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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FLH0124 - História das Relações Internacionais I

Prof. Dr. Peter Demant

A “Guerra Justa”

São Tomás de Aquino e Outros Pensadores Cristãos

Lauriston Tomaz da Silva Junior

8029048

São Paulo

2015
SUMÁRIO

Introdução...........................................................................................3

Os Precursores.....................................................................................7

Agostinho............................................................................................9

Tomás de Aquino...............................................................................13

Conclusão...........................................................................................15

Bibliografia.........................................................................................16
3

INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais primórdios das civilizações humanas os povos tem


experimentado um dos mais significativos fenômenos da experiência humana: a guerra. O que
se entende por guerra, porém, não é simplesmente o conflito entre duas partes a respeito de
um determinado assunto; mas sim um conflito de estado motivado por divergências a respeito
de como um território deve ser governado. Este conflito pode ser interno a um estado, ao qual
chamamos guerra civil, ou entre mais de um estado; nos casos mais extremos, onde ela
envolve vários estados, pode ser considerada uma guerra mundial.

Assim como a experiência da guerra tem sido constantemente presente na história


das civilizações, também tem sido presente a discussão sobre as motivações das guerras e a
justiça ou não com que ela é iniciada e conduzida. A discussão gerou no ocidente uma teoria
que se desenvolveu através dos séculos entre diversos pensadores: a chamada Teoria da
Guerra Justa. No debate sobre o que torna uma guerra justa ou não, fundamentalmente
dividimos a questão em duas partes. Atribui-se a expressão latina jus ad bellum à motivação
específica que leva um determinado estado a declarar guerra e jus in bello à forma com a qual
ele se comporta e conduz sua campanha. Uma terceira parte é ocasionalmente adicionada à
teoria, através da expressão jus post bellum, que seria a forma com que um estado age após o
término do conflito.

A ideia de guerra justa não é exclusivamente uma inovação ocidental. Os antigos


chineses, os egípcios, os babilônios, os hindus da Índia e outros discutiram as dimensões
morais da guerra em escritos anteriores a qualquer um no ocidente latino (MATTOX, 2006, p.
2). O assunto também foi discutido na antiguidade clássica, onde se destaca principalmente
Aristóteles (384-322 A.C.), especialmente em sua obra “A Política” (séc. IV A.C.), e também
o cônsul romano Cícero, que foi um dos pais da teoria da Guerra Justa, sendo o pensador pré-
cristão que mais influenciou os objetos de estudo deste trabalho, que são os pensadores
cristãos que primeiro desenvolveram a teoria.
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Cícero desenvolveu, ao longo de seus escritos, idéias relacionadas à chamada Guerra


Justa que exerceriam grande influência sobre os pensadores cristãos posteriores, como
Ambrósio de Milão e especialmente Agostinho de Hipona, que o menciona frequentemente
em seus textos e que se utilizou de muitos conceitos do cônsul romano adaptados à sua
teologia em sua principal obra, “A Cidade de Deus” (séc. V D.C.). Agostinho, por sua vez,
influenciou todo desenvolvimento do pensamento cristão e filosófico no ocidente.
Posteriormente, por volta do ano de 1148 D.C. o monge camaldulense Graciano, sob grande
influência do pensamento agostiniano, reuniu pronunciamentos oficiais de várias autoridades
da igreja através dos séculos, muitas vezes conciliando cânones discordantes entre si.
Publicou a coleção como lei canônica, acrescida de seus comentários. Sua obra, “Concordia
Discordatium Canonum”, se tornou a mais conhecida e utilizada no direito canônico de sua
época. Esses autores, sobretudo Agostinho, serviram de base para que Tomás de Aquino,
alguns anos depois, definisse as suas condições sobre que poderia ser considerada uma guerra
justa ou não em sua obra magna “Summa Theologica” (séc. XIII D.C.).

As obras destes autores representaram as principais influências sobre o pensamento


religioso, político e filosófico na Idade Média, sobretudo na questão do que seria a Guerra
Justa, originando a teoria que continuaria a ser desenvolvida e citada por pensadores
posteriores, desde Stanislau de Skalbmierz, Francisco de Vitoria e Francisco Suarez. Foram
através dessas ideias que se formularam as motivações, causas e conduções das guerras entre
nações durante a Idade Média, especialmente durante o período das Cruzadas, em que o
ocidente cristão se confrontou com o oriente muçulmano. Com o passar do tempo, com o
advento da modernidade, a Europa cristã passou por um período de secularização da cultura e
não foi diferente com a Teoria de Guerra Justa, que ganhou novos autores e chegou até os
nossos dias, transformando-se e difundindo-se por todo o mundo. Por conta disso, o início
desta teoria tem especial importância no estudo das Relações Internacionais, já que representa
a gênese da forma e justificativa com que nações modernas ocidentais fazem guerra até hoje.
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OS PRECURSORES

Cícero (106 - 43 A.C.)

Sem dúvida o pensador pré-cristão que mais se destacou na teoria ocidental da


Guerra Justa foi o cônsul romano Marco Túlio Cícero. Para Cícero, ao contrário do que se
pode pensar sobre as ideias de gregos e romanos, a paz seria o estado natural e desejável da
relação entre Estados e não a hostilidade (HARRER, 1918, p.26). Para ele a paz deveria ser
sempre o objetivo dos governantes, mesmo quando entravam em guerra. A guerra seria a
expressão máxima do que há de mais bestial no ser humano; pois para Cícero a violência era a
forma das feras de resolverem conflitos, enquanto a forma dos homens seria o diálogo. Apesar
disso, ele não era um pacifista - longe disso. Mas acreditava que a guerra deveria ter uma
causa (HARRER, 1918, p.27).

Só se deveria recorrer à violência quando não fosse possível que as querelas fossem
resolvidas através de diálogo. Para ele haviam duas condições que tornavam a guerra justa:
que ela ocorresse por conta de uma necessidade de reparação e que ela fosse formalmente
declarada. Além disso, defendia que, uma vez proclamada, a guerra deveria ser lutada de
maneira implacável, porém honrosa. Ressaltava a importância de que os tratados fossem
respeitados honestamente e que os derrotados não sofressem crueldades (HARRER, 1918
p.28-30).

Alguns conceitos idealizados por Cícero - influenciado por pensadores da


antiguidade clássica, sobretudo Aristóteles - fundamentaram sua teoria de Guerra Justa, e
seriam posteriormente citados e adaptados por Agostinho à sua teologia cristã. Entre eles
destacam-se as noções de justiça, lei natural, lei temporal e estado (NESTE, 2006, 13-48). Ele
define a justiça como o altruísmo na realização dos deveres cívicos de um cidadão; a busca
pelo bem estar dos companheiros como forma de promover a força e a estabilidade da
sociedade humana. É uma virtude que advém da razão humana, mas só se manifesta
socialmente. Nesse sentido, a justiça é um produto externo de uma virtude interna,
verificando-se no tratamento em relação aos outros e tornando aquele que faz mal aos outros
passível de punição. A justiça viria da lei natural, através da razão.
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Para Cícero a lei natural é a lei eterna que rege todas as coisas e foi instituída por
Deus. O Deus que Cícero menciona é único, e é considerado o arquiteto do universo, autor
soberano de todas as coisas e superior aos deuses comuns do panteão greco-romano; embora
ele tenha nascido e morrido antes do Cristianismo ser criado e não ser adepto de nenhuma
religião monoteísta. Mas para Cícero Deus não tem a função de gerador de virtudes no
homem, que viria a ter posteriormente em Agostinho, nem muito menos tem uma relação
pessoal com ele. A lei natural seria descoberta pela razão, enquanto a lei temporal seria criada
pela razão para o bem comum dos homens em sociedade. Ao contrário da lei natural, que é
imutável e eterna, a lei temporal varia de acordo com tempo e espaço. Mas quanto mais a lei
temporal reflete a lei natural, mais justa ela é e ela só pode ser justa quando se origina da lei
natural.

A existência de um estado depende fundamentalmente da justiça e da lei temporal.


Ele seria um acordo entre homens justos em prol do bem comum, para que convivessem em
harmonia sob uma lei temporal. Para Cícero o homem é naturalmente um ser sociável, não
podendo viver de outra forma e, portanto, a melhor forma de se viver em sociedade é em um
estado, por seu objetivo ser obter vantagens comuns e manter seus integrantes em segurança.
Os líderes do estado devem compelir aqueles que não vivem em justiça a viverem em justiça,
para que assim o objetivo final do estado seja alcançado: o bem comum.

As guerras seriam originadas de violações destes conceitos - sobretudo da justiça -


mas deveriam ser feitas para corrigir malfeitos e seu objetivo final deveria ser sempre a paz.
Um a guerra só seria justa se ocorresse como resultado de uma dessas violações. Para Cícero
existem dois tipos de injustiça: uma da parte daquele que inflige o mal e outra da parte
daquele que, mesmo podendo intervir, não protege aquele a quem o mal está sendo infligido
(MATTOX, 2006, p. 15).

Ele define dois princípios para que o jus ad bellum, ou seja, a motivação para ir à
guerra seja justa: que houvesse aviso a respeito do impasse (que no caso de Roma era feito
pelos sacerdotes conhecidos como fetiales) e que na impossibilidade de resolução a guerra
fosse formalmente declarada. No sentido de um jus in bello, ou seja, das ações durante uma
guerra, ele defende que a luta seja travada de forma implacável, porém honrosa - sem
crueldade - respeitando honestamente os tratados propostos. Em termos de jus post bellum, o
proceder posterior à guerra, ele defende que os soldados não deveriam ser culpados
individualmente pelos atos que cometeram por ordem de seu governo - ideia que seria
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retomada por Agostinho posteriormente, refletindo sobre a participação de um cristão na


guerra. Mas o ponto de encontro principal entre as ideias de Cícero e as de Agostinho é que
ambos consideram que, ainda que existam motivos para que uma guerra seja iniciada, ela seja
evitada a todo custo.

Ambrósio (ca. 340 - 397 D.C.)

Ambrósio, bispo de Milão, foi outro percursor da teoria da Guerra Justa. Ele viveu
durante o período de transição em que o cristianismo passou de religião perseguida a religião
oficial do Império Romano. Até então os pensadores cristãos se caracterizavam pelo
pacifismo, mas se fazia necessário saber como o indivíduo cristão se portaria sendo cidadão
romano em uma época de muitos conflitos e invasões bárbaras. Para ele, porém, tirar a vida de
outra pessoa não era intrinsecamente um ato ruim, pois poderia ser justificado em
determinadas circunstâncias. Suas ideias marcaram uma mudança que buscava conciliar o
pensamento cristão com a guerra (MATTOX, 2006, p. 19). Foi Ambrósio quem excomungou
o imperador Teodósio I após o massacre de 7000 pessoas em Tessalônica no ano 390 D.C.,
somente readmitindo-o depois que ele pagou meses de penitência; num episódio que marcou o
início de uma era em que o estado se submeteria à igreja.

Ambrósio foi um dos primeiros a associar o Império Romano à própria fé cristã,


afirmando que as invasões bárbaras seriam manifestações da indignação de Deus a respeito
das heresias que se proliferavam no império (MATTOX, 2006, p. 20) - especialmente o
arianismo, do qual sempre foi um feroz adversário. Desta forma, considerava que a defesa do
império representava a própria defesa da fé, ou seja, seria um jus ad bellum aceitável. Ele
evoca os quatro princípios de prudência, justiça, temperança e fortidão como comportamento
esperado do cristão que devia se estender também ao jus in bello; dando ênfase especial à
fortidão - a coragem e fibra moral do cristão -, ligando-a a exemplos bíblicos como o das
guerras do rei Davi e ao pensamento de Cícero a respeito da justiça; notando que a fortidão
sem a justiça é a fonte da maldade e que reagir em defesa do próximo não só pode ser
aceitável como muitas vezes é moralmente obrigatório ao cristão; um ato de amor em nome
da justiça. É por isso que para ele é essencial analisar a justiça de uma guerra.

O bispo não condenou atos de violência como o de 388 D.C., quando cristãos
incendiaram uma sinagoga, por se tratar de um ato contra infiéis; submetendo a justiça ao fato
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dos agentes pertencerem à igreja (MATTOX, 2006, p. 21). Ele foi um dos primeiros a
diferenciar a doutrina - essencialmente pacifista - apresentada nos evangelhos como sendo
individual; diferente da violência que era perpetrada coletivamente. Ambrósio estabeleceu
que, em termos de justiça, o tratamento de um inimigo deve depender proporcionalmente da
magnitude de sua ofensa - baseando-se no Velho Testamento bíblico - mas favorece que ele
seja tratado com misericórdia. Ele defendia que o clero não deveria lutar, noção que foi
retomada por Agostinho posteriormente. De fato, Ambrósio foi um mentor para Agostinho,
tendo-o batizado em Milão no ano de 387 D.C. e influenciado grandemente suas ideias,
inclusive a respeito da Guerra Justa. Ambrósio reconciliou parcialmente a moral cristã com a
teoria de guerra justa romana, enquanto Agostinho desenvolveu uma síntese total.
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AGOSTINHO DE HIPONA (354 - 430 D.C.)

Agostinho de Hipona foi um dos mais importantes filósofos e teólogos da história da


civilização ocidental. Ele viveu na época do declínio do Império Romano no ocidente, uma
época de intenso questionamento a respeito da relação do império com a fé cristã. Muitos
pagãos culpavam o cristianismo pela decadência do império, enquanto muitos cristãos se
perguntavam por que um império que havia se tornado oficialmente cristão estava sofrendo
com uma tão ampla decadência. Ele tratou dessas e de muitas outras questões em seus textos e
especialmente em sua obra magna “A Cidade de Deus” (séc. V D.C.). Entre os assuntos
tratados está a sua teoria de Guerra Justa, a que nos dedicamos neste trabalho.

Agostinho nunca separou um espaço específico em sua obra para tratar da Guerra
Justa, nem muito menos organizou sua teoria sistematicamente (MATTOX, 2006, p. 5). Ele
também não pretendia, com seus escritos, lançar bases para nenhum tipo de legislação, mas
sim formular apenas um guia ético para o soldado romano cristão de sua época. As ideias de
Agostinho sobre o assunto, porém, apesar de estarem espalhadas em diversos temas
diferentes, demonstram claramente que apesar de não ter formulado oficialmente uma teoria
sistematizada ele a tinha em sua mente, como sua própria forma de pensar; uma teoria não
escrita que os estudiosos cuidaram de desvendar após sua morte através de seus escritos,
sobretudo em “A Cidade de Deus”. Tão consistente é esta sua teoria que ele passou a ser
considerado tradicionalmente como o pai do que se desenvolveu como a teoria da Guerra
Justa no ocidente (MATTOX, 2006, p.1) e seu principal autor.

A teoria de Guerra Justa de Agostinho se alimentou de muitas das ideias de Cícero, a


quem ele estudou na juventude, como era de costume na época; mas era considerado
praticamente um especialista em sua obra (NESTE, 2006) e o creditava por sua iniciação na
filosofia (MATTOX, 2006, p.28). A diferença fundamental entre os dois está no conceito da
virtude. Diferentemente de Cícero, para Agostinho a virtude - sobretudo da justiça - provém
de Deus, e não da razão. Portanto para ele a verdadeira virtude só se manifestava em
verdadeiros cristãos. Além disso, na obra “A Cidade de Deus”, Agostinho diferencia o plano
das coisas terrenas e o plano das coisas espirituais; e também as ações coletivas das
individuais e é nisso que se baseia toda a sua teoria.
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Enquanto o plano das coisas terrenas é corruptível e imperfeito, o plano das coisas
espirituais é perfeito e virtuoso. O plano terreno seria a “cidade dos homens”, governado pelas
leis naturais e temporais - assim como em Cícero - e o plano espiritual seria a “cidade de
Deus”, governado pela lei eterna. Por conta da cidade dos homens ser imperfeita,
inevitavelmente existiriam guerras; mas que se feitas por causas justas poderiam ser um ato de
amor: Agostinho compara a Guerra Justa a um pai corrigindo seu filho. O verdadeiro pecado
na guerra não estaria na morte de um inimigo em si, mas sim no amor pela violência,
crueldade vingativa e ganância por poder.

Agostinho se diferencia de muitos de seus contemporâneos, que acreditavam que


Roma tinha uma missão divina de propagar o evangelho e a paz pelo mundo. Apesar de seu
carinho por ela, ele não se constrange de declarar sua corruptibilidade e afirma que o seu
destino final será o de todo estado: perecer. Para ele um estado jamais pode ser
completamente justo, visto que a justiça - embora se expresse socialmente - não é uma virtude
coletiva, mas sim individual. Por ser formado tanto por cidadãos injustos (ímpios) quanto
justos (cristãos), um estado jamais seria perfeito. Um bom estado seria aquele que oferecesse
as bases para que os cidadãos justos florescessem. Em um estado onde isso não acontecesse,
abundaria a iniquidade. A Guerra Justa poderia ser a punição imposta por um estado a outro
estado que tivesse um comportamento tão agressivo e abominável que violasse até mesmo as
normas da justiça temporal. Assim Agostinho

[...] atinge a síntese entre os valores romanos e cristãos associados à guerra de uma forma que
reconhece a guerra como um instrumento legítimo de política nacional que, ainda que inferior
aos ideais perfeitos da cristandade, é um que os cristãos não podem evitar totalmente e com que
eles devem de alguma forma aprender a lidar (Mattox, 2006, tradução nossa1).

Agostinho considera justo que um estado vá à guerra quando é o melhor remédio


possível para corrigir injustiças, ou por comando direto de Deus - no caso das guerras
descritas no Antigo Testamento bíblico. Ele desaprova que sejam feitas guerras sem que o
estado beligerante tenha sofrido algum tipo de injustiça. Guerras lutadas somente para mera
expansão do estado não são nunca permitidas. Em termos de legitimidade, o estado e sua
autoridade máxima são, para Agostinho, os únicos que tem o direito de declarar guerra; já que
os governantes seriam autoridades instituídas por Deus. O dever dos homens seria obedecer a
1
Augustine the Christian philosopher achieves a full synthesis of the Roman and Christian values associated
with war in a way that recognizes war as a legitimate instrument of national policy which, although inferior to
the perfect ideals of Christianity, is one which Christians cannot altogether avoid and with which they must in
some sense make their peace.
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estes governantes; e caso estes declarassem uma guerra deveriam obedecer-lhes


incondicionalmente (MATTOX, 2006).

A Guerra Justa seria para a restituição não somente material, mas também moral a
uma nação lesada, reiterando a necessidade de uma causa justa em sua famosa definição:

Como regra, guerras justas são apenas aquelas que vingam ofensas, quando uma nação ou
estado contra quem se está sendo feita guerra negligencia a punição de algum malfeito dos
seus cidadãos ou devolver algo que foi tomado de forma errada (AGOSTINHO em
“Resposta a Fausto o Maniqueu” 22.75, NPNF IV 2001, citado em Mattox, 2006, tradução
nossa2).

Embora esta citação seja a primeira nova definição de guerra justa desde Cícero, ela
não engloba todas as justificativas dele. Agostinho considerava que alguns prejuízos não
poderiam ser ressarcidos e portanto a guerra poderia servir como uma punição análoga à da lei
privada - a punição moral. Desta forma ele excede a ideia de Cícero da guerra como apenas
um meio de reestabelecimento do status quo ante bellum. Ainda assim, guerra só deveria ser
feita por necessidade, como última alternativa; tendo sempre como objetivo final a paz - a paz
terrena, que não é perfeita como a paz celestial, mas se trata de uma concordância entre os
homens. Se a paz puder ser obtida sem confrontos armados, melhor ainda (MATTOX, 2006,
p.60).

A necessidade seria o principal determinante na proporcionalidade defendida por


Agostinho no jus in bello que é menos elaborado - se comparado a seu jus ad bellum - mas ele
considera que para uma guerra ser considerada justa ela precisa não somente de uma causa
justa, mas também de uma condução justa. Estabelecendo que numa guerra deve-se matar
somente por necessidade e o mínimo necessário, Agostinho lançou as bases do princípio que
o desenvolvimento futuro da doutrina de jus in bello: que o inimigo só fosse atacado por
necessidade, não por desejo. Como consequência que as ofensivas fossem as mais objetivas
possíveis; causando assim menos sofrimento. Aquele que deseja assassinar não é cuidadoso,
mas aquele que deseja curar é preciso. Aquele que está do lado da verdade deve desejar
corrigir o que há de errado; enquanto o iníquo deseja apenas a destruição (AGOSTINHO,
Carta 189.6, NPNFI, 385, citada em Mattox, 2006).

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As a rule just wars are defined as those which avenge injuries, if some nation or state against whom one is
waging war has neglected to punish a wrong committed by its citizens, or to return something that was
wrongfully taken.
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Baseado nas suas ideias de distinção entre as ações coletivas do estado e as dos
cidadãos individualmente, Agostinho estabelece o seu conceito de distinção no jus in bello. O
poder de um rei, a pena de morte de um juiz, os capuzes dos executores e as armas dos
soldados tem em comum serem deveres que podem ser justificativas legais e morais para tirar
vidas (AGOSTINHO, Carta 156.6.16, citada em Mattox, 2006). Ele condena sem ressalvas a
participação de clérigos e civis em guerras, mas inocenta completamente os soldados da
violência que eles exercem durante elas, como forma de obediência devida ao estado -
contanto que a ação cometida tenha sentido claro em relação ao objetivo final, que é a
restauração da paz; mas ainda assim a misericórdia é preferível.

Assim como Cícero, Agostinho defende a honestidade e boa fé na condução da


guerra e dos tratados, mas admite que o uso de estratégias como emboscadas pode ser
justificado quando a guerra é justa. Manter a boa fé e manter a segurança do estado seria
importante, mas não se pode considerar um simplesmente mais importante do que o outro. O
objetivo final da guerra deve ser sempre a paz, sendo que a guerra em si seria o fruto de uma
discordância entre estados a respeito das condições da paz. Para atingi-la os estados justos
deveriam fazer tudo o que pudessem na guerra, mas utilizando-se do mínimo de violência
possível.

Posteriormente, as noções de guerra justa de Agostinho foram apropriadas pela da


guerra santa, especialmente quando Anselmo de Lucca publicou “Collectio Canonum”, onde
era justificada a coerção contra os inimigos da igreja católica. As cruzadas, diretamente
autorizadas pelo Papa - e portanto representante de Deus na terra, sendo que para Agostinho
guerras comandadas por Deus eram incontestavelmente justas - se tornaram a forma absoluta
de guerra justa da igreja (GOMES, 2008). A influência de suas ideias não se resumiu somente
a guerra santa, porém. Continuaram a exercer influência sobre diversos pensadores e juristas,
entre eles o monge camaldulense Graciano em seu “Concordia Discordatium Canonum” - que
reunia e tentava obter concordância entre diversos cânones anteriores como os de Anselmo - e
outro célebre teólogo e filósofo medieval conhecido como Tomás de Aquino.
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TOMÁS DE AQUINO (1225 - 1274 D.C.)

Tomás de Aquino foi um frei italiano da tradição escolástica considerado juntamente


com Agostinho um dos principais filósofos e teólogos da história do cristianismo. Sua obra se
caracterizou por tenta conciliar a filosofia aristotélica aos princípios cristãos. Em seu principal
trabalho, a “Suma Teológica” (séc. XIII) ele reúne a tradição da lei natural com a ética bíblica
(GOMES, 2008). Nela ele tratou da maior parte dos assuntos da teologia cristã; entre eles a
questão da guerra, utilizando-se em grande parte da autoridade de Agostinho para tecer a sua
teoria de Guerra Justa.

Ao tratar da guerra, Tomás de Aquino dividiu o assunto em quatro principais


questões ou objeções que eram propostas em seu tempo e poderiam causar discórdia: se
algum tipo de guerra era lícito, se a participação de clérigos nas guerras era lícita, se a
utilização de emboscadas no esforço de guerra era lícito e se era lícito lutar em dias santos
(Summa Theologica, p. 1813). A partir desses quatro pontos ele formulou o que seria
considerado sua teoria a respeito da Guerra Justa.

Tomás responde a primeira e principal objeção de que a guerra é sempre um pecado


dizendo que de fato todas as guerras são ilícitas, mas ainda assim não são um pecado em si,
citando Agostinho a respeito das passagens bíblicas em que os conselhos dados a soldados
não incluem abandonar suas funções militares e propondo três condições essenciais para que o
jus ad bellum de uma guerra fosse considerado justo. A primeira, sendo seu principal critério
(GOMES, 2008), é que o comando de guerra provenha da autoridade de um soberano. É da
responsabilidade do soberano zelar pelos interesses coletivos, enquanto os privados podem ser
resolvidos em tribunais, por exemplo. Ele cita Agostinho:

A ordem natural que conduz à paz entre os mortais demanda que o poder de declarar e
deliberar a respeito da guerra deve estar nas mãos daqueles que detém a autoridade máxima
(Agostinho, Contra Faust, xxii, 75, citado em Summa Theologica, p.1814, tradução nossa3).

Em segundo lugar, é necessária uma causa justa, ou seja, que aqueles que serão
atacados mereçam punição por conta de alguma injúria que cometeram. Uma guerra justa

3
The natural order conductive to peace among mortals demands that the power to declare and counsel war
should be in the hands of those who hold the supreme authority.
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seria uma guerra que conserta malfeitos de seus integrantes, quando uma nação precisa ser
punida por se recusar a consertá-los, ou devolver aquilo que foi tomado injustamente. Em
terceiro lugar é necessário que os beligerantes ajam movidos por uma intenção certa,
desejando conseguir o bem e evitar o mal. Tomás novamente retoma palavras de Agostinho
quando este diz que as guerras justas são as que tem como objetivo a paz ao invés de ganância
e crueldade. Ele então condena a má condução no jus in bello de uma guerra, ainda que esta
tenha um jus ad bellum justo tendo sido, por exemplo, declarada por uma autoridade legítima
e por uma causa justa. Ele cita Agostinho condenando a paixão pela violência, pela rebeldia e
a ganância por poder; valorizando o menor uso da violência e a busca pela paz.

Tomás de Aquino compartilha da noção de Agostinho de que as ações individuais


são diferentes das ações coletivas, e também na proibição da participação de clérigos nas
guerras, a segunda objeção, considerando errado por conta do derramamento de sangue - que
não condiz com o comportamento esperado dos sacerdotes. A respeito de emboscadas, a
terceira objeção, ele considera que seu objetivo é iludir os homens; mas é diferente de enganá-
los traindo promessas e acordos - o que é sempre errado. A emboscada se trata, porém, de
meramente se reter informações e conhecimentos de um inimigo. Dessa forma não se trata
propriamente de engano e não pode ser considerado injusto (Summa Theologica, p.1816).

A última objeção que Tomás de Aquino responde é a questão de que se é permitido


ou não que se lute em dias santos. Para ele, assim como é permissível que um médico trate de
seus pacientes em dias santos para zelar por sua saúde (ele cita o episódio descrito em João
7:23, quando Jesus cura um homem no sábado dos judeus), assim também uma nação pode
lutar em dias santos para promover a saúde e segurança de seus cidadãos (Summa Theologica,
p.1817). Os argumentos propostos por Tomás de Aquino se tornaram base do catecismo
católico posterior e também referência para as teorias de guerras justa desenvolvidas por
autores posteriores até os nossos dias.
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CONCLUSÃO

No estudo dos primeiros pensadores da teoria da guerra justa no ocidente cristão fica
evidente a sua importância para a forma com que as nações ocidentais realizaram guerras
desde aqueles tempos até os dias atuais. A obra de Agostinho foi verdadeiramente marcante
quando fez uma síntese dos valores romanos e cristãos numa época em que o cristianismo
ascendia como religião hegemônica do império e o debate entre as ações do estado e os
valores cristãos se intensificava. Sua obra monumental foi um marco do pensamento
filosófico no ocidente, vindo a influenciar muitos pensadores futuros.

Os conceitos abordados pelos pensadores medievais são utilizados e debatidos até


hoje. Após a Idade Média, a Europa cristã passou por um forte processo de secularização que
também ocorreu com valores morais e éticos, e não foi diferente no caso da teoria da guerra
justa. Desta forma, ainda hoje existem discussões do que seriam motivos justos ou não para
que uma guerra seja iniciada e a forma com que ela seja conduzida, e os exemplos não faltam:
a guerras do Golfo Pérsico, do Iraque, as rebeliões da chamada Primavera Árabe e o Estado
Islâmico são bons exemplos de guerras que levantaram esse tipo de debate. Outros casos,
como os do terrorismo, por exemplo, levantam discussões que de fato não haviam sido
abordadas diretamente nos primórdios da teoria da guerra justa, mas que também podem ser
analisadas sob essas perspectivas.

Ainda hoje os conceitos como discriminação entre civis e militares, autoridade


legítima para declaração de guerra e necessidade ou não delas continua a ser fonte de extenso
debate tanto entre leigos quanto entre acadêmicos. A criação da ONU, as suas funções e sua
legitimidade expressam justamente essa questão da autoridade para se resolver conflitos e
deliberar a respeito de uma investida militar nos dias de hoje e pode ser encarada como um
desenvolvimento dessas ideias. A grande questão das armas de destruição em massa e de
armamentos nucleares também levanta o debate a respeito da proporcionalidade da violência
empregada em uma guerra, assim como as restrições no uso e na intenção da violência;
questões que já se faziam presentes nas concepções de Agostinho e Tomás de Aquino. Com
esses fatos em mente, podemos afirmar que as discussões sobre a guerra justa ainda estarão
presentes por muito tempo nas universidades, congressos e no dia a dia das pessoas.
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BIBLIOGRAFIA

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AMBRÓSIO (Santo). Ambrose: Selected Works and Letters. Capítulo XXV, 175-178.
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BACHRACH, David S. Religion and the Conduct of War, C. 300-1215. Woodbridge: The
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