LEITURA DE RELATO DE UM CERTO ORIENTE E DOIS IRMÃOS
Francisco Aquinei Timóteo Queirós1 Francielle Maria Modesto Mendes2 RESUMO O estudo centra-se na análise dos romances Relato de um certo oriente (1989) e Dois irmãos (2000), do escritor manauense Milton Hatoum. Constata-se nas obras, a subversão da paisagem que marca as narrativas sobre a Amazônia brasileira. O olhar hatouniano desloca-se dos cenários de uma “floresta amedrontadora” e do mote reiterado dos ciclos da borracha para ancorar-se na paisagem da cidade – com seus movimentos e problemáticas – tendo como fio condutor os sujeitos migrantes. Nas duas obras, o autor promove a abertura do romance amazônico para temáticas que envolvem as disputas, a memória, os dramas familiares e a prevalência de uma narrativa urbana. O artigo apoia-se nas reflexões de Homi Bhabha (2013), Roger Chartier (2002), entre outros. PALAVRAS-CHAVE Milton Hatoum. Relato de um certo oriente. Dois irmãos. Narrativa.
THE BRAZILIAN AMAZON OF MILTON HATOUM: A READING
OF RELATO DE UM CERTO ORIENTE (THE TREE OF THE SEVENTH HEAVEN) AND DOIS IRMÃOS (THE BROTHERS) ABSTRACT This study focuses on the analysis of the novels Relato de um certo oriente (1989) and Dois irmãos (2000), by the Amazonian writer Milton Hatoum. In the works, we observe the subversion of the landscape that marks the narratives about the Brazilian Amazon. Hatoum’s gaze displaces itself from the scenarios of a “frightening forest” and the reiterated motto of the rubber cycles to relocate in the landscape of the city - with its movements and problems - using migrant subjects as its guiding thread. In both works, the author promotes the opening of the Amazonian novel to topics that involve disputes, memory, family dramas and are prevalently set in urban narratives. The article is based on the reflections of Homi Bhabha (2013), Roger Chartier (2002) and others. KEYWORDS Milton Hatoum. Relato de um certo oriente. Dois irmãos. Narrative. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (2013) e professor efetivo dessa mesma Instituição Federal de Ensino, com atuação no Curso de Comunicação Social/Jornalismo. 2 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (2013), Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (2008) e professora efetiva dessa mesma Instituição Federal de Ensino, com atuação no Curso de Comunicação Social/Jornalismo e no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade.
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Eu sempre começo meus enfrentam dramas familiares e
romances pelo fim. problemas psicológicos intensos, Eu preciso saber aonde eu vou chegar. que se sobrepõem aos problemas Se eu souber aonde vou chegar, o de relacionamento com o meio resto que é quase tudo, natural. Diante disso, o conflito ser que é tudo, é a travessia (Milton Hatoum3). humano/natureza, tão comum na Introdução literatura que tem como cenário a O presente estudo discute de Amazônia, não é o norte nas obras que forma a Amazônia é narrada aqui estudadas. em duas obras de Milton Hatoum: As obras citadas no primeiro Relato de um certo oriente (1989) parágrafo deste texto são e Dois irmãos (2000). O autor é marcadas por personagens que, amazonense, nasceu em Manaus em sua maioria, são seringueiros no ano de 1952. Além desses dois ou seringalistas. Habitam uma romances, publicou os romances floresta que é rica em fauna e Cinzas do Norte (2005) e Órfãos flora, mas, por vezes, é tida como do Eldorado (2008). Ensinou amedrontadora. Nesses textos, os literatura na Universidade do espaços da cidade são suprimidos Amazonas e na Universidade da ou narrados somente no contexto Califórnia, em Berkeley. dos dois ciclos econômicos da As obras aqui estudadas se borracha. diferenciam de outras que têm a Essas literaturas concentram- Amazônia como cenário, caso de se na manutenção de algumas A Selva, Ferreira de Castro; Terra representações e imaginários Caída, José Potyguara; Seringal, sobre a Amazônia brasileira. Miguel Jerônimo Ferrante; Coronel Sabe-se que desde a chegada dos de Barranco, Cláudio de Araújo primeiros europeus à região, Lima. A diferença se dá porque as nos séculos XVI e XVII, o lugar histórias hatounianas são urbanas, é observado pela dicotomia se passam predominantemente inferno verde/paraíso tropical e em Manaus. As personagens as populações são identificadas como exóticas e pitorescas. Essas 3 Frase dita pelo autor no programa Globo News Literatura sobre a estreia da minissérie abordagens fazem com que o Dois irmãos, na TV Globo, em 7 de janeiro de discurso construído ao longo 2017.
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dos tempos seja de população O autor não nega as
homogênea e estereotipada imbricações cidade/floresta, (MENDES; QUEIRÓS, 2014). apenas observa a região e sua gente Para Homi Bhabha, o conceito sem os antolhos da hostilidade, de cultura homogênea está “em analisando as multiplicidades e profundo processo de redefinição” os entrecruzamentos culturais, os (2013, p. 25). Diante disso, o conflitos internos, as buscas de Hatoum se afasta dessa visão identidades e as transformações tradicional que diz ser a Amazônia por quais passam suas brasileira um local distante, personagens e a própria cidade de isolado, primitivo, onde a floresta Manaus. devoradora é protagonista, se Relato de um certo oriente: o sobrepondo aos problemas enredo humanos. Em Relato de um certo oriente, os dramas de uma família árabe Em entrevista dada a Luiz e os problemas psicológicos das Enrique Gurgel, na revista Na ponta personagens estão no centro da do lápis, em 2008, o autor assume narrativa. A obra é narrada pela sua identificação com Manaus, e filha adotiva de Emilie4, que é a diz que a cidade tem ligações com personagem central da história. a floresta, mas, mesmo assim, ele A filha organiza relatos de Hakim não se sente filho dessa selva: O lugar da minha ficção é o (o filho preferido), Dorner (o Amazonas. Muitas vezes as fotógrafo alemão amigo da pessoas não entendem isso. família), o marido de Emilie e A minha Amazonas é uma Amazonas metropolitana, 4 A personagem Emilie reaparece na obra urbana. Eu não sou filho da Dois irmãos como amiga de Zana: “‘Não quer floresta, a floresta não é o meu ver mais ninguém’, dizia Zana quando batiam habitat. A minha literatura é a porta. Só com uma visita ela foi paciente: urbana, mas com muitos vínculos a velha matriarca Emilie, que raramente com a floresta, o rio. Eu acho que passava em casa. Quando aparecia, Emilie ouvia tudo, todos os lamentos, e depois falava o lugar da literatura é o lugar em árabe, a voz alta, mas tranquila, sem da infância. Onde eu vou, levo alarde” (HATOUM, 2000, p. 250). E reaparece Manaus comigo. Mas não uma no conto “A natureza ri da cultura”, publicado Manaus qualquer. É a Manaus na obra A cidade ilhada: “Ainda me lembro da do começo dos anos 1960, fim voz de Emilie, a matriarca. Na minha infância, dos anos 1950 (HATOUM apud eu a escutava cantar e rezar, não em árabe, sua GURGEL, 2008, online). língua materna, mas em francês, sua língua adotada” (HATOUM, 2009, p. 95).
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Hindié Conceição, a amiga íntima A pátria de todo escritor é a
infância. Eu acho que o momento da matriarca. da infância e da juventude é A narradora inominada sofre privilegiado para quem quer de transtornos psicológicos, escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: por isso esteve em uma clínica as grandes felicidades, os de repouso em São Paulo. Após traumas, as alegrias e também quase vinte anos, retorna a as decepções. Certamente não estou falando da lembrança Manaus: “à casa de sua infância pontual e nítida. O que me na tentativa de reconstruir, por interessa é a memória desfocada, meio das lembranças e vãos do a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque esquecimento um mundo perdido aí é que se instala o espaço da e uma casa desfeita” (SILVA, 2010, invenção. Alguma coisa que você p. 109). Ela chega em busca do lembra, mas sem nitidez porque é isso que traz o espaço fluido, passado, da sua identidade e de nebuloso e incerto daquilo que algumas respostas que podem se vai narrar. Quer dizer, eu não indicar a origem de seus traumas sei exatamente o que aconteceu, mas sei que alguma coisa e o porquê de ocupar uma posição aconteceu no passado e é sobre na margem de sua família. Como isso que quero escrever. É como afirma Homi Bhabha, “a identidade se uma frase dessa lembrança meio esfumada pudesse é reivindicada a partir de uma produzir mais 300 frases. Uma posição de marginalidade ou em coisa puxa a outra. Então, você uma tentativa de ganhar o centro” não faz esforço para se lembrar. Como dizia Clarice Lispector: “É (2013, p. 284). você se lembrar de coisas que A partir dos relatos dos nunca aconteceram”. Esse é o movimento que te leva à escrita: familiares e amigos, a narradora, lembrar de coisas que poderiam filha adotiva, organiza algumas ter acontecido (HATOUM apud histórias vividas por sua família. GURGEL, 2008). Por intermédio dos recursos Emilie tinha quatro filhos, da memória, ela tece os fios além da narradora e de seu da narrativa. Esse aspecto irmão que vive em Barcelona: memorialístico das obras de Hakim e Samara Délia, e os “dois, Hatoum é justificado pelo próprio inomináveis, filhos ferozes de autor: Emilie, que tinham o demônio Não há literatura sem memória. tatuado no corpo e uma língua
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de fogo” (HATOUM, 2008, suicidou-se em um rio. Antes de
p.10). Samara teve uma filha na sua morte, ele foi fotografado adolescência chamada Soraya na praça da cidade pelo alemão: Ângela, que nasceu surda-muda e “Dorner fotografou Emir no centro morreu no natal de 1954, vítima de do coreto da praça da Polícia. Foi um acidente em frente da própria a última foto de Emir, um pouco casa onde morava. antes de sua caminhada solitária Por causa da gravidez, Samara que terminaria no cais do porto foi rejeitada por toda a família, e no fundo do rio” (HATOUM, sobretudo, os irmãos: “Devia ter 2008, p. 67). O fotógrafo ressalta quinze ou dezesseis anos quando que Emir não era um imigrante ficou grávida: era uma menina como os demais. Ele não andava que brincava de boneca contigo, pela floresta em busca de animais trepava em árvores para colher selvagens, banhos de rio e frutas, e fazia estrepolias que experiências com moradores da animavam a casa. Nada disso região: permaneceu após o nascimento Emir não era como os outros imigrantes, não se embrenhava da filha” (HATOUM, 2008, p. 125). no interior enfrentando as Em uma de suas conversas com feras e padecendo as febres, Hakim, ela revela que o desprezo não se entregava ao vaivém incessante entre Manaus e a do pai também a deixava muito teia de rios, não havia nele a triste: “Nada me fere mais do que sanha e a determinação dos o silêncio dele” (HATOUM, 2008, p. que desembarcavam jovens e pobres para no fim de uma vida 136). atormentada ostentarem um Hakim deixa o Amazonas e império (HATOUM, 2008, p. 69). vai morar no sul do país. Ele era o O marido árabe de Emilie filho querido, o único que entendia chegou pela primeira vez na árabe: “(...) quando ríamos, Amazônia na busca de um tio era a vida mesma que parecia chamado Hanna, todavia ao interromper seu curso, porque desembarcar na região não o era um riso convulsivo, engrolado, encontrou mais vivo. As cartas quase nefasto” (HATOUM, 2008a, enviadas direto da Amazônia p. 117). pelo parente sustentam alguns Emir, irmão de Emilie, estereótipos5 narrados sobre Para Homi Bhabha (2013), o ato de 5
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a região amazônica brasileira, infelizes da vida de um homem
(HATOUM, 2008, p. 80-81). dos quais Hatoum tenta, em alguns momentos, se distanciar. Por intermédio de Hanna, Hanna narrava um lugar repleto Hatoum diz ao seu leitor que de aventuras e desafios, mas algumas representações locais são ao mesmo tempo de paisagem costumeiras, que sempre haverá exuberante: um estrangeiro se deslocando [As cartas] Relatavam epidemias para Amazônia em busca de devastadoras, crueldades povos primitivos, contato com a executadas com requinte por natureza, com os rios e os animais. homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tingidas Como afirma Roger Chartier, com as cores do crepúsculo, as representações “são sempre homens que degustavam a determinadas pelos interesses de carne de seus semelhantes como se saboreassem rabo de grupo que as forjam” (CHARTIER, carneiro, palácios com jardins 2002, p. 27). E, no caso da esplêndidos, dotados de paredes Amazônia brasileira, a narrativa inclinadas e rasgadas por janelas ogivais que apontavam para o sobre a região é elaborada, muitas poente, onde repousa a lua de vezes, pelo ‘outro’ e os seus ramadã. Relatavam também os interesses particulares. perigos que haviam enfrentado: rios de superfície tão vasta que Ao contrário do tio Hanna pareciam um espelho infinito; que narrava uma Amazônia a pele furta-cor de um certo réptil que o despertou com o seu exótica e perigosa, ocupada por brilho intenso quando cerrava uma população de ignorantes as pálpebras na hora sagrada e muitos animais selvagens, da sesta; e a ação de um veneno que os nativos não usavam o alemão e fotógrafo Dorner para fins belicosos, mas que “procurava contestar um senso ao penetrar na pele de alguém, comum bastante difundido aqui fazia-lhe adormecer, originando pesadelos terríveis, que eram no norte: o de que as pessoas são a soma dos momentos mais alheias a tudo, e que já nascem estereotipar não é estabelecimento de uma lerdas e tristes e passivas; seus falsa imagem que se torna o bode expiatório argumentos apoiavam-se na de práticas discriminatórias. É um texto muito sua vivência intensa na região” mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, (HATOUM, 2008, p.93). deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de O casamento da matriarca saberes ‘oficiais’ e fantasmagóricos.
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Emilie era marcado por diferenças para confeccionar santinhos
coloridos que seriam doados às culturais. Emilie não conhecia o órfãs internas do colégio Nossa interior do Amazonas, seu mundo Senhora Auxiliadora durante a era Manaus, ao contrário do primeira comunhão (HATOUM, 2008, p.49). marido que já navegara nos rios da Amazônia. “Emilie, ao contrário Contudo, a convivência foi de meu pai, de Dorner e dos tornando-se complicada porque nossos vizinhos, não tinha vivido Emilie não gostava do jejum que no interior do Amazonas. Ela, o marido fazia, escondia o Alcorão como eu, jamais atravessara o rio. e isso o irritava muito. Há uma Manaus era o seu mundo visível” passagem no livro em que ele (HATOUM, 2008, p. 102). tranca toda a casa em represália ao sumiço de seu livro de orações: Ela e o marido mulçumano “Só então soubemos que ela havia acordaram que a diferença de escondido o Livro e, que meu pai religião não seria problema: tinha vedado a casa para que o “Emilie e o marido praticavam espaço entrevado impedisse todo a religião com fervor. Antes do ser humano de enxergar algo casamento haviam feito um antes do reaparecimento do Livro” pacto para respeitar a religião (HATOUM, 2008, p. 54). do outro, cabendo aos filhos optarem por uma das duas ou A obra acentua os processos por nenhuma” (HATOUM, 2008, de hibridização cultural. Para p.77). O companheiro ignorou por Bhabha (2013), o hibridismo um tempo algumas práticas do cultural emerge em momentos de cristianismo da mulher, enquanto transformação histórica, caso do lia fervorosamente o Alcorão: deslocamento das personagens Ele encarava com naturalidade e árabes para a região amazônica. A compreensão o fervor religioso mistura das culturas está presente de Emilie. Tolerava as festas na decoração da casa onde cristãs, mas se alheava com um desdém perfeito das preces moravam, nas refeições feitas em elaboradas por Emilie, fazia vista família, nas misturas de idiomas, grossa às imagens e estátuas de nas religiões distintas do casal santos, e afastava-se do quartinho de costura onde as duas e em diversas outras situações. mulheres cortavam e picotavam No trecho a seguir, é possível retângulos de papel vegetal observar a diversidade cultural na
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decoração da casa: que Deus permitia abrir-lhes
Duas salas contíguas se isolavam as portas da casa para a ceia da do resto de casa. Além de manhã (HATOUM, 2008, p. 65). sombrias, estavam entulhadas Para a narradora, o alimento de móveis e poltronas, decoradas era algo tão importante na cultura com tapetes de Kasher e de Isfahan, elefantes indianos que dos pais que a mãe se sentia muito emitiam o brilho da porcelana feliz quando os filhos comiam polida, e baús orientais com em grandes quantidades: “para relevos de dragão nas cinco faces (HATOUM, 2008, p. 8). fazê-la feliz bastava que um filho As reuniões familiares eram devorasse quantidades imensas repletas de fartura gastronômica de alimentos, como se o conceito e alguns hábitos alimentícios de felicidades estivesse muito causavam estranhamento tanto na próximo ao ato de mastigar e filha adotiva quanto na empregada ingerir sem fim” (HATOUM, 2008, Anastácia Socorro, que não eram p. 100). árabes: A manutenção do idioma é No centro de um pátio iluminado outro aspecto cultural importante, pelo sol equatorial, homens e que funciona como uma estratégia mulheres repetiam o hábito gastronômico milenar de comer de ligação com as origens, por isso com as mãos o fígado cru de os encontros festivos com amigos carneiro. Não era a um ritual orientais eram marcados por bárbaro ou ao sacrifício de um animal que eu assistia do quarto conversas em árabe: dos pais, mas sim a uma novidade A conversa era exclusivamente assombrosa, a uma festa exótica em árabe, salvo os cumprimentos que tanto contrastava com o de algum transeunte conhecido, ritmo habitual da casa (HATOUM, ou a visita de um ou outro vizinho, 2008, p.64-65). alguns deles estrangeiros, como (...) Elogiavam-se os temperos, a família do poveiro Américo, os os doces de semolina com nozes Benemou, do Marrocos, e Gustav de mel, a compota de pétalas Dorner, o rapaz de Hamburgo; de rosa, que todos aspiravam todos amicíssimos de Emilie, e o demoradamente antes de último, além de amigo, tornou-se provar. Alguns, temendo não meu confidente (HATOUM, 2008, ser convidados para o jantar do p.65). sábado – quando seria preparado Alguns aspectos sobre a o pernil de carneiro assado com tâmaras – esperavam ansiosos cultura árabe, caso da língua, a o momento da despedida, para gastronomia, entre outros, assim que meu pai citasse a frase em como os conflitos humanos das
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personagens e o desenvolvimento/ Os dois rapazes apresentam
derrocada da cidade de Manaus um relacionamento conflituoso também vão ser percebidos na desde a infância e se desentendem obra Dois irmãos. violentamente na adolescência Os conflitos em Dois irmãos por causa do amor da jovem Lívia. A obra Dois irmãos também Em uma sessão de cinematógrafo apresenta os dramas de uma na casa dos vizinhos, Omar agride família árabe que vive na cidade Yaqub fisicamente, quebrando de Manaus. Assim como em uma garrafa no rosto dele e Relato de um certo oriente, o autor deixando-o marcado para sempre Milton Hatoum desfaz e refaz com uma cicatriz: “Depois, o alguns estereótipos, imaginários barulho de cadeiras atiradas no e representações, porém, coloca chão e o estouro de uma garrafa em segundo plano a ideia de que estilhaçada, e a estocada certeira, a região amazônica é meramente rápida e furiosa do Caçula. O exótica. O autor assume uma silêncio durou uns segundos. E postura descolonizadora, então o grito de pânico de Lívia ao narrando uma história que começa olhar o rosto rasgado de Yaqub” no início do século XX, passando (HATOUM, 2000, p. 28). por dois ciclos econômicos da Logo após esse episódio, o borracha na Amazônia, por duas filho agredido é enviado contra guerras mundiais, chegando até o sua vontade para uma aldeia Golpe de 1964 no Brasil. remota no Líbano, terra dos pais, A obra relata a história de para morar com alguns amigos da uma família árabe composta pelo família. Em vários momentos na casal Zana e Halim, a filha Rânia, e obra, ele deixa bem claro o quanto os gêmeos Omar (Caçula) e Yaqub: essa experiência foi ruim: “ele me “ela, Zana, mandava e desmandava disse que nunca ia se esquecer do na casa, na empregada, nos filhos. dia em que saiu de Manaus e foi Ele [Halim], paciência só, um Jó para o Líbano. Tinha sido horrível. apaixonado e ardente, aceitava, ‘Fui obrigado a me separar de engolia cobras e lagartos, sempre todos, de tudo... não queria’” fazendo as vontades dela (...)” (HATOUM, 2000, p.115-116). (HATOUM, 2000, p. 54). Yaqub retorna a Manaus cinco
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anos depois e tem dificuldades água gelada, e lá ia Domingas
com a bilha: derramava-lhe na de se adaptar tanto com a língua boca aberta o líquido que ele portuguesa quanto com o irmão. primeiro bochechava e depois Contudo, permanece por pouco sorvia como uma onça sedenta (HATOUM, 2000, p. 33). tempo na casa dos pais, pois se torna um bom aluno e recebe Ao longo da narrativa, o incentivo para ir embora da cidade. Caçula pratica uma série de ações Com o apoio do professor Bolislau, ilegais: desaparece algumas vezes, ele pede à família para estudar em foge para os Estados Unidos com o São Paulo e é atendido. Sua partida passaporte e o dinheiro roubados acontece em 1950. “Inflexível foi do irmão, estupra a empregada o próprio Yaqub, que enfrentou Domingas e a engravida, torna- a resistência da mãe quando se contrabandista, entre tantas informou, no Natal de 1949, que outras coisas. Na maior parte das ia embora de Manaus” (HATOUM, vezes, ele recebe o apoio de Zana. 2000, p. 38). O único momento da obra em que a mãe repreende o filho é após Omar, filho preferido de Zana, a morte de Halim, quando ele não gosta de estudar e de trabalhar, começa a brigar com o corpo do vive constantemente em confusão. pai já morto. Prefere passar o seu tempo com bebidas e mulheres, gastando o A Domingas é de origem dinheiro da família: indígena e tem um filho: “uma Omar mal percebia o vulto beleza de cunhatã, cresceu nos arqueado sob o alpendre. Ia fundos da casa, onde havia dois direto ao banheiro, provocava quartos, separados por árvores e em golfadas a bebedeira da noite, cambaleava ao tentar palmeiras” (HATOUM, 2000, p. 64). subir a escada; às vezes caía, Seu sonho era a liberdade: “meio inteiro, o corpanzil suado, escrava, meio ama, ‘louca para esquecido da alquimia da noite. Então ela saía da rede, arrastava ser livre’, como ela me disse certa o corpo do filho até o alpendre vez, cansada, derrotada, entregue e acordava Domingas: as duas ao feitiço da família” (HATOUM, o desnudavam, passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam 2000, p. 67). O filho Nael é o na rede. Omar dormia até meio- narrador da história. Ele é fruto do dia. O rosto inchado, engelhado estupro praticado por Omar: “Uma pela ressaca, rosnava pedindo noite ele entrou no meu quarto,
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fazendo aquela algazarra, bêbado, tanto do irmão quanto da mãe.
abrutalhado... Ele me agarrou com Zana vai morar com o Rânia em força de homem. Nunca me pediu outra residência até sua morte. perdão” (HATOUM, 2000, p. 241). Nael permanece em uma parte do Apesar do conhecimento de toda terreno da casa da família que lhe a família sobre a violência sofrida, foi dado e torna-se professor do ele não foi questionado e nem Liceu, escola onde estudou. Como punido quanto às suas ações. segunda parte da sua vingança, Yaqub se casa com Lívia em São Yaqub denuncia o irmão por uma Paulo, Omar tem alguns amores agressão física, por isso ele vai conflituosos (Dália e Pau-Mulato), preso e condenado a dois anos e que não são incentivados pela mãe sete meses de reclusão. ciumenta. Halim não concorda Enquanto os problemas com as atitudes do filho Omar, mas familiares se desenvolviam, se orgulha do profissional que se Manaus era uma “mistura de tornou Yaqub na cidade grande. gente, de línguas, de origens, trajes Rânia prefere a vida de solteira e e aparências” (HATOUM, 2000, o trabalho no comércio da família. p. 53). Às vezes movimentada, Em pouco tempo, Rânia outras vezes, um marasmo. Ora começou a vender, comprar e em desenvolvimento ora em trocar mercadorias. Conheceu os regatões mais poderosos declínio. A década de 1950 foi e, sem sair de Manaus, sem de penúria em Manaus, a vida só mesmo sair da rua dos Barés, melhorara após a década de 1960 soube quem vendia roupa aos povoados mais distantes. Fez com o processo de integração um acordo com esses regatões, da Amazônia ao restante do que no início a desprezaram; país que trouxe investimentos e depois, acreditaram ou fingiram acreditar que Halim se escondia trabalhadores: “Manaus está cheia por trás da negociante astuta de estrangeiros, mama. Indianos, (HATOUM, 2000, p. 95). coreanos, chineses... O centro Após a morte de Halim e virou um formigueiro de gente do Domingas, Rânia entrega o sobrado interior... Tudo está mudando em da família como pagamento de Manaus” (HATOUM, 2000, p. 223). uma dívida de Omar. O negócio A Amazônia urbana de Hatoum de entrega da casa foi feito por Segundo Francisco Foot Yaqub, como forma de se vingar
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Hardman (2009), a Amazônia é morador da cidade de Manaus,
uma construção discursiva e sua o escritor busca atribuir novos representatividade é constituída sentidos à Amazônia que ele a partir de um imaginário. Nesse conhece e dá destaque para a sentido, a região está eivada de parte urbana. As percepções lugares-comuns, relatos e ficções, sociais da narrativa dele não são que validam seu topos geográfico neutras. Ele faz escolhas que como espaço de homogeneização. diferem dos demais autores da Ainda de acordo com o pesquisador, região com o intuito de produzir isso acontece nos locais onde a novas representações, pois elas “história ainda não conseguiu fixar “produzem estratégias e práticas marcas simbolicamente eficazes, (sociais, escolares, políticas) que os cenários são descritos como tendem a impor uma autoridade de geografias selvagens, natureza à custa de outros [discursos], por bruta, populações errantes e elas menosprezadas” (CHARTIER, dispersas” (HARDMAN, 2001, p. 2002, p. 17). 297). Ele traz para sua obra o Por isso, é relevante estudar universo dos migrantes árabes, essas obras de Hatoum que não que vivem, se vingam, brigam, homogeneízam por completo a trabalham, adoecem, se relacionam vida na região amazônica, dando com os autóctones. Enquanto isso, espaço para os saberes e dizeres os espaços cidade-floresta também dos diferentes povos que nela estão constituídos em suas habitam. A paisagem natural está obras, mas não se sobrepõem aos presente na obra hatouniana, conflitos das personagens. Assim porém, as disputas, os relatos da como Hatoum, as personagens memória, os dramas familiares são também são urbanas. Em Relato, intensos e norteiam o andamento a narradora do livro, por exemplo, do enredo. é uma moradora da cidade e não Hatoum se afasta de algumas tem relação de afinidade com a representações que afirmam que selva: os moradores da região amazônica Lembro também de suas exaustivas incursões à floresta, brasileira estão intrinsecamente onde ele [Dorner] permanecia relacionados à floresta. Como semanas e meses, e ao retornar
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afirmava ser Manaus uma as urbes amazônicas. Essa
perversão urbana. ‘A cidade decadência está na passagem a e a floresta são dois cenários, duas mentiras separadas pelo seguir de Dois irmãos (2000): rio’, dizia. Para mim, que nasci e “O filho falou da viagem e o pai cresci aqui, a natureza sempre lamentou a penúria em Manaus, a impenetrável e hostil. Tentava compensar essa impotência penúria e a fome durante os anos diante dela contemplando-a de guerra” (HATOUM, 2000, p. 14). horas a fio, esperando que o olhar decifrasse enigmas, ou que, sem Nessa obra, o arcaico transpor a muralha verde, ela também aparece como parte da se mostrasse mais indulgente, decadência e é representado pelo como uma miragem perpétua e inalcançável. Mais do que o rio, comércio de Halim na época em uma impossibilidade que vinha que vendia quinquilharias, mas de não sei onde detinha-me ao quando Rânia assume os negócios pensar na travessia, na outra margem. Dorner relutava em da família, o comércio passou aceitar meu temor à floresta, a vender produtos importados e observava que o morador de que simbolizavam o moderno, o Manaus sem vínculo com o rio e com a floresta é um hóspede de avanço pelo qual todos passavam uma prisão singular: aberta, mas coletivamente na cidade. unicamente para ela mesma. Rânia dirigiu a reforma da loja. ‘Sair desta cidade’, dizia Dorner, (...) Mandava e desmandava, ‘significa sair de um espaço, cuidava do caixa, do estoque e das mas sobretudo de um tempo’ dívidas dos caloteiros. Acabou (HATOUM, 2008, p. 93). de vez com a venda a fiado, ‘uma As duas obras estudadas filantropia que não combina com revelam aspectos da decadência o comércio’. Publicou anúncios nos jornais e nas estações econômica e social de Manaus, de rádio, mandou imprimir ao mesmo tempo em que folhetos de propaganda. Fez discorrem sobre o conflito entre uma promoção de mercadorias e torrou o encalhe, as coisas desenvolvimento e modernidade. velhas, de um outro tempo. Mais uma vez, rompe-se com Ela acreditava na moda, e as narrativas literárias que reverenciou a moda do momento (HATOUM, 2000, p. 130). costumeiramente apresentam Nestor Canclini (2006) afirma as ruínas dos seringais e dos que a América Latina, obviamente seringueiros pós-ciclos da incluindo a Amazônia, teve um borracha, desconsiderando as modernismo exuberante com problemáticas que atingem
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uma modernização deficiente, obrigados a viver ao longo do
uma vez que a colonização tempo. Na passagem que se segue, se deu por nações europeias a narradora, recém-chegada nessa também deficientes. As ondas de Manaus em transição, estranha modernização no final do século encontrar alguns prédios intactos, XIX e início do XX, observadas assim como estranha a sujeira e o na descrição da cidade de descuido de tantos outros lugares Manaus, são impulsionadas pelos da cidade: intelectuais europeizados, pela A vazante havia afastado o porto do atracadouro, e a distância contribuição de migrantes, entre vencida pelo mero caminhar outros aspectos (MENDES, 2013). revelava a imagem do horror de Porém, no decorrer do século uma cidade que hoje desconheço: uma praia de imundícies, de XX, os investimentos na região restos de miséria humana, além não são suficientes para levar do odor fétido de purulência viva estabilidade para a população, exalando da terra, do lodo, das entranhas das pedras vermelhas observa-se isso nos dois ciclos e do interior das embarcações. da borracha, no processo de Caminhava sobre um mar integração Amazônia-Brasil pós de dejetos, onde havia tudo: casa de frutas, latas, garrafas, 1950 (a operação movimentou carcaças apodrecidas de canoas, grande quantidade de recursos e esqueletos de animais. Os para o projeto de desenvolvimento urubus, aos montes buscavam com avidez as ossadas que da região amazônica. Era preciso apareceram durante a vazante, investir na região porque ela era entre objetos carcomidos que vista como fonte de recursos foram enterrados há meses, há séculos (HATOUM, 2008, p. 141). naturais que despertava interesse internacional, logo poderia trazer A obra enfatiza a precariedade benefícios financeiros para o urbana após os dois ciclos da Brasil) até no suposto progresso borracha e o quanto era difícil para que chega com o Golpe de 1964. as pessoas que se deslocavam do interior para a cidade se adaptar a Relato faz referências à vida uma nova moradia às margens dos portuária de Manaus, aos negócios rios e em condições adversas: que surgiam e desapareciam na Dali podíamos ver os barrancos cidade, as mudanças econômicas dos Educandos, o imenso que os moradores da cidade foram igarapé que separa o bairro anfíbio do centro de Manaus. Era
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a hora do alvoroço. O labirinto os investimentos econômicos do
de casas erguidas sobre troncos período, mas também a violência fervilhava: um enxame de canoas navegava ao redor das e o medo sentido pelos moradores casas flutuantes, os moradores de Manaus por causa da presença chegavam no trabalho, dos militares: caminhavam em fila sobre as tábuas estreitas, que formam Ele sabia que Manaus se tornara uma teia de circulação. Os mais uma cidade ocupada. As escolas ousados carregavam um botijão, e os cinemas tinham sido uma criança, sacos de farinha; se fechados, lanchas da Marinha não fossem equilibristas, cairiam patrulhavam a baía do Negro, e no Negro. Um ou outro sumia na as estações de rádio transmitiam escuridão do rio e virava notícia comunicados do Comando (HATOUM, 2000, p. 120). Militar da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja porque a Em contrapartida, Dois irmãos greve dos portuários terminara se estende até a década de 1960, num confronto com a polícia do portanto é possível observar Exército. Halim me aconselhou a não mencionar o nome de também o avanço econômico Laval fora de casa. Outros nomes que chega com os investimentos foram emudecidos. A tarja preta durante a ditadura militar: que cobria uma parte da fachada do liceu fora arrancada e as “ouvira dizer que Manaus crescia portas do prédio permaneceram muito, com suas indústrias e seu trancadas por várias semanas comércio. Viu a cidade agitada, os (HATOUM, 2000, p. 198). painéis luminosos com letreiros Durante muito tempo em inglês, chinês e japonês” prevaleceu nos discursos literários (HATOUM, 2000, p. 226). um constante apagamento e/ou estranhamento de alguns fatos Grande parte das obras de históricos, caso da Ditadura, assim expressão amazônica se passa como permaneceu um apagamento durante os dois primeiros ciclos das populações amazônicas da borracha (final dó século (caboclos, indígenas) e um enfoque XIX e início do XX), por isso restrito aos aspectos ecológicos. não é comum a discussão sobre E sabe-se que a manutenção os efeitos da Ditadura Militar desse desaparecimento impede (1964-1985) na literatura sobre a visibilidade e a compreensão a região. Milton Hatoum rompe das trocas culturais existentes com mais esse estigma e usa seus na região. Por isso, a necessidade personagens para narrar não só
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de reconstruir e reinterpretar trabalham com o comércio; as
narrativas e representações mães não têm trabalho formal, corrigindo o apagamento mas são constituídas de poder dos povos e observando as simbólico, pois cuidam das casas, diversidades culturais e sociais da educação dos filhos e guardam existentes no norte do Brasil. os segredos de família. Nas duas obras analisadas, a Apesar da tentativa de natureza é deslocada do primeiro inclusão das minorias amazônicas plano e surge em menor proporção. na literatura hatouniana, Observam-se, prioritariamente, as destaca-se que os indígenas e composições humanas: a busca todos os seus aspectos culturais das identidades dos narradores permanecem parcialmente – Nael e a filha de Emilie – as silenciados nas duas obras. As paixões de Zana, Halim, Emilie, as mulheres indígenas aparecem violências sofridas por Domingas nas narrativas de Hatoum, e Anastácia, as vinganças de Omar frequentam a área urbana, têm e Yaqub, os desencantos com a trabalho informal, mas ainda são vida de Rânia. narradas de forma marginalizada. A ação de inclusão dos Mesmo na cidade, elas continuam migrantes pelo autor Milton sendo discriminadas, vítimas de Hatoum não é isolada na literatura, violência física: mas traz à tona os povos que (...) eles [os filhos dos donos da casa] nunca suportaram de bom contribuíram com a formação grado que uma índia [Anastácia] social, econômica, política e passasse a comer na mesa da histórica da região amazônica. sala, usando os mesmos talheres e pratos, e comprimindo com os Tanto em Relato quanto em lábios o mesmo cristal dos copos Dois irmãos, quebram-se alguns e a mesma porcelana das xícaras estereótipos e reducionismos de café (HATOUM, 2008, p.109).
porque se rompe com o fio do Isso é demonstração de que
discurso tradicional a respeito ainda há, portanto, barreiras que da Amazônia, mas conservam- precisam ser ultrapassadas no se tantas outras representações, que se refere ao conhecimento caso do imaginário a respeito e à valorização das diversas dos povos árabes: os patriarcas populações que habitam o norte
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do Brasil. No caso das mulheres entre ele e o boto: “Esse gêmeo
indígenas em Hatoum, elas tem olhão de boto; se deixar, ele precisam expressar seus valores, leva todo mundo para o fundo desejos, opiniões e culturas, do rio” (HATOUM, 2000, p. 30). O devendo escolher onde e como comentário da indígena sustenta a querem viver. Não podem só ideia de que os mitos e as lendas absorver o modo de vida dos estão continuamente entrelaçados patrões, os hábitos, a religião, a ao imaginário dos sujeitos locais, gastronomia. mesmo os urbanizados. A Amazônia de Hatoum é Considerações finais plural, híbrida, multifacetada, Diante do exposto, não se mas ainda apresenta lacunas no pode pensar a região amazônica que se refere à desconstrução de de forma linear, suprimindo-se os alguns sentidos sobre a região. A tempos diferenciados da floresta Manaus do autor ainda aparece e o da cidade, bem como da como espaço de mitos e lendas, gente que ali vive. Durante longo remetendo à literatura que período (século XX), a literatura comumente relaciona moradores mais conservadora acompanhada da floresta com histórias do realismo naturalista tentou encantadas. O boto, por exemplo, ‘apagar’ as diferenças de espaço faz parte da vida dos caboclos da de convivência, perdendo-se Amazônia brasileira, assim como parte importante dos processos dos migrantes que na região que compõem a formação social, vivem. São muitas as histórias política e econômica da Amazônia. que alimentam o imaginário da Contudo, autores como população local, desde o animal Milton Hatoum caminham em que cativa os humanos, a cidade direção contrária aos que veem a encantada no fundo do rio e/ou a Amazônia como terra uniforme, presença da cobra grande. observando as multiplicidades Em Dois irmãos, Domingas e divergências de seus povos. afirma que Yaqub era Relato de um certo oriente e Dois frequentemente alvo de olhares irmãos mostram que não há nada femininos, era um conquistador, de definitivo na Amazônia, a vida por isso ela faz uma comparação está em construção, é conflituosa,
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mutável e segue fluida. a literatura moderna. São Paulo:
Editora UNESP, 2009. Ambas as narrativas podem HATOUM, M. Dois irmãos. São Paulo: contribuir com os fios que tecem Companhia das letras, 2000. as narrativas amazônicas. A HATOUM, M. Relato de um certo literatura de Hatoum é de caráter oriente. São Paulo: Companhia das crítico e questionador, pois a letras, 2008. HATOUM, M. A cidade ilhada: contos. função da obra literária é ser São Paulo: Companhia das letras, território de contestação. Ela 2009. deve ser sempre espaço para o MENDES, F. M. M. Identidades exercício da inquietação, criando híbridas: o lugar das personagens discursos desestabilizadores em ficcionais na obra Coronel de Barranco. 2008. Dissertação (Mestrado em vez de apenas repetir o passado Letras: Linguagem e Identidade) – com a disseminação de conceitos Universidade Federal do Acre – UFAC, previamente dados. Rio Branco, 2008. Disponível em Referências https://goo.gl/RHkmco. Acesso em BHABHA, H. K. O local da cultura. 14 jan. 2017. Tradução de Myriam Ávila, Eliana MENDES, F. M. M; QUEIRÓS, F. A. T.. Lourenço, Gláucia Renate. Belo Do inferno ao paraíso: narrativas Horizonte: Ed. UFMG, 2013. sobre a Amazônia brasileira. Revista CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: Igarapé. 2014. Disponível em: estratégias para entrar e sair da https://goo.gl/6oFDgz. Acesso em: modernidade. 3ªed, São Paulo: USP, 14 jan. 2017. 2006. SILVA, J. da. Panorama da produção CHARTIER, R. A história cultural: literária de Milton Hatoum e de sua entre práticas e representações. recepção, em homenagem aos vinte Tradução Maria Manuela Galhardo. anos de Relato de um certo oriente. Algés, Portugal: Difel, 2002. Somanlu. ano 10, n.1, jan/jun, GURGEL, L. H. Não há literatura sem 2010. Disponível em: https://goo. memória. Revista Na ponta do gl/31vaAs. Acesso em 15. Jan. 2017. lápis. Ano IV, nº 8. AGWM Editora e produções editoriais, junho/2008. Disponível em: https://goo.gl/ R4dUxx. Acesso em 15 jan. 2017. HARDMAN, F. F. Antigos modernistas. In: A brasilidade modernista. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. HARDMAN, F. F. A invenção da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e
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