 31) e a produção de um resumo
sobre “O embondeiro de pássaros” (2018, p. 57) buscam promover uma aproximação à literariedade
do texto, fazendo o aluno seguir a sequência narrativa dos fatos e dominar sua compreensão. As outras
atividades propostas são de externalização: discutir uma obra literária a partir de sua contextualização
histórica e cultural e construir um ponto de vista sobre uma personagem, registrando-o em um mural.

188
2.
2.3. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
Sugerimos que a avaliação seja formativa e classificatória. Acreditamos que observar e avaliar
qualitativamente esse percurso de exploração da obra literária seja muito rico, afinal, o leitor mobiliza
várias habilidades de leitura e escrita. Para ajudar nesse processo, o professor poderá elaborar uma rubrica
de autoavaliação, de maneira que o estudante reflita e avalie sua participação em cada uma das etapas
anteriores; poderá fazer registros sobre o progresso dos alunos; entre outros.
Caso o aluno não tenha vivenciado esse percurso de forma satisfatória, porque não se dedicou à leitura
dos contos ou atividades propostas, ou por outro motivo, o professor poderá solicitar a produção de
uma resenha sobre os contos lidos, no formato de vídeo ou texto escrito. Ler, resumir e assumir um
posicionamento crítico diante do texto literário são estratégias de letramento que mobilizam os alunos.
2.4. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Nossa proposta de avaliação está fundamentada na concepção de Rildo Cosson (2014) de que a leitura
literária e a avaliação são processos que precisam andar juntos. E foi também pensada dessa forma,
porque é importante valorizar as atividades literárias aqui descritas como práticas sociais e espaços
de negociação de diferentes interpretações, respeitando-se sempre os limites do próprio texto. Assim,
a leitura compartilhada e as discussões em grupo a partir de questões orientadoras são centrais neste
processo de letramento, sobretudo porque implicam um repensar coletivo sobre a obra literária. Já as
práticas de escrita mobilizam diferentes conhecimentos e permitem ao leitor encontrar seu próprio lugar
de fala no mundo.

3.
3.1. Referências Bibliográficas

COUTO, Mia. A menina sem palavra. São Paulo: Ed. Bonifácio, 2018. E-book Kindle.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014. E-book Kindle.

____________. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

MICHELETTI, E. F. A palavra viva de Mia Couto. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), [S. l.], v. 46, n.
3, p. 1167–1179, 2017. DOI: 10.21165/el.v46i3.1630. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-
linguisticos/article/view/1630. Acesso em 09/10/2021.

NASCIMENTO, Gilles Villeneuve Souza. Letramento literário e Cordel: o ensino de literatura por um novo
olhar. Curitiba: Appris Editora, 2020. E-book Kindle.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Mia Couto: o outro lado das palavras e dos sonhos. Via Atlântica,
[S. l.], n. 9, p. 71-84, 2006. DOI: 10.11606/va.v0i9.50041. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
viaatlantica/article/view/50041. Acesso em 28/09/2021.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 4 ed.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. 6ª ed. E-book Kindle.

SOUZA, Renata Junqueira de; COSSON, Rildo. Letramento Literário: uma proposta para a sala de aula
(2011). Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/handle/123456789/40143. Acesso em 19/09/2021.

189
Clube virtual de leitura pelo WhatsApp
8 uma possível prática de letramento literário no
ensino médio

Sabrina Novais Lima e Silva1


Patrícia Pedrosa Botelho2

RESUMO
O presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo demonstrar uma possível
experiência de letramento literário em uma turma de 3ª série do ensino médio no contexto
escolar atual, pandêmico, mas que pode ser adaptado às demais séries do ensino médio, bem
como aos anos finais do ensino fundamental, desde que pertinente a temática para aplicação
do projeto. Ancorado em uma prática social de inserção crítica à sociedade moçambicana,
este trabalho tem o intento de propiciar a leitura e a reflexão por meio do fragmento do
texto “Eu, mulher”, de Paulina Chiziane, do conto popular moçambicano “A gata, a cadela
e a dona de casa grávidas”, publicado no livro Contos de Moçambique, adaptado por Luana
Chnaiderman de Paiva Almeida, e o primeiro capítulo da obra Niketche: uma história de
poligamia, de Paulina Chiziane. Além disso, este trabalho demonstra de que modo um clube
virtual de leitura pelo WhatsApp pode fomentar o letramento literário desses estudantes que
pouco têm acesso às obras literárias, expondo, dessa forma, estratégias que podem auxiliar
professores de Língua Portuguesa no trabalho pedagógico com a literatura em sala de aula.
Para proceder a tal análise, partiremos dos pressupostos teóricos e críticos de Cosson (2021),
de Dalvi (2013) e de Jouve (2013).

Palavras-chave: letramento literário; clube virtual de leitura; literatura moçambicana;


escola pública.

1 Graduada e licenciada em Letras: Português e Espanhol pela Universidade de São Paulo (2008). Especialista em Língua
Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014). Licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Administração,
Ciências, Educação e Letras (2018). Especialista em Literaturas de Língua Portuguesa. Identidades, Territórios e deslocamentos:
Brasil, Moçambique e Portugal pela Universidade Federal de São Paulo (2020 - 2021). Atualmente é professora efetiva de Língua
Portuguesa/Literatura na Escola Estadual Gal. Humberto de Souza Mello e de Língua Espanhola em rede privada de ensino. E-mail:
profasabrina@yahoo.com.br
2 Pós-doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2015); Doutora em Literatura Comparada
pela Universidade Federal Fluminense (2013); Mestre em Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (2008) e Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente, atua como professora colaboradora
do Mestrado Profissional em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (desde 2017) e como professora do Instituto Federal do
Sudeste de Minas Gerais, campus Juiz de Fora (desde 2010). E-mail: patricia.botelho@ifsudeste.mg.edu.br

191
1. Introdução
Este artigo tem como objetivo discutir sobre o trabalho com a literatura no contexto
escolar atual, mesmo em meio à pandemia, mediado pela tecnologia, tendo como delimitação
temática o estudo do conto popular moçambicano “A gata, a cadela e a dona de casa
grávidas”, publicado no livro Contos de Moçambique, adaptado por Luana Chnaiderman de
Paiva Almeida, o fragmento do texto “Eu, mulher” e o primeiro capítulo da obra “Niketche:
uma história de poligamia”, ambos da escritora moçambicana Paulina Chiziane.

Neste artigo será demonstrado um projeto literário que pode ser desenvolvido no
contexto de ensino presencial e híbrido, para que, dessa forma, possa propiciar oportunidade
de letramento literário aos estudantes, indo além do mero prazer do texto. A plataforma
sugerida é um grupo de WhatsApp e, o meio, um clube virtual de leitura no qual os estudantes
da 3ª série do ensino médio terão contato com textos de diferentes linguagens. Além de poder
conhecer textos literários em língua portuguesa provenientes de outro país que fala a mesma
língua deles, os estudantes podem vir a ter uma experiência de letramento literário ancorado
em uma prática social de inserção crítica à sociedade moçambicana, proporcionando um
diálogo entre Moçambique e Brasil, relacionando pontos de encontros e desencontros.

Na escola pública, o texto literário, em muitos casos, é trabalhado apenas no excerto


retratado no livro didático ou nos materiais de apoio (apostilas da rede) usados pelos
professores e estudantes. Faltam obras literárias nas bibliotecas e salas de leitura. A pandemia
de COVID-19 trouxe ainda mais desafios para a prática pedagógica dos professores de Língua
Portuguesa e Literatura – nomenclatura usada aos professores de ensino médio -, e de Língua
Portuguesa – dos anos iniciais e finais do ensino fundamental -, no que tange ao trabalho
com a leitura de textos literários. Em muitos casos, devido à falta de recursos técnicos e
de conhecimento das metodologias voltadas para o ensino e aprendizagem em contextos
digitais, muitos professores deixaram de trabalhar com textos literários ou o reduziram
apenas ao mero prazer em ler, relegando estratégias de acompanhamento de leitura.

Um clube virtual de leitura por meio de grupo de WhatsApp foi o meio escolhido para
embasar o projeto de letramento literário, por se tratar de uma plataforma digital à qual
muitos alunos têm acesso. Os textos de literatura moçambicana foram escolhidos para o
presente estudo por se tratar de uma literatura pouco conhecida e pouco difundida nas
escolas, além de trazerem em seu escopo, temáticas sociais pertinentes ao debate. Inspirado
na proposta de letramento literário e nos círculos de leitura de Cosson (2021), nas propostas
didático-metodológicas de Dalvi (2013) sobre o trabalho com a literatura na escola e o
percurso em três tempos de Vincent Jouve (2013), que demonstra um processo que fomenta

192
o protagonismo dos estudantes nas aulas de literatura, o projeto de letramento literário por
meio de um clube virtual de leitura foi idealizado.

2. Contextualização
A palavra literatura e os estudos literários geralmente aparecem oficialmente na escola
básica como objeto de estudo apenas no ensino médio, quando se percebe nas práticas
pedagógicas, temáticas voltadas para estudo das escolas literárias e literatura nacional,
geralmente estudados por trechos inscritos nos livros didáticos adotados pelo PNLD3 vigente.

Após a leitura do texto de Souza (2014), percebi que tive na universidade o mesmo tipo
de ensino de literatura: uma abordagem linear, com supervalorização dos chamados clássicos
da literatura (cânones baseados em padrões culturais tradicionais). Não me recordo de ter
estudado literatura com um olhar voltado para a diversidade.

Hoje, como professora de Língua Portuguesa, no ensino fundamental, consigo trabalhar


de maneira mais efetiva com textos literários. Embora tenha muito a melhorar, percebo que
nos anos finais do ensino fundamental desenvolvo um trabalho com a literatura bastante
atrelado à diversidade. No ensino médio, infelizmente, vinha seguindo os paradigmas que
aprendi, cuja confluência literatura/educação está enraizada no universal, no nacional e um
pouco na literariedade. Poderia dizer que enfatizava mais as escolas literárias que as obras
em si. Infelizmente diversos fatores acabam por influenciar essa minha prática e a maior
delas é o desinteresse dos alunos pela leitura (será que eles são desinteressados ou nossa
metodologia não funciona?).

Contemplar o ensino de literatura que foge ao paradigma histórico-nacional do livro didático


é um grande desafio. Segundo a professora Drª Maria Amélia Dalvi, em seu artigo “Literatura na
escola: Propostas didático-metodológicas” (2013), nem toda sugestão está isenta de falhas, havendo
sempre a necessidade de complementação. As sugestões apresentadas por ela são de despertar
a consciência intercultural, permeada pela língua portuguesa, visto que favorece a identidade
pessoal e coletiva; além disso, com esse estudo de Dalvi, vemos a necessidade de nos dedicarmos
à constituição do sujeito leitor, relacionando o texto em si às vicissitudes de cada aluno em relação
ao objeto texto. Na mesma esteira, podemos citar o percurso em três tempos de Vincent Jouve
(2013), que laureia o trabalho com a literatura na sala de aula, pois demonstra um percurso que
primeiramente explora as impressões pessoais dos alunos, passando pela mediação do professor

3 Plano Nacional do Livro Didático.

193
no cotejamento do que é genuíno ao texto e o que é acréscimo do leitor, até chegar à última etapa,
quando os estudantes conseguem identificar o que os levou a ter determinadas impressões do texto,
ou seja, as considerações teórico-metodológicas demonstram processos essenciais que fomentam o
protagonismo dos estudantes nas aulas de literatura.

O atual contexto de pandemia4, quando muitos responsáveis pelos alunos ainda preferem
(e amparados pela legislação vigente da não obrigatoriedade de presença física na escola) tê-
los em casa desenvolvendo suas aprendizagens em ensino remoto, e a vontade de pôr em
prática os questionamentos e conhecimentos desenvolvidos ao longo desta especialização,
optei pelo presente recorte temático e delimitação de problema: discutir como a literatura
pode ser trabalhada no contexto escolar atual, em meio a uma pandemia, mediada pela
tecnologia.

3. Fundamentação teórico-metodológica
Moçambique é um país plural, rico em diferentes identidades, línguas e valores culturais,
sendo assim, temos que sempre ser cautelosos para não reduzir toda essa diversidade em
algo único. Esse discurso da unidade nacional causa apagamento da diversidade, negação das
diferenças entre literatura colonial e pós-colonial na perspectiva moçambicana.

[...] pelo simples fato de as literaturas africanas terem surgido em situação de domínio
colonial e na tentativa de procurarem afirmar um universo estético próprio e que incorpora e
celebra tudo o que o Ocidente ignorou ou subestimou, acabaram, essas mesmas literaturas,
por fazerem da escrita não só um ato cultural, mas também político (NOA, 2015, p. 15).

A experiência literária é capaz de conduzir seus leitores à preparação para a vida,


ampliar percepções sobre si e sobre os outros (alteridade e construção de identidade).
Antonio Candido (2002) postula que não é o que é dito nos textos que os aproxima ou afasta
da função humanizadora, mas, sim, a forma como os recursos da linguagem são manipulados
e elaborados em cada uma das narrativas.

O crítico francês Roland Barthes num trecho famoso do livro Aula, quando indaga acerca
do saber próprio da literatura, diz:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber
histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da
4 Este artigo foi pensado e escrito entre os meses de julho de 2020 a outubro de 2021, quando a legislação educacional
vigente reconhecia o ensino remoto como alternativa ao presencial para manutenção das aprendizagens e pressupunha a não
obrigatoriedade de presença dos estudantes nos ambientes físicos da escola.

194
natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia
ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (...) Entretanto, e
nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza
nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele
permite designar saberes possíveis — insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos
interstícios da ciência: está sempre atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à
pedra de Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor
indireto, ilumina o novo dia que chega. (...) Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é
inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma
coisa (...) (BARTHES, 1979, p. 18-19).

Permeadas pela literatura, as considerações apresentadas favorecem a construção


da identidade pessoal e coletiva, saberes necessários de serem desenvolvidos no ambiente
escolar. Segundo Larrosa (2004), é necessário literaturizar a escola e a pedagogia, em
detrimento de escolarizar e pedagogizar a literatura. Sendo assim, as escolas devem propiciar
oportunidade de letramento literário aos estudantes, indo além do mero prazer. Usar a
literatura para exemplificar os saberes desenvolvidos nos diversos componentes curriculares
favorece a interdisciplinaridade e a construção da própria identidade.

O letramento literário oportuniza aos estudantes não somente vivenciar na materialidade


do texto as competências cognitivas da leitura e da escrita, como também desenvolver
competências necessárias ao seu desenvolvimento integral. Conhecer textos de literatura
moçambicana oportuniza não somente acesso a mais uma literatura de língua portuguesa
pouco conhecida e pouco difundida nas escolas, mas também o vivenciar temáticas sociais
pertinentes ao debate. Além das competências e habilidades cognitivas, o letramento literário
favorece desenvolver aquelas relacionadas à comunicação e ao sócio emocional do estudante.
Cabe à literatura “[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em
palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006, p. 17
apud SOUZA; COSSON, 2011, p. 102).

O conto “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas”, publicado no livro Contos de


Moçambique, adaptado por Luana Chnaiderman de Paiva Almeida, além de tratar das
questões culturais da maternidade e do casamento, demonstra aos leitores a importância da
oralidade no que se refere à literatura africana, da figura dos contadores de histórias que as
contavam ao pé das fogueiras:

A literatura escrita africana é muitas vezes baseada nas histórias orais contadas através
dos anos nas tradicionais rodas de contação de história em volta da fogueira. Percebemos
nos livros de literaturas africanas diversos aspectos que, quando analisamos bem, notamos

195
poderem muito provavelmente terem saído das histórias orais contadas pelos narradores
das comunidades tradicionais, como as histórias com presença de aspectos místicos, do
imaginário ou elementos fantásticos, com muitas fábulas, com a presença de objetos
inanimados falando, como árvores ou rios (CRUZ, 2014, p. 11).

O conto traz elementos fantásticos, como uma cadela e uma gata personificadas,
que parem crianças e falam. Além disso, é iniciado de uma maneira bem característica das
narrativas populares orais, com a locução adverbial de tempo “era uma vez” e finalizando
com desfecho em que tudo se resolve em final feliz.

Paulina Chiziane, a primeira mulher moçambicana a publicar um romance em seu país,


apesar de não se considerar romancista, mas uma contadora de histórias, no fragmento do
texto “Eu, mulher” e na obra “Niketche: uma história de poligamia”, desenvolve não somente
as questões culturais moçambicanas retratadas no conto “A gata, a cadela e a dona de casa
grávidas”, mas também problematiza a questão da poligamia e do lobolo5, a condição da
mulher moçambicana frente ao casamento infantil e arranjado, temáticas culturalmente
diferentes do nosso país, o Brasil, isto é, da realidade sociocultural dos estudantes.

Os textos literários escolhidos para serem trabalhados neste artigo trazem em seu bojo
a discussão sobre a diversidade, buscando a compreensão de identidades, de territórios e de
deslocamentos. Os textos têm por objetivo promover uma integração cultural comunitária
que respeita as diversidades, pois são leituras que exploram os temas da discriminação
da mulher negra em contexto violentamente machista, a tradição como forma de busca
identitária e a incorporação da oralidade na literatura.

De acordo com Cosson, “ensinar literatura é ensinar por meio do conhecimento sobre
as obras literárias como nos constituímos e aquilo que nos define culturalmente como nação”
(COSSON, 2020, p. 46 apud LOYOLA; NETO, 2021, p. 56). Os textos escolhidos reconstroem
a própria identidade dos estudantes a partir do reconhecimento do que é ser mulher no
contexto apresentado, qual seja, o moçambicano.

Sabe-se que promover o letramento literário como construção literária dos sentidos é ir
além do mero prazer de um texto literário, subentendendo uma organização e aprendizagem
de estratégias de leitura. Segundo Souza e Cosson (2011), há condições imprescindíveis para
se chegar à formação do repertório do leitor, como: seleção do livro a ser lido; ensino de
estratégias de leitura por meio de oficinas de leitura que desenvolvam as habilidades de
leitura; desenvolvimento de uma prática guiada com leitura compartilhada e construção de
significados através de discussão; avaliação e conversa em grupo sobre o texto lido. Cumpre-
5 De acordo com o site Infopedia, ‘lobolo’ é uma palavra masculina derivada do ronga. É uma espécie de dote que o noivo
dá à família da noiva para legitimar o casamento. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/lobolo

196
se, assim, enfatizar que:

[...] o objetivo maior do letramento literário escolar ou do ensino da literatura na escola é nos
formar como leitores, não como qualquer leitor ou leitor qualquer, mas um leitor capaz de se
inserir em uma comunidade, manipular seus instrumentos culturais e construir com eles um
sentido para si e para o mundo em que vive (SOUZA; COSSON, 2011, p. 106).

Sendo assim, o projeto de letramento literário que pode ser oportunizado pelo clube
virtual de leitura pelo WhatsApp a estudantes da 3ª série do ensino médio, foi planejado e
pensado com o intuito de construção e reconstrução de sentidos para si e para o mundo em
que vive, sob os preceitos dos círculos de leitura de Cosson. Esses círculos são definidos pelo
próprio Cosson, em verbete do Glossário CEALE – Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita
para Educadores, do seguinte modo:

Círculo de leitura é basicamente a reunião de um grupo de pessoas que se reúnem em uma


série de encontros para discutir a leitura de uma obra. Esses encontros podem ser realizados
na sala de aula como parte das atividades da disciplina Língua Portuguesa ou Literatura.
Também podem ser realizados na biblioteca da escola ou na biblioteca pública do bairro ou
da cidade. Nesses espaços, os círculos de leitura costumam ter um caráter mais formativo
e contar com o apoio institucional. Círculos de leitura deveriam fazer parte de todos os
programas de leitura, seja das bibliotecas públicas, seja das escolas (COSSON, 2021, p. 157-
158).

Os círculos de leitura propostos por Cosson dividem-se em três tipos, de acordo com
o modo como funcionam. O tipo escolhido para o projeto clube virtual de leitura foi aquele
denominado círculo estruturado, que obedece a uma estrutura previamente estabelecida
com papéis definidos para cada integrante e um roteiro para guiar as discussões, além de
atividades de registro antes e depois da discussão (COSSON, 2021, p. 158-159).

Ainda que nos preocupemos com a organização e a aprendizagem de estratégias de


leitura, promovidas pelos círculos de leitura para promover o letramento literário como
construção literária dos sentidos, é necessário ir além do mero prazer de um texto literário.
Dalvi (2013), nesse sentido, aponta a necessidade de se dedicar à constituição do sujeito
leitor, relacionando o texto em si e as contribuições de cada aluno em relação ao objeto
texto:

É necessário que as emoções e os afetos – a alegria, a tristeza, a angústia, a piedade, a


indignação, a revolta... -, fundamentais nos jovens, nos adolescentes e nas crianças, não
sejam asfixiadas ou esterilizadas no ato de leitura por matrizes ou grades de leitura ou por
modelos analítico- interpretativos de aplicação mecânica. Nessa perspectiva, as emoções e
os afetos são indissociáveis do conhecimento do mundo, da vida e de si próprio que o texto

197
literário possibilita e ajuda a desenvolver no leitor. As opiniões, as crenças e os valores do
leitor são interpelados pelo texto literário – e vice-versa (DALVI, 2013, p. 80).

Por isso é tão importante dar voz aos estudantes após a leitura, mas não para questionar
apenas sobre a literariedade do texto, mas primeiramente sobre as impressões que tiveram,
suas reflexões acerca do que leram. Trabalhar o implícito é o grande diferencial na sala de
aula e uma das maiores dificuldades nos níveis de proficiência do SAEB6.

Ainda sobre a constituição do sujeito leitor, o crítico francês Vincent Jouve aponta o
trabalho com a literatura na sala de aula pautado em um processo chamado “percurso em
três tempos”. Os caminhos indicados por Jouve fomentam o protagonismo e letramento
literário dos estudantes, respeitando a identidade e a formação do sujeito leitor na mediação
da leitura:

A primeira etapa corresponde à exploração, pelo mediador, das impressões pessoais


dos alunos. Em outras palavras, após a leitura do texto, abrir espaço para que tais impressões
apareçam e encontrem acolhida por parte do mediador. A segunda etapa – talvez a que
exija maior habilidade do mediador – consiste no cotejamento entre as impressões de leitura
iniciais e os dados textuais. Na terceira etapa, é sugerido que o mediador leve os alunos a
entenderem de onde surgiram as reações subjetivas que se apresentaram logo após a leitura,
o que possibilitaria o retorno a si, de que ele fala no artigo (JOUVE, 2013, p. 61 apud LOYOLA;
NETO, 2021, p. 98).

Podemos ver os estudantes desenvolvendo o percurso em três tempos de Jouve, sendo


mediados pelo professor, construindo e reconstruindo os sentidos do texto e também suas
próprias identidades, pois cada um dos estudantes tem a possibilidade de falar a partir de
seu próprio conhecimento de mundo. Ao professor, cabe não corrigir a leitura, mas respeitar
a formação do sujeito leitor e refletir sobre as subjetividades de cada um, amparado pelo
objeto texto.

Observadas as orientações teórico-metodológicas de Cosson, Dalvi e Jouve, cria-se


uma proposta pedagógica literária que favorece o letramento literário e um processo de
conhecimento e reconhecimento de si ao contemplar textos literários que promovam uma
integração cultural comunitária que respeite as diversidades.

6 Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) é um conjunto de avaliações externas em larga escala que permite
ao Inep realizar um diagnóstico da educação básica brasileira e de fatores que podem interferir no desempenho do estudante.
Aplicados a cada dois anos na rede pública, cujos resultados são indicativos da qualidade do ensino brasileiro e oferece subsídios
para a elaboração, o monitoramento e o aprimoramento de políticas educacionais com base em evidências. Realizado desde 1990,
o Saeb passou por várias estruturações até chegar ao formato atual. A partir de 2019, a avaliação contempla também a educação
infantil, ao lado do ensino fundamental e do ensino médio. Disponível em https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/
avaliacao-e-exames-educacionais/saeb

198
4. Apresentação e constituição do objeto de pesquisa: Desafio
de ensino- aprendizagem: mediação e compartilhamento de
experiências de leitura literária
Esta pesquisa tem como objetivo geral apresentar de que modo a literatura pode ser
trabalhada no contexto escolar atual, mesmo em meio à pandemia, com estudantes da 3ª
série do ensino médio. Este projeto é adaptável também para turmas dos anos finais do
ensino fundamental, tendo como objetivos específicos:

• apresentar o contexto histórico e social que envolve a atual sociedade moçambicana em


relação à condição feminina;

• discutir acerca de obras literárias provenientes de Moçambique e, dessa forma, ampliar


o acesso a obras literárias em língua portuguesa provenientes de outro país que fala a
mesma língua dos estudantes;

• demonstrar uma possível experiência de letramento literário ancorado em uma prática


social de inserção crítica à sociedade moçambicana, proporcionando um diálogo entre
Moçambique e Brasil, relacionando pontos de encontros e desencontros;

• representar, por meio de um projeto propositivo de intervenção em sala de aula, as


dificuldades e facilidades que, por ventura, podem ser encontradas pelos estudantes na
leitura de textos literários por meio de um clube virtual de leitura;

• discutir de que maneira o WhatsApp pode ajudar e fomentar o letramento literário de


estudantes de escola pública que pouco têm acesso às obras literárias;

• expor estratégias que podem auxiliar professores de Língua Portuguesa no trabalho


pedagógico com a literatura em sala de aula.

Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)

1.1. Público-alvo: 3ª série do Ensino Médio.


1.2. Tempo de Duração: 4 semanas, com 12 encontros virtuais.
1º encontro: Formação do grupo de WhatsApp e estabelecimento dos objetivos do
clube virtual de leitura.

199
2º Encontro: Encaminhamentos para motivação de leitura (reportagem sobre
Moçambique).
3º Encontro: Comentários sobre o texto.
4º Encontro: Encaminhamentos para motivação de leitura (notícias 1 e 2).
5º Encontro: Comentários sobre as notícias.
6º Encontro: Postagem do texto “Eu, mulher”.
7º Encontro: Comentários sobre o texto, relacionando-o com as notícias.
8º Encontro: Postagem do texto “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas”.
9º Encontro: Comentários sobre o texto.
Avaliação de leitura literária – Sugestão: Google formulários.
10º Encontro: Proposta de leitura literária - 1º capítulo de Niketche: uma história
de poligamia, de Paulina Chiziane.
11º Encontro: Comentários sobre o texto – Sugestão: Padlet.
12º Encontro: Autoavaliação – Sugestão: Google formulários.

1.3. Definição da prática de letramento literário:

Fazer uso do círculo de leitura estruturado para a feitura de um clube virtual de leitura pelo
WhatsApp, devido ao contexto atual de pandemia. Podem-se utilizar o Google Classroom e
mesmo grupos de WhatsApp que manteriam o vínculo e o engajamento dos estudantes.

1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:

Encontro da professora-mediadora com os estudantes para discutir textos previamente


estabelecidos, usando ferramentas digitais, no caso, um grupo de WhatsApp.

Já definidas as leituras, a professora estabelece as regras do clube de leitura. Cada participante


faz no mínimo duas postagens de cada texto: um comentário sobre ele e um comentário
sobre a postagem de um colega.

Os comentários precisam ser postados durante o dia combinado entre os participantes e


relacionados às perguntas da professora-mediadora. As postagens devem ser respeitosas e a
linguagem simples e direta. Além disso, deve-se ter cuidado com a ortografia e não permitir
que os alunos abusem de abreviações.

Após a prática virtual de leitura, deve sempre haver a avaliação da experiência de participar

200
de tal atividade; isso pode ser feito por meio de um formulário enviado no próprio grupo de
WhatsApp.

1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:

O clube virtual de leitura é uma sugestão de atividade que tem por intento promover a
interação e a prática de letramento literário. Os objetivos deste clube de leitura são ampliar
o repertório de leituras literárias dos estudantes e, ao mesmo tempo, propiciar práticas de
leitura, escuta e escrita. Além disso, promover a interação com a linguagem do texto literário,
o reconhecimento do outro e o movimento de desconstrução e construção do mundo com
textos que dão a ver a diversidade, as identidades, os territórios e os deslocamentos nas
literaturas de língua portuguesa.

Passo 2: Motivação, introdução e apresentação no processo de letramento literário

2.1 Proposta de estratégias de motivação de leitura:

O grupo de WhatsApp do clube virtual de leitura deve ser criado pelo professor que
aplicará o projeto de letramento literário e o link de convite para sua participação deve ser
encaminhado em um grupo de estudantes já existente7 ou individualmente a cada um deles.
Os estudantes começam a entrar no grupo recepcionados com comentários de boas-vindas
por parte do professor. No mesmo dia, deve ser publicada no grupo uma mensagem com
explicação do que é um clube de leitura e o porquê da nomenclatura virtual; além disso, as
regras de participação precisam ser estabelecidas.

No dia seguinte, propõe-se que seja feita uma sensibilização dos estudantes com uma
reportagem sobre Moçambique e, no dia posterior, um texto sobre os direitos da mulher e
o casamento infantil e/ou arranjado em Moçambique.

Há alguns anos, o repertório dos alunos era muito influenciado pela televisão, por seus
programas e desenhos preferidos. Usar a tecnologia em sala de aula ajuda os estudantes a vê-
la não só como uma ferramenta de entretenimento e distração, mas como um instrumento
de estudo, pesquisa, enfim, como ambiente de aprendizagem.

Ao escolher a reportagem sobre Moçambique e as notícias de jornal indicadas, o intuito é


engajar os estudantes e propiciar uma melhora significativa na leitura, escrita e oralidade
7 Geralmente os estudantes de cada turma costumam criar um grupo de WhatsApp da sala cada início de ano letivo para
troca de informações e mensagens escolares ou não.

201
deles, repertoriando-os para discussões após a leitura dos textos “Eu, mulher”, o conto “A
gata, a cadela e a dona de casa grávidas” e o primeiro capítulo da obra Niketche: uma história
de poligamia, de Paulina Chiziane.

O intuito final é promover o debate dos direitos da mulher e o casamento infantil e/ou
arranjado em Moçambique por meio da literatura que, conforme postula Antonio Candido, é
humanizadora, pois traz os valores que a sociedade preconiza ou os que considera prejudiciais,
denunciando-os, permitindo-nos vivê-los dialeticamente.

2.2. Proposta de apresentação da leitura literária, acompanhamento e avaliação:

Após os encaminhamentos para motivação da leitura, já pode ser encaminhado o fragmento


do texto “Eu, mulher” de Paulina Chiziane. No encontro seguinte, deve ser feita a mediação
sobre a recepção do texto. Cada aluno deverá postar um comentário, relacionando o
fragmento do texto lido com as notícias encaminhadas nos encontros anteriores. Cada aluno
também deverá, segundo as regras do clube de leitura virtual, comentar a 1ª postagem de
um colega.

No encontro seguinte, será publicado o conto popular moçambicano “A gata, a cadela e a


dona de casa grávidas”. Neste momento da proposta de intervenção, os estudantes devem
ser capazes de fazer relação com os textos anteriores, percebendo semelhanças na temática
e escrever no grupo.

Acompanhar a leitura é necessário se deseja-se promover o letramento literário dos


estudantes. É importante acompanhar, não para policiar a leitura, mas para manter a
motivação e chegar ao objetivo de se criar uma comunidade leitora.

Entende-se a leitura como um processo. Após passar por todos os passos indicados, ao longo
desta proposta de intervenção de letramento literário, os estudantes precisam ser capazes
de atingir níveis de proficiência que deem conta do explícito e implícito e, também, sejam
capazes de avaliar a própria participação no clube de leitura.

Combinado para alguns dias depois, deve ser publicado no grupo um formulário com
atividade específica relativa à análise literária. Nessa etapa, os estudantes devem ser capazes
de diferenciar um texto factual de um texto literário. Nessa atividade de análise literária
foram priorizadas questões que favoreçam a competência leitora e o alcance de habilidades
previstas na BNCC. As sugestões de perguntas encontram-se abaixo:

1. O conto popular «A gata, a cadela e a dona de casa grávidas» inicia e finaliza de uma

202
maneira bem característica das narrativas populares. Com que tipos de textos esse
conto se assemelha? Justifique sua resposta.

2. No fragmento do texto «Eu, mulher», a autora descreve algumas tradições antigas


de seu grupo étnico, tsonga8. Identifique-as.

3. Observe a caracterização das personagens do conto lido. Qual a relação de


semelhança entre as personagens do conto «A gata, a cadela e a dona de casa
grávidas» e a descrição de como vivem as mulheres em Moçambique feita por
Paulina Chiziane no trecho do texto «Eu, mulher?»

4. O conto popular «A gata, a cadela e a dona de casa grávidas» contém acontecimentos


que, no mundo e na vida real, não poderiam acontecer, mas ajudam a deixar as
narrativas envolventes ao leitor, pois são elementos mágicos ou fantásticos. Cite um
trecho do texto que há elementos mágicos ou fantásticos.

5. A situação da mulher desenvolvida nos textos lidos poderia ter acontecido na região
onde você mora? Explique.

Como última proposta de leitura, deve ser publicado no grupo o primeiro capítulo da obra
Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane. Deve ser dado um prazo de leitura
de aproximadamente quatro dias. Após esse período, deve ser publicado no grupo do clube
virtual de leitura um link que direciona a um painel virtual no site Padlet, por exemplo,a
fim de que os estudantes postem um trecho que mais lhes tenha chamado atenção sobre o
capítulo lido.

É importante dizer que no último encontro da intervenção será publicado no grupo um


formulário com questionamentos, para que os estudantes realizem uma autoavaliação da
participação no clube virtual de leitura. . Seguem abaixo propostas:

1. Você seguiu as regras preestabelecidas para formular seus comentários?

2. Você foi respeitoso com os outros integrantes do clube virtual de leitura?

3. Você usou os conhecimentos que construiu sobre os temas da discriminação da


mulher negra em contexto violentamente machista em Moçambique para elaborar
suas postagens?

8 Tsongas - substantivo masculino plural.


[Etnologia] Grupo étnico que habita áreas do sul de Moçambique e do norte da África do Sul.
“tsonga”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008- 2021, https://dicionario.priberam.org/tsonga [consultado
em 09-10-2021].

203
4. O que você achou da experiência de participar de um clube virtual de leitura?
Justifique sua resposta.

5. Você acha que as regras preestabelecidas foram suficientes para o bom


funcionamento do grupo?

6. Você se sentiu motivado a ler outros textos da autora moçambicana Paulina Chiziane?

5. Análise, discussão e resultados esperados


A proposta de intervenção com um clube virtual de leitura pelo WhatsApp deve ser
realizada por etapas e espera-se que ocorra um assertivo letramento literário nos estudantes
que dele participem. Vale dizer que pode acontecer de nem todos estudantes desenvolverem
as atividades propostas. Para melhor engajamento dos alunos, recomenda-se que as
atividades desenvolvidas estejam atreladas a um componente escolar específico ou, de
maneira interdisciplinar, a outros componentes curriculares.

Espera-se que todos os estudantes percebam que as leituras iniciais dos textos,
informativos de motivação de leitura, foram essenciais para o letramento literário dos
alunos, sendo capazes de relacionar textos midiáticos (reportagem e notícias) aos textos
literários “Eu, mulher”, de Paulina Chiziane, e o conto popular moçambicano “A gata, a cadela
e a dona de casa grávidas”, publicado no livro Contos de Moçambique, adaptado por Luana
Chnaiderman de Paiva Almeida.

A proposta do clube virtual de leitura, aqui exposto, era trabalhar apenas o primeiro
capítulo da obra Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane, no qual ficam claras
as questões socioculturais relacionadas à mulher moçambicana em relação ao casamento,
mas nada impede que seja desenvolvida a leitura da obra em sua completude.

6. Considerações Finais
O presente artigo buscou demonstrar como a literatura pode ser trabalhada no contexto
escolar atual, pandêmico, mediada pela tecnologia. Como na escola pública o acesso aos
textos literários é dificultado pela falta de acervo bibliográfico e por falta de metodologias
que favoreçam o contato dos estudantes com o texto em si, um clube virtual de leitura por
meio de uma plataforma de massa - o WhatsApp – foi o meio pensado para tentar dirimir

204
os entraves na leitura dos textos literários. Além disso, no contexto da pandemia, um clube
virtual de leitura pode ser uma maneira assertiva de contato dos discentes com a literatura.

Dito isso, espera-se que a experiência a ser vivenciada com os estudantes, no


desenvolvimento do clube virtual de leitura pelo WhatsApp, promova o letramento literário
daqueles que participaram de forma efetiva.

É indispensável dizer que não basta formar um grupo de WhatsApp para promover o
letramento literário de forma imediata. Para se chegar a esse objetivo, além da motivação
da leitura, é importante ter um vínculo previamente estabelecido com os estudantes e, se
possível for, como professor regente da classe, intermediar com momentos presenciais em
sala para se discutir os textos (isso pode ser feito também por meio de interações remotas
síncronas).

Conclui-se, portanto, que o clube virtual de leitura desenvolvido com textos literários
de língua portuguesa, pode fomentar o letramento literário dos estudantes participantes,
fazendo com que sejam sujeitos leitores na inter-relação com o objeto texto desenvolvendo
protagonismo, promovendo a ampliação da percepção sobre si e sobre os demais, despertando
a consciência pessoal e coletiva, preparando-os para a vida em sociedade.

205
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Luana Chnaiderman de Paiva. Contos de Moçambique. 1ª ed. São Paulo: FTD,
2017.

CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”. In: CANDIDO, Antonio. Textos


de intervenção. Seleção, apresentação e notas Vinicius Dantas. Coleção Espírito Crítico.
São Paulo: Ed. 34, 2002.

CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... por uma nova visão de mundo. Belo Horizonte: Nandyala,
2013. P. 8-10, 15.

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia de Bolso,
2021.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. 1ª ed., 5ª reimpressão. São


Paulo: Contexto, 2021.

CRUZ, Cláudia Karolinne de Figueiredo Pereira da. Paulina Chiziane – contadora de


histórias: uma análise de “As cicatrizes do amor”. 2014. 39 páginas. TCC Letras -
Português, Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília,
2014. Disponível em https://bdm.unb.br/handle/10483/8967 Acesso em 24/05/2020.

DALVI, Maria Amélia. Literatura na escola: Propostas didático-metodológicas. In: Dalvi,


Resende, Jover-Faleiros (Org.). Leitura de literatura na escola. São Paulo, Parábola
Editorial, 2013.

EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto
Alegre: L&PM, 2017.

LACHAT, Marcelo. Projetos integrados para o ensino de literaturas de língua portuguesa.


2021 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/10kojPAJOzq4EDogwxKNcCAY2lkak
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LOYOLA, Juliana; NETO, Júlio de Souza Vale. Ensino de Literaturas de Língua Portuguesa:
Problemas, Desafios e Perspectivas. 2021 Disponível em: https://
drive.google.com/file/d/10kojPAJOzq4EDogwxKNcCAY2lkakGW5/view?usp=sh aring
NACAGUMA, Simone. As Literaturas de Língua Portuguesa
no contexto contemporâneo: integrativa. 2020 Disponível
em: https://drive.google.com/file/d/1ce64YEm5PNl2x6sHvuYQ_X2YJ4_xI2VK/
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NGOMANE, Nataniel; CARVALHO, Carina. Identidades, territórios e deslocamentos: a


perspectiva moçambicana. 2020 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/
1EMfhiRHTi3tcDS52GkbxsZDUuSD7xKKo/view?usp=sh aring

NOA, Francisco. Uns e outros na literatura moçambicana – Ensaios. São Paulo: Kapulana,
2017.

SOUZA, R. J. de; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. In:
Caderno de formação: formação de professores. Bloco 02 – Didática dos conteúdos. Vol.
2. São Paulo: Universidade Estadual Paulista / Pró-Reitoria de Graduação; Universidade
Virtual do Estado de São Paulo; Cultura Acadêmica, 2014.
APÊNDICE A

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do(a) Cursista: Sabrina Novais Lima e Silva / Polo Jardim Nardini

1.
1.1. Público Alvo: 3ª série do EM, de uma escola pública estadual
1.2. Tempo de Duração:

4 semanas, com 12 encontros virtuais:

1º encontro: Formação do grupo de WhatsApp e estabelecimento dos objetivos do clube virtual de leitura.
2º Encontro: Encaminhamentos para motivação de leitura (reportagem sobre Moçambique).
3º Encontro: Comentários sobre o texto.
4º Encontro: Encaminhamentos para motivação de leitura (notícias 1 e 2).
5º Encontro: Comentários sobre as notícias.
6º Encontro: Postagem do texto “Eu, mulher”.
7º Encontro: Comentários sobre o texto, relacionando-o com as notícias.
8º Encontro: Postagem do texto “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas”.
9º Encontro: Comentários sobre o texto.
Avaliação de leitura literária – Sugestão: Google formulários.
10º Encontro: Proposta de leitura literária - 1º capítulo de Niketche: uma história de poligamia, de Paulina
Chiziane.
11º Encontro: Comentários sobre o texto – Sugestão: Padlet.
12º Encontro: Autoavaliação – Sugestão: Google formulários.
1.3. Definição da prática de letramento literário:

Círculo de leitura estruturado e um clube virtual de leitura pelo WhatsApp devido ao contexto atual de
pandemia. Os alunos podem desenvolver as atividades propostas fazendo uso do ensino remoto, usando
plataformas digitais educativas apoiadas pela SEDUC, como Centro de Mídias de São Paulo (CMSP), o
Google Classroom e mesmo grupos de WhatsApp que, embora não seja uma plataforma oficial, é bastante
utilizada nas escolas para manter o vínculo e engajamento dos estudantes, já que é uma plataforma
acessível a toda comunidade escolar.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:

Um encontro de pessoas (professora – mediadora - e estudantes) para discutir textos previamente


estabelecidos, usando ferramentas digitais, no caso, um grupo de WhatsApp.
Já definidas as leituras, a professora poderá mostrar as regras do clube de leitura. Cada participante
deverá fazer no mínimo duas postagens de cada texto: um comentário sobre ele, e um comentário
sobre a postagem de um colega. Os comentários precisam ser postados durante o dia combinado entre
os participantes e relacionados às perguntas da professora moderadora. As postagens precisam ser
respeitosas e a linguagem simples e direta. Além disso, deve-se instigar o cuidado com a ortografia e não
abusar de abreviações. Após a prática virtual de leitura, é indicado que haja uma avaliação da experiência
de participar de um clube virtual de leitura, por meio de um formulário enviado no próprio grupo de
WhatsApp.

208
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:

O clube virtual de leitura pode ser uma maneira para promover a interação e a prática de letramento
literário devido à pandemia. Os objetivos deste clube de leitura são: ampliar o repertório de leitura literária
dos estudantes, propiciar práticas de leitura, escuta e escrita, instigar a interação com a linguagem do
texto literário, o reconhecimento do outro e o movimento de desconstrução e construção do mundo com
o contato de textos que abordam a diversidade e promovem identidades, territórios e deslocamentos nas
literaturas de língua portuguesa.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
Fragmento do texto “Eu, mulher”, de Paulina Chiziane; conto popular moçambicano “A gata, a cadela e a
dona de casa grávidas”; primeiro capítulo do livro Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane.
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):
Leituras que exploram os temas da discriminação da mulher negra em contexto violentamente machista,
a tradição como forma de busca identitária, a incorporação da oralidade na literatura. Após essa iniciação
no clube virtual de leitura, o próximo passo nas aulas seria conhecer a obra Niketche: uma história de
poligamia, uma das obras solicitadas para o vestibular da Unicamp.

209
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:

Sensibilização do tema dos direitos da mulher e o casamento infantil e/ou arranjado em Moçambique por
meio de duas notícias cujos links estão abaixo:

https://observador.pt/2021/05/07/quatro-em-cada-10-meninas-em-mocambique-casam-se-antes-dos-
18-anos-afirma-governo-mocambicano/

https://www.mundolusiada.com.br/cplp/mocambicana-de-15-anos-aproveitou-a-covid-19-para-fugir-de-
casamento-arranjado/
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:

Há alguns anos, o repertório dos alunos era muito influenciado pela televisão, por seus programas e
desenhos preferidos. Usar a tecnologia em sala de aula ajuda os estudantes a vê-la não só como uma
ferramenta de entretenimento e distração, mas como um instrumento de estudo, pesquisa, enfim, como
ambiente de aprendizagem. Ao escolher as notícias de jornal indicadas, o intuito é engajar os alunos e
propiciar uma melhora significativa na leitura, escrita e oralidade deles, repertoriando-os para discussões
após a leitura dos textos “Eu, mulher” e o “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas”. O intuito final é
promover o debate dos direitos da mulher e o casamento infantil e/ou arranjado em Moçambique por meio
da literatura que, conforme postula Antonio Candido, é humanizadora, pois traz os valores que a sociedade
preconiza ou os que considera prejudiciais, denunciando-os, permitindo-nos vivê-los dialeticamente.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:

A intenção é que os alunos conheçam a autora em um vídeo em que ela mesma se apresenta e fala da
própria escrita e da condição das mulheres em Moçambique.
https://youtu.be/jF8WAxk3o-0
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:

A proposta de introdução da leitura literária é apresentar a autora Paulina Chiziane e a importância de


uma voz feminina em um país tradicionalmente marcado pela negação da mulher e de alguns dos seus
direitos. No vídeo, a própria autora se apresenta e o objetivo é que haja uma conexão com o texto “Eu,
mulher” que seria lido posteriormente e o texto “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas” para discutir
a realidade e o cotidiano das comunidades moçambicanas, principalmente no que diz respeito às tradições
que acabam por ter efeito direto sobre suas vidas, exercendo sobre elas grande controle. Outro intento é
o debate sobre a presença da oralidade no que se refere à literatura africana e a sua importância, tanto
para a literatura quanto para a cultura dessas comunidades, demonstrando como a literatura africana oral
em geral tem dois papéis: o educativo e o recreativo, pois as histórias ao mesmo tempo divertem e trazem
lições a quem as escuta. Além disso, visa-se proporcionar um diálogo entre África e Brasil, relacionando
pontos de encontros e desencontros, evidenciando identidades, territórios e deslocamentos.

210
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de concepção de leitura do texto literário:

Proposta de leitura que contemple a literariedade da obra, indo além do que o texto diz, isto é, sair
do explícito e direcionar para o implícito, trilhando o caminho da análise literária, priorizando os cinco
elementos propostos por Eagleton (2017).
1.2. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:

Percebemos como professores que, em se tratando da competência leitora, uma das maiores dificuldades
dos estudantes da escola pública é alcançar determinados níveis de proficiência, principalmente aqueles
que contemplem habilidades que remetam ao implícito do texto. Por esse motivo, muitos dos estudantes
não conseguem perceber o texto além do que é dito. Priorizar os cinco elementos propostos por Eagleton
(2017) - início, personagem, narrativa, interpretação e valor da obra literária - favorece a competência
leitora e o alcance de habilidades previstas na BNCC, pertencentes ao campo de atuação artístico-literário.

2.
2.1. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:

Encontros remotos através de grupos de WhatsApp no clube virtual de leitura. Após os encaminhamentos
para motivação da leitura, com a sensibilização dos temas apresentados na parte anterior do projeto,
será encaminhado primeiramente o fragmento do texto “Eu, mulher” de Paulina Chiziane. No encontro
seguinte, seria feita a mediação sobre a recepção do texto. Cada aluno posta um comentário, relacionando
o fragmento do texto lido com as notícias e o vídeo encaminhados nos encontros anteriores. Cada aluno
também deverá, segundo as regras do clube de leitura virtual, comentar a 1ª postagem de um colega.
No próximo encontro, seria publicado o conto popular moçambicano “A gata, a cadela e a dona de casa
grávidas”. Neste momento da proposta de letramento literário, seguindo os preceitos de Cosson (2009),
os estudantes deverão ser capazes de fazer relação com os textos anteriores, percebendo semelhanças na
temática. Também serão feitas atividades específicas relativas aos cinco elementos primordiais da análise
literária. Nesta etapa, deverão diferenciar um texto factual de um texto literário.
2.2. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:

As estratégias escolhidas almejam cumprir o grande desafio que é o letramento literário ancorado em
uma prática social de inserção crítica à sociedade, no caso, a moçambicana. O acompanhamento da leitura
é necessário se deseja-se promover o letramento literário dos estudantes. Vale dizer que é necessário
acompanhar para manter a motivação e chegar ao objetivo de se criar uma comunidade leitora, não
havendo o intento de policiar a leitura.

211
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.1. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:

Comentários postados no dia combinado sobre os textos publicados no clube de leitura virtual, fazendo
relação entre as notícias, o vídeo e os textos “Eu, mulher” e “A gata, a cadela e a dona de casa grávidas”.
Após o processo de avaliação e autoavaliação do clube virtual de leitura, propõe-se a leitura do primeiro
capítulo do livro Niketche: uma história de poligamia, a fim de promover o engajamento dos estudantes
na leitura completa do livro, cuja obra, além de remeter às temáticas debatidas no círculo de leitura
desenvolvido, está entre aquelas propostas para o vestibular da Unicamp.
1.2. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:

As atividades de interpretação propostas têm o intento de fazer com que os estudantes encontrem relação
entre os textos multimodais indicados, buscando uma interpretação que não seja superficial.

2.
2.1. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:

Formulário proposto com questões priorizando os cinco elementos propostos por Eagleton:
https://forms.gle/SMWyvZ6Zo4uhj5u69

Formulário proposto de autoavaliação de participação no clube de leitura:


https://forms.gle/BpmUkjnPM1QkfwgF9
2.2. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:

Entende-se a leitura como um processo. Assim, tão logo o professor passe por todos os caminhos
propostos ao longo do projeto de letramento literário, os estudantes deverão ser capazes de atingir níveis
de proficiência que deem conta de uma interpretação mais densa, sendo capazes de avaliar a própria
participação no clube de leitura.

3.
3.1. Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Luana Chnaiderman de. Contos de Moçambique. 1ª ed. São Paulo: FTD, 2017.
CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”. In: CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção.
São Paulo: Ed. 34, 2002.
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... por uma nova visão de mundo. Belo Horizonte: Nandyala, 2013.
__________. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.
DALVI, Maria Amélia. “Literatura na escola: Propostas didático-metodológicas”. In: Dalvi, Resende, Jover-
Faleiros (Org.). Leitura de literatura na escola. São Paulo, Parábola Editorial, 2013.
EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Porto Alegre: L&PM, 2017.
NOA, Francisco. Uns e outros na literatura moçambicana – Ensaios. São Paulo: Kapulana, 2017.
SOUZA, R. J. de; COSSON, R. “Letramento literário: uma proposta para a sala de aula”. In: Caderno de
formação: formação de professores. São Paulo: Cultura Acadêmica.

212
Esse cabelo, de Djaimilia Pereira
9 de Almeida e a literatura identitária:
práticas para a formação da identidade de
estudantes do Ensino Fundamental

Isabel Cristina Furtado de Medeiros Sampaio1


Gabriela Manduca Ferreira2

RESUMO
A presente pesquisa busca refletir sobre a importância de oferecer uma literatura
identitária a jovens leitores como forma de incentivo ao reconhecimento de si próprio e
de sua cultura e comunidade. Perceber-se que a literatura pode auxiliar o indivíduo a se
reconhecer como pertencente a determinado grupo, perceber suas características e conhecer
sua história. Muitas culturas foram silenciadas, mesmo completamente apagadas, e não
somente os livros de história reforçam esses apagamentos, mas a literatura algumas vezes
também compactua com esses silenciamentos. A literatura ainda não ocupa um lugar de
destaque nas escolas, sendo coadjuvante no ensino da língua e parte de alguns projetos ao
longo do ano, mas, apesar dessas ações, ela ainda não tem presença marcante nos espaços
escolares. Além disso, um grande problema acerca da literatura na escola é não representar
os estudantes em sua grande maioria. Livros que representam o jovem negro, como “Esse
Cabelo”, de Djaimilia Pereira de Almeida, trazem à tona verdades silenciadas por longos anos
e que propiciarão a identificação necessária para despertar o gosto pela leitura literária e
a percepção da sua importância na formação da identidade. Esta pesquisa trará à reflexão
a importância de oferecer literatura identitária na formação do indivíduo e como fazê-la
por meio de círculos de leitura, uma prática de letramento literário democrática e que dá
liberdade para o aluno expor seus pensamentos e ideias.

Palavras-chave: Literatura identitária; Identidade; Letramento literário; Círculos de


leitura; Literatura antirracista.

1 Professora de Língua Portuguesa e Professora Orientadora de Sala de Leitura (POSL) em escola municipal pela Secretaria
Municipal da cidade de São Paulo. Mestranda em Literatura pela UNIFESP. Contato: furtmed86@gmail.com
2 Mestra e Doutora em Literatura pela FFLCH/USP. Docente no Centro Universitário FMU. Orientadora de TCC na UAB/
UNIFESP. Contato: professoragabrielaferreira@gmail.com

214
1. Introdução
Para Antonio Candido (1995), a literatura tem função humanizadora e, por isso, podemos
dizer que, muitas vezes, ela se comporta como um espelho da sociedade. Na maioria das vezes,
o leitor de todas as idades, ao ler uma história, procura se identificar com o personagem lá
representado. A partir dessa reflexão, como professores e mediadores de leitura, fazemos
a busca por textos literários que representem, ao menos simbolicamente, o grupo a que
se destina a leitura. É adequado pensar em uma literatura com que os leitores possam se
identificar e identificar seu grupo e, consequentemente, sentirem-se representados nos
textos literários utilizados na escola e/ou círculos de leitura.

Mas, ao selecionar os textos para o trabalho pedagógico, estamos privilegiando uma


cultura em detrimento da outra? Estamos apresentando uma literatura como superior e
outra como inferior? Ou pior: estamos hierarquizando culturas ao fazer distinção na escolha
dos textos apresentados? Assim, uma seleção de textos literários que hierarquize culturas,
apresente silenciamentos, inferiorize grupos ou tenha caráter discriminatório pode se tornar
arma para uma sociedade excludente. Por outro lado, uma literatura que estabeleça igualdade
e equidade nas culturas e literaturas torna-se uma ferramenta na formação da identidade.
Isso nos leva a pensar sobre qual literatura estamos apresentando e quais marcas estamos
imprimindo nos estudantes a partir de nossas escolhas literárias. Assim, a pouca presença de
literatura identitária nas escolas reforça a exclusão de grupos historicamente marginalizados,
como a população negra e proveniente das periferias. Por outro lado, uma boa oferta de
títulos que valorizem esses grupos traria os alunos à identificação e
posterior pertencimento aos espaços.

Dessa forma, é urgente trazer a literatura identitária para os espaços escolares, criar
discussões e reflexões pautadas nessa literatura, propiciar o contato e direcionar essa leitura,
para sua melhor compreensão. Livros com fortes marcas identitárias, como “Esse Cabelo”
(2017), de Djaimilia Pereira de Almeida, trazem potência ao trabalho pedagógico e sentido
para os alunos que se reconhecem na leitura e nas agruras passadas pela protagonista.

Essas leituras podem ser feitas com as práticas de letramento literário propostas por
Rildo Cosson, em seu livro “Círculos de leitura e letramento literário” (2014). Essa prática,
muito democrática, permite ao aluno refletir em grupo, aprender a ouvir e se posicionar diante
das situações vividas pelas personagens e transportá- las para suas vivências, possibilitando
com isso a reflexão e identificação com a literatura. A técnica propõe a leitura individual e
também coletiva dos textos com posterior retomada para discussão junto ao grupo. Após a
primeira leitura o leitor já começa a desenvolver ideias e ter reflexões sobre a leitura, mas

215
é com a roda de conversa que essas ideias se consolidam e tomam força, pois a reflexão
coletiva promove outros olhares e percepções antes ignoradas.

Este artigo tem, portanto, como objetivo, apresentar, discutir e propor a introdução
da literatura identitária na escola como meio de formação das identidades e como símbolo
de resistência de variadas culturas, reforçando a necessidade de se oferecer livros que
representam grupos variados e toda a heterogeneidade existente nas escolas.

2. Contextualização
A literatura abre mentes e mentes abertas abrem portas. Assim, sempre vi a literatura
como ferramenta de luta e resistência. Mas na educação formal sempre nos vemos diante de
textos literários escolhidos com uma intenção muito clara: manter o status quo, deixar tudo
como está: colonizador como colonizador e colonizado como colonizado. Porém, após ler
muito e passar por processos de formação, entre os quais se inclui o curso de Especialização
promovido pela UAB/UNIFESP, Literaturas de Língua Portuguesa- Identidades, territórios e
deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, passei a refletir sobre as intenções dessas
escolhas literárias para uso em espaços escolares.

Passei a ver os textos escolares com outros olhos e comecei a prestar mais atenção nas
entrelinhas, questionando: o que esses textos expressam e quais mensagens transmitem?
Sendo a escola espaço de formação, transformação e emancipação, como os textos
apresentados nas aulas podem fomentar um diálogo consistente e reflexivo se os próprios
textos não estão abertos a reflexões?

Ao observarmos o acervo disponível nas escolas, nos deparamos com ótimos livros,
porém nos deparamos também com títulos que reforçam estereótipos e não abrem espaço
para mudanças e questionamentos. Desse modo, cabe ao educador, refletir sobre o acervo
disponível e o quanto ele pode auxiliar na formação dos educandos ou, por outro lado, travar
o desenvolvimento dos alunos. Desse modo, o professor precisa ler e conhecer a literatura
com que trabalha, buscando variedade de material e possibilidades de reforçar e estimular o
desenvolvimento crítico desse leitor em formação.

No curso de especialização compreendi que há muitos títulos que podem ser levados
para as aulas e mostrar outras realidades, como muitos autores de língua portuguesa que são
pouco estudados, mas que tiveram lutas semelhantes às lutas dos brasileiros, principalmente
quanto à colonização. Assim, moçambicanos como José Craveirinha, Paulina Chiziane,

216
Ungulani Ba Ka Khosa ou angolanos como Pepetela e Ondjaki integram um vasto grupo de
autores que podem ser apresentados e trabalhados em sala de aula com ótimos resultados,
trazendo a identificação e formando identidades.

Cursar a especialização Literaturas de Língua Portuguesa - Identidades, territórios e


deslocamentos: Brasil Moçambique e Portugal, me permitiu conhecer e estudar variados
autores antes desconhecidos por mim (e, acredito, desconhecidos por grande parte dos
educadores). Nesse percurso observei que mesmo após cursar a graduação em Letras e
fazer variados cursos de aperfeiçoamento, extensão e especialização (incluindo um curso em
Literatura e Cultura) esses autores não me foram apresentados. Com isso, me questiono por
que isso aconteceu e penso como foi importante abordá-los em uma temática como a desta
especialização.

Essas formações me mostraram outros olhares e verdades que não costumam ser
apresentadas ao longo de nossa formação na escola básica e nem na formação no ensino
superior. Os apagamentos acontecem de forma sistemática e, como educadores, devemos
lutar para que não aconteçam mais. Nesse sentido, a força da literatura se imprime, pois ela
nos traz outras perspectivas antes ignoradas.

Por exemplo, a perspectiva de apresentar aos alunos não somente autores portugueses
ou brasileiros, mas também de outras nações de língua portuguesa, como os moçambicanos,
pois autores como o poeta José Craveirinha ou a escritora Paulina Chiziane trazem novos
horizontes aos estudantes e fazem com que percebam a importância e beleza de outras
literaturas e, consequentemente, de outras culturas, saindo do eixo América-Europa.

Além disso, este curso me deu suporte para pensar e desenvolver um plano de aula
baseado em um livro que aborda a identidade, de modo que eu consiga trabalhar também a
identidade dos alunos, público-alvo, de minha proposta de intervenção prática.

Livros que trazem diferentes símbolos culturais e referências atiçam a curiosidade dos
alunos e os fazem pensar por outras linhas de pensamentos, e não nos padrões impostos pela
sociedade. Pensando por esse viés, podemos refletir sobre os cabelos. Eles são a moldura do
rosto, mostram ou escondem a pessoa, e os cabelos afro são, além dessa moldura, símbolo
de resistência. Tentar apagar esse cabelo é apagar a cultura de um povo, de muitos povos.

Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, expõe de forma envolvente essa relação,
que é mais, muito mais, que uma relação estética, é uma relação de poder, de luta e, como
dito anteriormente, de resistência. Assim, o livro Esse Cabelo expressa as angústias e dúvidas

217
sofridas não só por Djaimilia, mas por muitos jovens de Portugal, do Brasil e de muitos outros
lugares no mundo.

Por meio de círculos de leitura como os defendidos por Rildo Cosson, daremos voz
aos alunos e, dessa forma, buscaremos entender como essa relação acontece internamente
e como a literatura pode interferir de forma positiva para transformações pessoais e na
sociedade. Penso que os dilemas e dores enfrentados pela protagonista do romance podem
se assemelhar a problemas vividos pelos estudantes, uma vez que os cabelos costumam ser
alvo de preconceitos, críticas e debates.

Mas como mudar isso e como esta proposta e o livro Esse Cabelo podem ajudar? Ele
nos faz refletir e se espera que os alunos também possam refletir e criar diálogos e debates a
partir dessa leitura e de outras posteriormente, pois uma leitura abre as portas para muitas
outras.

3. Fundamentação teórico-metodológica
A participação do negro na literatura vem crescendo nos últimos anos. Isso é muito
positivo na medida em que essa literatura, principalmente a escrita sobre o negro, mas dessa
vez, escrita pelo negro, apresenta a realidade pelo olhar daquele que vivencia as situações
descritas na literatura. Bernd (2010) apresenta em seu texto que a literatura quando escrita
com ressentimento perpassa o discurso poético se transformando em lamentação. Assim, ao
levar uma literatura para a sala de aula precisamos perceber qual suas intenções para não
perpetuar a violência simbólica promovida em muitos espaços.

Os círculos de leitura promovidos por Cosson (2014) auxiliam justamente a refletir de


forma democrática sobre os variados discursos impressos nos textos e a partir dessas reflexões
e diálogos se identificar ou não com aquele grupo e em que medida. Como a protagonista se
vê retratada em sua própria obra, nos permite olhá-la de forma mais integral, uma vez que é
descrita por ela mesma. Aqui, a protagonista traz os conceitos descritos por Romero (2005) e
a teoria imagológica, de como se vê e se retrata o negro na literatura.

Ao pensarmos em obras que trabalham a formação da identidade, precisamos pensar


em todos que se sentirão tocados pela obra em questão, seja da forma que for, não apenas
se identificando com o personagem principal, mas percebendo os outros personagens. Cabe
notar que aquelas verdades não falam de todos, mas de parte da população e, a partir disso,
o leitor em formação consegue traçar um verdadeiro trajeto de sua identidade, identificar

218
quem corresponde a si próprio e quem corresponde ao outro.

Nesse sentido, o livro trabalhado no letramento literário deve tocar a todos, mas
cada um em sua perspectiva. Tomando como análise o livro Esse Cabelo, o leitor pode se
identificar com a personagem principal, Djaimilia, mas também é importante pensar nos
demais personagens, como, por exemplo, o papel da cabeleireira que diz que o cabelo de
Djaimilia é “ruim”. Os variados olhares também são importantes e auxiliam na formação da
identidade. “Como estou me portando diante do outro?” é um questionamento que pode
surgir após a leitura de alguns trechos do livro. Assim, é importante pensarmos em todas as
identidades apresentadas nas obras literárias, sem focar apenas nas principais, pois uma obra
busca atingir a um grande número de leitores e não a um grupo específico.

Para trazer essas reflexões para os espaços escolares, a proposta de Rildo Cosson em
seu livro “Círculos de leitura e letramento literário” (2014) se apresenta como uma poderosa
ferramenta para auxílio no letramento literário. Os círculos de leitura auxiliam o aluno a
refletir sobre o que leu e extrair do texto mais do que está escrito, estabelecendo relações
com o contexto.

O Círculo de Leitura é uma proposta de Rildo Cosson (2014) que tem por finalidade
promover a leitura e o debate sobre a literatura. Os grupos são organizados por um professor
ou coordenador. Os participantes leem o mesmo texto e debatem de forma igualitária,
posteriormente. Essa proposta de letramento literário sugere que o aluno leia capítulos
ou trechos de determinado livro e em seguida debata com seu grupo, coordenado pelo
professor mediador. O grupo desenvolve a discussão de forma livre, com pouca ou nenhuma
interferência da professora, uma vez que seu papel é apenas o de facilitador/mediador.

Para se reconhecer e se perceber representado na literatura, o aluno precisa compreender


os textos, e o letramento literário pode contribuir nesse processo de compreensão. Por meio
das leituras individuais e posterior releitura em grupo, poderemos refletir em conjunto sobre
as variadas passagens do livro. Passagens, por exemplo, em que o racismo se manifesta, em
que a protagonista lida com as relações familiares ou como ela vai formando sua própria
identidade e ouvir o que os colegas têm a dizer sobre as variadas situações.

Os círculos de leitura possibilitam que todos se abram sem julgamentos, como um bate
papo livre, em que se pode falar e ser ouvido com igualdade, sem a pressão de estar falando
algo certo ou errado. O mediador apenas norteará a conversa, intervindo apenas quando
necessário, para acalmar os ânimos ou estimular quando os participantes se sentirem
desestimulados, ou mesmo para sanar alguma dúvida. A estratégia utilizada com os círculos

219
de leitura semi-estruturados se mostra muito positiva, pois ela possibilita a liberdade de
expressão dos participantes que estão em processo de formação literária sem permitir que
os alunos se percam em conversas alheias ao tema da reunião.

O artigo de Manuel Sánchez Romero, intitulado “La investigación textual imagológica


contemporánea y su aplicación en el análisis de obras literárias” (2005) propõe a análise do
texto a partir do conceito imagológico. Esse conceito conversa com a análise apresentada
nesta pesquisa, que vê a imagem do negro representada e auto-representada nos textos
literários, considerando o imaginário social, auto-imagotipo e hetero-imagotipo, além das
relações entre estereótipo e imagem. Levando em consideração que os estereótipos são
construções sociais criadas a partir de imagens distorcidas, o livro analisado nos círculos
de leitura propõe a quebra desses estereótipos em diversas passagens, mostrando que a
sociedade é quem engendra as situações de preconceito, criando com isso os estereótipos.

Considerando o conceito imagológico, podemos supor que há uma quebra da imagem


de Djaimilia, que foi criada pela sociedade na qual está inserida, baseada em um contexto
cultural – a estranha naquele ambiente. Seu auto-imagotipo demonstra uma pessoa que
se fortalece ao longo do romance/novela, se sobressaindo nas situações e conquistando
sua liberdade. O desenvolvimento e crescimento da personagem propõe uma identificação
positiva com o leitor que vislumbra uma possibilidade de crescimento pessoal, assim como o
da personagem.

O livro “Teoria literária: uma introdução” (1999), de Jonathan Culler, apresenta conceitos
sobre o estudo e análise literária, sendo que o Capítulo 8 – Identidade, identificação e o
sujeito, conversa diretamente com o objeto desta pesquisa. Neste capítulo, o autor inicia
sua reflexão nos trazendo a função do Sujeito, do Eu nas obras literárias e questiona: ele
é dado ou é construído? Essa construção ocorre de forma individual ou social? A partir
desse pensamento na construção do sujeito e de sua identidade, a literatura apresenta em
suas narrativas o desenvolvimento de seus personagens, definidos pela combinação do seu
passado e presente. A partir disso podemos pensar: o personagem faz ou sofre seu destino?
A situação apresentada por um personagem representa sua situação particular ou a situação
de um grupo? De que forma?

Ao pensar a formação do sujeito precisamos refletir sobre o processo de formação ao


qual esse sujeito foi submetido: quais leituras foram apresentadas a esse leitor, ou pequeno
leitor ainda no início da sua jornada literária? Se ele está em construção, o que ele consome
será de extremo significado na sua composição de leitura e formação literária.

220
Tudo o que o leitor consome irá influenciar de alguma forma seu desenvolvimento leitor,
seja em menor ou maior grau. Desse modo, ao ler a obra Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de
Almeida, se espera que o leitor seja tocado de alguma forma pela obra, seja na posição da
protagonista ou dos demais personagens do romance, como os avós paternos ou maternos,
a mãe, os cabeleireiros por onde a personagem passou e, a partir disso, o jovem leitor se vê
refletido na obra por um conjunto de referências pertinentes à sua realidade, seja ela qual
for.

4. Apresentação e constituição do objeto de pesquisa:


Desafio de ensino- aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
Este artigo tem como objeto uma proposta de intervenção prática que aborda a
literatura identitária e discute sua importância na formação da identidade do jovem leitor,
como símbolo de resistência cultural, educação antirracista e quebra dos status quo, que
estabelece uma literatura como única e verdadeira. Desse modo, a literatura identitária
mostra outras possibilidades de leituras literárias com qualidade, sem silenciamentos e
apresentando outros olhares que contribuem para a identificação dos sujeitos e a formação
identitária do leitor.

Muitas vezes, ainda hoje, são apresentados aos alunos textos que contemplam apenas
uma parcela da sociedade e variedade cultural, ficando muitas culturas à parte dos livros e
deixando de se introduzir nos espaços escolares. Assim, ao apresentar a literatura identitária,
a proposta de intervenção prática possibilitará aos alunos perceberem outras culturas e
novas percepções da sociedade e de si próprio.

Para muitos jovens, é na escola onde se tem o primeiro contato com textos literários,
e para a maioria desse público, é nesse espaço que a literatura começa a fazer parte de
suas vidas. As salas de leitura, bibliotecas e outros espaços de leitura fomentam a leitura e
inserem a literatura na vida desses jovens. Mas para o interesse pela leitura acontecer de
fato, é importante contar com mediadores de leitura, professores orientadores ou outros
profissionais para direcionar esse futuro leitor em suas descobertas literárias.

Para isso, os projetos de leitura como os círculos de leitura apresentam ótimos


resultados, instigando o pensamento crítico e estimulando a leitura literária. Rodas de leitura
que permitam os leitores se expressar, debates livres ou regrados e reflexões em conjunto

221
estimulam o leitor a descobrir e se aprofundar nas leituras, utilizando livros como caminhos
para ir ao encontro de outras formas de literatura e outras artes. A escolha dos livros é ponto
primordial para a obtenção dos resultados estimados em um projeto. Em nosso caso, por
objetivarmos um maior contato com a literatura identitária como forma de desenvolvimento
da identidade, o livro Esse cabelo de Djaimilia Pereira de Almeida propõe discussões e
reflexões que levam o aluno a desenvolver sua identidade pessoal. Apesar de a maioria da
trama se desenvolver em Portugal, o livro traz questionamentos presentes no cotidiano dos
adolescentes brasileiros também por se tratar de um tema bastante presente nas conversas
entre os jovens: os cabelos e tudo que eles representam.

Meu primeiro contato com a obra Esse cabelo foi na disciplina “Identidades, territórios e
deslocamentos: a perspectiva portuguesa” e, apesar de ser um livro de literatura portuguesa,
ele traz reflexões acerca da violência simbólica sofrida pela protagonista de origem também
angolana.

A autora de Esse cabelo fala de sua relação com a família angolana e portuguesa, discute
como as diferenças entre as nacionalidades formaram sua identidade e compartilha a luta
pela aceitação de suas madeixas e a compreensão do que seus cabelos representam para ela
e para toda uma cultura. Com isso, revela toda a violência física e simbólica que sofreu por
não compreender que seu cabelo faz parte de si própria, sendo muito mais do que apenas a
moldura do rosto, mas a expressão de culturas e nações.

Na fala da avó branca ela traz o título do livro: “Então, Mila, quando é que tratas esse
cabelo?” (ALMEIDA, 2017, p. 42). Seu cabelo parece ter vida, parece ser ele mesmo um
personagem. A falta de trato com o cabelo a persegue, mas não é por desleixo nem por falta
de jeito, é por não aceitar que ele precise passar por tanta guerra, afinal é apenas um cabelo.
A avó negra, Maria da Luz, orgulhava-se do cabelo da neta e isso era reconfortante.

Salões e salões por toda cidade foram visitados por Djaimilia, que sempre saía com
os penteados com prazos de validade curtíssimos: uma umidade do ar bastava ou apenas
uma noite de sono já traziam aos cabelos seu formato de antes. E assim a protagonista vive
dilemas e reflexões acerca de seus cabelos, que não são esses ou aqueles, mas apenas os seus
cabelos.

Diante da escolha da literatura identitária abordada a partir da obra Esse cabelo, a


presente proposta de intervenção prática no processo de ensino-aprendizagem de literatura
tem como objetivo geral apresentar, discutir e introduzir a literatura identitária na escola
como contribuição na formação da identidade dos estudantes. E propõe como objetivos

222
específicos: apresentar o conceito de literatura identitária aos alunos; introduzir a literatura
identitária nos círculos de leitura existentes na escola; incentivar a leitura literária por meio
das literaturas identitárias; utilizar a literatura identitária na educação antirracista.

A proposta adota como público-alvo alunos do 9º ano do Ensino Fundamental (Faixa


etária entre 14 e 15 anos) e propõe tempo de duração de 1 bimestre, totalizando 8 encontros.
Os encontros acontecerão semanalmente em espaço de Sala de Leitura, que conta com uma
aula semanal na grade horária dos educandos e com Professor Orientador de Sala de Leitura.

O projeto contará com a prática de letramento literário semiestruturado proposta por


Cosson (2014, p.159) por se tratar de uma estrutura que conta com um direcionamento
do professor, porém permite uma certa liberdade dos alunos para se expressarem e
apresentarem seus pontos de vista para o grupo, uma vez que ainda são jovens e estão em
fase de amadurecimento literário.

O letramento literário semiestruturado é um letramento proposto por Cosson (2014) e


propõe uma prática em que há um orientador/coordenador que guiará o grupo na organização
dos turnos de falas, responde a questões e sana dúvidas no decorrer do projeto/encontros.
A escolha da prática se deu devido aos alunos ainda serem jovens e estarem em formação
literária, assim, o professor orientador poderá auxiliá-los na organização e incentivo das falas,
respondendo algumas dúvidas e guiando em seu desenvolvimento enquanto jovens leitores.

Para desenvolvimento da proposta, a obra selecionada é Esse Cabelo: A tragicomédia de


um cabelo crespo que cruza fronteiras, de Djaimilia Pereira de Almeida. A escolha do título se
dá pela quebra de paradigmas do branco europeu. Apresentar as inquietações de uma moça
negra, com questões semelhantes às enfrentadas pelos jovens brasileiros – o simbolismo e
aceitação de seu cabelo – em terras europeias permitirá discussões sobre representatividade,
identidade, colonização, fazendo-os pensar também sobre o pertencimento de seus corpos
e espaços.

Por se tratar de um livro que comumente não consta no acervo das salas de leitura ou
bibliotecas escolares, a obra conta com a facilidade de ser encontrada em sites de leitura on-
line (como o site www.lelivros.love), que os alunos poderão acessar de qualquer dispositivo
eletrônico como celulares, tablets ou computadores de forma gratuita,
bastando para isso ter acesso à rede de internet, podendo fazer a leitura on- line ou baixar o
arquivo para leitura off-line.

Para motivar os alunos a pensar no tema trabalhado no romance Esse Cabelo, de

223
Djaimilia Pereira de Almeida, será abordada primeiramente a participação do Professor
de geografia João Luiz no reality show Big Brother Brasil 21, exibido pela Rede Globo. A
participação do professor gerou uma grande polêmica em um episódio em que, em uma
conversa aparentemente descontraída, seu cabelo foi comparado aos cabelos de um homem
das cavernas por um dos participantes. Para isso, será apresentada aos alunos uma notícia
publicada no site do jornal O Dia, onde consta que o participante que proferiu a ofensa será
investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) do Rio de
Janeiro.

A motivação acontece pelo fato de o programa televisivo ter grande audiência entre
o público jovem e a situação ter ultrapassado o público dos realities chegando até a uma
investigação por crime de racismo.

O tema cabelos costuma gerar grande comoção entre os adolescentes e justamente


essa fase da vida é uma época de inseguranças, em especial quanto aos aspectos físicos e
padrões de beleza impostos pela sociedade e mídia. Assim, o tema traz o diálogo e reflexões
entre os alunos sempre que abordado.

Como introdução/apresentação da leitura literária, propomos: Apresentação breve da


biografia da autora; Apontar aos alunos os temas abordados no livro: feminismo, racismo e
identidade; Reflexão sobre a composição da população portuguesa: Quem são os portugueses
hoje? Como é Portugal? Como se dá/deu a relação dos cidadãos de Portugal com os de países
africanos (colonizados por Portugal), como Angola? Como é a relação entre esses países e
como se conecta à nossa história?

Essas informações buscam levar os alunos a refletirem sobre como é a vida em outros
países colonizados por Portugal e criar relações de similaridade entre nossas culturas. Poderá
quebrar os paradigmas de nações perfeitas e criar identificação com as situações vivenciadas
pela autora/protagonista. Os alunos terão uma breve introdução do que esperam do livro e
poderão lê-lo já contextualizado e assim, perceberão as particularidades do texto.

A proposta apresenta uma concepção de leitura que pretende observar os elementos


primordiais da análise literária, proposta por Terry Eagleton (2017), sendo elas: início,
personagem, narrativa, interpretação e valor. Assim, observando cada um dos elementos, é
possível perceber o que está para além do visível nos textos. Perde- se aquela concepção de
análise perpetuada pelos livros didáticos de apenas se descobrir o que quer dizer o texto e
passamos a perceber as minúcias de todo o romance, lemos suas entrelinhas e fazemos um
paralelo com outros textos e outras ideias que podem surgir.

224
Essa concepção permite um olhar para a literariedade do texto. O texto não é mais
uma simples brincadeira de achados ou somente procurarmos respostas a perguntas
preexistentes. Essa concepção permite um olhar verdadeiramente literário, reflexivo e crítico.
E assim, expande-se a percepção dos alunos quanto aos textos, suas funções na sociedade e
justamente a função humanizadora dos textos literários.

O romance conta com 11 capítulos que serão divididos em 6 encontros, pois os dois
primeiros servirão para motivação e introdução do livro. Assim, ficará dois capítulos por
encontro e o capítulo final no último encontro para podermos ter um maior tempo de diálogo.

A cada encontro se escolherá alguns trechos dos capítulos selecionados para uma leitura
compartilhada. Essa leitura poderá ser feita pelo mediador ou por algum participante que se
sentir confortável com a leitura em voz alta. Não se deve obrigar o aluno a ler em voz alta,
pois além de constrangê-lo, poderá afastá-lo do grupo. Esse momento deve ser leve, uma
vez que precisa haver motivação para que o aluno participe, ele deve desejar participar com
a leitura. Aquele que apenas ouve, participa igualmente e deve ser respeitado. Após a leitura
de cada trecho selecionado, abre-se para debate, caso alguém queira, pode-se acrescentar
mais algum trecho dos capítulos selecionados para leitura. O mediador interferirá sempre
que necessário, pedindo que o outro aguarde a vez de falar, organizando a sequência de falas
e instigando com questões.

Por se tratar de um romance com quase 150 páginas, seria inviável fazer a leitura durante
os encontros, pois assim não haveria tempo para reflexões e diálogos. Com os participantes
fazendo a leitura em casa e relendo alguns trechos, ganha-se tempo de conversa e a cada
relida abrem-se a novas interpretações e percepções diferentes acerca da leitura.

A interpretação será feita por meio de feira de leitura, em que a turma será separada
por afinidades com os temas abordados no romance e cada grupo focará em um desses
temas. Havendo outros círculos de leitura na escola, pode-se pensar em uma feira maior,
ou ainda, inseri-lo em alguma outra atividade da escola criando um Espaço Literatura. Cada
grupo, focando sua temática e embasado pelo romance Esse Cabelo fará uma apresentação
sobre a perspectiva do livro e a leitura do grupo, abrindo espaço para diálogo entre e com os
visitantes.

A interpretação feita dessa forma possibilita aos alunos expor seus pontos de vista,
comunicando com os demais grupos e visitantes. E, desse modo, também reforça as leituras
e interpretações a todo momento, a cada novo olhar apresentado, uma outra visão pode
surgir, abrindo espaço para novos olhares e percepções acerca da obra.

225
Além do desenvolvimento do aluno, dos grupos e da feira de leitura, ao final será pedida
a produção de um texto do gênero ensaio, por se tratar de um gênero mais livre e assim os
alunos poderão se expressar com maior liberdade.

A correção também deve ser feita com o olhar livre, uma vez que não se poderá corrigir
interpretações, mas apenas fazer observações sobre as superinterpretações. Assim, o olhar
do professor deve ser livre de preconceitos e rigidez, deixando de lado as suas próprias
interpretações e visões acerca da obra.

Ao ler e também avaliar a leitura e interpretação dos alunos no letramento literário,


devemos ter em mente ser uma aprendizagem que se desenvolve muito estreitamente com
gostos pessoais, então, qualquer situação que possa gerar desconforto, constrangimento ou
ainda algum tipo de dificuldade, não estará atendendo à intenção da proposta, que ao final é
desenvolver alunos leitores de literatura.

Essa proposta de avaliação por meio de Ensaio, observação da participação nos círculos
de leitura e também na feira de leitura possibilita uma avaliação mais específica de cada
aluno, a partir do que ele mais se identifica e apresenta maior facilidade. Há alunos que
se expressam melhor falando, outros escrevendo. Alguns observam mais, outros gostam de
expor suas ideias. E todas elas são válidas e precisam ser levadas em consideração.

5. Análise, discussão e resultados esperados


A identificação com os textos faz com que o aluno deseje a leitura e reflita sobre
ela. Assim, oferecer uma leitura que atenda às expectativas do leitor é parte da função do
professor ou mediador de leitura. Com esta pesquisa espero contribuir para que a seleção de
textos para análise em aulas, em círculos de leitura e de modo geral para o trabalho docente
no ensino básico e no ensino médio seja feita considerando o lugar da literatura identitária
nos espaços escolares, sua função e contribuição em gerar conhecimento.

Ao desenvolver o pensamento crítico e reflexivo, estamos desenvolvendo o cidadão,


que criará uma sociedade mais igualitária. Dessa forma, a literatura identitária se inscreve
com parte desse processo formativo, para uma sociedade mais desenvolvida, menos racista
e justa para todos.

É preciso salientar que um grande desafio ao propor uma leitura coletiva é o acesso
ao livro. Assim, na eventual aplicação desta proposta, a dificuldade poderá ser sanada ao

226
oferecer um livro disponível gratuitamente para leitura online, em sites que oferecem essa
modalidade de leitura. O número de exemplares disponível nas bibliotecas escolares pode
ser um desafio quando se trata de leituras coletivas, pois a demora em acessar o título
pode desestimular ou atrasar a leitura, prejudicando o desenvolvimento do projeto. Nesse
sentido, os sites de leitura online e gratuita são grandes aliados dos projetos de leitura nos
espaços escolares. O livro Esse cabelo, de Djaimila Pereira de Almeida, pode ser encontrado
em formato digital e para leitura gratuita em alguns sites abertos, como o site www.lelivros.
love, que dispõe o livro para leitura on-line ou o arquivo para baixar em diversos formatos.

Sanado o problema de acesso à obra literária, Esse cabelo pode proporcionar aos leitores
uma leitura cheia de interpretações e variadas perspectivas. Por se tratar de uma mulher
negra em um país europeu (onde maciçamente a população é branca), criada em uma família
portuguesa que lhe despende um profundo amor, a personagem foge aos estereótipos. Ela
não é a que sofre abusos e preconceitos em todas as esferas onde estão brancos inseridos,
ela é tratada com respeito, mas não consegue se identificar como pertencente àquele
mundo português, mas também não se define angolana, origem de sua mãe. A personagem
vai se definindo aos poucos e percebe que é possível ser um pouco de cada, passando a
compreender sua dor por não conseguir se relacionar com seus cabelos e percebendo que
essa dor é genuína e verdadeira, como no trecho onde se percebe dona de si mesma: “Posso
até aprender a pentear-me, não posso porém fazê-lo na pele de outra pessoa” (ALMEIDA,
2017, p. 50).

Assim, o livro apresenta uma evolução de sentimentos que pode ser traduzido como o
amadurecimento da personagem e formação da sua identidade. No decorrer do romance a
protagonista faz as pazes com ela mesma e com seus cabelos, como percebemos no trecho
“Fazer as pazes conosco, parece-se, penso para comigo, com fazer as pazes com nossa
ascendência” (ALMEIDA, 2017, p. 49). Aqui se inscreve a proposta da utilização dessa obra. A
identidade é algo que se constrói a partir das vivências, relações familiares, relações sociais
de todo tipo. A personagem se constrói com a família, as amizades, seus relacionamentos
com as cabeleireiras e a sociedade portuguesa, angolana e demais lugares por onde passou.

Se espera que com a aplicação dessa proposta os alunos se reconheçam na protagonista


e reconheçam a dor sentida por ela e que consigam transportá-la para suas vivências. As
experiências vividas pela autora trazem à tona reflexões vividas por muitos outros jovens
tanto de Angola, do Brasil como de Portugal, ou seja, de jovens de variados lugares do
mundo. São questões referentes aos jovens que podem estar em qualquer lugar e podem
fazer parte da formação de sua identidade, de sua identificação com o lugar onde vive, com
a cultura onde está inserido. Um trecho que expressa esse sentimento é o que segue: “[...] a

227
pessoa que vim a tornar-me tem uma imaginação vedada por uma ignorância exasperante
a respeito da África” (ALMEIDA, 2017, p. 81) e em seguida: “Quem é Mila” “Eu mesma não
coincide bem comigo” (ALMEIDA, 2017, p. 82).

Essas reflexões instigam o leitor a pensar em si mesmo e reconhecer seu próprio lugar
e identificar seu pertencimento a grupo, cultura e nação.

6. Considerações Finais
Refletir sobre a identidade é sempre um desafio, pois além de ser algo extremamente
pessoal – a sua identidade – enfrentamos as imposições sociais e os estereótipos que
impregnam nossa mente nos levando a distorcer até mesmo a leitura que fazemos de nós
mesmos. Nesse sentido, trabalhar com adolescentes é um desafio maior ainda, pois é uma
fase de descoberta, formação e transformação.

Assim, consideramos que a pesquisa proporcionará uma reflexão acerca da identidade


de modo a contribuir para a formação do sujeito. A estratégia proposta, pelo projeto
apresentado, favorece a comunicação e a troca de experiências e ideias, tendo em vista que
a partir dessas trocas os círculos de leitura propostos por Rildo Cosson (2014) possibilitam
envolver o aluno em determinados assuntos, fazê-los pensar a respeito e expressar suas
opiniões e, sendo uma prática democrática de ensino, permite a manifestação de todos os
participantes.

A obra Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, permitirá abordar um tema muito
delicado e que permeia a juventude, principalmente feminina. O livro nos traz os cabelos
como símbolo cultural, de resistência e como marca pessoal e questiona a importância dada
aos cabelos e tudo que pode representar na vida de um indivíduo, incluindo todas as dores
que essa relação pode trazer.

Djaimilia Pereira de Almeida se questiona sobre as dores que precisou passar até
compreender sua relação pessoal com os cabelos e é esse ponto que pretendemos atingir
nesta pesquisa, o questionamento. A intervenção prática proposta questiona: Qual o lugar dos
cabelos na nossa vida? Quais símbolos o cabelo carrega? Quais referências traz? Todos esses
questionamentos deverão permear a mente do aluno participante do círculo de leitura, que
sairá dele mais crítico, sabendo reconhecer marcas do preconceito e racismo, mas também
reconhecendo a força de uma cultura e dos sujeitos que a representam.

228
O questionamento também está presente na discussão abordada neste artigo ao
questionarmos a necessidade de uma literatura identitária nas escolas, que possa representar
grupos mais variados e trazer diversas reflexões para todos os grupos existentes nos espaços
escolares.

Ao longo do curso de especialização em Literaturas de Língua Portuguesa - Identidades,


Territórios e Deslocamentos pude perceber a importância de se oferecer variada literatura de
modo a formar e criar reconhecimentos e identificação por meio da literatura. Ao entrar em
contato com variadas culturas, formas de viver e reconhecer novos pontos de vista descritos
na literatura, o jovem leitor se reconhece e reconhece seu lugar no mundo, desenvolvendo
assim sua própria identidade.

Esperamos que essa proposta possibilite a reflexão necessária para se desenvolver uma
sociedade crítica e justa para todos.

229
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse Cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que
cruza fronteira. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse Cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que
cruza fronteira. Disponível em: Site Lelivros <https://lelivros.love/book/baixar-livro- esse-
cabelo-djaimilia-pereira-de-almeida-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em: 11
out. 2021.

ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Entrevista com a autora Eu mesma. Site Buala Disponível
em: <https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/eu-mesma-entrevista-a-djaimilia-pereira-
dealmeida>. Acesso em: 07 jun. 2021.

BERND, Zilá. O literário e o identitário na literatura afro-brasileira. Revista Língua &


Literatura, v. 12, n. 18, p. 33-44, 2010.

“BBB 21”: Entenda em qual crime Rodolffo pode ser enquadrado após fala racista. Site
O Dia. Disponível em: <https://odia.ig.com.br/diversao/bbb/2021/04/6121802-bbb-21-
entenda-em-qual-crime- rodolffo-pode-ser-enquadrado-apos-fala-racista.html>. Acesso
em: 07 jun. 2021.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Becca, 1999.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Revisão da tradução e texto final


Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução Denise Bottmann. Porto
Alegre: L&PM, 2017. E-book Kindle.

SÁNCHEZ ROMERO, Manuel. La investigación textual imagológica contemporánea y su


aplicación en el análisis de obras literárias. Revista de Filología Alemana, v. 13, p. 9- 27,
2005.
APÊNDICE

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do(a) Cursista: Isabel Cristina Furtado de Medeiros Sampaio

1.
1.1. Público-alvo:
Alunos do 9º ano do Ensino Fundamental 2
(Faixa etária: entre 14 e 15 anos).
1.2. Tempo de Duração:
1 Bimestre com 1 encontro semanal
Total: 8 encontros
1.3. Definição da prática de letramento literário:
O projeto contará com a prática de letramento literário semiestruturado proposta por Cosson (2014,
p.159), por se tratar de uma estrutura que conta com um direcionamento do professor, porém permite uma
certa liberdade dos alunos para se expressarem e porem seus pontos de vista para o grupo, uma vez que
ainda são jovens e estão em fase de amadurecimento literário. Os encontros acontecerão semanalmente
em espaço de Sala de
Leitura, que conta com uma aula semanal na grade horária dos educandos e conta com Professor
Orientador de Sala de Leitura.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
O letramento literário semiestruturado é um letramento proposto por Cosson em seu livro Círculos de
Leitura e Letramento Literário, de 2014 e propõe uma prática onde há um orientador/coordenador que
guiará o grupo na organização dos turnos de falas, responde à questões e sana alguma dúvida que possa
aparecer no decorrer do projeto/encontros.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
A escolha da prática se dá devido os alunos ainda serem jovens e estarem em formação literária, assim,
o professor orientador poderá auxiliá-los na organização e incentivo das falas, respondendo algumas
dúvidas e guiando em seu desenvolvimento enquanto jovens leitores.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
“Esse Cabelo: A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras”, de Djaimilia Pereira de Almeida
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):
A escolha do título se dá pela quebra de paradigmas do branco europeu. Apresentar as inquietações de
uma moça negra, com questões semelhantes aos enfrentados pelos jovens brasileiros, o simbolismo e
aceitação de seu cabelo em terras europeias permitirá discussões sobre representatividade, identidade,
colonização fazendo-os pensar também sobre o pertencimento de seus corpos e espaços.

231
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Para motivar os alunos a pensar no tema trabalhado no romance “Esse Cabelo”, de Djaimilia Pereira de
Almeida, será abordado primeiramente, a participação do Professor de geografia João Luiz no reality show
Big Brother Brasil 21, exibido pela Rede Globo. A participação do professor gerou uma grande polêmica
em um episódio em que, em uma conversa aparentemente descontraída, seu cabelo foi comparado aos
cabelos de um homem das cavernas por um dos participantes. Para isso, será apresentada aos alunos
uma notícia publicada no site do jornal O Dia, onde consta que o participante que proferiu a ofensa será
investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) do Rio de Janeiro.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
A motivação acontece pelo fato do programa televisivo ter grande audiência entre o público jovem e a
situação ter ultrapassado o público dos realitys chegando até a uma investigação por crime de racismo.
O tema cabelos sempre gera grande comoção entre os adolescentes e justamente essa fase da vida é a
maior época das inseguranças, em especial, quanto aos aspectos físicos e padrões de beleza impostos pela
sociedade e mídia. Assim, o tema traz o diálogo e reflexões entre os alunos sempre que abordado.

2.
Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
• Apresentação breve da biografia da autora;
• Apontar aos alunos os temas abordados no livro: feminismo, racismo e identidade;
• Reflexão sobre a composição da população portuguesa:
• Quem são os portugueses hoje? Como é Portugal?
• Como se dá/deu a relação dos cidadãos de Portugal com os de países africanos (colonizados por
Portugal), como Angola?
• Como é a relação entre esses países e como se conecta à nossa história?
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
Essas informações buscam levar os alunos a refletirem sobre como é a vida em outros países colonizados
por Portugal e criar relações de similaridades entre nossas culturas. Poderá quebrar os paradigmas de
nações perfeitas e criar identificação com as situações vivenciadas pela autora/protagonista.
Os alunos terão uma breve introdução do que esperam do livro e poderão lê-lo já contextualizado e assim,
perceberão as particularidades do texto.

232
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
A proposta apresenta uma concepção de leitura que pretende observar os elementos primordiais da análise
literária, proposta por Terry Eagleton (2017), sendo elas: início, personagem, narrativa, interpretação e
valor. Assim, observando cada um dos elementos, é possível perceber o que está para além do visível nos
textos. Perde-se aquela concepção de análise perpetuada pelos livros didáticos de apenas se descobrir “o
que quer dizer o texto” e passamos a perceber as minúcias de todo o romance, lemos suas entrelinhas e
fazemos um paralelo com outros textos e outras ideias que podem surgir.
1.2. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Essa concepção permite um olhar para a literariedade do texto. O texto não é mais uma simples brincadeira
de “achados” e não somente procuramos respostas a perguntas preexistentes. Essa concepção permite
um olhar verdadeiramente literário, reflexivo e crítico. E assim, expande-se a percepção dos alunos quanto
aos textos, suas funções na sociedade e é justamente a função humanizadora dos textos literários.

2.
2.1. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
O romance conta com 11 capítulos que serão divididos em 6 encontros, pois os dois primeiros servirão
para motivação e introdução do livro. Assim, ficará dois capítulos por encontro e o capítulo final no último
encontro para podermos ter um maior tempo de diálogo.
A cada encontro se escolherá alguns trechos dos capítulos selecionados para uma leitura compartilhada.
Essa leitura poderá ser feita pelo mediador ou por algum participante que se sentir confortável com a
leitura em voz alta. Não se deve obrigar o aluno a ler em voz alta, pois além de constrangê-lo, poderá
afastá-lo do grupo. Esse momento deve ser leve, uma vez que se precisa haver motivação para que o aluno
participe, ele deve desejar participar com a leitura. Aquele que apenas ouve, participa igualmente e deve
ser respeitado. Após a leitura de cada trecho selecionado, abre-se para debate, caso alguém queira, pode-
se acrescentar mais algum trecho dos capítulos selecionados para leitura. O mediador interferirá sempre
que necessário, pedindo que o outro aguarde a vez de falar, organizando a sequência de falas e instigando
com questões.
Para iniciar e direcionar as discussões, se propõe as seguintes questões para reflexão com o grupo:
• O que os cabelos representam para as pessoas?
• Qual o peso colocado nas pessoas para se adequarem aos padrões impostos pela sociedade?
• Você já se sentiu excluído dos padrões impostos? Será que a protagonista também se sentia assim?
• Como você percebe o processo de libertação dos padrões impostos?
2.2. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:

Por se tratar de um romance com quase 150 páginas, seria inviável se fazer a leitura durante os encontros,
pois assim, não se teria tempo para reflexões e diálogos.
Com os participantes fazendo a leitura em casa, e relendo alguns trechos, ganha-se tempo de conversa e
a cada relida, abre-se a novas interpretações e percepções diferentes acerca da leitura.

233
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.1. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
A interpretação será feita por meio de feira de leitura, onde a turma será separada por afinidades com
os temas abordados no romance e cada grupo focará em um desses temas. Havendo outros círculos de
leitura na escola, pode-se pensar em uma feira maior, ou ainda, inserí-lo à alguma outra atividade da
escola criando um Espaço Literatura.
Cada grupo, focando sua temática e embasado pelo romance Esse Cabelo, fará uma apresentação sobre
a perspectiva do livro e a leitura que o grupo faz, abrindo espaço para diálogo entre e com os visitantes.
1.2. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
A interpretação feita dessa forma permite os alunos exporem seus pontos de vista, comunicando com os
demais grupos e visitantes. E dessa forma, também, reforça as leituras e interpretações a todo momento,
a cada novo olhar apresentado, uma outra visão pode surgir, abrindo espaço para novos olhares e
percepções acerca da obra.

2.
2.1. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
Além do desenvolvimento do aluno dos grupos e na feira de leitura, ao final será pedido a produção de
um texto do gênero ensaio, por se tratar de um gênero mais livre e assim, os alunos poderão se expressar
com maior liberdade.
Nesse ponto, em colaboração com o professor de língua portuguesa, os alunos passarão por leituras de
textos do gênero ensaio e aula expositiva das características deste gênero, que, posteriormente, embasará
a escrita de seu próprio texto. Para auxiliar na produção deste texto, se sugere a confecção de um diário de
leitura, onde os alunos, gradativamente e de forma livre, vão anotando suas percepções acerca da leitura.
A correção do ensaio deve ser feita com o olhar livre, uma vez que não se poderá corrigir interpretações,
mas apenas fazer observações sobre as superinterpretações. Assim, o olhar do professor deve ser livre de
preconceitos e rigidez, deixando de lado as suas próprias interpretações e visões acerca da obra.
Ao ler e também avaliar a leitura e interpretação dos alunos no letramento literário, devemos ter em
mente ser uma aprendizagem que se desenvolve muito estreitamente com gostos pessoais, então,
qualquer situação que possa gerar desconforto, constrangimento ou ainda algum tipo de dificuldade, não
estará atendendo à intenção da proposta, que ao final é desenvolver alunos leitores de literatura.
2.2. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Essa proposta de avaliação por meio de Ensaio, observação da participação nos círculos de leitura e
também na feira de leitura permite uma avaliação mais específica de cada aluno, a partir do que ele mais
se identifica e apresenta maior facilidade. Há alunos que se expressam melhor falando, outros escrevendo.
Alguns observam mais, outros gostam de expor suas ideias. E todas elas são válidas e precisam ser levadas
em consideração.

234
3.
3.1. Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse Cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteira. Rio
de Janeiro: LeYa, 2017

BERND, Zilá. O literário e o identitário na literatura afro-brasileira. Revista Língua & Literatura, v. 12, n. 18,
p. 33-44, 2010.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Becca, 1999.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF; revisão da tradução e texto final Monica
Stahel. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM,
2017. E-book Kindle.

SÁNCHEZ ROMERO, Manuel. La investigación textual imagológica contemporánea y su aplicación en el


análisis de obras literárias. Revista de Filología Alemana, vol. 13, pp. 9-27, 2005. Universidad Complutense
de Madrid. Madrid, España

Entrevista com a autora Eu mesma. Site Buala. https://www.buala.org/pt/cara-a- cara/eu-mesma-


entrevista-a-djaimilia-pereira-de-almeida. Acesso em 07 de jun. de 2021

“BBB 21”: Entenda em qual crime Rodolffo pode ser enquadrado após fala racista. Site O Dia https://
odia.ig.com.br/diversao/bbb/2021/04/6121802-bbb-21-entenda-em-qual-crime-rodolffo-pode-ser-
enquadrado-apos-fala-racista.html . Acesso em 07 jun. de 2021

Esses cabelo, Djaimilia Pereira de Almeida. Site Lelivros. https://lelivros.love/book/baixar-livro-esse-


cabelo-djaimilia-pereira-de-almeida-em- pdf-epub-mobi-ou-ler-online/ Acesso em 11 de out. de 2021

235
Para além-mar:
10 Despertando o gosto e a fruição artístico-cultural
em crianças por meio da Literatura Infantil e Juvenil
de textos pertencentes à Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa

Juliana Camargo Mariano1


Deisi Luzia Zanatta2

RESUMO
Este trabalho coloca em diálogo as obras de Ruth Rocha: O reizinho mandão; José Cardoso
Pires: Dinossauro excelentíssimo; e Pepetela: A montanha da água lilás: fábula para todas
as idades; e apresenta uma proposta para se trabalhar com alunos do Ensino Fundamental.
Ao trabalhar com esses livros, pretendemos mostrar a relação da ficção com a realidade dos
países envolvidos, bem como refletir acerca da importância da leitura, interpretação a fim
de ampliar o repertório artístico-cultural3 dos menores. Para tanto, nos respaldaremos nas
teorias de Metaficção Historiográfica (HUTCHEON, 1991) e Letramento Literário (COSSON,
2014) para um trabalho de pesquisa qualitativa aberto para discussões sobre questões
históricas e políticas dessas nações. E temos como objetivo a aplicação da proposta visando
a desenvolver leitores críticos, participativos em sociedade.

Palavras-chave: Diálogos; literatura Infantil e Juvenil; literaturas de Língua Portuguesa;


fábulas; autoritarismo.

1 Doutoranda do programa de pós-graduação em Letras Estrangeiras e Tradução, área de concentração Estudos Linguísticos,
pela USP. E-mail: juliana.mariano@usp.br
2 Licenciada em Letras e especialista em Língua e Cultura Inglesa pela URI – campus de Frederico Westphalen. Mestra
e Doutora em Letras pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora Tutora On-line do Núcleo de Educação à Distância da
Católica de Santa Catarina – Centro Universitário, de Jaraguá do Sul/SC. E-mail: deisil.zanatta@gmail.com
3 O conceito “repertório artístico-cultural” está pautado no mencionado na Base Nacional Comum Curricular, que significa
valorizar as manifestações artísticas e culturais existentes nos contextos local, nacional, mundial.

237
1. Introdução
Como docente de Língua Portuguesa, em uma escola pública pertencente à Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo, desde 2014 e pela formação obtida na Universidade
de São Paulo pude desfrutar de muitas disciplinas e experiências que me consolidaram
como professora. Nessa instituição tive contato com as literaturas escritas em armênio e em
língua portuguesa e, dessa forma, pude tecer um trabalho de mestrado na área de Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Hoje sou doutoranda na mesma instituição
de ensino na área de Letras Estrangeiras e Tradução, com um trabalho de material didático
para o ensino de língua armênia em Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Inscrevi-me no ano de 2019 para a Especialização em Literaturas de Língua Portuguesa


– identidades, territórios e deslocamentos –, pelo prazer de estar em contato com a literatura
e poder aprimorar meu repertório cultural, ademais levar o referencial teórico, linguístico,
artístico-cultural aos alunos matriculados na instituição onde ministro aula. Ao longo do curso,
revisitei obras lidas durante a graduação, mas também pude conhecer obras desconhecidas,
a citar, de Djamila Ribeiro, Emicida; aprimorar os referenciais teóricos a partir do contato com
os textos ao longo dos itinerários formativos, bem como a partir das lives; por fim conhecer
também obras poéticas por meio de Slam4.

Diante do percurso apresentado, decidi fazer um artigo em que reúno toda a minha
trajetória acadêmica e profissional a partir da escolha de três livros, a saber: O reizinho
mandão, da escritora brasileira Ruth Rocha, Dinossauro excelentíssimo, do português José
Cardo Pires, e A montanha da água lilás: fábula para todas as idades, do angolano Pepetela.
A primeira obra e a última obra pertencem à Literatura Infantil e Juvenil, já a do escritor
português pode ser assim considerada por ser do gênero fábula.

Ao longo do século XX, muitos escritores e intelectuais interpretaram a Literatura Infantil


e Juvenil como um subgênero literário por ser escrita para as crianças, consideradas com
uma capacidade intelectual menor. Todavia, com o passar do tempo, com a compreensão da
importância do estudo para o aprimoramento das capacidades leitora e escritora, desde os
primeiros anos de vida com livros lúdicos, ilustrados e coloridos, houve uma transformação
do pensamento em relação à Literatura Infantil e Juvenil.

Ainda, com publicações de temas próximos à realidade dos escritores de Literatura Infantil
e Juvenil, com uma percepção de mundo provocadora e instigante para o desenvolvimento
do senso crítico dos leitores, pudemos acompanhar a mudança de perspectiva das obras
4 Termo originário da língua inglesa que significa “batida”. Por meio dessa batida, artistas anônimos elucidam problemas
reais atrelados à preconceito, exclusão de grupos minoritários.

238
para as crianças. Como mencionam Yunes e Pondé (1989, p. 46),

O texto literário infantil, por um lado, partiu para uma revisão do mundo na perspectiva da
infância, para uma pesquisa de estrutura de linguagem e imagens próprias da criança. Por
outro, ocorre uma renovação do recurso tradicional da fantasia, pelo jogo da intertextualidade,
pela paródia, pela investigação de estados existenciais infantis e pelo realismo que aparece
quebrando tabus e preconceitos, lidando com os problemas cotidianos que não poupam a
infância.

Os escritores Ruth Rocha, José Cardoso Pires e Pepetela foram escolhidos para compor
o corpus deste trabalho a fim de auxiliar, de forma qualitativa, com o ensino de alunos
matriculados no sexto ano do ensino fundamental no âmbito do letramento literário. A
proposta pode contribuir para a leitura estética e fruída em sala de aula, assim favorecendo
o desenvolvimento integral do estudante – social, intelectual, físico, emocional –, também
promover cooperação entre os envolvidos, agregar valores e questões filosóficas recorrentes
no espaço social.

Nosso problema de pesquisa parte de uma das competências gerais da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais,
das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-
cultural” (BRASIL, 2018, p.9). E a partir dele indagamos: i) como o trabalho com textos literários
da Literatura Infantil e Juvenil podem oferecer saberes aos alunos, para que estes construam
e gerenciem seu conhecimento, a partir da percepção imagética propiciada pela leitura
e, assim, concretizando seu pensamento e sua linguagem? ii) como elaborar um itinerário
formativo visando a favorecer o trabalho com o gênero textual fábula e, ao mesmo tempo,
despertar nos estudantes a concepção de que são agentes de mudanças na sociedade em
que vivem?

Objetivamos que, com a aplicação deste trabalho, os alunos possam desenvolver


o hábito da leitura sob um olhar de que a obra literária aguça imaginação, pensamento,
linguagem, transforma a concepção em relação a conceitos de autoridade e autoritarismo,
ao mesmo tempo, propiciar um debate entre os pares sobre contexto social, político dos
países de origem dos escritores das obras lidas, com a intenção de garantir autonomia nos
envolvidos, como também sua abertura ao novo e ampliação de seu interesse para arte de
modo abrangente.

Para tanto, apoiamo-nos como referencial teórico no conceito de metaficção


historiográfica – narrativa formada da união de ficção com a história – (HUTCHEON, 1991),
justamente pelas três fábulas “além-mar” expressarem um posicionamento crítico à opressão

239
e ao desrespeito às liberdades individuais e coletivas. Ainda no de Rildo Cosson (2014a), a
respeito de círculo semiestruturado de leitura para o letramento literário, por justamente
este modelo garantir a discussão fruída em meio a uma interação sem um roteiro consolidado,
mas tendo o professor como mediador da discussão.

Pretendemos com a aplicação deste itinerário formativo, que se inicia com as leituras
das obras literárias, potencializar o hábito de leitura, a transformação social e cultural nos
menores, promover o espírito de cooperação entre eles, articular os saberes produzidos
com o contexto real e desafios do cotidiano. Ademais, garantir que os pressupostos expostos
na BNCC sejam colocados em prática e, assim promover uma aprendizagem em diferentes
contextos, a citar, por exemplo, social, histórico, linguístico, semântico, oral.

2. Contextualização
Ao assumir as aulas no segmento do ensino fundamental, busquei desenvolver o senso
estético e ampliar o repertório artístico-cultural dos alunos com leituras de obras literárias
universais e escritas na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Para tanto, apoio-me
nas leituras que fiz ou tive contato ao longo de minha formação acadêmica.

Com o curso de Literaturas de Língua Portuguesa – Identidades, Territórios e


Deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, oferecido pela UAB/Unifesp, pude reanalisar
meu conhecimento e minhas práticas como docente ao longo das semanas com a tessitura do
diário de bordo, bem como entrar em contato com obras por mim desconhecidas. Inclusive,
uma delas sustenta o nosso artigo apresentado, a citar a obra de Rildo Cosson (2014a), acerca
do letramento literário.

Ainda, esse curso permitiu que nascesse o diálogo das obras literárias selecionadas para
o trabalho, pertencentes de três países que compõem a CPLP, tendo como pretensão, além
dos contextos já mencionados, oferecer aos alunos do Ensino Fundamental a possibilidade
de compreender que, a partir da colonização portuguesa, uma língua comum foi imposta,
mas com suas diferenças e, o mais importante, com traços culturais distintos. Ademais que
a língua não é “um mero instrumento de comunicação”5, ela nos une e nos consolida como
uma grande comunidade falante de língua portuguesa.

5 LINGUA: VIDAS EM PORTUGUÊS. Direção de Victor Lopes. Filmes do Serro/Grupo Filmes/Condor Filmes. Brasil, Portugal:
2004. [DVD]. (105 minutos), colorido, 0:10:54s.

240
Ao assistir ao filme, sugestionado em uma das disciplinas do curso, Língua: vidas em
português, ratificou-se a existência deste artigo sob o contexto de ampliar o repertório
literário dos alunos, bem como seu conhecimento acerca da história de nosso idioma. “Não há
uma língua portuguesa, há línguas em português”6, o que evidencia uma língua em comum,
mas falada de muitas formas a partir da hibridização das línguas locais, do colonizador e
de muitas outras nacionalidades que consolidaram a língua portuguesa dos nove países da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Com este trabalho buscamos, a partir de círculos formados em sala de aula para
leitura; análise; discussão e reflexão sobre as narrativas selecionadas, despertar o gosto
pela leitura, pelo debate desde a infância, com o propósito de formar cidadãos com um
repertório artístico-cultural e senso estético amplo para a vida em sociedade. Dizemos isso,
pois temos a convicção da sua importância e do papel da escola para a sua consolidação, já
que, infelizmente, há apatia pela leitura por muitos membros da família e ainda pelo valor
dos livros paradidáticos no Brasil.

Também, por meio dos resultados do Brasil no domínio leitura no PISA7, percebemos
que o trabalho com as obras literárias é escasso nas escolas públicas brasileiras, ficando
restrito a fragmentos contidos em livros ou apostilas didáticas voltados para os vestibulares
nacionais. Diante desse quadro, optamos em iniciar a leitura de obras literárias já no ensino
fundamental, modificar essa estrutura enraizada de se ler parte da obra para responder
questões, sem qualquer análise, discussão.

No âmbito de ratificar o mencionado, apoiamos nas competências gerais da BNCC a fim


de exercitar a curiosidade intelectual, “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas
e culturais” (BRASIL, 2018, p.9) e assim, de forma lúdica, levar saberes a partir da leitura,
análise e discussão em grupo sobre os conceitos de autoridade, autoritarismo, liberdade de
expressão e de escolha, ademais de questões históricas da CPLP.

As obras selecionadas, por serem fábulas, podem ser lidas por leitores de qualquer
idade. Nelas há o abuso das linguagens verbal e não-verbal e da ironia para representar
questões sociopolíticas, bem como o desfalecimento de reinos, sociedades devido à opressão
e injustiça social.

A da escritora brasileira, Ruth Rocha, O reizinho mandão, teve sua primeira edição
publicada em 1978, e compõe a saga dos reizinhos da autora: O reizinho mandão, O que

6 LINGUA: VIDAS EM PORTUGUÊS. Direção de Victor Lopes. Filmes do Serro/Grupo Filmes/Condor Filmes. Brasil, Portugal:
2004. [DVD]. (105 minutos), colorido, 0:2:14s.
7 Programa Internacional de Avaliação de Estudantes.

241
os olhos não veem, O rei que não sabia de nada, Sapo-vira-rei-vira-sapo: ou a volta do
reizinho mandão. Embora os alunos de dez a doze anos, do século XXI, desconheçam ainda
a história do Brasil a partir de 1964, conseguem refletir sobre atitudes insensatas que levam
ao silenciamento de um reino, a iniciar pelo nome do livro em que tem o substantivo no
diminutivo e o adjetivo no aumentativo.

Já a do escritor português, José Cardoso Pires, Dinossauro excelentíssimo, publicado


pela primeira vez em 1972, pré-anuncia o fim do período Salazarista em Portugal. Todavia
essa questão histórica não é conhecida pelos leitores mirins. O narrador faz uma biografia de
um menino pobre que atingiu o ápice ao se tornar rei do reino do Mexilhão e, usou de seu
poder para isolar e silenciar os cidadãos de seu reino.

Por fim, a de Pepetela, A montanha da água lilás: fábula para todas as idades, foi
publicada nos anos 2000, embora tenha sido escrita anteriormente, quando a filha do escritor
era criança. A obra traz como enredo as injustiças sociais, o desfalecimento de uma nação
devido à falta de cooperação mútua dos lupis, jacalupis, cambutinhas. O seu narrador, de
forma lúdica, trabalha questões políticas e ambientais acometidas pelo poder.

A nosso ver, o diálogo entre as obras propiciará uma conversa com os menores desde
questões de colonização, independência dos países falantes de língua portuguesa, como
também de assuntos políticos, sociais, ambientais, de elementos da estrutura narrativa, e por
fim, a presença do contador de história e seu papel nas obras e na sociedade da Antiguidade
e Idade Média.

3. Fundamentação teórico-metodológica
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p. 41), “a leitura é um
processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto,
a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o
que sabe sobre a língua.” Assim sendo, buscamos com a proposta mencionada no artigo de
construir um itinerário formativo, de cunho científico qualitativo, voltado para o letramento
literário e a análise da história por meio da literatura.

Também almejamos que os envolvidos adquiram conhecimento a partir da leitura


das obras literárias, tenham uma melhor desenvoltura perante a leitura e a compreensão
textual, ainda se permitam a novas descobertas científicas, culturais e históricas. Assim,
tendo possibilidade de serem críticos e fruídos esteticamente perante ações do cotidiano e,

242
com isso, construir sentidos para a vida em sociedade como também melhorar a qualidade
de vida de outrem em sociedade.

A partir dessa conceituação sobre leitura como elemento emancipatório, dentre muitos
adjetivos, os livros selecionados para compor este artigo acerca de um diálogo para além das
narrativas, incluem-se no que Linda Hutcheon (1991) chama de metaficção historiográfica –
narrativa formada da união da ficção com a história – por expressarem um posicionamento
crítico à opressão e ao desrespeito às liberdades individuais e coletivas. O reizinho mandão,
Dinossauro excelentíssimo, A montanha da água lilás: fábula para todas as idades, são
narrativas lúdicas que possibilitam diferentes níveis de significação dependendo da faixa
etária, experiência de vida e de leitura, além do conhecimento-prévio do leitor.

Graças ao diálogo metaficcional, isto é, a um diálogo que revê a história, questiona


a verdade dos fatos consagrados com o objetivo de trazer o poder crítico em seu leitor,
misturado com elementos paródicos e alegóricos, as obras selecionadas possibilitam a
conscientização crítica de seu leitor perante o mundo. Em todas as obras percebemos que o
contador de histórias busca ensinar sobre a importância do diálogo, da empatia pelo outro
para que uma sociedade se desenvolva, e ainda levar a todos os leitores a refletirem sobre
temas como autoridade, autoritarismo, liberdade de expressão visando a formar cidadãos
autônomos.

De acordo com Arendt (1972, p.144), o termo autoridade está associado à política
romana, conceito discutido por Platão, em República, e implica “obediência na qual os homens
retêm sua liberdade” (ARENDT, 1972, p. 144). Isto é, a palavra evidencia que a obediência é
importante para garantir a liberdade. Por sua vez, o verbete liberdade é entendido como livre
arbítrio em relação à política (ARENDT, 1972, p. 188). Por fim, autoritarismo, “manifestação
degenerativa da autoridade [...] uma imposição da obediência ... oprimindo a liberdade”
alheia (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1995, p. 94).

Com base nessas definições, percebemos que os termos estão entrelaçados e presentes
em todas as instituições – familiar, partidária, acadêmica, ecumênica –, podendo garantir ou
não liberdade a todos os frequentadores. Ao retomar às obras literárias selecionadas para o
trabalho com alunos matriculados no Ensino Fundamental, pode-se discutir sobre os termos,
refletir como também mensurar sobre a situação apresentada nas obras e as vivenciadas na
contemporaneidade, com o propósito construir nos menores valores sólidos em relação ao
tema.

243
Para tanto, amparamo-nos também na teoria de letramento literário de Rildo Cosson
(2014a) a fim de sustentar o trabalho aqui apresentado. Para ele, o letramento literário é
de responsabilidade da escola como também a humanização do ser humano a partir da
proficiência da leitura de obras literárias. Neste sentido, cabe ao docente viabilizar diálogos,
incitar conversas a suscitar reflexão sobre as questões evidenciadas anteriormente, ainda
auxiliar para que o aluno descubra o prazer do ato de ler, e a partir dela, desenvolver
consciência crítica sobre si e sobre membros sociais.

De acordo com o mesmo autor, é compromisso do professor preparar o ambiente para


articular a leitura e a consolidação do processo, com o intuito de garantir a formação social,
ideológica e histórica no leitor. Dessa forma, o primeiro passo a ser oportunizado consiste na
motivação, isto é, instigar o desejo de consumir as obras literárias a serem lidas. Em seguida,
a introdução, apresentar o autor e a obra de forma a fomentar o desejo de conhecer melhor
as narrativas.

Concluída essa etapa, inicia-se a leitura do texto em si, no nosso caso, em voz alta pelo
docente, sob o auxílio de recursos tecnológicos, como notebook e datashow, para a exibição
dos textos lidos a garantir o contato com as obras literárias, uma vez que só há um exemplar na
unidade escolar. Nesta ocasião, pode-se fazer provocações para aguçar a vontade e o espírito
crítico para encerrar a etapa com o momento de interpretação das obras pelos envolvidos.

Após esse momento, por meio de um círculo de leitura, inicia-se a etapa seguinte de
discussão da narrativa a partir da visão dos envolvidos. Todavia, este momento se constitui
no que Cosson (2014a) define como círculo semiestruturado:

(...)não possui propriamente um roteiro [para guiar as discussões], mas sim orientações
que servem para guiar as atividades do grupo de leitores. Essas orientações ficam sob a
responsabilidade de um coordenador ou condutor que dá início à discussão, controla os
turnos de fala, esclarece dúvidas e anima o debate, evitando que as contribuições se desviem
da obra ou do tema a ser discutido (COSSON, 2014a, p.159).

Escolheu-se o modelo semiestruturado para o momento por considerá-lo mais produtivo


para o letramento literário, uma vez que o pesquisador/docente busca discutir sobre várias
temáticas, desde a estrutura da narrativa até questões históricas. Caso fique muito aberto,
sem um roteiro prévio, as discussões podem e devem ser proveitosas entre os envolvidos,
mas não se alcançam o produto previamente idealizado.

A nosso ver, a leitura das narrativas escritas em língua portuguesa transforma e


oportuniza novos conhecimentos/saberes, como também mobiliza para uma reflexão

244
histórica a partir do gênero fábula e amplia o repertório das capacidades de linguagem nos
alunos. Entendemos como capacidades de linguagem o desenvolvimento dessas nos alunos a
partir de sua ação perante o texto: mobilização de vocabulário para discorrer seu pensamento
por meio da construção de um texto oral ou escrito. Cabe salientar que essas capacidades de
linguagem favorecem o desenvolvimento das potencialidades nos envolvidos.

Acreditamos que o trabalho com a leitura viabiliza ao estudante uma aplicação de seu
conhecimento prévio a respeito dos temas, também a realização de inferências no momento
de interpretação das narrativas acerca da temática e o papel do contador de histórias nas
obras a partir de conceitos acerca de cada nação estudada. Essas ações impactam na prática
educativa – aprimoramento da leitura, espírito crítico e reflexivo sobre o tema em voga, ainda
fruição na competência leitora, necessária e cobrada na vida adulta em múltiplos textos que
nos circundam.

Esperamos que com essa proposta de letramento literário, o aluno adquira informação
a respeito do contexto cultural, social, político, filosófico, linguístico, além da iniciação no
processo de leitura autônoma, tornando-se capaz de analisar e discorrer sobre qualquer
temática sob diferentes perspectivas. Para tanto, apoiamo-nos nas etapas de trabalho
propostas por Cosson (2014b) motivação, introdução, leitura e interpretação.

Seguindo essas etapas, o docente iniciará seu trabalho com uma sondagem inicial para
observar o conhecimento prévio do aluno acerca da CPLP e dos títulos das obras. Em seguida,
haverá, por parte do docente, uma introdução ao tema, às palavras abordadase ao contexto
sócio-histórico. Depois, contemplará a etapa de leitura compartilhada sob o respaldo
tecnológico para que todos acompanhem a leitura, ilustrações e diagramação da página. Por
fim, ocorrerá a análise e interpretação do texto lido a partir da mediação do docente e da
contribuição de todos os envolvidos nesse processo de letramento literário.

Julgamos a última fase determinante para as trocas de experiências, no entanto, para


que assim seja, a discussão em um semicírculo estruturado é essencial a fim de um diálogo
mediado em que desperte nos envolvidos a criatividade e reflexão, dessa forma, expandindo
seu conhecimento, graças a interação entre eles. Se todas as etapas forem realizadas,
a literatura cumprirá o seu papel humanizador. Como menciona Cosson (2014, p. 30), a
literatura “nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários
para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem.”

245
4. Apresentação e constituição do objeto de
pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
A literatura representa dada realidade e deve ser trabalhada na sala de aula de forma
a despertar o gosto pela leitura nos alunos. Para ratificar essa ideia, pautamos em Candido
(2011, p. 177-178):

(...)a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos
currículos, sendo proposta a cada um como intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade
preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da
ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia
e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é
indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes
sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Sob essa ótica de que a literatura é um instrumento para uma (re)análise, reflexão, uma
mudança de postura diante dos problemas reais, buscamos ao ler as obras O reizinho mandão,
Dinossauro excelentíssimo, A montanha da água lilás: fábula para todas as idades, em um
todo ou por meio de fragmentos selecionados construir valores humanos nos envolvidos
com discussões e debates, associando as palavras e as imagens inseridas a formar uma ideia
mais relevante nos alunos. As aulas com essa finalidade, ocorrerão em encontros de dia fixo,
com uma duração de (90) noventa minutos/semanal.

Cabe ao professor reproduzir os textos lidos, uma vez que não há exemplar na escola
para empréstimo, para que os discentes possam acompanhar e participar do momento;
ainda permitir-se desfrutar da leitura, ampliar o contexto lúdico para desenvolver o gosto e
o compromisso com a leitura, por fim, sentir-se desafiado a discutir e analisar os contextos
reais deflagrados nas obras literárias com o grupo. Já como estratégia de leitura, recorremos
à leitura em voz alta pelo professor ou até a compartilhada com os envolvidos, mas também
podem ser adotadas outras modalidades como a silenciada, individual a partir do contato
com as páginas das obras projetadas na lousa.

Os objetivos gerais deste trabalho seriam comparar, analisar e dialogar as obras escolhidas
de Ruth Rocha, José Cardoso Pires e Pepetela, as quais abordam temas como autoritarismo,
repressão, liberdade de expressão, de forma leve e lúdica. Os específicos: i) divertir os leitores
ao mesmo tempo ampliar seu repertório literário, linguístico, histórico e cultural de obras
escritas em língua portuguesa, mas em países distintos; ii) expandir seu conhecimento
artístico-cultural em relação aos autores e suas nações; iii) levá-los a compreender os laços

246
que unem de forma direta os três países: Brasil, Portugal e Angola; iv) analisar as obras de
forma a desenvolver neles o espírito crítico e autônomo; v) promover o prazer pela leitura nos
envolvidos; vi) evidenciar o trabalho do docente a fim de fomentar discussões nos envolvidos
e, dessa forma, formar sujeitos questionadores; vii) oportunizar debates construtivos tendo
as obras literárias como ponte para questões existentes na sociedade, assim estimulando a
consciência crítica necessária para o exercício da cidadania; viii) conhecer a Literatura Infantil
e Juvenil brasileira, portuguesa e angolana; ix) desenvolver atividades a partir da leitura das
obras, sendo padlet e fotonovela.

A nosso ver, os nossos objetivos são densos por destacarem o papel do professor como
também dos alunos no processo de leitura por prazer, ao mesmo tempo, por necessidade de
garantir autonomia de leitura e reflexão, melhor desenvoltura no âmbito social. Ainda pela
pretensão de levar os menores a aprimorarem o gosto pela leitura, ampliarem seu repertório
e estimularem o processo de escrita por meio da tessitura de um diário de bordo, participação
no padlet exclusivo para esta proposta e, por fim, a criação, em grupo, de uma fotonovela de
algum fragmento marcante sob sua concepção.

5. Análise, discussão e resultados esperados


A narrativa da autora Ruth Rocha intitulada O reizinho mandão, em um tempo não
demarcado – “há muito tempo atrás” –, o narrador conta a história de uma nação silenciada
por um reizinho baixinho, autoritário, que cria leis descabidas após o falecimento de seu
antecessor. A fim de buscar uma solução para o problema criado, busca em reinos vizinhos
por um sábio. Este dá a solução e o reizinho de forma obediente a segue. Um dia, ele encontra
uma menina que o enfrenta, ele foge e o reino encontra a paz e a harmonia novamente.

As linhas curtas presentes na história lembram versos rimados, ritmados, que possibilitam
a dinamização da leitura, independente da faixa etária de seu público. O emprego de uma
linguagem informal – “levar pito do rei” – demonstra a despreocupação com o formal e
sua aproximação com o discurso das crianças. Seu foco é o memorialista, por relatar fatos
ocorridos em determinada época. Sua função é preservar a história que um dia lhe contaram
com o intuito de transmitir certo conhecimento.

Em Dinossauro excelentíssimo, de Cardoso Pires, há também o contador de história que


traz a biografia de um menino pobre que supera os desafios e se torna o chefe maior no Reino
do Mexilhão. Da mesma forma que o reizinho da outra narrativa, esse também cria leis que

247
vão causando o silenciamento e o riso entre os cidadãos locais. Com o passar do tempo, seu
corpo vai se transformando em um dinossauro, figura ultrapassada na contemporaneidade.

No decorrer da narrativa, deparamo-nos com neologismos – elementos encontrados


nos discursos de crianças em processo de desenvolvimento da fala, do pensamento, que
buscam léxicos que melhor expressam sua concepção, a citar a “amareleceu” – amarelo e
envelheceu –, “embandeirando” – enchendo de bandeira – ou como “magicar” – mágica e
aplicar.

Por sua vez, o livro do angolano Pepetela, A montanha da água lilás: fábula para todas
as idades, há presença demarcada de um contador de história que apresenta o reino de
“cambutinhas, jacalupis e lupis” que descobrem uma fonte de água de cor lilás, perfumada e
calmante. O que era para trazer a tranquilidade para essas personagens, trouxe a desarmonia
e a segregação entre eles, uma vez que uns trabalhavam para o bem-estar de todos sem
qualquer benefício.

Encontramos nessa obra palavras existentes em Angola como “cubata” que significa
“cabana construída de barro e ramos, coberta por capim ou folha de coqueiro”, “bué”,
“grande quantidade, muitos”, “cacimbo”, “nevoeiro denso”.

As três obras selecionadas para o projeto de leitura, com os alunos matriculados no sexto
ano do ensino fundamental, brincam com a imaginação e aguçam os leitores a interpretar o
texto a partir de sua experimentação do mundo. Dessa forma, os alunos, ao terem contato
com as obras, são incitados a discutir sobre questões como autoridade e autoritarismo,
além dos elementos presentes nas narrativas, léxicos, ilustrações presentes no decorrer das
páginas e o papel do contador de história presentes nas três obras.

Vale destacar que contadores eram importantes nos séculos passados por levar
conhecimento a todas as pessoas alfabetizadas ou não. Ainda podem ser considerados
orientadores de uma nova perspectiva social. Eles, associados com os professores ou
mediadores, estimulam os envolvidos nessa proposta a repensar os modelos sociais
divulgados. Ação essa que garante o desenvolvimento do espírito crítico, abertura ao novo,
resiliência nos envolvidos.

Acreditamos que com o recurso do datashow e com a produção de um padlet e uma


fotonovela, os alunos poderão interagir melhor com as obras em destaque e, de forma mais
proveitosa, discutir com os pares sobre a temática, os elementos da narrativa, o que da obra
mais lhe chamou atenção. Ou seja, buscamos com a interação propiciar aos alunos uma

248
fruição estética, contato com a literatura e seu letramento, incentivar a leitura de outras
obras em grupo ou de forma individualizada e ainda buscar o desenvolvimento integral do
sujeito participante dessa proposta.

6. Considerações Finais
A literatura tem papel fundamental na constituição do ser humano crítico, responsável,
criativo em nossa sociedade. Para que assim ocorra, é responsabilidade dos profissionais
presentes nas escolas bem como dos familiares dos alunos que oportunizem momentos de
leitura, ações pedagógicas a fim de suscitar o conhecimento linguístico, semiótico, sócio-
histórico e cultural nos menores de forma lúdica e atrativa.

A nosso ver, ao propor a leitura das obras de escritores pertencentes à Comunidade


dos Países de Língua Portuguesa ampliamos o repertório tanto linguístico quanto cultural
nos envolvidos e ainda propiciamos mais projetos de letramento literário no espaço escolar,
podendo esses ocorrerem com a intervenção de um docente ou de um discente, este no
papel de protagonista juvenil.

Com essa prática de leitura, visando ao letramento literário em alunos do sexto


ano do ensino fundamental, oportunizaremos não somente a diversão ou a expansão de
seu conhecimento artístico-cultural em relação aos autores e suas nações, mas também
favoreceremos debates construtivos ampliando o conhecimento em relação a convivência,
coletividade, papel de autoridade. Ainda a partir de suas contribuições no padlet e com a
criação de uma fotonovela, os menores demonstrarão as contribuições de cada obra na sua
constituição como sujeito crítico e criativo.

Dessa forma, destacamos a importância de se trabalhar com as obras literárias infantis e


juvenis desde cedo com o intuito de agregar valores sociais, filosóficose éticos nos estudantes
que, logo mais, tornar-se-ão cidadãos. Almejamos, ao colocar em prática o proposto na Base
Nacional Comum Curricular, “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais,
das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-
cultural” (BRASIL, 2018, p.9) a fim de formar sujeitos leitores como também participativos,
democráticos, responsáveis, críticos e criativos.

Ainda por serem essas fábulas uma metaficção historiográfica, induzimos neles um
melhor entendimento e posicionamento crítico à opressão e falta de respeito às liberdades
individuais e coletivas acerca do que une os três escritores e, consequentemente, os três

249
países. Ainda a reflexão sobre história vivida em cada um deles durante o século XX, momento
em que a “autoridade” cedeu espaço para o “autoritarismo”, mesmo não sendo o nosso
objetivo resgatar o período ditatorial ou a guerra civil vivenciados em cada uma das nações
presentes nesse projeto literário.

O curso oferecido pela UAB/Unifesp em Literaturas de Língua Portuguesa favorece ao


docente um repensar na importância do trabalho literário em sala de aula, como desenvolver
aulas e adaptadas para sua realidade, na medida em que os alunos podem ampliar seu
desenvolvimento de forma integral, algumas vezes, sendo o divisor de águas em sua vida.
Nossos sinceros agradecimentos a todos os envolvidos nessa navegação por mares já
navegados, a favor do letramento literário e da consolidação de uma nação mais letrada e,
consequentemente, mais crítica e sábia.

250
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. B. de Almeida. SP:
Perspectiva, 1972.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCC, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs). Dicionário de


política. 7ª ed. Brasília: Editora UnB, 1995.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

BRASIL. Ministérios da Educação e Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua


Portuguesa. Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5ª ed. RJ: Ouro sobre Azul, 2011.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014a.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2014b.

EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto
Alegre: L&PM, 2017. E-book Kindle.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século
XX. Trad. de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.

LINGUA: VIDAS EM PORTUGUÊS. Direção de Victor Lopes. Filmes do Serro/Grupo Filmes/


Condor Filmes. Brasil, Portugal: 2004. [DVD]. (105 minutos), colorido.

PEPETELA. A montanha da água lilás: fábula para todas as idades. 1ª ed. SP: FTD, 2013.

PIRES, José Cardoso. Dinossauro excelentíssimo. 6ª ed. Lisboa: Publicações Europa-


América, 1974.

ROCHA, Ruth. O reizinho mandão. Ilustrações de Walter Ono. SP: Pioneira, 1973.

YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura infantil. 2ª ed. SP: FTD, 1989.
APÊNDICE

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do(a) Cursista: Juliana Camargo Mariano

1.
1.1 Público-Alvo:
Alunos dos 6º anos da EE Professor Fernando Aluíso Corrêa – Rua João Antônio Mineiro, 67, Jd Novo Éden,
Santa Isabel/SP.
1.2. Tempo de Duração:
Um semestre, sendo duas aulas semanais de 45 minutos cada.
1.3. Definição da prática de letramento literário:
Círculo semiestruturado em que os alunos farão a leitura ou de modo individual, silenciado, ou de modo
colaborativo, em grupo.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
Buscar-se-á fazer um trabalho comparativo com as três obras, para que os alunos discutam, a partir de um
roteiro prévio do docente, questões lexicais, culturais, históricas e ainda sobre as Comunidades de Países
de Língua Portuguesa.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
Pretende-se, ao trabalhar com estes três livros do gênero fábula, ampliar o repertório cultural dos alunos,
ainda, apresentar obras literárias escritas em língua portuguesa, mas em países distintos e levá-los a
conscientizar que problemas como autoritarismo podem ocorrer em qualquer ambiente. Por fim, a partir
das leituras estabelecer com o público-alvo a relação entre literatura e história e ainda ampliar o repertório
literário e a fruição estética nos envolvidos.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires - Portugal
O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha – Brasil
A montanha da água lilás, de Pepetela – Angola
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s):
Esses autores estabelecem uma relação entre literatura e história, permitindo que seu leitor (re)visite
o passado histórico e político, ainda que conheçam as literaturas escritas por países que têm a língua
portuguesa como oficial. Os livros escolhidos incluem-se no que Linda Hutcheon (1991) chama de
metaficção historiográfica – narrativa formada da união da ficção com a história – por expressarem um
posicionamento crítico à opressão e ao desrespeito às liberdades individuais e coletivas.

252
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
As obras escolhidas abordam a temática do autoritarismo, da imposição da vontade de um perante
todos os demais. Questão importante de ser abordada desde a infância e que deve levar os estudantes a
refletir sobre a postura da personagem como também a sua perante seus amigos e familiares. Além disso,
discorrer um pouco sobre questões históricas dos países pertencentes à CPLP para que eles ampliem seus
conhecimentos e se tornem cidadãos críticos, autônomos e solidários.
Para ler as obras, recorreremos à leitura em voz alta compartilhada, mas com a reprodução das páginas
sob o auxílio de um notebook e um datashow, uma vez que a escola não disponibiliza de exemplares para
empréstimo. Em seguida, será realizada uma roda de conversa sobre a obra a fim de ampliar a análise e
reflexão sobre as questões pontuadas a partir de um roteiro prévio elaborado pelo docente responsável
pelas aulas.
Em aulas posteriores, selecionaremos alguns fragmentos da obra de Cardoso Pires e faremos análise e,
concomitante, um cotejo entre as obras. Por fim, chegaremos na obra de Pepetela para a análise final.
Discorreremos questões culturais, geográficas, ideológicas, semióticas ao longo das aulas e como produto
final um padlet com as considerações dos alunos, trechos selecionados por eles, também imagens
representativas.
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
Acredita-se que essas atividades propiciarão o desenvolvimento intelectual, crítico, cultural nos envolvidos,
por estarmos despertando neles a curiosidade a partir da abertura ao novo. Busca-se que eles tenham
autonomia para ler outras obras literárias em língua portuguesa sob um olhar crítico e reflexivo.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
Para iniciar o trabalho, é preciso relatar a proposta que será realizada, como será realizada, apresentar a
origem da língua portuguesa, o processo de colonização, a consolidação do idioma nos países colonizados.
Em seguida, propor que os alunos façam inferências sobre os títulos, capa dos livros. Depois contar um
pouco sobre os países, os autores, o contexto histórico do ano de publicação das obras, para, assim iniciar
o processo de leitura.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
Acredita-se que é importante esse processo antes da leitura para despertar nos alunos o interesse e o
olhar crítico à medida que as obras forem sendo lidas.

253
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Pretende-se fazer a leitura semanalmente em círculo com todos os alunos. Mas sempre retomando as
semanas anteriores para relembrar o que já foi lido e criar expectativas em relação ao que será apresentado.
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Visando à ampliação do repertório em diversos âmbitos nos alunos, ainda ao desenvolvimento da
autodescoberta, autonomia no processo de leitura, comprometemo-nos em oferecer a leitura de três obras
literárias pertencentes ao países da CPLP para florescer o gosto pela leitura, mas também a consciência
crítica idealizada para o exercício da cidadania.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Como estratégia, pensamos em trabalhar com as modalidades de leitura de Kátia Bräkling: roda de
conversa, leitura programada, leitura em voz alta feita pelo professor, leitura colaborativa para que todos
possam interagir, analisar as personagens, suas características e conduta, além do contexto histórico e
cultural do país do autor da vez para uma sequência de atividades lúdicas como desenhos, podcast, pôster
e releitura.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Acredita-se que dessa forma haverá uma maior participação dos alunos e aproveitamento das análises,
pois todos terão acesso ao texto ao mesmo tempo e como o docente/mediador estará presente, instigará
a análise e reflexão dos alunos perante as obras, autores e momento histórico representado.

254
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
Leitura, análise e interpretação compartilhadas. Individualmente, criar um diário de bordo com suas
anotações, análises para em grupo criar um podcast de cada obra e, como produto final, uma fotonovela
de um fragmento que julgar importante, justificando a sua escolha.

1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:


Acredita-se que com o diário de bordo a ser realizado após a reflexão coletiva, o aluno fará um registro
mais crítico e isso propiciará a evolução de cada estudante nos aspectos cultural, social e psicológico.

2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
A avaliação ocorrerá de forma processual a partir das discussões, das contribuições ao longo da leitura,
interpretação, experiência de vida e ainda por meio da escrita do diário de bordo e da fotonovela.
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Acredita-se que com este trabalho, os alunos poderão desenvolver o hábito da leitura por prazer, fruída,
mas também aguçar um olhar de que a obra literária representa uma realidade, fato que os levam a
conhecer o contexto cultural, histórico e social de cada obra, assim garantindo neles a autonomia, abertura
ao novo e o interesse pelas Artes de um modo geral.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:
COSSON, Rildo. Círculos de Leitura e Letramento Literário. São Paulo: Contexto, 2014.
EAGLETON, Terry. Como ler literatura: um convite. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM,
2017. E-book Kindle.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. de Teresa
Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.
ROCHA, Ruth. O reizinho mandão. Ilustrações de Walter Ono. SP: Pioneira, 1973.
PIRES, José Cardoso. Dinossauro excelentíssimo. 6ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974.
PEPETELA. A montanha da água lilás: fábula para todas as idades. 1ª ed. SP: FTD, 2013.

255
Em território literário de Moçambique:
11 um olhar sobre literatura e sociedade a partir
de dois contos de Dany Wambire

Osvando de Melo Marques


Karla Menezes Lopes Niels

RESUMO
Este trabalho consiste em uma exposição do projeto de letramento literário denominado
Safra de Leitura a ser aplicado no primeiro semestre de 2022 em um grupo de estudantes
do primeiro ano do curso técnico em Agropecuária, integrado ao Ensino Médio, do Instituto
Federal do Triângulo Mineiro, campus Uberlândia. A partir de dois contos da obra A adubada
fecundidade e outros contos (2017), do autor moçambicano Dany Wambire, pretendemos
desenvolver nos alunos uma percepção crítica sobre o cânone literário em língua portuguesa,
que tende a privilegiar certas culturas e narrativas em detrimento de outras. No bojo
dessa reflexão, empreenderemos uma breve incursão na vigorosa produção literária do
Moçambique atual e discorreremos sobre o imbricamento entre língua e literatura, a partir de
uma perspectiva que contempla componentes históricos, culturais, econômicos e políticos.
Para empreendermos tal discussão, recorreremos, dentre outras fontes, a Bloom (2001),
Cristóvão (2015), Eagleton (2017) e Mendonça (2008).

Palavras-chave: letramento literário; literaturas em língua portuguesa; literatura


moçambicana; literatura e história; ensino médio profissionalizante.

257
1. Introdução
O presente trabalho tem como norte o projeto de letramento literário que elaboramos
para a disciplina de Projetos Integrados, do curso de especialização lato sensu em Literaturas
de Língua Portuguesa, intitulado “Literaturas de Língua Portuguesa – identidades, territórios
e deslocamentos: Brasil, Moçambique e Portugal, diferentes olhares”, ofertado pela
Universidade Federal de São Paulo, por meio do programa Universidade Aberta do Brasil,
entre junho de 2020 e novembro de 2021. Trata-se de um projeto que propõe uma discussão,
com estudantes do primeiro ano do ensino profissional técnico de nível médio, sobre o cânone
das literaturas em língua portuguesa, como este se constitui e se perpetua, bem como acerca
da não neutralidade da narrativa literária, dado o imbricamento desta com elementos sócio-
histórico-culturais os mais diversos, sobretudo em relação a sua comunidade linguística de
origem.

Em face da escassez de referências, no livro didático que adotamos para 20221, às


literaturas africanas em língua portuguesa, abordaremos dois contos moçambicanos, do
autor Dany Wambire, presentes em sua coletânea de 20132 A Adubada Fecundidade e Outros
Contos. Os contos “O amor de Josebela e a absolvição do Gonsalvo” e “Um gueto sem saída”
serão lidos e discutidos, ao longo do primeiro semestre letivo de 2022 (de março a junho),
em encontros semanais, com duração de cinquenta minutos cada, totalizando dezesseis
encontros (treze horas e trinta minutos). Nosso projeto, que intitulamos Safra de Leitura3, terá
como aporte teórico os estudos sobre letramento literário realizados por Cosson (2019), bem
como as reflexões acerca do cânone literário empreendidas por Bloom (2001), Mendonça
(2008) e Cristóvão (2015), as concepções de literatura e seu respectivo ensino presentes em
Eagleton (2017), Ribeiro de Sousa (2004) e Telles (2015) e a perspectiva de Eco (2016) em
torno da interpretação.

Conforme acenamos acima, buscamos, com esse projeto, alcançar o duplo objetivo de
a) levar os alunos a entender, a partir de dois textos literários africanos não hegemônicos,
que a narrativa literária não acontece em um vácuo estético, mas está sempre permeada por
elementos históricos, culturais, políticos e econômicos e b) desenvolver neles uma percepção
crítica acerca da constituição/perpetuação do cânone das literaturas em língua portuguesa.

1 Trata-se da obra de Língua Portuguesa para o Ensino Médio, de autoria de Maria Tereza Arruda Campos e Lucas Sanches
Oda, parte integrante da coleção Multiversos Linguagem, publicada pela Editora FTD.
2 A referida coletânea foi publicada, em 2013, em Moçambique. No Brasil, foi publicada em 2017, pela Editora Malê. É a
edição brasileira que utilizaremos em nosso projeto.
3 O título do projeto foi pensado no intuito de se fazer uma aproximação (con)textual com o curso de Agropecuária
dos referidos alunos, intentando-se, a partir da metáfora da safra, despertar neles um maior interesse pelo círculo de leitura
proposto.

258
2. Contextualização
Ao longo do curso de especialização, foram realizadas diversas leituras e discussões
críticas acerca do processo de ensino e aprendizagem de literatura em língua portuguesa
no Brasil, partindo-se de uma perspectiva democrática e plural, em que se levou em conta
o caráter heterogêneo da produção literária em português, vista não exclusivamente pelo
prisma de um cânone tradicional, mas também a partir das peculiaridades sócio-históricas,
políticas, culturais e econômicas nacionais, tanto no Brasil, quanto em Moçambique e
Portugal.

A partir de interações realizadas via fórum, por meio da plataforma virtual do curso,
pudemos constatar o quanto o conteúdo de literatura ainda está fortemente atrelado
a noções errôneas de bem falar e bem escrever, supervalorizando-se obras canônicas e
subestimando-se produções que, não raro, fogem aos padrões impostos pelo cânone. Foi
com base nessas constatações que voltamos nosso olhar para a realidade do primeiro ano do
curso técnico em Agropecuária, integrado ao Ensino Médio, do Instituto Federal do Triângulo
Mineiro, campus Uberlândia, em cuja grade curricular o ensino de Literatura se faz presente,
com uma exígua carga horária de cinquenta minutos semanais, separadamente da disciplina
de Língua Portuguesa e Redação, para a qual estão reservados cem minutos por semana.

Apesar de a disciplina Literatura estar desvinculada da de Português e Redação, o livro


didático utilizado para ambas é o mesmo e apresenta, a nosso ver, um deficitário conteúdo
especificamente voltado para o ensino das literaturas em língua portuguesa. Além de escasso,
esse conteúdo prioriza obras canônicas, europeias e brasileiras, deixando uma lacuna abissal
com relação a produções de outros países ex-colônias de Portugal, que falam e escrevem
em português, como Angola e Moçambique. O foco em obras hegemônicas tradicionais
também leva a um entendimento deficitário, enviesado (e injusto) acerca da própria língua
portuguesa, cujas variedades não padrão são ignoradas, contribuindo para a perpetuação de
nocivos mitos acerca do bem falar e bem escrever. Nesse processo, permanecem também
inexplorados componentes sócio-históricos, culturais, políticos e econômicos nacionais
importantíssimos, ricamente presentes nas narrativas literárias.

O projeto Safra de Leitura culmina nossa trajetória de estudos de pós-graduação, durante


a qual navegamos por uma variedade de temáticas, articulando diferentes saberes com o
intuito de apreendermos possíveis inter-relações de identidades, territórios e deslocamentos
na literatura escrita em português, no Brasil, em Moçambique e em Portugal. Nossa maior
motivação para realizar o referido curso foi o histórico de primazia de determinados textos
literários em detrimento de outros (não menos literários), por nós vivenciado ao longo de

259
duas décadas de ensino de Literatura na rede pública. Tal primazia se faz presente, por
exemplo, nos livros didáticos e nos projetos pedagógicos. Assim, buscamos o curso de pós-
graduação para adquirirmos um referencial teórico capaz de interrogar e desmitificar essa
prática, propondo uma alternativa de ensino que fosse balizada pela pesquisa acadêmica. Ao
longo de nossa formação, em cada disciplina cursada nos três módulos integrantes do curso,
pudemos ampliar sobremaneira nosso entendimento teórico sobre o ensino de literatura
em língua portuguesa, direcionando nosso olhar não apenas para outros textos deixados à
deriva, fora do cânone, bem como para outros países, onde também se fala e se escreve em
português.

Uma das primeiras reflexões que se mostraram relevantes nesse sentido foi acerca do
próprio conceito de arte, discutido na primeira disciplina do eixo de fundamentos. A reflexão,
embasada nos postulados de Vincent Jouve, levou-nos a perceber o caráter contingencial da
concepção de arte e de seu juízo crítico. A partir desse primeiro estudo, tornou-se possível
questionar a ideologia do cânone literário, formado de modo arbitrário e longe de ser uma
instância de valor absoluto. Orientados por essa bússola, prosseguimos nossa navegação
com o intuito pré-definido de desbravar as demais disciplinas para melhor ancorarmos esse
entendimento a respeito do que pode ser considerado genuinamente literário, mesmo não
encontrando espaço em uma antologia que se pretende canônica.

A partir das disciplinas específicas, fomos consolidando uma visão cada vez mais detalhada
e coerente acerca da natureza estética de um texto e de seu status literário. Percebemos a
estreita relação entre elementos culturais específicos de um povo e sua respectiva língua,
cultura e literatura. A proposta de historiografia apresentada pela professora Fátima
Mendonça, constante da disciplina “Perspectiva Moçambicana”, mostrou-se de grande auxílio
para nossa percepção da literariedade de uma obra, tendo por base os contextos social,
histórico e político de seus autores e receptores. O módulo sobre ensino e pesquisa levou-
nos a refletir sobre alguns dilemas e desafios em torno do ensino de Literatura, propiciando-
nos uma melhor compreensão da função humanizadora do texto literário, como proposto
por Antonio Candido, bem como da experiência de leitura, entendida como constituidora da
obra literária em si e da subjetividade leitora.

Em se tratando especificamente de Moçambique, a disciplina sobre literatura e língua


elucidou pontos importantes acerca de particularidades linguísticas e culturais moçambicanas
presentes na literatura em português daquele país. Tais características serão fundamentais
para desenvolvermos nossa análise dos dois contos do autor moçambicano Dany Wambire
que nos propomos abordar em nosso círculo de leitura.

260
Ao discutirmos os elementos linguísticos dos contos em uma perspectiva associativa
que abranja elementos literários e históricos especificamente moçambicanos, tocaremos,
inevitavelmente, em dois problemas centrais no processo de ensino e aprendizagem de
literatura: o uso (estético) da língua portuguesa em conexão com seu contexto sócio- histórico
local e a desmitificação da ideia de que somente alguns textos podem ser literários, por
estarem inseridos em um cânone tradicional (elitizado). Desse modo, nosso projeto buscará
elucidar, a partir dos textos de Dany Wambire mencionados e da inter- relação entre língua,
literatura e história, a legitimidade literária dos contos em questão e a importância de se
questionar um cânone preestabelecido a partir de usos linguísticos considerados “normais”.

3. Fundamentação teórico-metodológica
Nosso projeto ancora-se na proposta de letramento literário apresentada por Rildo
Cosson (2009) e será composto pelos quatro passos sugeridos pelo autor: 1) motivação; 2)
introdução; 3) leitura e 4) interpretação, levando-se em conta o contexto escolar em que os
alunos estão inseridos. Em “Círculos de leitura e letramento literário (2014), Cosson concebe
o círculo de leitura como “um grupo de pessoas que se reúnem em uma série de encontros
para discutir a leitura de uma obra”, distinguindo três diferentes tipos: o estruturado, o
semiestruturado e o aberto ou não estruturado (COSSON 2014, p. 157-159). Percebe-se,
na proposta do autor, uma preocupação específica relacionada ao contexto imediato dos
participantes do círculo, desde o nome que lhe é dado até a escolha do texto a ser discutido.
Levando-se em conta tais especificidades, decidimos conferir o nome de Safra de Leitura
ao nosso projeto, uma vez que os alunos são todos do curso de Agropecuária, para quem o
conceito de colheita é especialmente motivador. Além disso, outras particularidades de nosso
projeto, em atenção à realidade contextual dos participantes, incluem o próprio título da
obra de Dany Wambire que exploraremos e o tipo de círculo com que escolhemos trabalhar.
Assim, entendemos que a expressão “adubada fecundidade”, em A Adubada Fecundidade e
outros Contos, por situar-se no campo semântico do curso técnico dos estudantes, enseja um
maior interesse destes pelos textos selecionados. Acreditamos, também, que a modalidade
semiestruturada dos encontros possibilitará que os alunos se engajem de forma mais ativa e
organizada nas discussões que almejamos realizar, ao longo de todo o projeto.

A partir de um conjunto de súmulas teóricas que entregaremos aos alunos, serão


discutidas, em nossos quatro primeiros encontros, duas questões fundamentais para o
desenvolvimento do letramento literário que visamos empreender: a importância da
literatura para a formação humana e o estabelecimento da canonicidade de certas obras,

261
em detrimento de outras. Em um primeiro momento, teremos como fio condutor da nossa
discussão o texto de Antonio Candido “A literatura e a formação do homem”, bem como a
obra de Vincent Jouve Por que estudar literatura? Em seu referido texto, Candido defende
que a literatura exerce um papel humanizador fundamental, na medida em que satisfaz a
necessidade de fantasia intrínseca à natureza de todas as pessoas, desempenhando, assim,
uma função epistemológica singular, uma vez que favorece o conhecimento do mundo e do
ser. Nesse sentido, argumenta-se que:

A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa – o Bom, o Belo, o Verdadeiro, definidos
conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço de sua concepção de vida. Longe
de ser um apêndice da instrução moral e cívica [...] ela age com o impacto indiscriminado da
própria vida e educa como ela, com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO, 2002, p. 84,
grifo no original)

A partir do entendimento de Candido a respeito da importância da literatura e de como


esta deve ser vista para além do aparato ideológico oficial da nação, buscaremos propiciar
aos alunos participantes do projeto uma detida reflexão que sirva para desconstruir a
tradicional visão que ainda se tem da literatura como instrumento de transmissão de valores
ou contravalores, considerados, pela ideologia dominante, como desejáveis ou indesejáveis
para o aperfeiçoamento moral e cívico dos indivíduos. Dessa forma, nossos alunos estarão
aptos a situar a literatura em um espectro muito mais amplo do saber, com base nas funções
humanizadoras que, segundo Candido, ela desempenha na sociedade.

Vincent Jouve, ao escrever sobre o porquê do ensino literário no currículo escolar,


postula que a literatura é a arte da linguagem e que a dimensão estética de uma obra é
sempre relacional, pois depende de como alguém apreende tal obra, na medida em que esta
seja capaz de emocionar, fazer pensar, criar sentido e criticar. Jouve também afirma que a arte
– e a literatura, por extensão – é uma prática transcultural que apresenta, pelo menos, três
traços definidores: 1) não ser utilitária; 2) sempre representar outra coisa que não ela mesma
e 3) ser algo a que se atribui um valor. Com relação à literatura, especificamente, pondera
Jouve que esta apresenta ainda uma particularidade básica: “a arte literária depreende sua
singularidade do fato de que o material que ela utiliza – a linguagem – já é em si mesmo um
sistema significante” (JOUVE, 2012, p. 29).

Diante da explanação do teórico francês, poderíamos nos perguntar se seria possível,


portanto, sabermos diferenciar literatura de não literatura sempre que estivermos diante
de um texto. É precisamente aí que surge a importância do contexto histórico-social, pois
se não o conhecemos, podemos facilmente considerar todos os textos como literários, já

262
que, em conformidade com a ótica de Jouve, os textos, de um modo geral, não são artefatos
utilitários e exprimem algum sentido a que podemos atribuir valor. Dessa forma, no tocante
à arte literária, é imprescindível conhecermos os fatores extratextuais – sócio-históricos,
políticos, econômicos, autorais, genéricos etc – para sermos capazes de separar o que é do
que não é, de fato, literatura.

O referido texto de Jouve nos servirá de base também para adentrarmos a questão do
estabelecimento do cânone literário, uma vez que, ao problematizar a literariedade textual,
nos alerta para mecanismos que operam fora do texto e que, além de serem imprescindíveis
para separar o literário do não literário, também atuam para privilegiar certos textos como
canônicos e marginalizar outros, não menos literários. Nessa etapa do projeto, discutiremos
essas manobras sociais responsáveis pela formação e manutenção do cânone. Como atesta
Terry Eagleton,

Se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas instituições acadêmicas foram
“construídas” para serem lidas como literatura, também é certo que muitas não foram. Alguns
textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é
imposta. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o
consideram (EAGLETON, 1994, p. 9)

Com base em Jouve e Eagleton, refletiremos com os alunos quais critérios e atores
podem operar como determinantes da canonicidade literária, levando-os a perceber a
arbitrariedade de tal empreendimento e os vários jogos de poder que o condicionam. Os
alunos serão levados a aventar possíveis razões por que a literatura em língua portuguesa
de Moçambique ocupa apenas um tímido espaço no livro didático que utilizamos. Seria
porque essas obras têm menos valor que as europeias e as brasileiras? A partir das respostas
levantadas, passaremos a discutir, de um modo específico, a literatura em língua portuguesa
moçambicana e a constituição do seu cânone. Faremos uma rápida incursão na historiografia
da literatura em português de Moçambique, valendo-nos, para tanto, da periodização
proposta por Fátima Mendonça, em sua obra Literatura moçambicana – a história e as escritas,
de 1989, em que a autora apresenta uma proposta historiográfica baseada em elementos
históricos e culturais de Moçambique. Mendonça traça um breve panorama histórico da
produção literária naquele país, a partir de uma perspectiva dialética entre texto e contexto.
Essa abordagem da autora torna-se importante não apenas por conferir à literatura um papel
de destaque na formação identitária cultural de uma sociedade (moçambicana), mas também
por rebater uma crítica literária de cunho formalista, que toma a arte como fim em si mesmo,
separada do organismo social.

263
Na periodização que faz da literatura moçambicana, Mendonça apresenta três momentos
históricos como divisores de águas na produção literária de Moçambique: o protonacionalismo
(meados de 1920 a 1940), caracterizado por um ideário seminal de independência, mas ainda
marcado por expressões estéticas portuguesas; o momento nacionalista e da negritude
(1940 a 1960), em que se cria uma arena literária propriamente dita, com base nos ideais
do movimento da negritude; e o pós-independência, em que surgem tendências literárias (e
artísticas, em geral) variadas, estabelecendo-se a oposição entre o nacional e o universal e
retirando-se o foco da dicotomia africano X europeu.

Ao tratar desses momentos literários em suas especificidades históricas, Mendonça


fornece exemplos de autores e obras que neles se enquadram, transcrevendo excertos
desses textos, os quais servirão para auxiliar nossa exploração analítica dos contos do autor
moçambicano Dany Wambire. Utilizaremos também a obra de Mendonça para ressaltar a
moçambicanidade dos textos de Wambire e, com base nos postulados de Vincent Jouve, a
respeito da literariedade textual, faremos uma espécie de revisitação do cânone literário de
língua portuguesa presente no ensino de literatura no Brasil.

Também constituirá referencial importante para nós, no que diz respeito ao processo de
interpretação crítica que intentamos desenvolver, a discussão que Umberto Eco faz em torno
da interpretação e da superinterpretação. Os conceitos de intentio operis, intentio auctoris
e intentio lectoris se mostrarão fundamentais para conduzirmos as leituras dos contos, na
medida em que nortearão os critérios de plausibilidade a partir dos quais estabeleceremos
interconexões entre os textos literários e o quadro histórico-cultural moçambicano de onde
emergem.

Por fim, destacamos a relevância, para a execução do nosso projeto, do instrumental


teórico da Imagologia, que nos fornecerá uma perspectiva crítica importante para discutirmos
os estereótipos da cultura africana presentes amiúde em obras literárias europeias e
brasileiras canônicas. A partir da teorização de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, na obra Do cá
e do lá: introdução à Imagologia (2004), a respeito das imagens de países e culturas criadas
e veiculadas pela literatura, será possível problematizar a lacuna percebida em nosso livro
didático quanto às produções literárias em língua portuguesa originadas da África.

264
4. Apresentação e constituição do objeto de
pesquisa: Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
O Projeto de Letramento Literário Safra de Leitura, constante do Apêndice A do
presente artigo, buscará desenvolver, nos alunos participantes, uma percepção crítica a
respeito do imbricamento entre literatura e sociedade, a partir da imersão em dois contos do
autor moçambicano Dany Wambire: “O amor de Josebela e a absolvição do Gonsalvo” e “Um
gueto sem saída”, presentes na referida coletânea do escritor. Ao adentrarem o território
literário moçambicano, os alunos serão levados a perceber e questionar o processo de
constituição e manutenção do cânone literário em língua portuguesa predominante no Brasil,
compreendendo o quanto a literatura em português é bem mais ampla do que o limitado e
enviesado corpus apresentado no livro didático. O contato com a literatura moçambicana
também ensejará nos alunos uma visão mais ampla e aguçada da própria língua portuguesa,
matéria-prima que se junta a elementos históricos, culturais, políticos e econômicos de um
dado povo para constituir sua expressão literária.

A percepção que esperamos desenvolver em nossos alunos torna-se amplamente


viabilizada pelo nosso objeto de pesquisa, na medida em que os dois contos de Wambire
escolhidos contêm fartas referências a particularidades da história e da cultura moçambicana,
além de ilustrar, por meio de sua constituição léxico-sintática, a variedade da língua portuguesa
específica de Moçambique.4

No conto “O amor de Josebela e a absolvição do Gonsalvo”, por exemplo, há uma explícita


crítica à política da colonização portuguesa de Moçambique. Nesse conto, são apresentados
dois personagens favoráveis à política colonial, mas que, repentinamente, com a conquista
da independência, se veem forçados a prestigiar as autoridades da nação recém-instaurada.
Assim, Gonsalvo, ex-integrante da Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), filia-
se ao Movimento de Libertação e se torna Comandante da Segurança, em uma das vilas
do fictício país Ndacufuna, enquanto seu amigo Carolitos, igualmente fervoroso defensor
da dominação estrangeira, se torna um dirigente, no setor de ensino. Ocorre que Gonsalvo
se encanta por Josebela, uma jovem de menor idade com quem acaba se relacionando
romanticamente, tornando-a sua segunda amante. Esse relacionamento faz com que Gonsalvo
seja preso, momento em que a narrativa enfatiza e ironiza o recém- instituído Estado de
Direito: “A questão que enchia a boca do povo era: como é que prendedor podia ser preso?
A desconhecida resposta era: estava-se no Estado de Direito. Do dever, também. A lei é que
4 Ressaltamos que entregaremos, aos alunos, previamente à leitura dos contos, um glossário com palavras e expressões em
português moçambicano, fartamente presentes nesses textos.

265
tinha força, e a força apenas fraqueza” (WAMBIRE, 2017, p. 29). Conforme a história evolui, a
jovem Josebela, durante o julgamento de Gonsalvo, declara que, na verdade, não é menor e
que sua idade fora falsificada no cartório, a pedido do setor de educação. Por fim, ela pede
ao juiz que liberte seu amor.

A história colonial e de independência de Moçambique, assim como a queda do Estado


Novo português, são nitidamente percebidos nesse conto, que, por meio das personagens
Gonsalvo e Josebela, faz uma contundente alusão ao relacionamento entre a ex-colônia
africana e a nação europeia. Além de tais referências políticas, o conto é permeado de palavras,
expressões e construções sintáticas peculiares ao português de Moçambique, assim como é
notável, nas duas narrativas escolhidas, a referência a fatores socioculturais moçambicanos,
como a prática da poligamia e práticas religiosas de matriz africana. O conto “Um gueto sem
saída” também apresenta fortes conotações políticas, questionando, enfaticamente, a vida na
cidade no pós-independência moçambicano, bem como a hierarquização de classes no recém-
instaurado estado-nação. Nesse conto, em cuja epígrafe já se verifica um questionamento à
hierarquia de classes, a partir de uma frase de efeito das fictícias “mulheres de Zebadjia”5, o
autor retrata a impossibilidade de ascensão social em um país cujos efeitos da descolonização
são sentidos na pele por uma leva de migrantes que se deslocam do campo para a cidade,
onde esperam encontrar uma vida melhor, mas acabam prisioneiros de espaços guetizados,
de onde não se vê saída.

Como estratégias motivadoras para a leitura dos contos, serão apresentados dois vídeos,
um sobre o país Moçambique6, outro sobre países do mundo que falam a língua portuguesa7.
A escolha de tais estratégias se justifica pelo fato de os alunos ainda não possuírem um
conhecimento cultural de outros países lusófonos, desconhecendo, especificamente, a
cultura de Moçambique, amplamente retratada na obra A adubada fecundidade e outros
contos. Dessa forma, os alunos adentrarão o território literário moçambicano munidos de
conhecimento prévio, o que fundamentará seu trabalho de interpretação crítica.

O projeto contará com outros subsídios destinados a orientar o trabalho de interpretação


pretendido: trechos de filmes, documentários, entrevistas, convidados externos para interagir
com os alunos, canções etc. Faremos uma discussão conjunta dos contos (cinco encontros
para cada conto) e proporemos, após cada sessão, uma atividade para ser feita ao longo da
semana, de forma a possibilitar ao estudante uma reflexão mais consolidada e individualizada
acerca do que foi discutido em grupo.
5 A frase é a seguinte: “Os verdadeiros pobres não são os que apresentam o atestado de pobreza. São os ricos que não
solicitam o atestado de riqueza” (WAMBIRE, 2017, p. 71).
6 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ko82B5bcIAM (edição de 02/08/2013, do Programa Globo
Repórter).
7 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OwwjUqnci1g.

266
Antes de introduzirmos os textos literários aos alunos, apresentaremos o autor Dany
Wambire, a partir de sua entrevista concedida em 2017, por ocasião da Flipoços8. Feita
essa apresentação do autor, faremos um esboço (em uma espécie de linha do tempo) da
literatura moçambicana, chegando até 2013, ano em que a obra de Wambire é publicada,
em Moçambique. Retomaremos, em discussão oral, alguns temas abordados na edição
do programa Globo Repórter previamente exibida, no intuito de fomentar o interesse dos
alunos pela leitura dos contos.9 Acreditamos que essas estratégias se justificam em virtude de
propiciarem aos alunos um conhecimento do autor pelo próprio autor, um jovem moçambicano
que, no vídeo em questão, fala sobre a importância da literatura e da autoconfiança na escrita.
São também importantes para situarem os alunos, cronologicamente, quanto à produção
literária moçambicana e a correlação entre literatura e sociedade que pretendemos explorar.

É objetivo geral do nosso projeto estabelecer um paralelo entre literatura e sociedade, a


partir das especificidades sócio-históricas presentes em dois textos literários moçambicanos.

São nossos objetivos específicos:

1. Demonstrar, a partir dos dois contos de Wambire supracitados, como os referidos


textos elucidam aspectos históricos e culturais específicos de Moçambique, e como
esses aspectos são importantes na formação da literatura moçambicana de língua
portuguesa;
2. Proporcionar ao estudante a possibilidade de entender e desmitificar o cânone
literário em língua portuguesa;
3. Familiarizar o estudante com uma variedade diatópica da língua portuguesa;
4. Demonstrar a importância do círculo de leitura para o desenvolvimento da
interpretação crítica e para a compreensão de fenômenos sociais nas obras literárias.

5. Análise, discussão e resultados esperados


O Projeto Safra de Leitura, a partir das leituras teóricas e dos contos de Dany Wambire,
tornará possível que os participantes não apenas tenham contato com uma variedade
diatópica da língua portuguesa, mas também que vislumbrem, nessa variedade, a presença
de elementos sócio-históricos específicos a Moçambique que participam do que podemos
chamar de tessitura literária moçambicana. Esperamos, igualmente, que o projeto contribua
para aguçar nos participantes uma percepção crítica acerca da constituição do cânone

8 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3XQCFH82WAk.
9 A apresentação do autor e da literatura moçambicana ocuparão dois encontros, de forma que os 10 encontros restantes
serão destinados à leitura e discussão dos contos, em um total de cinco encontros para cada conto.

267
literário em língua portuguesa, entendendo os mecanismos e artifícios por meio dos quais
apenas uma pequena parte de toda a produção literária em português goza do prestígio de
estar inserida no cânone (nacional e internacional), enquanto uma outra vastíssima parte
permanece invisibilizada em seu território.

Assim, nosso projeto, ao trazer em seu título a metáfora de adentrar o território


literário moçambicano, se articulará com leituras e discussões direcionadas à percepção da
especificidade e riqueza literária desse terreno, de modo que os alunos participantes se tornem
capazes de olhar criticamente para o fato de a literatura moçambicana em língua portuguesa
ser tão escassamente presente no livro didático adotado para 2022. Almejamos que nosso
projeto contribua para não somente preencher essa lacuna, mas sobretudo para conferir aos
participantes a criticidade necessária para questioná-la. Contribuirão significativamente para
tanto as leituras teóricas de Bloom (2001), Pinheiro e Leite (2018) e Telles (2015), que, devido
às limitações de tempo disponível para a execução do projeto, serão condensadas em uma
súmula semanal a ser entregue aos alunos, conforme mencionamos na seção 3 deste artigo.

Outro resultado não menos importante que buscamos alcançar é dar uma resposta
concreta e satisfatória à indagação recorrente dos nossos alunos sobre o valor (do estudo)
da literatura. Percebemos, ao longo dos seis anos de nossa atuação no curso técnico de nível
médio, que uma grande parte de nossos estudantes acredita que o estudo de literatura é
irrelevante, especialmente no contexto da formação técnica (profissionalizante). Por outro
lado, ao mesmo tempo que consideram o estudo de literatura dispensável, demonstram ter
ampla consciência a respeito da importância crucial da leitura para se tornarem profissionais
bem-sucedidos. É, portanto, latente em seu manifesto desinteresse pela literatura o
fato de não encontrarem sentido, não na literatura em si, mas na maneira como esta é
frequentemente ensinada, impossibilitando a articulação de conexões entre o conhecimento
literário e outros tipos de conhecimento constantes do currículo escolar. Pretendemos assim,
que nosso projeto leve os estudantes a articular esses nexos, entendendo que a literatura
não se processa em um vácuo histórico, mas está profundamente enraizada na sociedade, de
onde recebe e para a qual devolve sua seiva vital. Ao apreenderem tal conexão, esperamos
que alcancem igualmente a consciência do quão importante é o conhecimento literário para
a formação humana, independentemente da profissão que se exerce ou se venha a exercer
(Candido, 2002).

Com a aquisição das competências acima destacadas, acreditamos que nosso círculo de
leitura propiciará aos estudantes uma farta compreensão das inter-relações possíveis entre
língua, literatura e sociedade, compreensão esta que revigorará sua leitura literária e seu

268
interesse em ler literatura, na medida em que os tornará capazes de detectar, a partir dos
contos de Dany Wambire estudados, a vasta gama de componentes que um texto literário
encerra, seja ele canônico ou não.

6. Considerações finais
Conforme explicitamos acima, o projeto que embasa o presente trabalho ainda está por
ser implementado, fato este que nos impossibilita tecer quaisquer considerações no tocante ao
impacto alcançado pelo mesmo. No entanto, tomando por base de nossa reflexão o conjunto
de especificidades referentes ao nosso público-alvo e contexto acadêmico, acreditamos
que nosso círculo de leitura será muito exitoso em cumprir os objetivos que delineamos, a
partir de nossas constatações das lacunas ainda presentes no ensino de literatura em nossa
instituição.

Os textos literários que escolhemos para desenvolver nosso projeto são especialmente
reveladores da inter-relação entre literatura e sociedade, contendo elementos histórico-
culturais suficientes para que nossos alunos percebam o quão presente a tessitura social se
encontra na textualidade literária, elucidando, igualmente, uma interessante conexão entre
a literatura e outros componentes curriculares, como a História, a Geografia e a Sociologia.
Acreditamos que a apreensão dessas possibilidades multi, inter e transdisciplinares
seja um fator essencial para o revigoramento do ensino literário no âmbito da educação
profissionalizante de nível médio, na medida em que acentua a importância singular do
saber literário na trajetória da formação humana. O estudo dos contos do jovem autor
moçambicano Dany Wambire, contribuirá também para despertar em nossos alunos o
entendimento crítico a respeito da constituição e manutenção do cânone literário em língua
portuguesa e da equivocada, embora frequente, afirmação de uma pretensa superioridade
de determinados textos em detrimento de outros. Ademais, a variedade geográfica da língua
portuguesa vivamente exemplificada nos textos de Wambire propiciará aos participantes do
nosso projeto o desenvolvimento de uma consciência sociolinguística.

Por fim, cabe ressaltar o papel crucial do curso de pós-graduação a que nos referimos
no preâmbulo deste trabalho, pois foi a partir dele que pudemos olhar criticamente para
nossa própria atuação pedagógica, detectando as deficiências e lacunas ali presentes. Foi
com base nesse encontro crítico com o nosso próprio fazer pedagógico que pudemos pensar
a proposta de intervenção aqui apresentada, a partir da qual, acreditamos que nosso ensino
de literatura passará a ter muito mais sentido para nossos alunos e para nós mesmos.

269
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: DANTAS, Vinicius (org.).


Textos de intervenção. Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Ed. 34, 2002.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

CRISTÓVÃO, Fernando. Sugestões de critérios convergentes prévios para a formação


e definição de um cânone lusófono. In: MARTINS, Moisés Lemos (org.). Lusofonia e
Interculturalidade: promessa e travessia. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2015, p. 245-
252.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo:


Perspectiva, 2016. E-book Kindle.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Editora Parábola, 2012.

MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana – a história e as escritas. Maputo:


Faculdade de Letras e Núcleo Editorial da UEM, 1989.

. Literaturas emergentes, identidades e cânone. In CALAFATE, Margarida Ribeiro;


MENESES, Maria Paula (eds.). Moçambique: das palavras escritas. Porto: Edições
Afrontamento, 2008, p. 19-34

PINHEIRO, Vanessa Riambau; LEITE, Ana Mafalda (orgs.). Cânone(s) e invisibilidades


literárias em Angola e Moçambique. João Pessoa: Editora UFPB, 2018.

RIBEIRO DE SOUSA, Celeste H. M. Do cá e do lá: introdução à Imagologia. São Paulo:


Fapesp, 2004.

SALGADO, Maria Teresa. Um olhar em direção à narrativa contemporânea moçambicana.


In: Scripta. v. 8 n. 15(2004). Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/
scripta/article/view/12587 . Acesso em 24/06/2021.
TELLES, Luís Fernando Prado. A literatura como objeto de conhecimento: notas
sobre o cânone e a pesquisa acadêmica. In: FronteiraZ: Revista Digital do Programa
de Estudos Pós- Graduados em Literatura e Crítica Literária, São Paulo, n. 14, p.
30-50, jul. 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/
article/view/22724 . Acesso em: 31 ago. 2021.

WAMBIRE, Dany. A adubada fecundidade e outros contos. Rio de Janeiro:


Malê, 2017.
APÊNDICE

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome do(a) Cursista: Osvando de Melo Marques

1.
1.1. Público-Alvo:
Alunos do primeiro ano do Ensino Profissional Técnico de Nível Médio, do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro, campus Uberlândia (Técnico em Agropecuária)
1.2. Tempo de Duração: (carga horária/ número de encontros/cronograma)
Serão, ao todo, 4 meses de encontros semanais, com 50 minutos de duração cada. O projeto será
executado de março a junho de 2022, no espaço de convivência do campus Uberlândia.
1.3. Definição da prática de letramento literário: (escolha um tipo de círculo de leitura e explique a
adequação ao seu contexto, se escolar ou não)
O círculo, que chamaremos de Safra de Leitura (tendo em vista que os alunos são estudantes do curso
técnico de Agropecuária, integrado ao Ensino Médio) será do tipo semiestruturado, dada sua adequação
aos propósitos do projeto e ao limite de carga horária disponível para sua execução.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:
Serão encontros semanais, realizados durante a aula de Literatura, no Espaço de Convivência do campus.
Inicialmente, um grupo de alunos fará, alternadamente, a leitura, em voz alta, do conto a ser discutido.
Em seguida, o professor fará uma prática guiada da compreensão textual e, posteriormente, os alunos
farão leitura individual. Por fim, haverá compartilhamento de interpretações, com base no aporte teórico
trabalhado previamente.
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
A prática foi escolhida porque se entende que os alunos, ao se reunirem para ler um texto e discuti-
lo conjuntamente, se sentem mais comprometidos com a leitura, envolvendo-se mais com o texto e
adentrando camadas mais profundas de interpretação (do texto e da realidade histórica circundante).
Espera-se, com essa atividade, que os alunos:
1. reconheçam a diversidade da produção literária em língua portuguesa;
2. compreendam as relações entre literatura e sociedade, percebendo elementos culturais, políticos e
econômicos nos contos estudados;
3. reflitam criticamente acerca do processo de constituição do cânone literário em língua portuguesa;
4. desenvolvam habilidades de leitura crítica.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s): (escolher uma ou mais obras das literaturas brasileira,
moçambicana e/ou portuguesa)
Os contos “O amor de Josebela e a absolvição do Gonsalvo” e “Um gueto sem saída”, da coletânea A
adubada fecundidade e outros contos, do moçambicano Dany Wambire.

272
2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário (s): (a escolha deve estar articulada com o eixo
temático do curso: identidades, territórios e deslocamentos nas literaturas de língua portuguesa)
Os textos escolhidos estão em consonância com o eixo temático do curso de especialização concluído e
também se articulam com a proposta de intervenção antirracista do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros
e Indígenas do IFTM. Assim, os referidos textos ensejarão diálogo propiciador de compreensão não
apenas da diversidade da produção literária em língua portuguesa, mas também da diversidade étnico-
racial constituinte da sociedade, favorecendo a discussão de temáticas sociopolíticas relevantes, como o
eurocentrismo e o racismo.

273
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Serão apresentados dois vídeos: o primeiro é a edição de 02/08/2013 do programa Globo Repórter
(https://www.youtube.com/watch?v=Ko82B5bcIAM), que trata de Moçambique; o segundo é sobre países
que falam português (https://www.youtube.com/watch?v=OwwjUqnci1g)
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
A escolha se justifica pelo fato de os alunos não possuírem ainda um conhecimento cultural de outros países
“lusófonos”, desconhecendo, especificamente, a cultura de Moçambique, que é amplamente retratada na
obra A adubada fecundidade e outros contos, de Dany Wambire. Dessa forma, os alunos adentrarão o
terreno literário munidos de conhecimento prévio, no intuito de fertilizar sua capacidade interpretativa.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
Será, dessa vez, apresentado o autor Dany Wambire, a partir de sua entrevista concedida, em 2017, no
Festival Literário Internacional de Poços de Caldas - Flipoços (disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=3XQCFH82WAk). Após apresentarmos o autor, faremos um esboço (em uma espécie de linha
do tempo) da literatura moçambicana, chegando até 2017, ano em que a obra de Wambire é publicada.
Retomaremos (em discussão oral) alguns temas abordados no programa Globo Repórter, no intuito de
fomentar o interesse dos alunos pela leitura dos contos.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
As estratégias justificam-se em virtude de propiciarem ao aluno um conhecimento do autor pelo próprio
autor, um jovem moçambicano que, no vídeo em questão, fala sobre a importância da literatura e da
autoconfiança na escrita. São também importantes para situarem os alunos, cronologicamente, quanto à
produção literária moçambicana.

274
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Leitura individual e coletiva
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Entendemos que a leitura individual e coletiva se complementam, tornando possível ao sujeito leitor
auferir prazer do texto ao mesmo tempo que constrói sua consciência crítica da sociedade.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
Nossas estratégias estão ligadas aos cinco elementos básicos de análise literária, propostos por Eagleton,
com atividades específicas relacionadas a cada um.
2.4. Justificativa das estratégias de acompanhamento de leitura literária:
A partir dos dois contos, será possível trabalhar os cinco elementos ao longo do período da nossa Safra de
Leitura, focalizando dois ou três desses elementos em cada encontro. A cada sessão teremos atividades
específicas relacionadas aos elementos de análise trabalhados: trechos de filmes, documentários,
entrevistas, convidados externos para interagir com os alunos, canções etc. Faremos uma discussão
conjunta do conto do dia (ou parte dele, tendo em vista o tempo exíguo de cada sessão) e proporemos
uma atividade para ser feita ao longo da semana, de forma a possibilitar ao estudante uma reflexão mais
consolidada e individualizada acerca do que foi discutido em grupo.

275
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
Faremos uma feira com a nossa safra de leitura (ressalte-se que escolhemos o tema “safra” e agora
escolhemos a “feira”, porque nosso público-alvo são alunos do curso de Agropecuária). Durante a
feira cultural, os alunos deverão fazer apresentações artísticas sobre as temáticas (culturais, políticas e
linguísticas) dos contos de Dany Wambire estudados. Formaremos seis grupos com cinco alunos em cada,
sendo cada três grupos responsáveis por um dos contos.
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
Entendemos que a atividade será um momento de socialização e construção conjunta de sentido que terá
um impacto importante em toda a comunidade escolar, uma vez que a feira acontecerá durante a Semana
Artística, prevista para o início de julho, e envolverá toda a instituição.

2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
Os alunos deverão, durante a feira, registrar em fotografia algum momento da apresentação de um outro
grupo. Posteriormente, em data específica, deverão exibir suas fotografias e partilhar o que entenderam a
respeito da apresentação registrada, interagindo com o grupo que fez a respectiva apresentação, gerando,
assim, uma nova discussão, a fim de ampliar o horizonte interpretativo.
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Com base em Cosson, “a leitura literária é um processo que vai se aprofundando à medida que ampliamos
nosso repertório de leitura e a avaliação deve acompanhar esse processo sem lhe impor constrangimentos
e empecilhos. Da mesma forma, a avaliação não pode ser um instrumento de imposição da interpretação
do professor” (COSSON, 2009, p. 115) Nesse sentido, nossa avaliação se justifica por seu caráter processual
e pela interatividade proporcionada entre os sujeitos leitores, sem a imposição de uma interpretação
unilateral do professor.

3.
3.1. Referências Bibliográficas:

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: DANTAS, Vinicius (org.). Textos de intervenção.
Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Ed. 34, 2002.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014. Letramento literário:
teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2016.
E-book Kindle.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Editora Parábola, 2012.

276
MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana – a história e as escritas. Maputo: Faculdade de Letras e
Núcleo Editorial da UEM, 1989.

SALGADO, Maria Teresa. Um olhar em direção à narrativa contemporânea moçambicana. In: Scripta. v. 8 n.
15(2004). Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12587 Acesso em
24/06/2021.

TELLES, Luís Fernando Prado. A literatura como objeto de conhecimento: notas sobre o cânone e a
pesquisa acadêmica. In: FronteiraZ: Revista Digital do Programa de Estudos Pós- Graduados em Literatura
e Crítica Literária. São Paulo, n. 14, p. 30. 50, jul. 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/
fronteiraz/article/view/22724 . Acesso em: 31 ago. 2021.

WAMBIRE, Dany. A adubada fecundidade e outros contos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

277
Da leitura literária
12 à interpretação do sujeito leitor:
perspectivas ideológicas e constituição de identidades

Marcos Vinícius Modro1


Rita de Cássia Lamino de Araújo2

RESUMO
Este trabalho busca refletir sobre o processo de leitura literária e os efeitos de
sentido, decorrentes do ato de ler, nos sujeitos-leitores. Nosso objetivo é a proposição de
uma intervenção pedagógica com o intuito de melhor compreender as interpretações do
leitor, ou seja, os significados construídos no ato de leitura pelo co-enunciador (interlocutor/
leitor) e, de quais visões de mundo ele faz uso para embasar e dar forma a esse processo
interpretativo, evidenciando os aspectos ideológicos e de constituição da identidade. Para
tanto, consideramos os seguintes pressupostos teóricos: os estudos sobre o Letramento
literário, no âmbito do processo de ensino/aprendizagem de língua materna; a concepção
tridimensional da linguagem na linha de teorização do linguista inglês Norman Fairclough
(2001) bem como, a concepção bakhtiniana de linguagem e gêneros discursivos; os estudos
sobre discurso e interpretação desenvolvidos por Foucault (1987) e, os estudos sobre a
Estética da Recepção. A partir do desafio de ensino e aprendizagem, cujo foco é a leitura
e interpretação dos poemas “Ninguém” e “Poema do futuro cidadão” de José Craveirinha,
“Vício de fala” de Oswald de Andrade e “Naturalidade” de Rui Knopfli, os círculos de leitura
direcionam-se tanto para as questões temáticas e ideológicas presentes na materialidade
poética, quanto para os elementos textuais e discursivos a que os sujeitos-leitores recorrem
no momento da produção textual e, que acabam por revelar, as crenças e ideologias que
os constituem como sujeitos sociais. E, por meio de atividades específicas propostas nos
círculos de leitura tais como o registro coletivo escrito no dispositivo virtual PADLET e, do

1 Mestre em Linguística (2009), na área de concentração: ensino e aprendizagem de línguas, e, especialista em Mídias
na Educação (2019) pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Possui graduação em Letras (Português/ Inglês/Espanhol)
pela UNESP/Assis (2005) e, graduação em Pedagogia (2020) pela Faculdade Paulista São José/São Paulo. Atualmente, é professor
de língua e literatura portuguesa para o Ensino Médio na Rede Estadual de São Paulo e, professor de língua inglesa para o Ensino
Fundamental II e Educação de Jovens e Adultos no município de Valinhos/SP. E-mail: maelyoung@yahoo.com.br.
2 Graduada em LETRAS (2006), Mestre (2010) e doutora (2015) em Literatura e Vida Social pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Atuou como Professora Colaboradora na área de Literatura no Centro de Letras na
Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP - campus de Jacarezinho. Atualmente, é professora de Literatura e Redação para
o Ensino Médio de escolas particulares. E-mail: ritalamino@hotmail.com

279
texto reflexivo dos alunos, é possibilitado ao professor, enquanto agente de letramento,
compreender melhor como as ideologias moldam o como interpretamos o texto literário,
e, mais, o como interagimos socialmente, nos constituímos e constituímos o mundo ao
nosso redor. Nesse sentido, a partir da pesquisa qualitativa, pretendemos oferecer com esse
estudo, subsídios para uma reflexão responsiva acerca das práticas escolares envolvendo a
literatura e como certos mecanismos discursivos revelados nas interpretações dos sujeitos-
leitores permitem lançar novos olhares sobre a prática pedagógica.

Palavras-chave: Prática de letramento literário; Poesia; Interpretação; Ideologia;


Identidades.

1. Introdução
Quando mencionamos a literatura em contextos de ensino e aprendizagem, logo
pensamos a leitura literária como parte desse processo e, considerando que todo texto produz
efeitos de sentido em seu leitor, que os elementos textuais e discursivos não são neutros, e,
também, a intencionalidade do autor, nem sempre perceptível na tessitura textual em uma
primeira leitura, faz-nos repensar o como certos textos literários permitem a promoção de
ações em sala de aula, em que se objetivem a leitura e formação crítica dos leitores no que
se refere aos aspectos macrossociais existentes em nossa sociedade contemporânea e que,
ainda, persistem sob um olhar estereotipado e fragmentado do sujeito.

Em nossa experiência docente, observamos que à interpretação dos textos literários,


pelos alunos, acaba não sendo o foco principal no planejamento das aulas e, devido à uma série
de fatores tais como a carga horária destinada ao ensino de língua e literatura portuguesa -
ambas sob a orientação de um único professor, a ausência de formação continuada específica,
etc. colocam o professor em uma situação em que a saída encontrada por ele é seguir os
manuais didáticos estabelecidos e escolhidos pelo grupo docente da unidade escolar, de
acordo com o PNLD – Plano Nacional do Livro Didático.

Não pretendemos fazer uma análise de como os livros didáticos trazem direcionamentos
para a prática docente, sobre o como ler e interpretar determinado material literário. Mas,
gostaríamos de salientar que, na maioria, esses materiais apresentam interpretações já
ditas e prontas, de críticos renomados, ocultando a possibilidade dos sujeitos envolvidos
no processo de leitura literária, em contextos de ensino e aprendizagem, interpretar
e se posicionar subjetivamente em relação aos textos literários lidos, bem como ter a

280
possibilidade de compreender a si próprio enquanto Sujeito e o Outro, quando ocorre o caso
do deslocamento, i.e., a reconfiguração dos sentidos do mundo.

A nossa proposta de intervenção pedagógica denominada “Desafio de ensino e


aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências da leitura literária” objetiva
apresentar a literatura como algo presente na escola e desconstruir a visão elitista que, por
muito tempo, esteve arraigada à essa modalidade artística, tornando-a acessível à todos(as)
e passível de ser apreciada e discutida pelos agentes sociais envolvidos nesse processo, no
caso os sujeitos leitores.

Para isso, optamos em propor o desenvolvimento de “círculos de leitura”, tais como os


preconizados por Rildo Cosson quando o autor faz menção às práticas de letramento literário
com maior ênfase nos efeitos de sentidos produzidos no ato de leitura dos textos literários
propostos aos alunos.

A partir de uma temática polêmica (racismo, preconceito social e linguístico), selecionamos


as obras literárias conforme dois parâmetros: os da integração e os da diversidade presentes
nas literaturas de língua portuguesa. As obras são dois poemas, “Ninguém” do poeta
moçambicano José Craveirinha e, “Vício de fala” do poeta brasileiro Oswald de Andrade,
que resgatam a temática central; e, dois poemas moçambicanos - “Naturalidade” de Rui
Knopfli e, “Poema do futuro cidadão” de José Craveirinha - que versam sobre a construção
de identidades. Os círculos têm como direcionamentos, não apenas a apreciação estética
e valorização dos diferentes espaços culturais ali representados, mas também a produção
de conhecimento, problematizando as temáticas e as correlacionando com outras violências
culturais pelas quais certos grupos sociais passaram e/ou, ainda, passam em nossa sociedade
contemporânea.

Partindo dessas reflexões cabe-nos, enquanto professores mediadores do conhecimento,


em contextos de ensino e aprendizagem, perguntarmos como se dá essa recepção, por parte
dos alunos do primeiro ano do ensino médio, a partir das leituras literárias propostas sobre a
temática do racismo e dos preconceitos decorrentes das relações sociais assimétricas, como
violências culturais, existentes na sociedade e que, por sua vez, estão representadas na
materialidade linguística? Como se constitui o discurso literário, sob o viés do olhar receptivo
do aluno, ou seja, como ele projeta suas visões de mundo, revelando ideologias dominantes
e/ ou contra-ideologias?

O que nos interessa, portanto, com uma proposta de intervenção pedagógica é observar
como ações pedagógicas direcionadas podem suscitar na experiência do aluno por meio

281
da leitura literária, suas visões de mundo, ideologias que os atravessam e que, também, os
constituem como sujeitos sociais. E, até que ponto a apreensão da literariedade expressada
pelo autor dificulta os processos receptivos, enquanto pluralidade de estruturas de sentido
historicamente mediadas e culturalmente construídas. Sobre isso, lembra Todorov (2009)
que, o que se observa não é o que as obras falam ou retratam, mas sim o que falam os
críticos a respeito delas. Em outras palavras, poda-se a criatividade do aluno no momento da
interpretação, impondo-lhes, visões de mundo e interpretações já existentes e consolidadas
por discursos de autoridades da área.

Acreditamos, portanto, que o projeto de intervenção, aqui apresentado, servirá como


subsídio para se pensar a interpretação do sujeito leitor e quais visões de mundo ele faz uso
para embasar o seu processo interpretativo. Nesse sentido, caracteriza-se por uma análise
qualitativa a nossa proposta de investigação, tendo em vista que as atividades a serem
desenvolvidas no círculo de leitura, principalmente as que se referem ao texto reflexivo
e autoavaliativo e as impressões interpretativas registradas no mural on-line “PADLET”,
permitirão ao professor enquanto agente de letramento, analisar como os elementos
textuais, discursivos e sociais se configuram na materialidade linguística, no que faz alusão
aos modos de significação, a que os sujeitos leitores recorrem no momento da produção
textual e, que, por sua vez, acabam por revelar sua historicidade, as crenças e as ideologias
que os constituem como sujeitos sociais.

Esperamos que esse tipo de estudo que efetuamos possa ser também relevante para
pensar práticas pedagógicas responsivas e culturalmente sensíveis aos sujeitos leitores,
especialmente no que diz respeito às interpretações e os efeitos de sentido decorrentes da
prática da leitura literária, possibilitando a formação social crítica e humana do sujeito.

2. Contextualização
O interesse em estudar a literatura em contextos de ensino e aprendizagem surgiu
durante a atuação profissional, como professor de língua portuguesa, na Rede Estadual
de Ensino Público de São Paulo. Foi no ano de 2015, para ser mais específico, que fomos
confrontados com uma série de indagações acerca dos conteúdos e das teorias literárias
que aprendemos na faculdade em contraposição às experiências decorrentes das aulas de
Língua Portuguesa, das quais participamos no período de escolarização (Ensino Fundamental
e Ensino Médio na Rede Estadual de Ensino) – no papel social de alunos, e, agora, enquanto
professores, mediadores de práticas de letramento.

282
Os questionamentos são em parte de ordem mais pessoal, no entanto, também se
relacionam com o profissional na medida em que se referem aos processos sociais vivenciados
no decorrer de minhas práticas cotidianas e escolares, e agora, enfocados em práticas sociais
mais amplas que englobam convenções sociais, jogos de poder e ideologias (que circulam em
diferentes círculos de atividade social), e que, por sua vez, ultrapassam as chamadas práticas
vernáculas.

Com a vivência nesse novo contexto social, o curso de especialização em Literaturas de


Língua Portuguesa: Identidades, Territórios e Deslocamentos (Brasil, Moçambique e Portugal),
foram-nos possibilitadas às oportunidades de pensar algumas questões inerentes à literatura
e ao seu ensino, especialmente quando mencionamos a maneira como a literatura é lida e
no modo como ela chega ao leitor, no caso, aos alunos. Esse olhar, sob o viés da recepção
estética, nos colocou diante de posicionamentos conflitantes, seja no que se refere ao jogo
de significados construídos a partir da materialidade linguística e as expectativas do leitor/
aluno, seja na tensão estabelecida pelos deslocamentos históricos, sociais e culturais pelos
quais os textos literários estão circunscritos, sobretudo por conta dos movimentos ideológicos
determinados pelos jogos de poder presentes na sociedade como um todo.

A leitura do material de estudo e a contínua reflexão nos módulos de aprendizagem,


propostos no curso de especialização, possibilitaram-nos melhor compreender os processos
de interação social ocorrentes em práticas sociais que envolvem o ensino de Literatura. E,
nas práticas escolares, o nosso olhar voltou-se para a relação exterioridade (representação
da realidade) e interioridade (interpretação) de textos literários, permitindo, assim, lançar
um olhar minucioso sobre os aspectos de constituição do sujeito social, ou seja, como certas
crenças, ideologias arraigadas no corpo social desses indivíduos veem a tona no momento da
leitura e, posterior interpretação dos textos literários.

Nesse sentido, após uma longa navegação por mares portugueses, moçambicanos e
brasileiros, embarcamos na disciplina de “Projetos integrados para o ensino de literatura de
língua portuguesa” com o intuito de colocarmos em prática os conceitos e teorias vistas nos
módulos específicos de aprendizagem do referido curso de especialização. Essa aplicabilidade
teórica foi abarcada concomitante ao conceito de práticas de letramento literário cunhado e
sistematizado, didaticamente, por Rildo Cosson. O que, por sua vez, nos permitiu uma reflexão
produtiva acerca da elaboração da proposta de intervenção pedagógica que apresentamos
(dando ênfase à interpretação do sujeito leitor) - podendo ser refinada e reconfigurada para
outros contextos, conforme o objetivo que queira dar o professor responsável.

283
3. Fundamentação teórico-metodológica
Quando mencionamos a literatura em contextos de ensino e aprendizagem, logo
pensamos a leitura literária como parte desse processo e, os estudos realizados por Rildo
Cosson sobre práticas de letramento literário contribuem para pensarmos o modo como
lemos e consumimos a literatura atualmente.

A esse respeito, enquanto prática social, os círculos de leitura literária propostos por
Cosson, e, aqui, apresentados como proposta de intervenção pedagógica, em forma de
oficinas de aprendizagem literária, parte de um conjunto de atividades específicas, cujo foco
é o leitor e, que, conforme aponta Cosson(2014), pode ser dividida em quatro etapas de
aprendizagem: 1. Motivação, a partir de questões instigadoras acerca dos textos literários
selecionados e às temáticas recorrentes em sua materialidade linguística; 2. Introdução,
correspondendo a etapa em que o professor enquanto agente de letramento apresenta
as obras selecionadas, bem como seus respectivos autores e, ainda, estratégias de leitura
literária como modelos de análise e reflexão; 3. Leitura, compreendendo o próprio ato de
ler; e, 4. Interpretação, cuja ênfase é o compartilhamento coletivo da experiência de leitura
literária. Assim, a prática de letramento literário encara a apropriação da literatura enquanto
uma construção literária de sentidos, compartilhadas, em termos dialógicos, intertextuais e
interdiscursivos, entre o leitor e a obra literária e, que, por sua vez, como assinala Cosson,
contribui para a inserção crítica do indivíduo na sociedade.

Acreditamos, ainda, que o aparato teórico-metodológico, proposto pelo inglês


Norman Fairclough (2001), juntamente com as contribuições de Rildo Cosson sobre
práticas de letramento literário nos auxiliará na melhor compreensão do funcionamento da
linguagem literária no que diz respeito à interpretação dos textos literários pelo grupo de
alunos, permitindo-nos, associar às percepções/interpretações dos alunos aos mecanismos
de reprodução/manutenção ou, àqueles de contestação de certas práticas ideológicas e
hegemônicas presentes na sociedade contemporânea.

No que diz respeito aos estudos de Fairclough, o teórico inglês, parte da Análise Crítica do
Discurso para pensar a linguagem dentro de um enfoque tridimensional, e que a nosso ver, pode
ser estabelecido na prática de letramento literário implicando, assim, um diálogo constante
entre a prática de texto - i.e., a materialidade linguística que configura as representações
sócio- estéticas ali reveladas, as condições de produção, circulação e recepção desse texto em
contextos sócio históricos específicos – configurando, assim, a prática discursiva e, atrelados
a essas duas práticas anteriores, os aspectos mais amplos e complexos, como é o caso das
ideologias e a hegemonia circunscritas nas práticas sociais. Nesse sentido, acreditamos que é

284
profícuo pensar o ensino de literatura enquanto práticas de linguagem, portanto, enquanto
atividade social e humana. Linguagem essa, fundamentalmente estabelecida numa relação
dialética e tridimensional: nos processos de interação social – macro e microestrutura
social, nas relações estabelecidas no âmbito das práticas discursivas (produção, circulação e
recepção/consumo dos textos), e, finalmente, no texto propriamente dito.

Assim, para que de fato a leitura literária seja um processo de construção de sentidos, os
alunos devem observar a materialidade linguística em seus aspectos transparentes e ocultos
(as representações sociais construídas por meio da linguagem, especificamente a linguagem
literária) e, a sua relação com a vida e os fatos sociais. E, como a dinâmica nas interações
no mundo envolve complexos fatores sociais e culturais que extrapolam a materialidade
linguística, é necessário considerar o contexto na construção do percurso gerativo de sentido
das coisas.

Quando lançamos nossos olhares para o texto literário, o contexto (a situação de


produção, circulação e de recepção da obra) também se mostra fundamental para a apreensão
e construção de sentidos e, a legitimação no tempo e espaço específicos do social. Essas
características que revelam as obras como Arte, necessariamente, pelo viés analítico, passam
pelo crivo do contexto e das relações dialógicas e intertextuais estabelecidas no âmbito do
leitor e da obra, e, por conseguinte, nas representações do mundo social. Em outras palavras,
considerando um momento temporal e espacial específico: como determinados grupos
sociais compreendem e produzem Arte?

Contudo, apenas o contexto não é garantidor de sentidos à obra literária. Jouve


(2012), importante teórico literário francês, argumenta no sentido de que as obras literárias
são objetos não utilitários, que representam outra coisa que não elas mesmas (“atenção
estética”), sendo reconhecido um valor, por um grupo social, dentro de um espaço-tempo
(“pertinência genérica”) e que, revelam o ato criativo do artista (“intenção estética”) em
relação à construção de representações no mundo. Assim, considerando o aspecto formador
da literatura que, já se justifica plenamente sua validade de ensino, como geradora de sentido,
o aluno tem que experimentar, na sua fruição e na recepção (leitura e interpretação), algo
semelhante à experiência da criação literária, ou seja, à quais projeções ideológicas o leitor
se ampara para interpretar/dar sentido àquele texto literário tendo em vista as condições
sócio-históricas das diversas interpretações possíveis.

A esse propósito, tomando o leitor como centro do processo de ensino e aprendizagem


de literatura, os pressupostos teóricos da Estética da Recepção proposto por Hans Robert
Jauss, oferece-nos um horizonte de reflexões e, embasamento teórico em relação à figura do

285
leitor e, o modo como ele recebe, consome e interpreta os textos, especificamente quando
nos referimos aos textos literários.

Nessa perspectiva, levamos em consideração a historicidade das obras literárias, já que


é por meio do leitor, ou seja, da prática de leitura desse tipo textual que ele vai constituindo
os mecanismos que, em certo sentido, interferem, em termos de, como a literatura circula
na sociedade. Assim, para os estudos da Estética da Recepção, no que concerne à recepção
do texto literário devemos ponderar à questão da atribuição de valores pelos leitores às
obras lidas, bem como do distanciamento estético promovido pelos próprios elementos
ficcionais que, congregam novos significados e novas experimentações à leitura literária,
aos indivíduos. Esses valores, como bem pontuou Zilberman (1989), partem de um processo
dialógico envolvendo o leitor, a obra e o autor; e, como resposta a essa experiência de
leitura, vivenciada de modo particular e pessoal por cada sujeito leitor, temos como resposta
a construção de uma visão de mundo coletiva, o que, por vezes, é reveladora de marcas
ideologias e de discursos hegemônicos que evidenciam as assimetrias socioculturais existentes
em nossa sociedade.

Considerando o contexto de ensino e aprendizagem, vale a pergunta: Que tipos


de acepções estamos vinculando quando falamos em práticas letradas literárias? Para
compreendermos melhor esse conceito, buscamos apoio teórico nos estudos realizados por
Kleiman (2004) sobre letramento. Para a autora, o letramento é “um conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos”(2004:19). Essa visão, por sua vez, corrobora para
pensarmos, como a leitura literária em contextos específicos de ensino e aprendizagem pode
evidenciar os aspectos ideológicos constituintes das práticas e dos sujeitos sociais. Ademais,
o conceito cunhado por esta autora sobre “agência social” é bastante profícuo à medida que,
permite-nos associá-lo à instituição escolar e às ações efetivas mobilizadas pelos agentes de
letramento, ou seja, os professores, durante o processo de ensino e aprendizagem, por meio
dos círculos de leitura, como os propostos por Rildo Cosson e os aqui, por nós elencados
como uma proposta de intervenção pedagógica.

Outro ponto que merece destaque, são os estudos de Bartlett (2007) no que se
refere às práticas de letramento serem mediadas por artefatos culturais que entre outros
elementos, incluiriam os instrumentos semióticos que possibilitam a mobilidade social e
a constituição do indivíduo, a sua identidade social, ou seja, o parecer e sentir-se letrados
diante de contextos sociais específicos. E, aqui, compreendemos os textos literários como
instrumentos semióticos e, portanto, como artefatos culturais.

286
Em outras palavras, implica pensar que o acesso às práticas sociais, como é o caso da
prática de letramento literário, envolvem o acesso aos textos propriamente ditos, bem como
aspectos ligados à participação social, à interação com o outro, às particularidades do contexto
que os envolve, as intenções dos sujeitos veiculadas na interação, o posicionamento que
aqueles sujeitos assumem diante do outro e, as concepções ideológicas que os interpenetram.

Essa construção de novos sentidos nas práticas sociais deve-se, exatamente, ao fato de
que essas práticas letradas mudam, configuram-se em novas práticas das quais os sujeitos
participam; além disso, essas mudanças são decorrentes, sobretudo, dos processos históricos
e socioculturais existentes no mundo social. Enfim, o acesso ao mundo e à realidade social,
que é mediada por instrumentos semióticos e culturais, têm implicações diretas e indiretas
na representação do sujeito. Isto é, o mundo é representado, olhamos, o percebemos através
de determinadas perspectivas ideológicas. Desse modo, considerando o contexto brasileiro,
cuja formação sócio-histórica aponta para dificuldades no acesso e mobilidade social dos
sujeitos, podemos, - amparados na teoria proposta por Bartlett -, defender que, a forma com
que o indivíduo venha a interagir no meio social, por meio da leitura do texto literário, vai
possibilitar-lhe a sua constituição social.

Constituição, que para Lesley Bartlett (ibidem), implica o parecer e o sentir-se letrado.
Este fato, como anuncia a autora, liga-se às questões da constituição da identidade social.
Vale lembrar que, os estudos de Bartlett focam a perspectiva sociocultural e têm por base a
pesquisa da formação identitária, buscando relacionar, na interação social entre os sujeitos,
a importância dos artefatos culturais como elementos integradores para a, e, reveladores da
constituição das visões de mundo e, do próprio sujeito social.

Segundo Bartlett (2007:52), as práticas de letramento estão ligadas diretamente às


atividades sociais e humanas, ou seja, concebe-se a ideia de que há uma multiplicidade de
letramentos, e que o ser humano está, assim, sempre participando e fazendo uso da linguagem
em diferentes domínios sociais o que, por sua vez, possibilita a ele, internalizar e apropriar-
se de visões de mundo, perspectivas ideológicas reveladoras de sua formação social. Nesse
sentido, como a maneira com que os indivíduos interagem socialmente é bastante cambiante,
o letramento parte de um processo social, construído e legitimado no momento da interação
com o outro, em termos intertextuais e interdiscursivos.

Para a autora, enquanto parte de um processo social, as práticas de letramento


constituem os sujeitos, os impregnam de um saber cultural próprio da prática na qual eles
estão comprometidos. Bartlett argumenta, no sentido de que, os sujeitos necessitam ativar
e improvisar um trabalho identitário interpessoal (“to seem”) e intrapessoal (“to feel”), ou

287
seja, que eles mobilizem elementos do mundo social, os artefatos culturais, para convencer
o outro e, também a si mesmos sobre qual posicionamento social estão assumindo naquele
contexto específico. Ademais, esses níveis sociais de construção da identidade dos sujeitos
(interpessoal e intrapessoal), são constituídos por símbolos, imagens, histórias individuais e
coletivas etc., excedendo a interação somente com as letras, sílabas, palavras ou na leitura
de textos isolados.

Nesse sentido, os sujeitos ao participar de práticas sociais, especificamente quando estas


envolvem o trabalho com a Literatura, os artefatos culturais (os textos literários) permitem,
por meio de sua leitura, o acesso ao mundo social, à apropriação e/ou à “expropriação” dos
diferentes sentidos que, ali, podem ser depreendidos/revelados, implicando dessa forma a
constituição do Eu discursivo. Nas palavras da autora, essa constituição do eu discursivo parte
da representação do mundo social no sentido teatral, assumindo o sujeito, certo papel social
no que se refere às relações de poder e ideologias existentes na sociedade contemporânea
– a da manutenção ou, àquela que implica a transformação social, a inserção crítica desses
indivíduos na sociedade.

4. Apresentação e constituição do objeto de pesquisa:


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e
compartilhamento de experiências de leitura literária
No desafio de ensino e aprendizagem envolvendo a leitura literária propomos, com
as atividades específicas, refletir sobre as interpretações dos sujeitos leitores em relação
à leitura dos textos literários e, até que certo ponto, os mecanismos textuais e discursivos
mobilizados pelos sujeitos, que implicam os modos de significação na escrita, relacionam-se
com as estruturas discursivas e sociais, possibilitando ao professor, mediador da prática de
letramento, verificar as ideologias arraigadas no corpo social dos sujeitos.

Acreditamos que, também, durante a realização dos círculos de leitura, os alunos podem
revelar ideologias do cotidiano, por vezes, calcadas apenas no senso comum, para realizar
o processo interpretativo. Entendemos que, o indivíduo ao participar de práticas sociais
específicas, como o proposto no desafio de ensino e aprendizagem, constitui a realidade e,
também, constitui-se enquanto sujeito social na ação e no discurso. Discurso, que por sua
vez, veicula os jogos de poder e ideologias.

Dessa forma, a intervenção pedagógica tem como objetivo específico compreender, de


forma crítica, visões de mundo/identidades e os deslocamentos provocados na construção

288
discursiva e subjetiva de personagens literários, associando-os ao mundo social. E, como
os alunos, no momento da leitura literária e da interpretação, fazem emergir certas
ideologias em suas percepções interpretativas, evidenciando à constituição de identidades
sociais, possibilitando, também, por sua vez, os deslocamentos que contribuem, ou para a
manutenção de todo um sistema hegemônico já existente, ou para a transformação social,
i.e., para uma subversão da ordem já pré-estabelecida na estrutura social.

Passemos, agora, a apresentação do “desafio de ensino-aprendizagem: mediação e


compartilhamento de experiência de leitura literária” que tem como público-alvo, alunos do
primeiro ano do ensino médio.

Como é de conhecimento de todos e todas, a herança escravagista ainda assombra


nossas relações sociais, demonstrando que o racismo tem raízes profundas em nossa
sociedade, manifestando-se de diversas formas no cotidiano da população negra. Essa
população, em sua maioria, faz parte de uma parcela mais pobre da sociedade e que,
tem o acesso à educação formal caracterizado por um percurso de desigualdades. Assim,
o resgate da história e cultura africana na educação dos brasileiros é necessário para se
romper com estruturas que deturpam o conhecimento dessa cultura, criando estereótipos
a seu respeito. Objetivando reparar essa situação histórica, foram desenvolvidas leis que
salientam a importância de se estudar o assunto em sala de aula, tendo em vista a superação
de preconceitos e discriminações. Um dos caminhos possíveis para a realização deste intento,
a nosso ver, é o diálogo do aluno com as literaturas de língua portuguesa (especificamente, a
do Brasil e a de Moçambique), através de práticas de letramento literário significativas.

Para isso, tomamos a proposta de trabalho com literatura em sala de aula enquanto
práticas de letramento literário, a partir de “círculos de leitura”, elaborado por Rildo Cosson,
optamos pela escolha do círculo semiestruturado tendo em vista a definição de Cosson (2014)
e o fato de que, na atuação docente, é necessário um certo direcionamento, objetivando o
desenvolvimento de habilidades e competências que, em contextos sociais, possibilitam aos
indivíduos a sua apropriação, bem como a possibilidade de participação nesse e em diversos
contextos sociais específicos.

Outro aspecto que merece ser pontuado, levando em consideração o contexto


pandêmico instituído pela COVID-19 nas escolas, é o uso de ferramentas tecnológicas aliadas
ao processo de aprendizagem dos alunos. Nesse sentido, é proposto fazer uso de uma
ferramenta digital denominada PADLET para a construção de murais virtuais colaborativos
relacionados às leituras literárias realizadas pelos alunos e suas impressões subjetivas, ou
seja, a como as diferentes interpretações dos leitores vêm à tona e tornam-se objeto curioso

289
dos efeitos de sentidos das obras literárias no mundo social, nos diferentes espaços e tempos
correlacionados.

Tendo em vista, o exposto acima, temos como objetivo apresentar a literatura como
algo presente na escola e desconstruir a visão elitista que, por muito tempo, esteve arraigada
a essa modalidade artística, tornando-a acessível a todos(as) e passível de ser apreciada e
discutida pelos agentes sociais envolvidos nesse processo; e, compreender, de forma crítica,
visões de mundo/identidades e os deslocamentos provocados na construção discursiva e
subjetiva de personagens literários, associando-os ao mundo social.

Para concretizar essa proposta, conforme as etapas elaboradas por Cosson, a partir das
práticas de letramento literário: 1. Motivação, 2. Introdução, 3. Leitura e, 4. Interpretação,
passaremos a detalhar melhor essas etapas a serem desenvolvidas no contexto dos “círculos
de leitura”.

A motivação para a prática de leitura literária é um dos aspectos mais relevantes para
despertar o interesse dos alunos para os textos pertencentes à esfera literária. Muitas vezes,
é necessário utilizar-se de estratégias de motivação que foquem determinados temas –
referenciados pelas produções literárias, problematizando-os, a fim de promover a discussão
e reflexão. Em outras palavras, necessita sair do lugar social que ocupamos e, precisamos nos
posicionar no lugar do outro, num processo empático, dialético e dialógico que, permite a
fruição, o despertar do prazer pela leitura literária e o reconhecimento do outro, considerando
a Literatura como um elemento humanizador e de afirmação social.

Entendemos que práticas de letramento literárias efetivas e consistentes devem permitir


ao sujeito leitor ampliar sua visão de mundo, permitindo ter novos olhares sobre si e sobre os
outros, e figurar o mundo social em diferentes perspectivas. Nesse sentido, decidimos aplicar
duas estratégias de motivação: uma, mais ampla, voltada à exploração de uma imagem
(fotografia) - fragmentada em duas partes - cujo retrato evidencia o preconceito racial. A
referida imagem ( cf. anexo 1) retrata dois negros com os braços cruzados, cabisbaixos,
sentados em uma extremidade de um banco de madeira (quase aos pedaços) e, na outra
extremidade, uma pessoa branca está disposta deleitando de um momento de descanso.

As imagens fragmentadas são apresentadas aos alunos, de forma isolada, e o professor


enquanto mediador questiona os alunos sobre a relação que podemos estabelecer entre as
imagens. E, se é possível estabelecer essa relação. Após uma breve discussão (socialização),
o professor esclarece que as imagens foram fragmentadas, propositalmente, a fim de
evidenciar os sentidos de um texto – compreendemos, aqui, que a conceituação de texto

290
também abrange o tipo textual mencionado, no caso, a fotografia. E, que, a temática sobre
o racismo e o preconceito sociais é fortemente marcada tanto no retrato quanto nos textos
propostos (poemas) para a prática da leitura literária.

Faz parte, também, deste desdobramento a leitura do excerto “(…) foi para mostrar
que o que os homens fazem, é apenas obra de homens… Que o que os homens fazem, é
feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem
qualquer coisa são homens (…)” e a prévia discussão, a partir da pergunta norteadora: Será
que em pleno século XXI os homens ainda continuam com a ideia de que são diferentes?. Para
finalizar esse primeiro momento, pede-se que os alunos façam a leitura do seguinte trecho
da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade”.

A outra estratégia de motivação, mais específica, diz respeito à apresentação e à


leitura de trechos de uma palestra proferida por Mia Couto em São Paulo no ano de 2008 e,
navegação pelo acervo digital do Museu Afro-Brasil; A entrevista na íntegra encontra-se no
seguinte endereço eletrônico: http://integras.blogspot.com.br/2008/04/mia-couto-fala-da-
influncia-de-jorge.html e http://www.museuafrobrasil.org.br.

A capacidade de relevar passados em que a sombra do colonialismo não é grande


suficiente para sufocar a identidade de um povo é talvez o principal diferencial no tratamento
da construção da identidade expressa em textos literários, tanto aos pertencentes às
produções brasileiras quanto às moçambicanas. Nesse sentido, selecionamos os seguintes
textos literários (poemas) para o desenvolvimento da prática de letramento literário:

1. Poema “Ninguém”, do poeta e escritor moçambicano José Craveirinha, que trata do


preconceito racial;

2. Poema “Vício de Fala”, do poeta brasileiro Oswald de Andrade, que trata do


preconceito social e linguístico;

3. Poema “Naturalidade” de Rui Knopfli e;

4. Poema “Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha, que trata da questão da


construção identitária.

Justifica-se a escolha desses textos literários tendo em vista a temática abordada: preconceitos
racial, social e linguístico na constituição de identidades. Além disso, as relações intertextuais e

291
interdiscursivas que os textos estabelecem entre si e, entre a temática abordada, permitem apreender
e compreender nossa historicidade e os fluxos culturais assimétricos que nos espreitam e fazem-nos,
construir sentidos nas relações dialógicas estabelecidas no plano social, por meio de práticas de
letramento literária consistentes.

Optamos por apresentar os autores, retrato e biografia, em termos sucintos, e as obras


em que se inserem os poemas dentro dos contextos sociais de produção e circulação por
entender que facilitará situar o aluno dentro do contexto proposto. O recorte interpretativo
realizado por nós, na elaboração das etapas, visa otimizar o tempo pedagógico e oportunizar
ações que permitam aos alunos, a partir da leitura literária e sua percepção dos fatos narrados,
interpretá-los e figurá-los sob diferentes perspectivas e olhares.

Acreditamos que, a partir da apresentação dos objetivos do projeto, das obras


selecionadas, dos autores e das temáticas abordadas, os alunos conseguirão ter um norte
para a exposição de suas percepções oportunizadas pela prática do letramento literário. E,
os efeitos de sentido, nesse caso, depreendidos da interpretação advinda das interações nos
“círculos de leitura” serão propiciados tanto pela leitura literária em seu aspecto humanizador,
mas também pela interação social que se dará de forma colaborativa. É na relação com outro,
e não apenas com o texto, que vamos constituindo-nos enquanto sujeitos sociais leitores e
figurando os mundos sociais, nas diferentes perspectivas socioculturais existentes.

Em relação à leitura, adotamos a concepção discursiva por entender que ela abarca,
não só a materialidade linguística e os efeitos expressivos decorrentes dos arranjos estético-
literários presentes no corpo textual, mas principalmente por conta de seu escopo social
que os textos literários abordam. É esse aspecto microssocial presentes nos textos literários
que nos permite lançar olhares sobre temáticas polêmicas como é o caso do racismo e dos
preconceitos social e linguístico, para uma melhor compreensão e crítica de como certos
grupos sociais são representados, de forma pejorativa e estereotipada, em textos literários.
E essas representações são marcas dos fluxos culturais dominantes que evidenciam as
assimetrias culturais e os silenciamentos de vozes que ocorreram, especificamente, durante
a formação das literaturas de língua portuguesa.

Assim, devemos considerar que toda prática de leitura de textos tem sempre objetivos
específicos, além de ser considerada uma atividade humana essencial para a apreensão dos
mundos figurados e construídos pelos sujeitos.

Do ato de ler, no que se refere à prática de leitura de textos literários, podemos


observar desdobramentos significativos em torno do campo da recepção e dos efeitos de

292
sentido decorrentes da leitura literária. Quanto à recepção, temos o aspecto individual/
pessoal que evidencia a questão do prazer que esse tipo de texto pode proporcionar ao
leitor. Já em relação aos efeitos de sentido decorrentes da leitura, que promovem o aspecto
social, a prática de leitura passa a ser encarada como uma prática social. Por conseguinte, o
ato de ler é concebido como uma atividade social, uma tarefa que diz respeito a um processo
discursivo, no qual se incluem os sujeitos produtores de sentido – o autor e o leitor.

Nesse sentido, ao tomarmos à prática de leitura literária a partir da concepção discursiva


de leitura, enquanto atividade social, que pode se desenvolver em contextos escolarizados,
estamos adotando a postura de que, a prática de letramento literário, além de revelar
aspectos socioculturais importantes de nossa sociedade anterior e atual, permite-nos por
meio da troca social e da compreensão individual e coletiva dos textos(poemas), ações de
inserção crítica dos indivíduos na sociedade, a compreensão dos aspectos macrossociais que
permeiam as relações sociais e, a própria constituição identitária dos sujeitos leitores, nesse
processo dialógico e dialético de compreensão do mundo.

Como proposta de estratégia de acompanhamento da leitura literária, no projeto de


mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária é indicado o trabalho com 4
(quatro) poemas, três deles pertencentes à Literatura Moçambicana e um deles pertencente
ao período do modernismo brasileiro, além do trabalho dialógico acerca de trechos de uma
entrevista com Mia Couto e de outros que remetem a aspectos mais amplos, como o tema
do racismo e do preconceito social/linguístico.

Para dar corpo ao projeto, propomos a leitura dos textos selecionados durante as
oficinas. Em um primeiro momento, fazer uma leitura em voz alta, objetivando a apreciação
do texto poético (o desenvolvimento do prazer pela leitura), seguido de uma abertura para
diálogo/socialização das percepções dos alunos a respeito dos efeitos de sentido provocados
pela leitura literária. Em um segundo momento, propomos a leitura silenciosa e reflexiva,
e, uma atividade específica com perguntas norteadoras sobre a estrutura composicional, a
tematização e o estilo (cf. Bakhtin, 1992: 277 -358).

As estratégias de leitura enfatizadas nesse projeto, principalmente na abertura para


discussão/debate literário são: utilização do conhecimento prévio, conexões entre textos e
mundo (intertextualidade/interdiscursividade), inferência, perguntas ao texto e síntese. Com
isso, acreditamos que os sujeitos leitores serão capazes de despertar o senso crítico para o
material lido, realizando conexões de sentido entre o texto lido e suas experiências de mundo
e de escrita. E, tais estratégias se justificam tendo em vista os objetivos da proposta.

293
Desse modo, como o foco principal do projeto de mediação e compartilhamento
de experiências de leitura literária é a questão da interpretação dos poemas, ou seja, dos
significados construídos no ato de leitura pelo co-enunciador (interlocutor/leitor) e, de quais
visões de mundo ele faz uso para embasar e dar forma a esse processo interpretativo, as
atividades do círculo de leitura centrar-se-ão em encontros semanais para leitura enquanto
fruição e, também, com objetivos específicos, considerando os temas e as figuras recorrentes
na materialidade linguística dos poemas.

Além disso, enquanto parte da quarta etapa - a interpretação - é proposto uma maior
ênfase em relação à recepção, ou seja, como os indivíduos recebem, considerando que -
diferentes sujeitos podem ler de diferentes formas e atribuir ao texto diferentes significados
– também, propomos a construção de um mural virtual colaborativo, por meio da plataforma
PADLET, entre os participantes do círculo de leitura.

Considerando que, o trabalho com a linguagem envolve certa subjetividade do


enunciador, devemos pensar a linguagem numa relação dialética na medida em que existe
uma interrelação entre os diferentes elementos sociais e linguísticos, provocando uma série
de efeitos, ou seja, um encadeamento de causas e efeitos, de significações sociais, linguísticas
e ideológicas que permeiam os processos e os sujeitos sociais.

É importante ressaltar que particularmente desde Foucault (1987) não se prioriza tanto
qual foi a intenção do autor, considerando-se mais importante do que isso, verificar como
os interlocutores estão recebendo, ou seja, como os textos estão sendo consumidos. Assim,
o significado que o co-enunciador atribui àquele determinado tipo textual é extremamente
importante para pensarmos as formas de ideologias e hegemonias que perpassam os sujeitos
sociais nos diferentes segmentos da sociedade contemporânea.

E, para finalizar essa quarta etapa, como proposta de avaliação da prática de letramento
literário, propomos a avaliação formativa (momento de reflexão em que os participantes
colocam sua visão de mundo, correlacionando-a com as leituras literárias realizadas e as
interpretações compartilhadas).

Além do registro das impressões/percepções interpretativas individuais e compartilhadas


a respeito dos poemas lidos, a partir da apresentação do mural digital elaborado no PADLET,
em termos colaborativos, pelos alunos, também, é proposto à realização de uma produção
textual reflexiva e autoavaliativa acerca das contribuições que o círculo de leitura proporcionou
a vida social dos alunos, tendo como pano de fundo o que diz o escritor indiano Edward Said
(1995:33) ao analisar como a cultura contemporânea se forma:

294
“(...) a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações
do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no
passado e o que teria esse passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado,
morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas.”

E ainda, justifica-se o processo de avaliação tendo em vista a concepção de leitura


adotada (a concepção discursiva de leitura) e das condições que envolvem o contexto
enquanto rede social, no qual os indivíduos estão vulneráveis a uma série de interferências
que entrecruzam com diversos fatores (as crenças que alimentamos, as ideologias que nos
atravessam, certas ideias em que acreditamos exatamente por serem ideias hegemônicas na
sociedade contemporânea etc.) que, por sua vez, caracteriza/configura o mundo concreto
e contribui para uma melhor compreensão dos sujeitos – em relação a sua identidade - e,
do mundo que, também, constitui-se por meio da interação e das relações que os sujeitos
estabelecem no plano social.

5. Análise, discussão e resultados esperados


A sociedade tem a aparência de ser uma sociedade democrática, porém, ao observarmos
a maneira como o poder está distribuído nos diferentes domínios sociais, podemos evidenciar
como os fluxos socioculturais assimétricos se revelam. Na literatura, sobretudo, o autor (re)
cria essas realidades, exprimindo-as por meio verbal, não só os seus aspectos semânticos, mas
também, os aspectos simbólicos e os ideológicos que permeiam e constituem a sociedade
em suas diversas práticas sociais. Enquanto objeto de ensino, o texto literário passa por um
processo de leitura em que o leitor busca inferir sentidos a materialidade linguística, a partir
das construções discursivas possibilitadas pelo próprio ato de ler, e, relacionando-as a seu
conhecimento de mundo, suas crenças e ideologias que o constituíram como sujeito social.
Quando partimos da premissa de que a interpretação do sujeito leitor é o fator fundamental
a ser ponderado neste estudo, estamos apontando para o fato de que, a maneira como o
sujeito projeta suas visões de mundo, em suas interpretações, é revelador de sua constituição
identitária e, que, por sua vez, na prática pedagógica, pode servir como subsídios para que o
professor possa refletir e pensar na promoção de ações e direcionamentos para que a prática
de letramento literário se efetive e se torne legítima dentre os objetivos almejados.

295
6. Considerações Finais
Enquanto prática de letramento literário, o desafio de ensino e aprendizagem proposto,
cujo foco na leitura literária é a interpretação do sujeito leitor, cumpre efetivamente a tarefa
no que se refere à proposição de atividades específicas, possibilitando ao professor, num
processo investigativo, a partir das interpretações dos alunos, uma melhor compreensão
de como os mecanismos textuais e discursivos mobilizados pelos sujeitos no momento do
registro escrito, relacionam-se com as estruturas discursivas e sociais, o que por sua vez, pode
revelar questões de identidade e da formação social dos indivíduos envolvidos na prática.

Entendemos ainda que, os textos poéticos propostos ao trabalho com a literatura em


contextos de ensino e aprendizagem sob o olhar receptivo do aluno nos coloca numa posição
em que devemos considerar esses textos poéticos como artefatos culturais que impregnam
os leitores de um saber cultural própria da prática em que estejam comprometidos.

Nesse sentido, os “círculos de leitura” delineados por Cosson juntamente com o aparato
teórico-metodológico desenvolvidos por Fairclough no que se refere a proposta tridimensional
de análise da linguagem, irá permitir ao professor e, também aos alunos, estabelecer na
prática pedagógica relações de sentido, não apenas relacionado à materialidade dos signos na
construção de sentidos, mas também, em termos intertextuais e dialógicos, relacionando os
processos interpretativos com os aspectos macrossociais, dentre eles aqueles que englobam
a ideologia.

A esse respeito, vale ressaltar que o processo de “coisificação” do ser humano apresentado
no poema de Craveirinha, pode evidenciar visões que recaem sobre o racismo, bem como no
poema de Oswald em que se evidencia ideologias estereotipadas, calcadas no preconceito
social e linguístico. Esses aspectos, intencionalmente produzidos pelo autor na construção
poética, adquirem significados simbólicos se associados ao plano social. E, pensando numa
proposta de intervenção pedagógica que dê conta desses aspectos, apresentamos reflexões
e uma maneira diferenciada de se trabalhar a literatura, tematizando questões polêmicas
que, ainda, sangram em nossa sociedade.

Não poderíamos deixar de mencionar o como a formação específica no curso de


especialização possibilitou-nos uma melhor compreensão de que práticas de letramento
literário efetivas e consistentes devem permitir ao sujeito leitor ampliar sua visão de mundo,
permitindo novos olhares sobre si e sobre o outro, em seu reconhecimento identitário, e na
figuração do mundo social.

296
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, O. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilizações Brasileiras, 1978.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São


Paulo: Martins Fontes, 1992. P. 277-358.

BARTLETT, L. To seem and to feel: situated identities and literacy practices. Teachers
College Record. Vol. 109, n. 1, 2007.

BARTON, D. e HAMILTON, M. Understanding Literacy as Social Practice. In: BARTON,


D. e HAMILTON, M. Local Literacies. Reading and writing in one community. London:
Routledge, 1998.

BORTONI-RICARDO, S.M. Nós cheguemu na escola, e agora: Sociolinguística e Educação.


São Paulo: Parábola, 2005.

CRAVEIRINHA, J. Ninguém. In: Antologia poética. Org. Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte:
editora UFMG, 2010.

CRAVEIRINHA, J. Poema do futuro cidadão. In: CAVACAS, Fernanda. O texto literário e o


ensino da língua em Moçambique. Lisboa - Maputo: colecção Sete, 1994.

COSSON, R. O espaço da literatura na sala de aula. In. Literatura: ensino fundamental.


Coordenação: Aparecida Paiva, Francisca Maciel, Rildo Cosson. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança Social. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001.

FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2000.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes,
1987.

JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio


Tellaroli. São Paulo: Ática, 1979.

JOUVE, V. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno e Marcos Marcio-Lino. São
Paulo: Parábola editorial, 2012.
KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.

KNOPFI, R. Naturalidade. Disponível em: www.folhadepoesia.blogspot.com. Acessado em


28 jun. 2021.

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 33-50.

TODOROV, T. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

ZILBERMAN, R. Recepção e leitura no horizonte da literatura. Disponível em: https://


www.scielo.br/j/alea/a/GSVPrjyVzyWZ8LBxRt95vHz/ Acessado em 28 jun. 2021.

ZIBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.


APÊNDICE

Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa


Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo I: Definição e justificativa da prática literária e seleção do(s) texto(s)
Nome: Marcos Vinícius Modro

1.
1.1. Público Alvo:
Alunos de uma sala do 1º ano do Ensino Médio de uma escola pública.
1.2. Tempo de Duração:
O presente projeto será desenvolvido durante 02 (dois) meses, compreendendo os meses de Outubro
e de Novembro do corrente ano. Com uma carga horária de 15 horas, as atividades serão divididas em
sete encontros semanais - sendo cinco encontros de duas horas e dois encontros de duas horas e trinta
minutos, conforme cronograma a seguir:
1º encontro (2h) – Motivação;
2º encontro (2h) – Introdução;
3º encontro (2h30min) – Leitura/Interpretação e Socialização;
4º encontro (2h30min) – Leitura/Interpretação e Socialização;
5º encontro (2h) – Leitura/Interpretação e Socialização;
6º encontro (2h) – Avaliação formativa;
7º encontro (2h) – Registro de atividades e apresentação do mural digital elaborado, em termos
colaborativos, pelos alunos.
1.3. Definição da prática de letramento literário:
Conforme a proposta de trabalho com literatura em sala de aula enquanto práticas de letramento
literária, a partir de “círculos de leitura”, elaborado por Rildo Cosson, optamos pela escolha do círculo
semiestruturado tendo em vista a definição de Cosson (2014) e o fato de que, na atuação docente, é
necessário um certo direcionamento, objetivando o desenvolvimento de habilidades e competências
que, em contextos sociais, possibilitam aos indivíduos a sua apropriação, bem como a possibilidade de
participação nesse e em diversos contextos sociais específicos.
Outro aspecto que merece ser pontuado, levando em consideração o contexto pandêmico instituído
pela COVID-19 nas escolas, é o uso de ferramentas tecnológicas aliadas ao processo de aprendizagem
dos alunos. Nesse sentido, propomos fazer uso de uma ferramenta digital denominada PADLET para a
construção de murais virtuais colaborativos relacionados às leituras literárias realizadas pelos alunos e
suas impressões subjetivas, ou seja, as diferentes interpretações dos leitores vêm à tona e tornam-se
objeto curioso dos efeitos de sentidos das obras literárias no mundo social, nos diferentes espaços e
tempos correlacionados.
1.4. Descrição da prática de letramento literário escolhida:

• 1º encontro (2h) – Motivação (apresentação e leitura de trechos de uma palestra proferida por Mia
Couto em São Paulo no ano de 2008 e, navegação pelo acervo digital do Museu Afro-Brasil); - Entrevista
na íntegra em http://integras.blogspot.com.br/2008/04/mia-couto-fala-da-influncia-de-jorge.html e
http://www.museuafrobrasil.org.br
• 2º encontro (2h) – Introdução (apresentação dos objetivos do projeto, das obras selecionadas,
das temáticas abordadas e dos efeitos de sentidos propiciados pela leitura literária no seu aspecto
humanizador);

299
• 3º encontro (2h30min) – Leitura/Interpretação e Socialização (os encontros relacionados à leitura
literária desdobram-se em três momentos: 1. Leitura em voz alta do texto literário; 2. Leitura silenciosa
do texto literário; e, 3. Reflexão e compartilhamento das interpretações dos leitores. O texto proposto
para leitura é o poema “Ninguém” do poeta e escritor moçambicano José Craveirinha, que trata do
preconceito racial);
• 4º encontro (2h30min) – Leitura/Interpretação e Socialização (a dinâmica do processo de leitura
segue como o já descrito no terceiro encontro e, o texto proposto para leitura é o poema “Vício de
Fala” do poeta brasileiro Oswald de Andrade, que trata do preconceito social e linguístico.)
• 5º encontro (2h) - Leitura/Interpretação e Socialização (neste encontro, invertemos a ordem
das atividades propondo como início de conversa correlacionar os dois poemas, mote de leitura e
discussão dos dois encontros anteriores. Por meio de perguntas motivadoras, trataremos de temas
relacionados ao racismo e a desumanização social dos grupos representados por meio dos poemas.
E, apesar de os poemas seguirem caminhos diferentes, eles evidenciam, numa leitura intertextual, as
fraturas sociais de nosso tempo, demonstrando que aqueles que constroem o progresso são os que
não podem participar dele, seja pelo preconceito racial (no caso do poema de Craveirinha), seja pelo
preconceito linguístico e social (no caso no poema de Oswald de Andrade).
E, por fim, explorando conceitos de identidade e deslocamentos promovidos pelos textos literários na
representação de certos grupos sociais, finalizaremos com a leitura dos poemas “Naturalidade”, de
Rui Knopfli e, “Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha.)
• 6º encontro (2h) – Registro de atividades e apresentação do mural digital elaborado, em termos
colaborativos, pelos alunos (no último encontro e, para finalizar o “círculo de leitura” é feito a
apresentação e leitura das contribuições dos alunos no mural digital e, também, é proposto à realização
de uma produção textual reflexiva acerca das contribuições que o círculo de leitura proporcionou a
vida social dos alunos, tendo como pano de fundo o que diz o escritor indiano Edward Said (1995:33)
ao analisar como a cultura contemporânea se forma:
“(...) a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do
presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o
que teria esse passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado,
ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas.”)
• 7º encontro (2h) – Avaliação formativa (momento de reflexão em que os participantes colocam sua visão
de mundo, correlacionando-a com as leituras literárias realizadas e interpretações compartilhadas.)
1.5. Justificativa da prática de letramento literário escolhida e delimitação dos objetivos:
A herança escravagista ainda assombra nossas relações sociais, demonstrando que o racismo tem raízes
profundas em nossa sociedade, manifestando-se de diversas formas no cotidiano da população negra.
Essa população, em sua maioria, faz parte de uma parcela mais pobre da sociedade e que, tem o acesso
à educação formal caracterizado por um percurso de desigualdades. Assim, o resgate da história e
cultura africana na educação dos brasileiros é necessário para se romper com estruturas que deturpam
o conhecimento dessa cultura, criando estereótipos a seu respeito. Objetivando reparar essa situação
histórica, foram desenvolvidas leis que salientam a importância de se estudar o assunto em sala de aula,
tendo em vista a superação de preconceitos e discriminações. Um dos caminhos possíveis para a realização
deste intento, a nosso ver, é o diálogo do aluno com as literaturas de língua portuguesa (especificamente,
a do Brasil e a de Moçambique), através de práticas de letramento literário significativas.
Objetivos:
1. Apresentar a literatura como algo presente na escola e desconstruir a visão “elitista” que, por muito
tempo, esteve arraigada a essa modalidade artística, tornando-a acessível a todos(as) e passível de ser
apreciada e discutida pelos agentes sociais envolvidos nesse processo;
2. Compreender, de forma crítica, visões de mundo/identidades e os deslocamentos provocados na
construção discursiva e subjetiva de personagens literários, associando-os ao mundo social.

2.
2.1. Escolha do (s) texto(s) literário(s):
1. Poema “Ninguém”, do poeta e escritor moçambicano José Craveirinha;

300
2. Poema “Vício de Fala”, do poeta brasileiro Oswald de Andrade;
3. Poema “Naturalidade” de Rui Knopfli;
4. Poema “Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha.

2.2. Justificativa da escolha do(s) texto(s) literário(s):


Justifica-se a escolha desses textos literários tendo em vista a temática abordada: Identidade, territórios
e deslocamentos. Além disso, as relações intertextuais e interdiscursivas que os textos estabelecem
entre si e, entre a temática abordada, permite-nos apreender e compreender nossa historicidade e os
fluxos culturais assimétricos que nos espreitam e fazem-nos, construir sentidos nas relações dialógicas
estabelecidas no plano social, por meio de práticas de letramento literária consistentes.

301
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem: mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 2: Motivação e introdução no processo de letramento literário

1.
1.1. Proposta de estratégias de motivação de leitura:
Entendemos que, práticas de letramento literárias efetivas e consistentes devem permitir ao sujeito leitor
ampliar sua visão de mundo, permitindo ter novos olhares sobre si e sobre os outros, e figurar o mundo
social em diferentes perspectivas.
Nesse sentido, decidimos aplicar duas estratégias de motivação: uma, mais ampla, voltada à exploração de
uma imagem (fotografia) - fragmentada em duas partes - cujo retrato evidencia o preconceito racial nos
Estados Unidos. A referida imagem retrata dois negros com os braços cruzados, “cabisbaixos”, sentados
em uma extremidade de um banco de madeira (quase aos pedaços) e, na outra extremidade, uma pessoa
branca está disposta deleitando de um momento de descanso.
As imagens fragmentadas são apresentadas aos alunos, de forma isolada, e o professor enquanto
mediador questiona os alunos sobre a relação que podemos estabelecer entre as imagens. E, se é possível
estabelecer essa relação. Após uma breve discussão (socialização), o professor esclarece que as imagens
foram fragmentadas, propositalmente, a fim de evidenciar os sentidos de um texto – compreendemos,
aqui, que a conceituação de texto também abrange o tipo textual mencionado, no caso, a fotografia. E,
que, a temática sobre o racismo e o preconceito sociais é fortemente marcada tanto no retrato quanto nos
textos propostos (poemas) para a prática da leitura literária.
Faz parte, também, deste desdobramento a leitura do excerto “(…) foi para mostrar que o que os homens
fazem, é apenas obra de homens… Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas
que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer coisa são homens (…)” e a prévia discussão, a
partir da pergunta norteadora: “Será que em pleno século XXI os homens ainda continuam com a ideia
de que são diferentes?”. Para finalizar, esse primeiro momento, pede-se que faça a leitura do seguinte
trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito
de fraternidade”.
A outra estratégia de motivação, mais específica, diz respeito à apresentação e à leitura de trechos de uma
palestra proferida por Mia Couto em São Paulo no ano de 2008 e, navegação pelo acervo digital d o
Museu Afro-Brasil); - Entrevista na integra em http://integras.blogspot.com.br/2008/04/mia-couto-fala-
da-influncia-de-jorge.html e http://www.museuafrobrasil.org.br
1.2. Justificativa das estratégias escolhidas:
A motivação para a prática de leitura literária é um dos aspectos mais relevantes para despertar o
interesse dos alunos para os textos pertencentes à esfera literária. Muitas vezes, é necessário, utilizar-se
de estratégias de motivação que, foquem determinados temas – referenciados pelas produções literárias,
problematizando-os, a fim de promover a discussão e reflexão. Em outras palavras, necessita sair do lugar
social que ocupamos e, precisamos nos posicionar no lugar do outro, num processo empático, dialético e
dialógico que, permite a fruição, o despertar do prazer pela leitura literária e o reconhecimento do outro,
considerando a Literatura como um elemento humanizador e de afirmação social.

2.
2.1. Proposta de introdução/apresentação da leitura literária:
A capacidade de relevar passados em que a sombra do colonialismo não é grande suficiente para sufocar
a identidade de um povo é talvez o principal diferencial no tratamento da construção da identidade
expressa em textos literários, tanto aos pertencentes às produções brasileiras quanto às moçambicanas.
Nesse sentido, optamos por apresentar os autores, retrato e biografia, em termos sucintos, e as obras em
que se inserem os poemas dentro dos contextos sociais de produção e circulação. O recorte interpretativo

302
realizado por nós, na elaboração das etapas, visa otimizar o tempo pedagógico e oportunizar ações que,
permitam aos alunos, a partir da leitura literária e sua percepção dos fatos narrados, interpretá-los e
figurá-los sob diferentes perspectivas e olhares.
2.2. Justificativa das estratégias de introdução/apresentação:
Acreditamos que, a partir da apresentação dos objetivos do projeto, das obras selecionadas, dos autores
e das temáticas abordadas, os alunos conseguirão ter um norte para a exposição de suas percepções
oportunizadas pela prática do letramento literário. E, os efeitos de sentidos, nesse caso, depreendidos da
interpretação advinda das interações em sala de aula serão propiciados tanto pela leitura literária em seu
aspecto humanizador, mas também pela interação social que se dará de forma colaborativa. É na relação
com outro, e não apenas com o texto, que vamos constituindo-nos enquanto sujeito sociais leitores e
figurando os mundos sociais, nas diferentes perspectivas socioculturais existentes.

303
Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 3: Concepção e estratégias de acompanhamento de leitura no processo de letramento literário

1.
1.3. Proposta de concepção de leitura do texto literário:
Devemos considerar que toda prática de leitura de textos tem sempre objetivos específicos, além de ser
considerada uma atividade humana essencial para a apreensão dos mundos figurados e construídos pelos
sujeitos.
Do ato de ler, no que se refere à prática de leitura de textos literários, podemos observar desdobramentos
significativos em torno do campo da recepção e dos efeitos de sentido decorrentes da leitura literária.
Quanto à recepção, temos o aspecto individual/pessoal que evidencia a questão do prazer que esse
tipo de texto pode proporcionar ao leitor. Já em relação aos efeitos de sentido decorrentes da leitura,
que promovem o aspecto social, a prática de leitura passa a ser encarada como uma prática social. Por
conseguinte, o ato de ler é concebido como uma atividade social, uma tarefa que diz respeito a um processo
discursivo, no qual se incluem os sujeitos produtores de sentido – o autor e o leitor.
Nesse sentido, ao tomarmos à prática de leitura literária a partir da concepção discursiva de leitura,
enquanto atividade social, que pode se desenvolver em contextos escolarizados, estamos adotando a
postura de que, a prática de letramento literário, além de revelar aspectos socioculturais importantes
de nossa sociedade anterior e atual, permitiu-nos por meio da troca social e da compreensão individual
e coletiva dos textos(poemas), ações de inserção crítica dos indivíduos na sociedade, a compreensão dos
aspectos macrossociais que permeiam as relações sociais e, a própria constituição identitária dos sujeitos
leitores, nesse processo dialógico e dialético de compreensão do mundo.
1.4. Justificativa da concepção de leitura do texto literário:
Adotamos a concepção discursiva de leitura por entender que ela abarca, não só a materialidade linguística
e os efeitos expressivos decorrentes dos arranjos estético-literários presentes no corpo textual, mas
principalmente por conta de seu escopo social que os textos literários abordam. É esse aspecto microssocial
presentes nos textos literários que nos permite lançar olhares sobre temáticas polêmicas como é o caso
do racismo e dos preconceitos social e linguístico, para uma melhor compreensão e crítica de como
certos grupos sociais são representados, de forma pejorativa e estereotipada, em textos literários. E essas
representações são marcas dos fluxos culturais dominantes que evidenciam as assimetrias culturais e os
silenciamentos de vozes que ocorreram, especificamente, durante a formação das literaturas de língua
portuguesa.

2.
2.3. Proposta de estratégias de acompanhamento de leitura literária:
No projeto de mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária propomos o trabalho
com 4 (quatro) poemas, três deles pertencentes à Literatura Moçambicana e um deles pertencente ao
período do modernismo brasileiro, além do trabalho dialógico acerca de trechos de uma entrevista com
Mia Couto e de outros que remetem a aspectos mais amplos, como o tema do racismo e do preconceito
social/linguístico.
Para dar corpo ao projeto, propomos a leitura dos textos selecionados durante as oficinas. Em um primeiro
momento, faremos uma leitura em voz alta, objetivando a apreciação do texto poético (o desenvolvimento
do prazer pela leitura), seguido de uma abertura para diálogo/socialização das percepções dos alunos a
respeito dos efeitos de sentido provocados pela leitura literária. Em um segundo momento, propusemos
a leitura silenciosa e reflexiva, e uma atividade específica com perguntas norteadoras sobre a estrutura
composicional, a tematização e o estilo (cf. Bakhtin, 1992: 277 -358).
As estratégias de leitura enfatizadas nesse projeto, principalmente na abertura para discussão/debate
literário são: utilização do conhecimento prévio, conexões entre textos e mundo (intertextualidade/
interdiscursividade), inferência, perguntas ao texto e síntese. Com isso, acreditamos que os sujeitos
leitores serão capazes de despertar o senso crítico para o material lido, realizando conexões de
sentido entre o texto lido e suas experiências de mundo e de escrita.

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Projeto integrado para o ensino de literaturas de língua portuguesa
Desafio de ensino-aprendizagem:
mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária
Passo 4: Atividades de interpretação do texto literário e processo de avaliação da leitura literária

1.
1.5. Proposta de atividades de interpretação do texto literário:
Como o foco principal do projeto de mediação e compartilhamento de experiências de leitura literária é
a questão da interpretação dos poemas, ou seja, dos significados construídos no ato de leitura pelo co-
enunciador (interlocutor/leitor) e, de quais visões de mundo ele faz uso para embasar e dar forma a esse
processo interpretativo, as atividades do círculo de leitura centrarão em encontros semanais para leitura
enquanto fruição e, também, com objetivos específicos, considerando os temas e as figuras recorrentes na
materialidade linguística dos poemas.
Além de uma maior ênfase em relação à recepção, ou seja, como os indivíduos recebem, considerando que
- diferentes sujeitos podem ler de diferentes formas e atribuir ao texto diferentes significados – também,
propomos a construção de um mural virtual colaborativo, por meio da plataforma PADLET, entre os
participantes do círculo de leitura.
1.6. Justificativa das atividades de interpretação do texto literário propostas:
Considerando que, o trabalho com a linguagem envolve certa subjetividade do enunciador, devemos
pensar a linguagem numa relação dialética na medida em que existe uma inter-relação entre os diferentes
elementos sociais e linguísticos, provocando uma série de efeitos, ou seja, um encadeamento de causas e
efeitos, de significações sociais, linguísticas e ideológicas que permeiam os processos e os sujeitos sociais.
É importante ressaltar que particularmente desde Foucault (1987) não se prioriza tanto qual foi a intenção
do autor, considerando-se mais importante do que isso, verificar como os interlocutores estão recebendo,
ou seja, como os textos estão sendo consumidos. Assim, o significado que o co-enunciador atribui
àquele determinado tipo textual é extremamente importante para pensarmos as formas de ideologias e
hegemonias que perpassam os sujeitos sociais nos diferentes segmentos da sociedade contemporânea.

2.
2.5. Proposta de avaliação da leitura literária realizada:
Avaliação formativa (momento de reflexão em que os participantes colocam sua visão de mundo,
correlacionando-a com as leituras literárias realizadas e as interpretações compartilhadas).
Além do registro das impressões/percepções interpretativas individuais e compartilhadas a respeito dos
poemas lidos, a partir da apresentação do mural digital elaborado no PADLET, em termos colaborativos,
pelos alunos, também, é proposto à realização de uma produção textual reflexiva e
autoavaliativa acerca das contribuições que o círculo de leitura proporcionou a vida social dos alunos, tendo
como pano de fundo o que diz o escritor indiano Edward Said ao analisar como a cultura contemporânea
se forma:
“(...) a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações
do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu
no passado e o que teria esse passado, mas também a incerteza se o passado é de fato
passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas.”
2.6. Justificativa do processo de avaliação de leitura literária:
Justifica-se o processo de avaliação tendo em vista a concepção de leitura adotada (a concepção
discursiva de leitura) e das condições que envolvem o contexto enquanto rede social, no qual os indivíduos
estão vulneráveis a uma série de interferências que entrecruzam com diversos fatores (as crenças que
alimentamos, as ideologias que nos atravessam, certas ideias em que acreditamos exatamente por serem
ideias hegemônicas na sociedade contemporânea etc.) que, por sua vez, caracteriza/configura o mundo
concreto e contribui para uma melhor compreensão dos sujeitos – em relação a sua identidade - e, do
mundo que, também, constitui-se por meio da interação e das
relações que os sujeitos estabelecem no plano social.

305
3.
3.1. Referências Bibliográficas:
ANDRADE, O. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilizações Brasileiras, 1978.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. P. 277-358.
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109, n. 1, 2007.
BARTON, D. e HAMILTON, M. Understanding Literacy as Social Practice. In: BARTON, D. e HAMILTON, M.
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Parábola, 2005.
CRAVEIRINHA, J. Ninguém. In: Antologia poética. Org. Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte: editora UFMG,
2010.
CRAVEIRINHA, J. Poema do futuro cidadão. In: CAVACAS, Fernanda. O texto literário e o ensino da língua
em Moçambique. Lisboa - Maputo: colecção Sete, 1994.
COSSON, R. O espaço da literatura na sala de aula. In. Literatura: ensino fundamental. Coordenação:
Aparecida Paiva, Francisca Maciel, Rildo Cosson. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014. FAIRCLOUGH, N. Discurso e
Mudança Social. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001.
FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2000.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, 1987.
JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo:
Ática, 1979.
JOUVE, V. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno e Marcos Marcio-Lino. São Paulo: Parábola
editorial, 2012.
KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.
KNOPFI, R. Naturalidade. Disponível em: www.folhadepoesia.blogspot.com. Acessado em 28 jun. 2021.
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ZIBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.

306

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