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Kazumi Munakata
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Kazumi Munakata
Rua Airosa Galvão, 198
05002-070 – São Paulo – SP
e-mail: kazumi@pucsp.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 513-529, set./dez. 2004 513
Two history manuals for teachers: histories of their
production
Kazumi Munakata
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Abstract
Keywords
Contact:
Kazumi Munakata
Rua Airosa Galvão, 198
05002-070 – São Paulo – SP
e-mail: kazumi@pucsp.br
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Em 23/3/1953, Gustavo Lessa escreveu caminhos e os descaminhos da produção do
a Americo Jacobina Lacombe, confirmando um manual de Português, sob a responsabilidade de
convite que lhe havia feito anteriormente: Mário de Souza Lima. O presente artigo preten-
de acompanhar, de 1953 ao final dessa déca-
Esta é uma confirmação oficial do pedido da, aspectos da trajetória dos manuais referen-
que vos fiz verbalmente para colaboração tes às histórias do Brasil e Geral, de que se en-
com o INEP [Instituto Nacional de Estudos carregaram, respectivamente, Americo Jacobina
Pedagógicos] no preparo do projeto de Lacombe e Carlos Delgado de Carvalho. Embora
manuais destinados a professores secundá- o processo analisado refiram-se a livros de His-
rios. Estou para isto autorizado pelo res- tória, o foco não será a historiografia do perío-
pectivo Diretor, Dr. Anísio Teixeira. do nem tampouco as modalidades de fazer-his-
Essa colaboração se traduzirá inicialmente tória que se constituíam então no Brasil, mas a
pela apresentação de um anteprojeto do política de produção, por instâncias governa-
manual para história do Brasil, com a especi- mentais, de livros didáticos e as discussões di-
ficação da matéria a ser tratada em cada dático-pedagógicas que a acompanharam.
capítulo e sub-capítulo e com a indicação Todos os trabalhos acima mencionados
do número de páginas prováveis, destinado fazem parte das investigações referentes aos
a cada subdivisão. projetos “A produção de livros didáticos e ma-
(...) A título de uma retribuição simples- teriais de ensino pela Campanha do Livro Didá-
mente simbólica, o autor do anteprojeto tico e Manuais de Ensino (Caldeme) e pela
receberá uma remuneração variável entre Campanha Nacional de Material de Ensino
500 e 1.000 cruzeiros. (CNME), do Instituto Nacional de Estudos Pe-
Só mais tarde, após aprovado o anteprojeto dagógicos (Inep)” e “A política de livro didáti-
respectivo, será combinada a remuneração co no regime militar: da Campanha do Livro
pela feitura do manual. Didático e Manuais de Ensino (Caldeme)/Cam-
(Carta de Gustavo Lessa Americo Jacobina panha Nacional de Material de Ensino (CNME)
Lacombe, de 23/3/1953) 1 à Comissão do Livro Técnico e Didático (Colted)
e à Fundação Nacional de Material Escolar
Na mesma época, convites semelhantes (Fename)”, financiados pelo Conselho Nacional
foram feitos a outros especialistas, de diversas de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
instituições, para que participassem da Campa- (CNPq), e o seu autor integra o projeto
nha do Livro Didático e Manuais de Ensino temático financiado pela Fundação de Amparo
(Caldeme), produzindo manuais para professo- à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),
res de acordo com a competência de cada um: coordenado por Circe Bittencourt e intitulado
Paulo Sawaya (Zoologia); Karl Arens (Botânica); “Educação e Memória: Organização de Acervos
Oswaldo Frota Pessoa (Biologia Geral); Mário de de Livros Didáticos”, junto ao qual desenvolve
Souza Lima (Português); Raymond Van der pesquisa sobre políticas públicas e legislação
Haegen (Francês); Werner Gustag Krauledat referente ao livro didático no Brasil. Trata-se de
(Química); e Carlos Delgado de Carvalho (His- um esforço para compreender esse momento
tória Geral). (Ofício de Mário P. de Brito a Aní- ímpar na política pública referente aos livros
sio Teixeira, 6/1/1954) didáticos no Brasil, quando o governo buscou
Em artigos anteriores (Munakata, 2000 produzir, ele próprio, os livros didáticos
e 2002), já se apresentou a concepção que (Munakata, 1999). A bibliografia (Oliveira et al.,
Anísio Teixeira tinha sobre livro didático e que 1984; Freitag et al. 1989; Xavier, 1999), de
norteava o Campanha do Livro Didático e Manu-
ais de Ensino (Caldeme), e abordaram-se os 1. Nas transcrições, a ortografia foi atualizada e a pontuação, corrigida.
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modo geral, apenas menciona essas iniciativas em 1952, anunciou a necessidade de o gover-
governamentais, sem contudo analisar-lhes o no produzir “guias e manuais de ensino para os
significado nem tampouco examinar-lhes os professores e diretores de escolas” e também
resultados. O trabalho de Saavedra (1988), so- “livro didático, compreendendo o livro de tex-
bre o Inep, talvez seja o que mais se dedique to e o livro de fontes” (Discurso de Posse do
a examinar as ações da Caldeme, mas o levan- Professor Anísio Teixeira no Instituto Nacional
tamento das obras produzidas por esse órgão de Estudos Pedagógicos, em 4/7/1952). 3 A
restringe-se à sua quantificação. Campanha do Livro Didático e Manuais de
Tais investigações, de que o presente Ensino (Caldeme), assim instituída, seria mais
artigo representa um resultado parcial, visam tarde transferida para o âmbito da Divisão de
preencher essa lacuna nos estudos sobre o li- Estudos e Pesquisas Educacionais (Depe), do
vro didático e as políticas públicas educacio- Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
nais no Brasil e, para tal, valem-se de uma do- (CBPE), cuja criação, em 1956, impôs-se na
cumentação inédita, constituída de papéis ad- medida em que o Inep havia se transformado
ministrativos do Inep e seus órgãos. Essa do- “num órgão mais legislador que de estudos e
cumentação havia sido levada do Rio de Janeiro pequisas” (Xavier,1999, p. 84). Apesar dessas
quando da trasferência do Inep para a Brasília, fases por que passou, a Caldeme sempre foi
onde permaneceu encaixotada num depósito. A dirigida por intelectuais muito próximos a Aní-
professora Lucia Maria Franca Rocha, então da sio Teixeira, a começar por Gustavo Lessa.4
Universidade de Brasília, localizou-a e copiou-a O objetivo da Caldeme, no caso dos
em parte, até que foi impedida de prosseguir os manuais para os professores, é assim explici-
trabalhos. Os professores Maria Rita de Almeida tado em “Acordo celebrado entre a Campanha
Toledo e Bruno Bontempi Jr., do Programa de do Livro Didático e Manuais de Ensino
Estudos Pós-Graduados em Educação: História, (Caldeme) e o prof. Americo Jacobina Lacombe,
Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade para a elaboração de um manual de história do
Católica de São Paulo, participaram da organi- Brasil destinado aos professores do ensino se-
zação provisória desse material, constituído de cundário”, assinado em 16/12/1953, em sua
ofícios, memorandos, correspondências ativa e “Cláusula II”:
passiva, despachos, originais dos livros e ano-
tações sem identificação de autoria ou de data, A elaboração do manual será orientada pelo
etc. Apesar de essa documentação ser extrema- objetivo de promover, entre os professores
mente fragmentária e descontínua, por meio secundários do país, um movimento de re-
dela é possível elucidar aspectos de uma histó- novação no tocante à matéria a ser ensinada
ria que até agora se ocultava nos bastidores das e aos métodos de ensiná-la, a fim de tornar
decisões políticas. a matéria e o método mais adequados aos
Nesses bastidores, os personagens não
são muito conhecidos e talvez merecessem 2. Sobre Anísio Teixeira, consultar, entre várias obras, o verbete a seu
respeito, de autoria de Clarice Nunes, em Dicionário de educadores no
rápida apresentação, nas notas de rodapé. Em Brasil (Fávero e Britto, 2002, p. 71 ss.).
todo caso, Anísio Teixeira (1900-1971), que 3. Este texto pode ser obtido na íntegra na Biblioteca Virtual Anísio Teixeira
(http://www.prossiga.br/anisioteixeira). Uma análise desse discurso en-
está no centro de toda essa história, embora contra-se em Munakata (2000).
apareça pouco, não é exatamente uma figura 4. Gustavo Lessa (1888-1962) foi médico e sanitarista. Membro da As-
desconhecida e sua apresentação talvez seja sociação Brasileira de Educação (ABE), de cuja diretoria participou várias
vezes a partir de 1928 (Carvalho, 1998), assumiu cargos na administra-
desnecessária.2 Basta que se diga que ele, um ção pública, quase sempre ao lado de Anísio Teixeira. Mais tarde, assumiu
dos principais expoentes da chamada Escola cargo na Fundação Getúlio Vargas, mas, em 1952, com a criação da Cam-
panha do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme), atuou como seu
Nova no Brasil, ao assumir a direção do Insti- diretor executivo e chefe de programa, sendo substituído por Mário Paulo
tuto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), de Brito em 31/12/1953, quando retornou à Fundação Getúlio Vargas.
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te, e estimulasse mais a sua capacidade de 9 - Na unidade 20, acha que “a crise política
reflexão do que a sua memória. de 1937” deve ser substituída pelo “Golpe de
Como se trata de trabalhos sem nenhum po- Estado de 1937”. (Discussão dos planos dos
der coercitivo e que serão oferecidos como manuais de história geral e do Brasil, apre-
simples sugestões, os autores não ficam sentados respectivamente pelos Professores
adstritos nem aos programas, nem à seriação Carlos Delgado de Carvalho e Americo
oficial. (Carta de Gustavo Lessa a James Jacobina Lacombe, s.d., grifos do autor)
Braga Vieira da Fonseca, em 9/7/1953)
Em 30 de julho de 1953, foi a vez de
A maioria dos pareceristas não se ma- Jayme Coelho reunir-se com os dois autores.
nifestou. Uns poucos fizeram-no oralmente, em Em relação a ambos, criticou o número de
reuniões convocadas para esse fim. Na primei- páginas previsto, considerando-o excessivo.
ra delas, realizada em 24 de julho de 1953, Argumentou que se deveriam prever capítulos
“compareceram os drs. Delgado, Lacombe e introdutórios “sobre metodologia e sobre obras,
Helio Vianna”, além de, presumivelmente, arquivos, bibliotecas, coleções e bibliografias a
Gustavo Lessa, que assina o relatório “Discus- consultar”. Também apresentou uma curiosa
são dos planos dos manuais de história geral e crítica, que não foi acatada: “É veementemen-
do Brasil, apresentados respectivamente pelos te antagonista à divisão do assunto por unida-
Professores Carlos Delgado de Carvalho e des, achando que perturba a visão cronológi-
Americo Jacobina Lacombe” (s.d.). Segundo ca dos acontecimentos”. (Discussão dos planos
esse documento, Helio Vianna apenas comen- dos manuais de história geral e do Brasil, apre-
tou o plano de Lacombe, limitando-se a fazer sentados respectivamente pelos Professores
apreciações superficiais: Carlos Delgado de Carvalho e Americo Jacobina
Lacombe, s.d.)9
1 - Deve ser acentuado que a bibliografia seja Os comentários específicos sobre os pla-
crítica. nos de um e de outro autor foram também bas-
2 - Na referência a “grandes autoridades”, tante superficiais. Por exemplo, apontou-se que
deve ser feita a restrição “no assunto”. no tópico “expansão territorial”, de Lacombe,
3 - As invasões holandesas e francesas deve- “não está nitidamente incluída a ‘expansão para
riam ser chamadas incursões. Dr. Lacombe de o sul’. A conquista deve ser ‘do nordeste’ e não
acordo. do ‘norte’”. Em relação a Delgado de Carvalho,
4 - Nota que o assunto do governo geral, tra- criticou-se a falta de menção às “outras civiliza-
tado na segunda unidade, fica restrito ao sé- ções além das florescidas em torno dos quatro
culo XVI. Lacombe adverte que a unidade 7 vales” e à “época bizantina” ou “referência às
volta ao assunto. Américas muito limitada”. (Discussão dos planos
5 - Nesta mesma unidade propõe substituir dos manuais de história geral e do Brasil, apre-
regionais a [sic] locais. Aceito. sentados respectivamente pelos Professores
6 - Na unidade 8 propõe “movimento contra
a metrópole” e não “movimentos nativistas”.
9. Hery (1999), em seu livro sobre o ensino de História no Liceu francês,
Aceito.
também constata essa dificuldade de adequar a suposta continuidade his-
7 - Na mesma unidade objeta à expressão “in- tórica às unidades demarcadas pela aula. Concebido como cours (curso),
confidência mineira”, por denotar pejorativa- o ensino de História deveria obedecer à “regra absoluta do percurso inte-
gral” (Journal officiel de la république française ). Mas como apresentar
mente traição. Lacombe aduz argumento da esse “percurso integral” se a cada unidade de aula ele deve ser interrom-
tradição semântica para conservar a expressão. pido? Segundo Hery, a solução foi a introdução, no início de cada aula, da
interrogation (interrogação), perguntas dirigidas a um aluno individual, a
8 - Acha haver demasiadas unidades para o um grupo de alunos ou a classe inteira. Então o paradoxo: para assegurar
governo de Pedro I. a continuidade do “percurso integral”, o curso torna-se descontínuo.
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A seu favor, Lacombe mencionou, no Além disso, tais indicações despertarão o
“Plano” e, sobretudo, na sua réplica, autores gosto pela leitura, um dos grandes proble-
que recomendassem a introdução da literatura mas da mocidade atual. (Plano para o ma-
em estudos históricos. Destaque especial era nual de História do Brasil preparado pelo
conferido às obras em inglês “compêndios ame- prof. Americo Jacobina Lacombe, s.d.)
ricanos”, ressaltava em resposta a Rodrigues:
Às demais objeções de Rodrigues, La-
Tomo ao acaso, um dos excelentes que es- combe também respondeu com comentários
tão ao meu alcance: O de Lynn Barnard e A. que relevavam aspectos didáticos:
O. Roorbach, Epochs of World Progress ,
New-York, 1928. No fim de cada capítulo A desproporção entre a História do Império
indicam-se leituras de Historic Novels (Lá es- e a História Colonial é o resultado do maior
tão os Últimos dias de Pompéia, O Yankee interesse que devem despertar os aconteci-
na corte do rei Arthur, Ivanhoé, etc.) mentos à medida que se vão aproximando
Outro, o de W. F. Gordey, History of the os tempos presentes. Todo mundo sabe
United States, N.Y., este de 1922. No fim de que o horror despertado pela História do
cada capítulo lá vem FICTION , e seguem-se Brasil vem da insistência em acontecimentos
os romances que fazem os alunos interessa- que não despertam nos alunos a menor
rem-se pelos personagens. Enfim o excelen- emoção. Capitanias Hereditárias são pala-
te Living in our America de James Quillen e vras fatídicas que fazem perder a alegria a
E. Krug de 1951, além dos trabalhos literári- muita criança. Quando queremos exempli-
os, ainda junta filmes e discos. (Carta de ficar o tédio provocado pelo mau ensino de
Americo Jacobina Lacombe a Gustavo Lessa, nossa história, a primeira coisa que nos
de 1/12/1953, grifos do autor) ocorre é a lista dos comandantes holande-
ses. Quando se vai podendo apelar para
Não é difícil perceber nessa polêmica o uma iconografia mais abundante (...) e para
conflito em torno do estatuto científico da fatos mais citados na conversação habitual,
história e sua relação com o discurso ficcional é muito mais fácil – e mais conveniente –
(ou “literário”), ou, se se preferir, a disputa aprofundar-se o estudo. (Carta de Americo
entre padrões “cientificista” e “humanista”. 11 Jacobina Lacombe a Gustavo Lessa, de 1/
Mas, para além dessa questão epistemológica e 12/1953, grifos do autor)
metodológica é possível também apreender, nas
considerações de Lacombe, uma preocupação Por fim, Lacombe descartou facilmen-
propriamente didática. Nas “Justificativas” do te as questões sobre “precedentes históricos do
seu “Plano”, ele explicava: tema” e o caráter “acessório do fator econômi-
co”, o que é revelador da distância que sepa-
A indicação de leituras literárias destina-se
a despertar o interesse dos alunos para a 11. Lepenies (1996) mostra a disputa travada na segunda metade do século
época em estudo. Muitos alunos, que não XIX em torno da legitimidade do discurso que pode enunciar o “real”, esta-
belecendo a partilha entre o “científico” e o “literário”: na indefinição dessa
suportam o estudo cronológico da história,
partilha, um Buffon, hoje considerado um pioneiro das Ciências Naturais,
devoram romances históricos com gosto(...) podia proclamar “Stilo primus, doctrina ultimus [Primeiro, o estilo; por últi-
Parece inútil insistir em que não se preten- mo, a doutrina]” em 1753; um século depois, um Balzac, que pretendia
desenvolver “Études sociales”, veria a sua obra relegada ao que doravante
de fazer ciência histórica através dos ro- seria denominado “literatura”. Ginzburg (1991) também ressalta a intimida-
mances, mas criar uma atmosfera de inte- de ancestral entre a historiografia e o que hoje se denomina “literatura de
ficção”, para enfatizar a atual diferença entre ambas: enquanto a primeira
resse e curiosidade para o período a ser busca sua legitimidade na “realidade”, a ser investigada, a outra encontra na
estudado. (...) coerência discursiva a sua razão de ser (cf. Munakata, 2003).
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do em dois volumes, afirma ser “oportuno in- que, diante dessa escassez, apelem para os
cluir em cada um os principais documentos vastos quadros genealógicos, cronológicos
históricos” (Guia de História do Brasil por e sincrônicos contidos no apêndice e os
Americo Jacobina Lacombe, parecer assinado propinem aos alunos.
por Guy de Holanda). No capítulo II cumpre notar também a fal-
Mais interessantes foram os comentá-rios ta básica do texto para os alunos. E não
de Gustavo Lessa apresentados, numa carta de 3 vem uma orientação sobre a escolha desse
de janeiro de 1958, a pedido de Lacombe. Res- texto, pois a discussão versa sobre determi-
saltando a sua condição de “leigo em assunto no nados problemas do período coberto. (Car-
qual o autor dos capítulos é reconhecida ta de Gustavo Lessa a Americo Jacobina
sumidade” e que não mais pertence à Caldeme “à Lacombe, de 3/1/1958, grifos do autor)
qual me prende ainda um interesse, diria eu sen-
timental, pela idéia que a originou”, Lessa apon- A reprimenda permite constatar a radical
ta para a disparidade entre o que havia sido acor- divergência de concepção sobre o que deveria
dado no início e o resultado final: ser um manual para professor. Para Gustavo
Lessa, que tinha como pressuposto um perfil de
Nas conversas que precederam a carta ofi- professorado secundário mal preparado, esse
cial, houve ampla justificação da necessida- manual deveria ser uma espécie de livro didáti-
de de conter no manual o texto para os co (para aluno) comentado. Por isso mesmo, no
alunos. Simples indicações gerais sobre a seu entender, o capítulo I (Preliminares), “dedi-
matéria a ser ensinada em cada capítulo cado sobretudo à descrição dos grandes arqui-
não habilitariam o comum dos professores, vos existentes no Brasil e no estrangeiro”, care-
que não têm tempo para a pesquisa de no- cia de real utilidade se se levasse em conta esse
vos caminhos, a libertar-se da rotina aca- professorado presumivelmente “real”:
brunhadora de datas e de nomes das auto-
ridades oficiais. Em vista dos arquivos descritos ficarem
(...) Parece-me, porém, que, na elaboração inacessíveis à grande maioria dos professo-
dos capítulos II e III (o de n° I não entra em res e estudantes no país, pareceria interes-
consideração no momento, porque trata sante aludir às fontes de documentação
apenas de preliminares), a orientação se- existentes nas cidades do interior. (Carta de
guida foi bem diversa. Gustavo Lessa a Americo Jacobina Lacom-
Vejamos o capítulo II. O texto que vem en- be, de 3/1/1958)
tre o preâmbulo e os apêndices ocupa ape-
nas três páginas, e a sua simples leitura Lessa também comentou a proposta, de
mostra que é destinado apenas aos profes- Lacombe, de “tirar proveito” de testemunhos
sores, e não aos alunos. Visa, além disto, contraditórios,
apenas recomendar certas respostas a cer-
tos problemas litigiosos, que representam (...) para mostrar que a tarefa do historiador
uma parte do período em questão. Consti- consiste, precisamente, em valer-se de fontes
tui intencionalmente uma sugestão para diversas e, às vezes, divergentes, para criticá-
investigações mais minuciosas por parte dos las e elaborar com elas um texto, ou uma con-
professores. Parece-me, entretanto, que, na clusão, constrasteada com os elementos for-
falta do texto para os alunos, o dos profes- necidos pela ciência historiográfica. (Prelimi-
sores deveria ser muito mais extenso, pois a nares, original do Capítulo I do manual para
maioria, convém sempre lembrar, não fará professor de História do Brasil, de Americo
as investigações sugeridas. Tenho receio de Jacobina Lacombe)
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de “complementos e as explicações fornecidas entregues” (Quarto adendo ao acordo celebrado
aos professores”). A “narrativa” seria “precedi- em novembro de 1953, entre a Campanha do
da de uma ‘Preparação da Aula’”, abrangendo: Livro Didático e Manuais de Ensino [Caldeme] e
o prof. Carlos Delgado de Carvalho, para a elabo-
a) Os objetivos visados no conhecimento dos ração de um manual de história geral, destinado
fatos históricos a focalizar. aos professores do ensino secundário, de 31/12/
b) O quadro geográfico dos acontecimentos 1955). O prazo para a entrega da parte referente
e sua interpretação econômica e social. à História Contemporânea antecedia ao das de-
c) A perspectiva histórica: relações de causa- mais provavelmente porque o mesmo “Adendo”
lidade. autorizava Delgado de Carvalho a “dispender com
d) Motivação – processos e métodos de des- auxiliares, para a preparação da parte referente à
pertar interesse. Palavras-chave a discutir. História Contemporânea, até a quantia de CR$
120.000,00”. O adendo também previa que fos-
(...) Em cada Unidade, a narrativa e suas notas sem contratados auxiliares “para preparação das
serão seguidas de uma documentação ou demais partes da obra”, no valor de até Cr$
“contato com a realidade histórica”: 72.000,00. O próprio autor receberia Cr$
a) Mapas, datas e cronologia – ilustrações. 100.000,00 por cada parte entregue.
b) Resumos biográficos de Personalidades da Correspondência entre a editora Civili-
Época. zação Brasileira e a Caldeme mostra que o
c) Leituras complementares, escolhidas em volume História Geral – Antiguidade, de Delga-
autores fidedignos. do Carvalho, foi efetivamente publicado, prova-
d) Textos históricos a explicar. velmente em 1956, após quase um ano de pro-
e) Bibliografia sumária para professor. cedimentos de edição e editoração. 14 Quanto
ao segundo volume, referente à História Me-
Por fim, haveria “Processos de Verifica- dieval, os seus originais foram encaminhados
ção da Aprendizagem”: exercícios, testes, tópi- para providências de impressão em 3 de feve-
cos de dissertações (Plano para o Manual de reiro de 1958 (Ofício de Jayme Abreu, coorde-
História Geral, preparado pelo Prof. Carlos Del- nador da Depe do CBPE, a Péricles M. de Pinho,
gado de Carvalho, s.d.). diretor-executivo do CBPE). Desta vez a publi-
Segundo o acordo firmado em 30 de cação da obra coube à Seção de Publicações
novembro de 1953, o autor teria prazo de doze do próprio CBPE. O exemplar disponível na
meses para concluir a redação dos originais, mas Biblioteca Nacional assinala como data de pu-
nesse caso também houve sucessivas prorroga- blicação o ano de 1959. Quanto aos demais
ções. Em carta de 22 de dezembro de 1955, volumes (Moderna e Contemporânea), não há
Delgado de Carvalho comunicava que o volume registros em nenhuma biblioteca consultada.
correspondente à História Antiga, já entregue,
havia levado sete meses de redação, o que o fa- 14. Uma carta da Editora Civilização Brasileira a Mário P. de Brito relata
que em 11/8/1955, “atendendo a uma solictação verbal de V. Sa. e do Dr.
zia prever que o referente à Idade Média levasse Anísio S. Teixeira, M.D. Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-
quatro meses; à Idade Moderna, cinco; e à Con- cos, apresentamos por escrito o orçamento para a produção gráfica de
5.000 exemplares do livro do Dr. Delgado de Carvalho, ‘História Geral – I
temporânea, mais cinco. Atendendo ao pedido, o – Antiguidade’, que esse Instituto pretende lançar em sua coleção de ‘Guias
quarto adendo ao acordo, firmado logo em se- e Manuais de Ensino’ (Carta de Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização
guida, prorrogou até 31 de dezembro de 1957 a Brasileira, a Mário P. de Brito, de 22/3/1956, grifos do autor). Em 20/11/
1956, em carta ao Inep, Ênio Silveira comunica que “infelizmente já se
“conclusão da parte referente à História Contem- acha desmanchada a composição do livro do Dr. Delgado de Carvalho
porânea”, ficando “o mesmo prazo prorrogado intitulado HISTÓRIA GERAL, 1° tomo, ANTIGUIDADE” – o que é um claro
indício de que a obra já havia sido impressa. Despacho na própria carta
até 31 de dezembro de 1958, para o efeito de informa que “era intenção do dr. Anísio ampliar a tiragem para dez mil
conclusão das demais partes da obra, ainda não exemplares”.
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respeito à exposição da matéria, o que nos à História proporcionar aos educandos tam-
permite tratar do assunto em nível mais bém um fundo de cultura geral (...). Noções
elevado, contando com o preparo especi- de história da Arte, da Filosofia, da Litera-
alizado que o professor já deverá apresen- tura, das Ciências, poderão ser ministradas,
tar. (Carta de Eurípedes Simões de Paula e sempre dentro do campo histórico, é claro,
Pedro Moacyr de Campos a Gustavo Lessa, e não isoladamente, uma vez que, aqui, o
de 8/10/1953, p. 1) mais interessante será exatamente a apre-
sentação destes diversos setores de maneira
Antes, porém, de “tratar do assunto em harmônica, conjugados entre si e também
nível mais elevado”, o parecer se permite acon- com o campo social, político e econômico
selhar que se deva levar em conta que os alu- em que se verificam as atividades com eles
nos visados pelo manual a ser produzido são relacionados. Tratar-se-ia, assim, do que
“sul-americanos, vivendo num país e num con- acreditamos poder chamar de “paisagem
tinente que, no conjunto da civilização do histórica” (...). Evitar-se-ia, assim, o que
Ocidente, apresentam-se como sendo de origem consideramos uma falha grave: a apresen-
colonial” (p. 2). Seria também necessário cons- tação da matéria com predominância abso-
tatar que “são alunos das mais diversas ascen- luta do seu aspecto político, entremeada de
dências, do ponto de vista da nacionalidade” desconsoladoras notícias sobre as ativida-
(p. 2). Além disso, “a diferença que existe en- des culturais ou as características sociais e
tre o estudante brasileiro e o europeu impede- econômicas de países ou épocas. (p. 3-4.)
nos, ab initio, de recorrer aos manuais europeus
como modelos para a organização de um ma- As considerações sobre as peculiarida-
nual brasileiro” (p. 2). Em outras palavras, a des do aluno brasileiro fornecem, assim, ense-
relação do aluno brasileiro com a disciplina jo para que os pareceristas apresentem o pro-
História não pode ser a mesma que se verifica grama dos Annales, sintetizado na expressão
com os estudantes europeus. Daí, a proposta: “paisagem histórica”.
Na réplica, em oito páginas manuscri-
Procurar trazer, então, o campo da História tas, Delgado de Carvalho dirige-se a Simões de
para o mais perto possível dos estudantes, Paula como “meu jovem colega”, e acrescenta:
e apresentá-lo sempre de maneira que es- “digo ‘jovem’ porque sou professor de História
tes o sintam como integrado na esfera do desde 1903!”. Sua resposta é direta:
concreto, e não como uma abstração, tal
esforço parece-nos indispensável para que Confesso que os aspectos didáticos, que o
o ensino de História possa corresponder a professor paulista preferiu afastar das dis-
alguma real finalidade na formação do es- cussões, me preocuparam mais do que a
tudante. Quer-nos parecer que, do seu cur- “narrativa” sobre a qual recaem a maior
so secundário de História, este poderá espe- parte de suas observações.
rar, primeiramente, elementos que lhe per- Acredito que deve ser levado em considera-
mitam localizar-se devidamente no tempo e ção o tipo de aluno sul-americano que visa
no espaço histórico, fornecendo-lhe as ba- o ensino da História, lembrando, entretanto,
ses sobre as quais lhe será possível sentir- que cabe neste setor maior responsabilida-
se perfeitamente integrado, tanto no cam- de ao Compêndio de História do Brasil (...).
po mais restrito da sociedade em que exer- Estou perfeitamente de acordo em “procu-
ce suas atividades, como nos âmbitos mui- rar trazer o campo da História para mais
to mais amplos de civilização ocidental e perto possível dos estudantes” de “localizar
de Humanidade. Em segundo lugar, caberá no tempo e no espaço” os ensinamentos
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 513-529, set./dez. 2004 527
grandes geógrafos franceses [Jean] Brunhes Mais uma vez, verifico um desacordo talvez
[1869–1932] e [Camille] Vallaux [1870- provocado pela errônea interpretação da
1945] escreveram: “A História nos conta expressão “palavras-chaves”. Trata-se aí,
uma vida da humanidade sempre mais coor- não de “digressão complicada”, nem de
denada, subordinada e coletiva, recebendo a “emprego da filologia como ramo auxiliar
geografia a missão de nos ilustrar esta de- da História”, mas apenas de um método
monstração”. Pois não foi a Polônia subme- útil, muito usado, aliás, como ponto de iní-
tida a trágicas condições históricas pelo fato cio de uma preleção em aula.
de se achar “nas planícies russas”, varridas Por exemplo, ao tratar, em 2ª série colegial,
pelas invasões e sujeitas a condições econô- do Período de Entre-Guerras, o mestre princi-
micas, sociais e políticas que, devido a suas pia a discussão perguntando: “Quem foi o
montanhas, a Suíça não conheceu? Em que Tigre?”, pretexto para falar de Clémenceau e
consistiria a Questão do Oriente se os estrei- do Tratado de Versalhes. Segundo o interesse
tos do Bósforo e Dardanelos não lhe condi- que pode despertar uma explicação, ele esco-
cionassem os episódios? Como teria nascido lherá uma outra palavra-chave, como “de-
a idéia política das fronteiras naturais se não pressão”, “tcheka”, “putch”, ou “Concordata”.
tivessem elas auxiliado a formação dos Gran- É um tipo simples de motivação, de fácil em-
des Estados Modernos? Como negar os im- prego. (Carta de Carlos Delgado de Carvalho a
perativos do meio físico? (Carta de Carlos Gustavo Lessa, de 27/10/1953)
Delgado de Carvalho a Gustavo Lessa, de
27/10/1953) Noções de causalidade, relação com a
Geografia, predomínio ou não da política, críti-
Há outros itens polêmicos, alguns de- ca ao eurocentrismo: a polêmica mobilizou os
les muito mesquinhos, mas um merece desta- temas que demarcavam certas modalidades de
que. Em relação às “palavras-chave”, menciona- fazer-história, que, então, podiam ser expressões
das no “Plano”, Simões de Paula indaga: dos padrões “paulista” e “carioca”. Mas, à som-
bra desse conflito, crescia uma outra polariza-
Tratar-se-ia de um mero vocabulário dado ção, que ultrapassaria as fronteiras estaduais
previamente para a melhor compreensão do para estabelecer uma forte clivagem entre os
ponto? — Neste caso não seriam palavras- profissionais de história. De um lado, aqueles que
chaves. Tratar-se-ia do emprego da filo- privilegiam a pesquisa e a discussão acadêmicas
logia como ramo auxiliar da História? — e procuram “libertar-se” das preocupações com
Concordamos em que seria muito bonito e “aspectos didáticos”, preferindo “tratar do assun-
muito útil, mas não fácil de se pôr em prá- to em nível mais elevado”, chegando ao requinte
tica; lembremos, a título de exemplo, as di- de preciosismo conceitual em relação a termos
gressões complicadas a que daria lugar o como “palavra-chave”. De outro, os que mantêm
vocabulário do Feudalismo ou da Cavalaria certa incompreensão a respeito de novas propo-
Medieval nos diversos países europeus. sições teóricas e metodológicas, pois preferem
(Carta de Eurípedes Simões de Paula e preocupar-se mais com os “aspectos didáticos”.
Pedro Moacyr de Campos a Gustavo Lessa, As discussões em torno dos livros de Lacombe e
de 8/10/1953, p. 8) de Delgado de Carvalho revelam que essa pola-
A resposta de Delgado de Carvalho rização, que hoje se generalizou, já estava ali,
chega a ser óvbia: latente e de difícil solução.
CAMPOS, F. R. A sociolog
sociologia
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Recebido em 07.09.04
Aprovado em 18.11.04
Kazumi Munakata é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e participa do Projeto Temático “Educação e memória: organização de acervos
de livros didáticos”, coordenado por Circe Bittencourt e financiado pela Fapesp.
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