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A AMAZÔNIA BRASILEIRA EM MILTON HATOUM: UMA

LEITURA DE RELATO DE UM CERTO ORIENTE E DOIS IRMÃOS


Francisco Aquinei Timóteo Queirós1
Francielle Maria Modesto Mendes2
RESUMO
O estudo centra-se na análise dos romances Relato de um certo oriente (1989) e
Dois irmãos (2000), do escritor manauense Milton Hatoum. Constata-se nas obras, a
subversão da paisagem que marca as narrativas sobre a Amazônia brasileira. O olhar
hatouniano desloca-se dos cenários de uma “floresta amedrontadora” e do mote
reiterado dos ciclos da borracha para ancorar-se na paisagem da cidade – com seus
movimentos e problemáticas – tendo como fio condutor os sujeitos migrantes. Nas duas
obras, o autor promove a abertura do romance amazônico para temáticas que envolvem
as disputas, a memória, os dramas familiares e a prevalência de uma narrativa urbana.
O artigo apoia-se nas reflexões de Homi Bhabha (2013), Roger Chartier (2002), entre
outros.
PALAVRAS-CHAVE
Milton Hatoum. Relato de um certo oriente. Dois irmãos. Narrativa.

THE BRAZILIAN AMAZON OF MILTON HATOUM: A READING


OF RELATO DE UM CERTO ORIENTE (THE TREE OF THE
SEVENTH HEAVEN) AND DOIS IRMÃOS (THE BROTHERS)
ABSTRACT
This study focuses on the analysis of the novels Relato de um certo oriente (1989) and
Dois irmãos (2000), by the Amazonian writer Milton Hatoum. In the works, we observe
the subversion of the landscape that marks the narratives about the Brazilian Amazon.
Hatoum’s gaze displaces itself from the scenarios of a “frightening forest” and the
reiterated motto of the rubber cycles to relocate in the landscape of the city - with its
movements and problems - using migrant subjects as its guiding thread. In both works,
the author promotes the opening of the Amazonian novel to topics that involve disputes,
memory, family dramas and are prevalently set in urban narratives. The article is based on
the reflections of Homi Bhabha (2013), Roger Chartier (2002) and others.
KEYWORDS
Milton Hatoum. Relato de um certo oriente. Dois irmãos. Narrative.
1
  Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade
Federal do Acre (2013) e professor efetivo dessa mesma Instituição Federal de Ensino, com
atuação no Curso de Comunicação Social/Jornalismo.
2
  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (2013), Mestre em Letras:
Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (2008) e professora efetiva dessa
mesma Instituição Federal de Ensino, com atuação no Curso de Comunicação Social/Jornalismo e
no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade.

3 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


ARTIGO

Eu sempre começo meus enfrentam dramas familiares e


romances pelo fim.
problemas psicológicos intensos,
Eu preciso saber aonde eu vou
chegar. que se sobrepõem aos problemas
Se eu souber aonde vou chegar, o de relacionamento com o meio
resto que é quase tudo,
natural. Diante disso, o conflito ser
que é tudo, é a travessia
(Milton Hatoum3). humano/natureza, tão comum na
Introdução literatura que tem como cenário a
O presente estudo discute de Amazônia, não é o norte nas obras
que forma a Amazônia é narrada aqui estudadas.
em duas obras de Milton Hatoum: As obras citadas no primeiro
Relato de um certo oriente (1989) parágrafo deste texto são
e Dois irmãos (2000). O autor é marcadas por personagens que,
amazonense, nasceu em Manaus em sua maioria, são seringueiros
no ano de 1952. Além desses dois ou seringalistas. Habitam uma
romances, publicou os romances floresta que é rica em fauna e
Cinzas do Norte (2005) e Órfãos flora, mas, por vezes, é tida como
do Eldorado (2008). Ensinou amedrontadora. Nesses textos, os
literatura na Universidade do espaços da cidade são suprimidos
Amazonas e na Universidade da ou narrados somente no contexto
Califórnia, em Berkeley. dos dois ciclos econômicos da
As obras aqui estudadas se borracha.
diferenciam de outras que têm a Essas literaturas concentram-
Amazônia como cenário, caso de se na manutenção de algumas
A Selva, Ferreira de Castro; Terra representações e imaginários
Caída, José Potyguara; Seringal, sobre a Amazônia brasileira.
Miguel Jerônimo Ferrante; Coronel Sabe-se que desde a chegada dos
de Barranco, Cláudio de Araújo primeiros europeus à região,
Lima. A diferença se dá porque as nos séculos XVI e XVII, o lugar
histórias hatounianas são urbanas, é observado pela dicotomia
se passam predominantemente inferno verde/paraíso tropical e
em Manaus. As personagens as populações são identificadas
como exóticas e pitorescas. Essas
3
  Frase dita pelo autor no programa Globo
News Literatura sobre a estreia da minissérie abordagens fazem com que o
Dois irmãos, na TV Globo, em 7 de janeiro de discurso construído ao longo
2017.

4 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


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dos tempos seja de população O autor não nega as


homogênea e estereotipada imbricações cidade/floresta,
(MENDES; QUEIRÓS, 2014). apenas observa a região e sua gente
Para Homi Bhabha, o conceito sem os antolhos da hostilidade,
de cultura homogênea está “em analisando as multiplicidades e
profundo processo de redefinição” os entrecruzamentos culturais, os
(2013, p. 25). Diante disso, o conflitos internos, as buscas de
Hatoum se afasta dessa visão identidades e as transformações
tradicional que diz ser a Amazônia por quais passam suas
brasileira um local distante, personagens e a própria cidade de
isolado, primitivo, onde a floresta Manaus.
devoradora é protagonista, se Relato de um certo oriente: o
sobrepondo aos problemas enredo
humanos. Em Relato de um certo oriente,
os dramas de uma família árabe
Em entrevista dada a Luiz
e os problemas psicológicos das
Enrique Gurgel, na revista Na ponta
personagens estão no centro da
do lápis, em 2008, o autor assume
narrativa. A obra é narrada pela
sua identificação com Manaus, e
filha adotiva de Emilie4, que é a
diz que a cidade tem ligações com
personagem central da história.
a floresta, mas, mesmo assim, ele
A filha organiza relatos de Hakim
não se sente filho dessa selva:
O lugar da minha ficção é o (o filho preferido), Dorner (o
Amazonas. Muitas vezes as fotógrafo alemão amigo da
pessoas não entendem isso. família), o marido de Emilie e
A minha Amazonas é uma
Amazonas metropolitana, 4
  A personagem Emilie reaparece na obra
urbana. Eu não sou filho da Dois irmãos como amiga de Zana: “‘Não quer
floresta, a floresta não é o meu ver mais ninguém’, dizia Zana quando batiam
habitat. A minha literatura é a porta. Só com uma visita ela foi paciente:
urbana, mas com muitos vínculos a velha matriarca Emilie, que raramente
com a floresta, o rio. Eu acho que passava em casa. Quando aparecia, Emilie
ouvia tudo, todos os lamentos, e depois falava
o lugar da literatura é o lugar
em árabe, a voz alta, mas tranquila, sem
da infância. Onde eu vou, levo alarde” (HATOUM, 2000, p. 250). E reaparece
Manaus comigo. Mas não uma no conto “A natureza ri da cultura”, publicado
Manaus qualquer. É a Manaus na obra A cidade ilhada: “Ainda me lembro da
do começo dos anos 1960, fim voz de Emilie, a matriarca. Na minha infância,
dos anos 1950 (HATOUM apud eu a escutava cantar e rezar, não em árabe, sua
GURGEL, 2008, online).  língua materna, mas em francês, sua língua
adotada” (HATOUM, 2009, p. 95).

5 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


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Hindié Conceição, a amiga íntima A pátria de todo escritor é a


infância. Eu acho que o momento
da matriarca.
da infância e da juventude é
A narradora inominada sofre privilegiado para quem quer
de transtornos psicológicos, escrever. É onde a memória
sedimenta coisas importantes:
por isso esteve em uma clínica as grandes felicidades, os
de repouso em São Paulo. Após traumas, as alegrias e também
quase vinte anos, retorna a as decepções. Certamente não
estou falando da lembrança
Manaus: “à casa de sua infância pontual e nítida. O que me
na tentativa de reconstruir, por interessa é a memória desfocada,
meio das lembranças e vãos do a memória não lembrada. Isso é
bom para a literatura porque
esquecimento um mundo perdido aí é que se instala o espaço da
e uma casa desfeita” (SILVA, 2010, invenção. Alguma coisa que você
p. 109). Ela chega em busca do lembra, mas sem nitidez porque
é isso que traz o espaço fluido,
passado, da sua identidade e de nebuloso e incerto daquilo que
algumas respostas que podem se vai narrar. Quer dizer, eu não
indicar a origem de seus traumas sei exatamente o que aconteceu,
mas sei que alguma coisa
e o porquê de ocupar uma posição aconteceu no passado e é sobre
na margem de sua família. Como isso que quero escrever. É como
afirma Homi Bhabha, “a identidade se uma frase dessa lembrança
meio esfumada pudesse
é reivindicada a partir de uma produzir mais 300 frases. Uma
posição de marginalidade ou em coisa puxa a outra. Então, você
uma tentativa de ganhar o centro” não faz esforço para se lembrar.
Como dizia Clarice Lispector: “É
(2013, p. 284). você se lembrar de coisas que
A partir dos relatos dos nunca aconteceram”. Esse é o
movimento que te leva à escrita:
familiares e amigos, a narradora, lembrar de coisas que poderiam
filha adotiva, organiza algumas ter acontecido (HATOUM apud
histórias vividas por sua família. GURGEL, 2008). 
Por intermédio dos recursos Emilie tinha quatro filhos,
da memória, ela tece os fios além da narradora e de seu
da narrativa. Esse aspecto irmão que vive em Barcelona:
memorialístico das obras de Hakim e Samara Délia, e os “dois,
Hatoum é justificado pelo próprio inomináveis, filhos ferozes de
autor: Emilie, que tinham o demônio
Não há literatura sem memória. tatuado no corpo e uma língua

6 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


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de fogo” (HATOUM, 2008, suicidou-se em um rio. Antes de


p.10). Samara teve uma filha na sua morte, ele foi fotografado
adolescência chamada Soraya na praça da cidade pelo alemão:
Ângela, que nasceu surda-muda e “Dorner fotografou Emir no centro
morreu no natal de 1954, vítima de do coreto da praça da Polícia. Foi
um acidente em frente da própria a última foto de Emir, um pouco
casa onde morava. antes de sua caminhada solitária
Por causa da gravidez, Samara que terminaria no cais do porto
foi rejeitada por toda a família, e no fundo do rio” (HATOUM,
sobretudo, os irmãos: “Devia ter 2008, p. 67). O fotógrafo ressalta
quinze ou dezesseis anos quando que Emir não era um imigrante
ficou grávida: era uma menina como os demais. Ele não andava
que brincava de boneca contigo, pela floresta em busca de animais
trepava em árvores para colher selvagens, banhos de rio e
frutas, e fazia estrepolias que experiências com moradores da
animavam a casa. Nada disso região:
permaneceu após o nascimento Emir não era como os outros
imigrantes, não se embrenhava
da filha” (HATOUM, 2008, p. 125). no interior enfrentando as
Em uma de suas conversas com feras e padecendo as febres,
Hakim, ela revela que o desprezo não se entregava ao vaivém
incessante entre Manaus e a
do pai também a deixava muito teia de rios, não havia nele a
triste: “Nada me fere mais do que sanha e a determinação dos
o silêncio dele” (HATOUM, 2008, p. que desembarcavam jovens e
pobres para no fim de uma vida
136). atormentada ostentarem um
Hakim deixa o Amazonas e império (HATOUM, 2008, p. 69).
vai morar no sul do país. Ele era o O marido árabe de Emilie
filho querido, o único que entendia chegou pela primeira vez na
árabe: “(...) quando ríamos, Amazônia na busca de um tio
era a vida mesma que parecia chamado Hanna, todavia ao
interromper seu curso, porque desembarcar na região não o
era um riso convulsivo, engrolado, encontrou mais vivo. As cartas
quase nefasto” (HATOUM, 2008a, enviadas direto da Amazônia
p. 117). pelo parente sustentam alguns
Emir, irmão de Emilie, estereótipos5 narrados sobre
  Para Homi Bhabha (2013), o ato de
5

7 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


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a região amazônica brasileira, infelizes da vida de um homem


(HATOUM, 2008, p. 80-81).
dos quais Hatoum tenta, em
alguns momentos, se distanciar. Por intermédio de Hanna,
Hanna narrava um lugar repleto Hatoum diz ao seu leitor que
de aventuras e desafios, mas algumas representações locais são
ao mesmo tempo de paisagem costumeiras, que sempre haverá
exuberante: um estrangeiro se deslocando
[As cartas] Relatavam epidemias para Amazônia em busca de
devastadoras, crueldades povos primitivos, contato com a
executadas com requinte por natureza, com os rios e os animais.
homens que veneravam a lua,
inúmeras batalhas tingidas Como afirma Roger Chartier,
com as cores do crepúsculo, as representações “são sempre
homens que degustavam a determinadas pelos interesses de
carne de seus semelhantes
como se saboreassem rabo de grupo que as forjam” (CHARTIER,
carneiro, palácios com jardins 2002, p. 27). E, no caso da
esplêndidos, dotados de paredes Amazônia brasileira, a narrativa
inclinadas e rasgadas por janelas
ogivais que apontavam para o sobre a região é elaborada, muitas
poente, onde repousa a lua de vezes, pelo ‘outro’ e os seus
ramadã. Relatavam também os interesses particulares.
perigos que haviam enfrentado:
rios de superfície tão vasta que Ao contrário do tio Hanna
pareciam um espelho infinito; que narrava uma Amazônia
a pele furta-cor de um certo
réptil que o despertou com o seu
exótica e perigosa, ocupada por
brilho intenso quando cerrava uma população de ignorantes
as pálpebras na hora sagrada e muitos animais selvagens,
da sesta; e a ação de um veneno
que os nativos não usavam
o alemão e fotógrafo Dorner
para fins belicosos, mas que “procurava contestar um senso
ao penetrar na pele de alguém, comum bastante difundido aqui
fazia-lhe adormecer, originando
pesadelos terríveis, que eram
no norte: o de que as pessoas são
a soma dos momentos mais alheias a tudo, e que já nascem
estereotipar não é estabelecimento de uma
lerdas e tristes e passivas; seus
falsa imagem que se torna o bode expiatório argumentos apoiavam-se na
de práticas discriminatórias. É um texto muito
sua vivência intensa na região”
mais ambivalente de projeção e introjeção,
estratégias metafóricas e metonímicas, (HATOUM, 2008, p.93).
deslocamento, sobredeterminação, culpa,
agressividade, o mascaramento e cisão de O casamento da matriarca
saberes ‘oficiais’ e fantasmagóricos.

8 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.


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Emilie era marcado por diferenças para confeccionar santinhos


coloridos que seriam doados às
culturais. Emilie não conhecia o
órfãs internas do colégio Nossa
interior do Amazonas, seu mundo Senhora Auxiliadora durante a
era Manaus, ao contrário do primeira comunhão (HATOUM,
2008, p.49).
marido que já navegara nos rios
da Amazônia. “Emilie, ao contrário Contudo, a convivência foi
de meu pai, de Dorner e dos tornando-se complicada porque
nossos vizinhos, não tinha vivido Emilie não gostava do jejum que
no interior do Amazonas. Ela, o marido fazia, escondia o Alcorão
como eu, jamais atravessara o rio. e isso o irritava muito. Há uma
Manaus era o seu mundo visível” passagem no livro em que ele
(HATOUM, 2008, p. 102). tranca toda a casa em represália
ao sumiço de seu livro de orações:
Ela e o marido mulçumano
“Só então soubemos que ela havia
acordaram que a diferença de
escondido o Livro e, que meu pai
religião não seria problema:
tinha vedado a casa para que o
“Emilie e o marido praticavam
espaço entrevado impedisse todo
a religião com fervor. Antes do
ser humano de enxergar algo
casamento haviam feito um
antes do reaparecimento do Livro”
pacto para respeitar a religião
(HATOUM, 2008, p. 54).
do outro, cabendo aos filhos
optarem por uma das duas ou A obra acentua os processos
por nenhuma” (HATOUM, 2008, de hibridização cultural. Para
p.77). O companheiro ignorou por Bhabha (2013), o hibridismo
um tempo algumas práticas do cultural emerge em momentos de
cristianismo da mulher, enquanto transformação histórica, caso do
lia fervorosamente o Alcorão: deslocamento das personagens
Ele encarava com naturalidade e árabes para a região amazônica. A
compreensão o fervor religioso mistura das culturas está presente
de Emilie. Tolerava as festas na decoração da casa onde
cristãs, mas se alheava com um
desdém perfeito das preces moravam, nas refeições feitas em
elaboradas por Emilie, fazia vista família, nas misturas de idiomas,
grossa às imagens e estátuas de nas religiões distintas do casal
santos, e afastava-se do quartinho
de costura onde as duas e em diversas outras situações.
mulheres cortavam e picotavam No trecho a seguir, é possível
retângulos de papel vegetal observar a diversidade cultural na

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decoração da casa: que Deus permitia abrir-lhes


Duas salas contíguas se isolavam as portas da casa para a ceia da
do resto de casa. Além de manhã (HATOUM, 2008, p. 65).
sombrias, estavam entulhadas Para a narradora, o alimento
de móveis e poltronas, decoradas era algo tão importante na cultura
com tapetes de Kasher e de
Isfahan, elefantes indianos que dos pais que a mãe se sentia muito
emitiam o brilho da porcelana feliz quando os filhos comiam
polida, e baús orientais com em grandes quantidades: “para
relevos de dragão nas cinco faces
(HATOUM, 2008, p. 8). fazê-la feliz bastava que um filho
As reuniões familiares eram devorasse quantidades imensas
repletas de fartura gastronômica de alimentos, como se o conceito
e alguns hábitos alimentícios de felicidades estivesse muito
causavam estranhamento tanto na próximo ao ato de mastigar e
filha adotiva quanto na empregada ingerir sem fim” (HATOUM, 2008,
Anastácia Socorro, que não eram p. 100).
árabes: A manutenção do idioma é
No centro de um pátio iluminado outro aspecto cultural importante,
pelo sol equatorial, homens e que funciona como uma estratégia
mulheres repetiam o hábito
gastronômico milenar de comer de ligação com as origens, por isso
com as mãos o fígado cru de os encontros festivos com amigos
carneiro. Não era a um ritual orientais eram marcados por
bárbaro ou ao sacrifício de um
animal que eu assistia do quarto conversas em árabe:
dos pais, mas sim a uma novidade A conversa era exclusivamente
assombrosa, a uma festa exótica em árabe, salvo os cumprimentos
que tanto contrastava com o de algum transeunte conhecido,
ritmo habitual da casa (HATOUM, ou a visita de um ou outro vizinho,
2008, p.64-65). alguns deles estrangeiros, como
(...) Elogiavam-se os temperos, a família do poveiro Américo, os
os doces de semolina com nozes Benemou, do Marrocos, e Gustav
de mel, a compota de pétalas Dorner, o rapaz de Hamburgo;
de rosa, que todos aspiravam todos amicíssimos de Emilie, e o
demoradamente antes de último, além de amigo, tornou-se
provar. Alguns, temendo não meu confidente (HATOUM, 2008,
ser convidados para o jantar do p.65).
sábado – quando seria preparado Alguns aspectos sobre a
o pernil de carneiro assado com
tâmaras – esperavam ansiosos
cultura árabe, caso da língua, a
o momento da despedida, para gastronomia, entre outros, assim
que meu pai citasse a frase em como os conflitos humanos das

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personagens e o desenvolvimento/ Os dois rapazes apresentam


derrocada da cidade de Manaus um relacionamento conflituoso
também vão ser percebidos na desde a infância e se desentendem
obra Dois irmãos. violentamente na adolescência
Os conflitos em Dois irmãos por causa do amor da jovem Lívia.
A obra Dois irmãos também Em uma sessão de cinematógrafo
apresenta os dramas de uma na casa dos vizinhos, Omar agride
família árabe que vive na cidade Yaqub fisicamente, quebrando
de Manaus. Assim como em uma garrafa no rosto dele e
Relato de um certo oriente, o autor deixando-o marcado para sempre
Milton Hatoum desfaz e refaz com uma cicatriz: “Depois, o
alguns estereótipos, imaginários barulho de cadeiras atiradas no
e representações, porém, coloca chão e o estouro de uma garrafa
em segundo plano a ideia de que estilhaçada, e a estocada certeira,
a região amazônica é meramente rápida e furiosa do Caçula. O
exótica. O autor assume uma silêncio durou uns segundos. E
postura descolonizadora, então o grito de pânico de Lívia ao
narrando uma história que começa olhar o rosto rasgado de Yaqub”
no início do século XX, passando (HATOUM, 2000, p. 28).
por dois ciclos econômicos da Logo após esse episódio, o
borracha na Amazônia, por duas filho agredido é enviado contra
guerras mundiais, chegando até o sua vontade para uma aldeia
Golpe de 1964 no Brasil. remota no Líbano, terra dos pais,
A obra relata a história de para morar com alguns amigos da
uma família árabe composta pelo família. Em vários momentos na
casal Zana e Halim, a filha Rânia, e obra, ele deixa bem claro o quanto
os gêmeos Omar (Caçula) e Yaqub: essa experiência foi ruim: “ele me
“ela, Zana, mandava e desmandava disse que nunca ia se esquecer do
na casa, na empregada, nos filhos. dia em que saiu de Manaus e foi
Ele [Halim], paciência só, um Jó para o Líbano. Tinha sido horrível.
apaixonado e ardente, aceitava, ‘Fui obrigado a me separar de
engolia cobras e lagartos, sempre todos, de tudo... não queria’”
fazendo as vontades dela (...)” (HATOUM, 2000, p.115-116).
(HATOUM, 2000, p. 54). Yaqub retorna a Manaus cinco

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anos depois e tem dificuldades água gelada, e lá ia Domingas


com a bilha: derramava-lhe na
de se adaptar tanto com a língua
boca aberta o líquido que ele
portuguesa quanto com o irmão. primeiro bochechava e depois
Contudo, permanece por pouco sorvia como uma onça sedenta
(HATOUM, 2000, p. 33).
tempo na casa dos pais, pois se
torna um bom aluno e recebe Ao longo da narrativa, o
incentivo para ir embora da cidade. Caçula pratica uma série de ações
Com o apoio do professor Bolislau, ilegais: desaparece algumas vezes,
ele pede à família para estudar em foge para os Estados Unidos com o
São Paulo e é atendido. Sua partida passaporte e o dinheiro roubados
acontece em 1950. “Inflexível foi do irmão, estupra a empregada
o próprio Yaqub, que enfrentou Domingas e a engravida, torna-
a resistência da mãe quando se contrabandista, entre tantas
informou, no Natal de 1949, que outras coisas. Na maior parte das
ia embora de Manaus” (HATOUM, vezes, ele recebe o apoio de Zana.
2000, p. 38). O único momento da obra em que
a mãe repreende o filho é após
Omar, filho preferido de Zana,
a morte de Halim, quando ele
não gosta de estudar e de trabalhar,
começa a brigar com o corpo do
vive constantemente em confusão.
pai já morto.
Prefere passar o seu tempo com
bebidas e mulheres, gastando o A Domingas é de origem
dinheiro da família: indígena e tem um filho: “uma
Omar mal percebia o vulto beleza de cunhatã, cresceu nos
arqueado sob o alpendre. Ia fundos da casa, onde havia dois
direto ao banheiro, provocava quartos, separados por árvores e
em golfadas a bebedeira da
noite, cambaleava ao tentar palmeiras” (HATOUM, 2000, p. 64).
subir a escada; às vezes caía, Seu sonho era a liberdade: “meio
inteiro, o corpanzil suado, escrava, meio ama, ‘louca para
esquecido da alquimia da noite.
Então ela saía da rede, arrastava ser livre’, como ela me disse certa
o corpo do filho até o alpendre vez, cansada, derrotada, entregue
e acordava Domingas: as duas ao feitiço da família” (HATOUM,
o desnudavam, passavam-lhe
álcool no corpo e o acomodavam 2000, p. 67). O filho Nael é o
na rede. Omar dormia até meio- narrador da história. Ele é fruto do
dia. O rosto inchado, engelhado estupro praticado por Omar: “Uma
pela ressaca, rosnava pedindo
noite ele entrou no meu quarto,

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fazendo aquela algazarra, bêbado, tanto do irmão quanto da mãe.


abrutalhado... Ele me agarrou com Zana vai morar com o Rânia em
força de homem. Nunca me pediu outra residência até sua morte.
perdão” (HATOUM, 2000, p. 241). Nael permanece em uma parte do
Apesar do conhecimento de toda terreno da casa da família que lhe
a família sobre a violência sofrida, foi dado e torna-se professor do
ele não foi questionado e nem Liceu, escola onde estudou. Como
punido quanto às suas ações. segunda parte da sua vingança,
Yaqub se casa com Lívia em São Yaqub denuncia o irmão por uma
Paulo, Omar tem alguns amores agressão física, por isso ele vai
conflituosos (Dália e Pau-Mulato), preso e condenado a dois anos e
que não são incentivados pela mãe sete meses de reclusão.
ciumenta. Halim não concorda Enquanto os problemas
com as atitudes do filho Omar, mas familiares se desenvolviam,
se orgulha do profissional que se Manaus era uma “mistura de
tornou Yaqub na cidade grande. gente, de línguas, de origens, trajes
Rânia prefere a vida de solteira e e aparências” (HATOUM, 2000,
o trabalho no comércio da família. p. 53). Às vezes movimentada,
Em pouco tempo, Rânia outras vezes, um marasmo. Ora
começou a vender, comprar e
em desenvolvimento ora em
trocar mercadorias. Conheceu
os regatões mais poderosos declínio. A década de 1950 foi
e, sem sair de Manaus, sem de penúria em Manaus, a vida só
mesmo sair da rua dos Barés,
melhorara após a década de 1960
soube quem vendia roupa aos
povoados mais distantes. Fez com o processo de integração
um acordo com esses regatões, da Amazônia ao restante do
que no início a desprezaram;
país que trouxe investimentos e
depois, acreditaram ou fingiram
acreditar que Halim se escondia trabalhadores: “Manaus está cheia
por trás da negociante astuta de estrangeiros, mama. Indianos,
(HATOUM, 2000, p. 95).
coreanos, chineses... O centro
Após a morte de Halim e virou um formigueiro de gente do
Domingas, Rânia entrega o sobrado interior... Tudo está mudando em
da família como pagamento de Manaus” (HATOUM, 2000, p. 223).
uma dívida de Omar. O negócio
A Amazônia urbana de Hatoum
de entrega da casa foi feito por
Segundo Francisco Foot
Yaqub, como forma de se vingar

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Hardman (2009), a Amazônia é morador da cidade de Manaus,


uma construção discursiva e sua o escritor busca atribuir novos
representatividade é constituída sentidos à Amazônia que ele
a partir de um imaginário. Nesse conhece e dá destaque para a
sentido, a região está eivada de parte urbana. As percepções
lugares-comuns, relatos e ficções, sociais da narrativa dele não são
que validam seu topos geográfico neutras. Ele faz escolhas que
como espaço de homogeneização. diferem dos demais autores da
Ainda de acordo com o pesquisador, região com o intuito de produzir
isso acontece nos locais onde a novas representações, pois elas
“história ainda não conseguiu fixar “produzem estratégias e práticas
marcas simbolicamente eficazes, (sociais, escolares, políticas) que
os cenários são descritos como tendem a impor uma autoridade
de geografias selvagens, natureza à custa de outros [discursos], por
bruta, populações errantes e elas menosprezadas” (CHARTIER,
dispersas” (HARDMAN, 2001, p. 2002, p. 17).
297). Ele traz para sua obra o
Por isso, é relevante estudar universo dos migrantes árabes,
essas obras de Hatoum que não que vivem, se vingam, brigam,
homogeneízam por completo a trabalham, adoecem, se relacionam
vida na região amazônica, dando com os autóctones. Enquanto isso,
espaço para os saberes e dizeres os espaços cidade-floresta também
dos diferentes povos que nela estão constituídos em suas
habitam. A paisagem natural está obras, mas não se sobrepõem aos
presente na obra hatouniana, conflitos das personagens. Assim
porém, as disputas, os relatos da como Hatoum, as personagens
memória, os dramas familiares são também são urbanas. Em Relato,
intensos e norteiam o andamento a narradora do livro, por exemplo,
do enredo. é uma moradora da cidade e não
Hatoum se afasta de algumas tem relação de afinidade com a
representações que afirmam que selva:
os moradores da região amazônica Lembro também de suas
exaustivas incursões à floresta,
brasileira estão intrinsecamente onde ele [Dorner] permanecia
relacionados à floresta. Como semanas e meses, e ao retornar

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afirmava ser Manaus uma as urbes amazônicas. Essa


perversão urbana. ‘A cidade
decadência está na passagem a
e a floresta são dois cenários,
duas mentiras separadas pelo seguir de Dois irmãos (2000):
rio’, dizia. Para mim, que nasci e “O filho falou da viagem e o pai
cresci aqui, a natureza sempre
lamentou a penúria em Manaus, a
impenetrável e hostil. Tentava
compensar essa impotência penúria e a fome durante os anos
diante dela contemplando-a de guerra” (HATOUM, 2000, p. 14).
horas a fio, esperando que o olhar
decifrasse enigmas, ou que, sem Nessa obra, o arcaico
transpor a muralha verde, ela também aparece como parte da
se mostrasse mais indulgente, decadência e é representado pelo
como uma miragem perpétua e
inalcançável. Mais do que o rio, comércio de Halim na época em
uma impossibilidade que vinha que vendia quinquilharias, mas
de não sei onde detinha-me ao quando Rânia assume os negócios
pensar na travessia, na outra
margem. Dorner relutava em da família, o comércio passou
aceitar meu temor à floresta, a vender produtos importados
e observava que o morador de que simbolizavam o moderno, o
Manaus sem vínculo com o rio e
com a floresta é um hóspede de avanço pelo qual todos passavam
uma prisão singular: aberta, mas coletivamente na cidade.
unicamente para ela mesma. Rânia dirigiu a reforma da loja.
‘Sair desta cidade’, dizia Dorner, (...) Mandava e desmandava,
‘significa sair de um espaço, cuidava do caixa, do estoque e das
mas sobretudo de um tempo’ dívidas dos caloteiros. Acabou
(HATOUM, 2008, p. 93). de vez com a venda a fiado, ‘uma
As duas obras estudadas filantropia que não combina com
revelam aspectos da decadência o comércio’. Publicou anúncios
nos jornais e nas estações
econômica e social de Manaus, de rádio, mandou imprimir
ao mesmo tempo em que folhetos de propaganda. Fez
discorrem sobre o conflito entre uma promoção de mercadorias
e torrou o encalhe, as coisas
desenvolvimento e modernidade. velhas, de um outro tempo.
Mais uma vez, rompe-se com Ela acreditava na moda, e
as narrativas literárias que reverenciou a moda do momento
(HATOUM, 2000, p. 130).
costumeiramente apresentam
Nestor Canclini (2006) afirma
as ruínas dos seringais e dos
que a América Latina, obviamente
seringueiros pós-ciclos da
incluindo a Amazônia, teve um
borracha, desconsiderando as
modernismo exuberante com
problemáticas que atingem

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uma modernização deficiente, obrigados a viver ao longo do


uma vez que a colonização tempo. Na passagem que se segue,
se deu por nações europeias a narradora, recém-chegada nessa
também deficientes. As ondas de Manaus em transição, estranha
modernização no final do século encontrar alguns prédios intactos,
XIX e início do XX, observadas assim como estranha a sujeira e o
na descrição da cidade de descuido de tantos outros lugares
Manaus, são impulsionadas pelos da cidade:
intelectuais europeizados, pela A vazante havia afastado o porto
do atracadouro, e a distância
contribuição de migrantes, entre
vencida pelo mero caminhar
outros aspectos (MENDES, 2013). revelava a imagem do horror de
Porém, no decorrer do século uma cidade que hoje desconheço:
uma praia de imundícies, de
XX, os investimentos na região
restos de miséria humana, além
não são suficientes para levar do odor fétido de purulência viva
estabilidade para a população, exalando da terra, do lodo, das
entranhas das pedras vermelhas
observa-se isso nos dois ciclos
e do interior das embarcações.
da borracha, no processo de Caminhava sobre um mar
integração Amazônia-Brasil pós de dejetos, onde havia tudo:
casa de frutas, latas, garrafas,
1950 (a operação movimentou
carcaças apodrecidas de canoas,
grande quantidade de recursos e esqueletos de animais. Os
para o projeto de desenvolvimento urubus, aos montes buscavam
com avidez as ossadas que
da região amazônica. Era preciso
apareceram durante a vazante,
investir na região porque ela era entre objetos carcomidos que
vista como fonte de recursos foram enterrados há meses, há
séculos (HATOUM, 2008, p. 141).
naturais que despertava interesse
internacional, logo poderia trazer A obra enfatiza a precariedade
benefícios financeiros para o urbana após os dois ciclos da
Brasil) até no suposto progresso borracha e o quanto era difícil para
que chega com o Golpe de 1964. as pessoas que se deslocavam do
interior para a cidade se adaptar a
Relato faz referências à vida
uma nova moradia às margens dos
portuária de Manaus, aos negócios
rios e em condições adversas:
que surgiam e desapareciam na
Dali podíamos ver os barrancos
cidade, as mudanças econômicas dos Educandos, o imenso
que os moradores da cidade foram igarapé que separa o bairro
anfíbio do centro de Manaus. Era

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a hora do alvoroço. O labirinto os investimentos econômicos do


de casas erguidas sobre troncos
período, mas também a violência
fervilhava: um enxame de
canoas navegava ao redor das e o medo sentido pelos moradores
casas flutuantes, os moradores de Manaus por causa da presença
chegavam no trabalho,
dos militares:
caminhavam em fila sobre as
tábuas estreitas, que formam Ele sabia que Manaus se tornara
uma teia de circulação. Os mais uma cidade ocupada. As escolas
ousados carregavam um botijão, e os cinemas tinham sido
uma criança, sacos de farinha; se fechados, lanchas da Marinha
não fossem equilibristas, cairiam patrulhavam a baía do Negro, e
no Negro. Um ou outro sumia na as estações de rádio transmitiam
escuridão do rio e virava notícia comunicados do Comando
(HATOUM, 2000, p. 120). Militar da Amazônia. Rânia
teve que fechar a loja porque a
Em contrapartida, Dois irmãos greve dos portuários terminara
se estende até a década de 1960, num confronto com a polícia do
portanto é possível observar Exército. Halim me aconselhou
a não mencionar o nome de
também o avanço econômico Laval fora de casa. Outros nomes
que chega com os investimentos foram emudecidos. A tarja preta
durante a ditadura militar: que cobria uma parte da fachada
do liceu fora arrancada e as
“ouvira dizer que Manaus crescia portas do prédio permaneceram
muito, com suas indústrias e seu trancadas por várias semanas
comércio. Viu a cidade agitada, os (HATOUM, 2000, p. 198).
painéis luminosos com letreiros Durante muito tempo
em inglês, chinês e japonês” prevaleceu nos discursos literários
(HATOUM, 2000, p. 226). um constante apagamento e/ou
estranhamento de alguns fatos
Grande parte das obras de
históricos, caso da Ditadura, assim
expressão amazônica se passa
como permaneceu um apagamento
durante os dois primeiros ciclos
das populações amazônicas
da borracha (final dó século
(caboclos, indígenas) e um enfoque
XIX e início do XX), por isso
restrito aos aspectos ecológicos.
não é comum a discussão sobre
E sabe-se que a manutenção
os efeitos da Ditadura Militar
desse desaparecimento impede
(1964-1985) na literatura sobre
a visibilidade e a compreensão
a região. Milton Hatoum rompe
das trocas culturais existentes
com mais esse estigma e usa seus
na região. Por isso, a necessidade
personagens para narrar não só

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de reconstruir e reinterpretar trabalham com o comércio; as


narrativas e representações mães não têm trabalho formal,
corrigindo o apagamento mas são constituídas de poder
dos povos e observando as simbólico, pois cuidam das casas,
diversidades culturais e sociais da educação dos filhos e guardam
existentes no norte do Brasil. os segredos de família.
Nas duas obras analisadas, a Apesar da tentativa de
natureza é deslocada do primeiro inclusão das minorias amazônicas
plano e surge em menor proporção. na literatura hatouniana,
Observam-se, prioritariamente, as destaca-se que os indígenas e
composições humanas: a busca todos os seus aspectos culturais
das identidades dos narradores permanecem parcialmente
– Nael e a filha de Emilie – as silenciados nas duas obras. As
paixões de Zana, Halim, Emilie, as mulheres indígenas aparecem
violências sofridas por Domingas nas narrativas de Hatoum,
e Anastácia, as vinganças de Omar frequentam a área urbana, têm
e Yaqub, os desencantos com a trabalho informal, mas ainda são
vida de Rânia. narradas de forma marginalizada.
A ação de inclusão dos Mesmo na cidade, elas continuam
migrantes pelo autor Milton sendo discriminadas, vítimas de
Hatoum não é isolada na literatura, violência física:
mas traz à tona os povos que (...) eles [os filhos dos donos da
casa] nunca suportaram de bom
contribuíram com a formação grado que uma índia [Anastácia]
social, econômica, política e passasse a comer na mesa da
histórica da região amazônica. sala, usando os mesmos talheres
e pratos, e comprimindo com os
Tanto em Relato quanto em lábios o mesmo cristal dos copos
Dois irmãos, quebram-se alguns e a mesma porcelana das xícaras
estereótipos e reducionismos de café (HATOUM, 2008, p.109).

porque se rompe com o fio do Isso é demonstração de que


discurso tradicional a respeito ainda há, portanto, barreiras que
da Amazônia, mas conservam- precisam ser ultrapassadas no
se tantas outras representações, que se refere ao conhecimento
caso do imaginário a respeito e à valorização das diversas
dos povos árabes: os patriarcas populações que habitam o norte

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do Brasil. No caso das mulheres entre ele e o boto: “Esse gêmeo


indígenas em Hatoum, elas tem olhão de boto; se deixar, ele
precisam expressar seus valores, leva todo mundo para o fundo
desejos, opiniões e culturas, do rio” (HATOUM, 2000, p. 30). O
devendo escolher onde e como comentário da indígena sustenta a
querem viver. Não podem só ideia de que os mitos e as lendas
absorver o modo de vida dos estão continuamente entrelaçados
patrões, os hábitos, a religião, a ao imaginário dos sujeitos locais,
gastronomia. mesmo os urbanizados.
A Amazônia de Hatoum é Considerações finais
plural, híbrida, multifacetada, Diante do exposto, não se
mas ainda apresenta lacunas no pode pensar a região amazônica
que se refere à desconstrução de de forma linear, suprimindo-se os
alguns sentidos sobre a região. A tempos diferenciados da floresta
Manaus do autor ainda aparece e o da cidade, bem como da
como espaço de mitos e lendas, gente que ali vive. Durante longo
remetendo à literatura que período (século XX), a literatura
comumente relaciona moradores mais conservadora acompanhada
da floresta com histórias do realismo naturalista tentou
encantadas. O boto, por exemplo, ‘apagar’ as diferenças de espaço
faz parte da vida dos caboclos da de convivência, perdendo-se
Amazônia brasileira, assim como parte importante dos processos
dos migrantes que na região que compõem a formação social,
vivem. São muitas as histórias política e econômica da Amazônia.
que alimentam o imaginário da Contudo, autores como
população local, desde o animal Milton Hatoum caminham em
que cativa os humanos, a cidade direção contrária aos que veem a
encantada no fundo do rio e/ou a Amazônia como terra uniforme,
presença da cobra grande. observando as multiplicidades
Em Dois irmãos, Domingas e divergências de seus povos.
afirma que Yaqub era Relato de um certo oriente e Dois
frequentemente alvo de olhares irmãos mostram que não há nada
femininos, era um conquistador, de definitivo na Amazônia, a vida
por isso ela faz uma comparação está em construção, é conflituosa,

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mutável e segue fluida. a literatura moderna. São Paulo:


Editora UNESP, 2009.
Ambas as narrativas podem
HATOUM, M. Dois irmãos. São Paulo:
contribuir com os fios que tecem Companhia das letras, 2000.
as narrativas amazônicas. A HATOUM, M. Relato de um certo
literatura de Hatoum é de caráter oriente. São Paulo: Companhia das
crítico e questionador, pois a letras, 2008.
HATOUM, M. A cidade ilhada: contos.
função da obra literária é ser São Paulo: Companhia das letras,
território de contestação. Ela 2009.
deve ser sempre espaço para o MENDES, F. M. M. Identidades
exercício da inquietação, criando híbridas: o lugar das personagens
discursos desestabilizadores em ficcionais na obra Coronel de Barranco.
2008. Dissertação (Mestrado em
vez de apenas repetir o passado Letras: Linguagem e Identidade) –
com a disseminação de conceitos Universidade Federal do Acre – UFAC,
previamente dados. Rio Branco, 2008. Disponível em
Referências https://goo.gl/RHkmco. Acesso em
BHABHA, H. K. O local da cultura. 14 jan. 2017.
Tradução de Myriam Ávila, Eliana MENDES, F. M. M; QUEIRÓS, F. A. T..
Lourenço, Gláucia Renate. Belo Do inferno ao paraíso: narrativas
Horizonte: Ed. UFMG, 2013. sobre a Amazônia brasileira. Revista
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: Igarapé. 2014. Disponível em:
estratégias para entrar e sair da https://goo.gl/6oFDgz. Acesso em:
modernidade. 3ªed, São Paulo: USP, 14 jan. 2017.
2006. SILVA, J. da. Panorama da produção
CHARTIER, R. A história cultural: literária de Milton Hatoum e de sua
entre práticas e representações. recepção, em homenagem aos vinte
Tradução Maria Manuela Galhardo. anos de Relato de um certo oriente.
Algés, Portugal: Difel, 2002. Somanlu. ano 10, n.1, jan/jun,
GURGEL, L. H. Não há literatura sem 2010. Disponível em: https://goo.
memória. Revista Na ponta do gl/31vaAs. Acesso em 15. Jan. 2017.
lápis. Ano IV, nº 8. AGWM Editora e
produções editoriais, junho/2008.
Disponível em: https://goo.gl/
R4dUxx. Acesso em 15 jan. 2017.
HARDMAN, F. F. Antigos modernistas.
In: A brasilidade modernista. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
HARDMAN, F. F. A invenção da Hileia:
Euclides da Cunha, a Amazônia e

20 Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 5, n. 1, 2017.

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