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A repartição de competências na

Constituição de 1988

Paulo Mohn

Sumário
1. Introdução. 2. Os modelos de repartição
de competências. 2.1. A repartição horizontal de
competências e o federalismo dual. 2.2. A repar-
tição vertical de competências e o federalismo
cooperativo. 3. A repartição de competências
na Constituição de 1988. 3.1. As competências
privativas da União. 3.2. As competências re-
manescentes dos Estados. 3.3. As competências
privativas dos Municípios. 3.4. As competências
comuns (materiais concorrentes). 3.5. As com-
petências legislativas concorrentes. 4. Conside-
rações finais.

1. Introdução
O federalismo demanda uma divisão do
poder, principalmente entre o ente central
(União) e os Estados-membros, mas tam-
bém com os Municípios. Na lição de Silva
(2002, p. 494), poder significa “a porção de
matérias que a Constituição distribui entre
as entidades autônomas e que passam a
compor seu campo de atuação governa-
mental, suas áreas de competência”. Então,
a competência determina a “esfera delimi-
tada de poder que se outorga a um órgão ou
entidade estatal, mediante a especificação
de matérias sobre as quais se exerce o poder
de governo” (SILVA, 2002, p. 494).
Portanto, a divisão de poderes opera-se
Paulo Mohn é Mestre em Direito e Políticas
principalmente pela repartição de compe-
Públicas (Uniceub), Especialista em Direito Pú-
blico (IDP) e Consultor Legislativo do Senado
tências, que representa “o ponto fulcral
Federal. a ser considerado em uma Constituição

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Federal” (BARACHO, 1997, p. 61). Afinal, com exclusão da participação dos demais
observa Horta (2002, p. 308) que “a decisão (FERREIRA FILHO, 1997, p. 151; 2007, p.
a respeito da repartição de competências 55). Nesse sentido, pode-se dizer que a
condiciona a fisionomia do Estado federal, repartição horizontal opera uma repartição
para determinar os graus de centralização e material das competências.
de descentralização do poder federal”. No modelo norte-americano, as com-
Este trabalho pretende oferecer uma petências da União estão expressamente
descrição analítica do sistema de repartição relacionadas na Constituição (competên-
de competências implantado no Brasil pela cias enumeradas) e aos Estados-membros
Constituição Federal de 1988. Para tanto, correspondem todas aquelas que não são
realiza breve apresentação dos modelos atribuídas à autoridade federal nem veda-
gerais de repartição de competências (dual das às autoridades estaduais (competências
e cooperativo), para depois analisar especi- remanescentes).
ficamente o sistema brasileiro, examinando Explica Schwartz (1993, p. 9) que a
as competências privativas da União, as preocupação dominante dos autores da
remanescentes dos Estados, as privativas Constituição Federal era assegurar que o
dos Municípios, as comuns (materiais) e governo federal não fosse tão poderoso que
as concorrentes (legislativas). tragasse os Estados que comporiam a na-
ção. Para tanto, limitaram o governo federal
2. Os modelos de repartição a uma lista específica de poderes essenciais
de competências a seu funcionamento efetivo, enumerados
na Constituição, ao mesmo tempo em que
Conforme Horta (2002, p. 308), as for- reservaram todo o resto de autoridade aos
mulações constitucionais de repartição de Estados. O que era necessário, na visão
competências podem ser reduzidas a dois dos founding fathers, era que cada governo
modelos principais, que qualifica como se limitasse a sua própria esfera e, dentro
clássico e moderno. Ferreira Filho (1997, p. desta esfera, fosse independente do outro.
150; 2007, p. 56) denomina esses modelos, O constituinte norte-americano não
respectivamente, de federalismo dual e de viu necessidade de enumerar os poderes
federalismo cooperativo. Mas tanto em uma dos Estados-membros, pois pressupôs
denominação, quanto na outra, os modelos a preexistente organização desses entes
correspondem à aplicação de técnicas dis- (HORTA, 2002, p. 309). Contudo, como
tintas de repartição de competências: a hori- surgiram dúvidas sobre a questão, sobre-
zontal e a vertical (ALMEIDA, 2005, p. 33). veio a Décima Emenda, ratificada em 1791,
cujo texto expressamente estabelece que “os
2.1. A repartição horizontal de
poderes que não tenham sido delegados
competências e o federalismo dual
aos Estados Unidos pela Constituição e não
O modelo clássico foi inaugurado tenham sido proibidos por ela aos Estados
pela Constituição dos Estados Unidos da serão reservados, respectivamente, aos
América e praticado em outros países, Estados ou ao povo” (ALMEIDA, 2005, p.
principalmente nos séculos XVIII e XIX. 48; SCHWARTZ, 1993, p. 13).
Nele, atua a repartição horizontal de com- Em vista dessa separação estanque de
petências, que opera a separação radical competências entre as duas esferas federati-
de competência entre os entes federativos, vas, de modo que uma não pode participar
por meio da atribuição a cada um deles de na outra, é que se denomina esse modelo de
uma área própria, denominada competên- federalismo dual. Os Estados e a União são
cia privativa ou exclusiva, consistente em concebidos como rivais iguais e a delimi-
toda uma matéria (do geral ao particular), tação de competências é estabelecida para

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evitar que a União sofra uma ruptura ou ra Mundial com a finalidade de estabelecer
que haja uma expansão da autoridade fede- uma atuação coordenada entre as esferas
ral (SCHWARTZ, 1993, p. 26). Essa divisão federativas. Assim, uma mesma matéria é
rígida somente encontrava exceção na atri- dividida entre os diversos entes federati-
buição ao Congresso de competência para vos, de forma concomitante, operando uma
elaborar as leis necessárias e adequadas ao distribuição funcional de competências.
exercício dos poderes especificados e dos Surgem, então, as competências concor-
demais poderes conferidos pela Constitui- rentes (legislativas) e comuns (administra-
ção ao governo federal, seus departamentos tivas), que admitem a atuação de mais de
e funcionários. Disso extraiu-se a cláusula um ente federativo em uma mesma matéria
de competências implícitas da União, pela (ALMEIDA, 2005, p. 49; FERREIRA FILHO,
qual a Suprema Corte operou a interpre- 1997, p. 151 e 178).
tação extensiva das competências federais A competência concorrente, por sua vez,
(ALMEIDA, 2005, p. 48). pode ser de duas espécies: a cumulativa e a
Schwartz (1993, p. 29) verifica, ainda, não-cumulativa (FERREIRA FILHO, 1997,
uma interessante conexão do federalismo p. 182). Se a matéria pode estar integral-
dual com a teoria do laissez-faire da função mente afeta a todos os entes federativos,
governamental, que dominou o pensamen- sem limites prévios para o exercício da
to político e econômico até o início do século competência por cada um deles, trata-se
XX. Para essa teoria, o sistema econômico de competência concorrente cumulativa.
funciona mais eficientemente se for deixado Entretanto, se dentro de um mesmo campo
livre da interferência governamental. Afinal, material, a competência é fracionada em ní-
relegar determinada matéria ao controle es- veis, cada qual correspondente a um plano
tadual pode significar, muitas vezes, negar- na escala federativa, classifica-se tal com-
lhe o caráter uniforme necessário para uma petência como concorrente não-cumulativa.
regulamentação econômica efetiva, do que Esse é o caso típico de repartição da com-
resulta, na verdade, o impedimento de sua petência legislativa em diferentes níveis: a
regulamentação apropriada. Não obstante, um se atribui o estabelecimento de normas
o federalismo dual não foi capaz de refrear a gerais; e a outro, de normas particulares
tendência de incremento dos poderes fede- ou específicas. Essa última espécie é a que
rais. Ao contrário, assistiu-se, especialmente propriamente estabelece uma repartição
pela interpretação da Constituição pela Su- vertical de competências (FERREIRA FI-
prema Corte, a uma ampliação progressiva LHO, 1997, p. 183).
dos poderes da União, que aos poucos foi O federalismo cooperativo representou
reunindo matérias que permaneciam, de uma nova conformação do Estado federal,
certo modo, indeterminadas nas compe- com maior participação de uma esfera em
tências residuais dos Estados (ALMEIDA, outra no desempenho das competências.
2005, p. 49). Esse fenômeno foi reforçado Sua configuração e os mecanismos ado-
pela mutação da posição do Estado, após a tados para a cooperação entre os entes
1a Guerra Mundial, perante a economia, a federativos não foi uniforme nos diversos
sociedade e o desenvolvimento nacional. Estados federais.
Mais uma vez, vale tomar os Estados
2.2. A repartição vertical de Unidos da América como paradigma.
competências e o federalismo Nesse país, o federalismo cooperativo é
cooperativo entendido como aquele que foi colocado
Como alternativa ao formato clássico, em prática após o New Deal, na década de
destacou-se a técnica de repartição vertical 1930, e que se caracterizou pela crescente
de competências, concebida após a 1a Guer- intervenção do governo federal sobre a

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atuação dos governos estaduais, por meio riamente em um longo elenco de matérias.
de políticas econômicas e sociais que aspi- Havia, ainda, a possibilidade de a União
ravam a uma atuação conjunta dos distintos estabelecer regras de princípio sobre deter-
níveis federais, utilizando-se de mecanis- minadas matérias, ficando o detalhamento
mos como as subvenções condicionadas delas a cargo das leis estaduais. Vigorava,
à aceitação de padrões e a submissão de ainda, a regra de que o direito federal preva-
controles federais, com a aquiescência da lece sobre o estadual. Essa Constituição não
Suprema Corte (ALMEIDA, 2005, p. 36; chegou, portanto, a significar uma descen-
SOMMERMANN, 2003, p. 2.284; ZIMMER- tralização acentuada de poderes. O avanço
MANN, 1999, p. 56). veio com a Constituição austríaca, de 1920,
Ocorre que, como demonstra Schwartz que distribuiu as competências da seguinte
(1993, p. 30-31), a teoria do laissez-faire e o fe- forma: a Federação recebeu a competência
deralismo dual mostraram-se inadequados de legislação e de execução sobre matérias
para atender aos problemas apresentados predeterminadas; em outras, a Federação
pela Grande Depressão de 1929, pois era re- ficou com a legislação e os Estados (Länder)
querida uma maior intervenção do governo com a execução; e, em numerosas matérias,
federal para recuperar a economia nacional. reservou-se à Federação a legislação de
Se antes o governo deveria ser apenas regu- princípios e aos Estados a legislação de
lamentador e negativo, passou-se a exigir aplicação e de execução. Foi mantida, tam-
dele uma atuação positiva, de intervenção bém, a regra de competência remanescente
nos assuntos econômicos e sociais em escala para os Estados. Ou seja, rompeu-se com o
nacional. Isso somente estava ao alcance do exclusivismo de legislação na Constituição
governo federal, que, para tanto, deveria austríaca e foi estabelecido um sistema de
atuar de forma coordenada com os Estados. comunicação entre a legislação da Federa-
A partir de então, a Suprema Corte passou ção e a de execução dos Estados. Não obs-
a interpretar a Décima Emenda como um tante, a Constituição austríaca preservou
mero truísmo (de que tudo que não foi cedi- elementos centralizadores, provenientes
do se conserva) e reconhecer a competência da tradição monárquica (HORTA, 2002, p.
federal em matérias de interesse local que ti- 312; ALMEIDA, 2005, p. 50).
vessem repercussão nacional. Disso resultou Esse modelo foi aperfeiçoado pela Lei
uma necessária cooperação entre os níveis Fundamental da República Federal da
federativos, marcada pelo predomínio do Alemanha, de 1949, que introduziu ino-
poder federal (SCHWARTZ, 1993, p. 36). vações significativas na organização do
Contudo, a experiência que mais ca- Estado federal. Na síntese de Horta (2002,
racteriza o federalismo cooperativo é a da p. 313), a repartição de competências do
Alemanha, cujo funcionamento não recai novo federalismo alemão compreendeu
sobre as mesmas bases da norte-americana, dois segmentos fundamentais: o da legis-
mas sim na técnica de repartição vertical lação exclusiva da Federação (União) e o
de competências (distribuição funcional) da legislação concorrente ou comum. Esta
entre os entes federativos. Esse modelo tem se caracterizava como uma competência
suas origens na Constituição alemã de 1919 mista, a ser explorada tanto pela Federação
(Constituição de Weimar) e na Constituição quanto pelos Estados, e era mais numerosa
austríaca de 1920, mas ganhou forma e do que a exclusiva da Federação.
aplicação nas Constituições desses países Ainda conforme Horta (2002, p. 313), no
posteriores à 2a Guerra Mundial. domínio da legislação concorrente, que reú-
A Constituição de Weimar relacionava ne matérias de grande importância, a priori-
as competências legislativas exclusivas da dade de legislar é dos Estados, admitindo-se
União (Reich) e o direito de legislar priorita- o exercício da legislação federal com o fim

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de preencher a necessidade de legislação antes da Constituição de 1988, se tratava
uniforme, dentro de critérios constitucio- “quase de um Estado unitário redivivo”.
nais (art. 72). Nessas mesmas condições, a A tendência centralizadora, que se
Federação tem o direito de estabelecer nor- identifica em muitas federações, teve gran-
mas gerais, a serem complementadas pelos de intensidade no Brasil. Proveniente da
Estados para regular as suas especificidades descentralização de um Estado unitário,
(art. 75). Mantém-se a prevalência da legis- a federação brasileira mostrou, desde seu
lação federal sobre a estadual (art. 31), mas nascedouro, certo artificialismo, que se
os Estados detêm a competência remanes- traduziu em disposições constitucionais
cente (art. 70) e podem legislar em matéria que acabavam por se confrontar com a re-
exclusiva da União se houver autorização alidade. Tanto assim que, em seu primeiro
expressa por lei federal (art. 71). século de existência (1889-1988), a federa-
Além disso, a execução das leis federais é ção brasileira contou com apenas metade
atribuída aos Estados como matéria própria, desse tempo de efetividade e prática, sendo
salvo disposição em contrário (art. 83), po- o restante coberto por períodos de vigência
dendo também lhes caber essa execução por meramente formal nas Constituições.
delegação da União (art. 85). Nesses casos, os A Constituição de 1988 consolidou a
Estados podem regulamentar a organização redemocratização brasileira e ensejou, entre
dos órgãos públicos e procedimentos admi- outras expectativas, a da restauração de um
nistrativos, salvo disposição em contrário federalismo mais efetivo. Ocorre que, con-
de leis federais, admitindo-se, ainda, que o forme registra Silva (2002, p. 475), a reparti-
governo federal determine preceitos admi- ção regional e local de poderes depende da
nistrativos de caráter geral (arts. 84 e 85). natureza e do tipo histórico de federação.
Em todo caso, essas disposições ensejam No Brasil, em face da concentração de po-
maior participação dos Estados (ALMEIDA, der no governo central, de origem histórica
2005, p. 53), que também podem receber a e dimensão acentuada durante os governos
colaboração da União em tarefas julgadas militares, o esperado ressurgimento de um
importantes para a coletividade ou de inte- federalismo de equilíbrio passou a ser visto
resse comum para a melhoria das condições como um processo de descentralização do
de vida, conforme lei federal (art. 91-A). Por poder para os entes federados.
tudo isso, Horta (2002, p. 313-314) entende O imperativo de redistribuição de poder
que a Lei Fundamental de Bonn institui um resultou em um intrincado sistema de repar-
modelo de federalismo de equilíbrio, por tição de competências, com “a combinação
meio do qual “o indispensável exercício de praticamente tudo o que já se experimen-
dos poderes federais não venha inibir o tou na prática federativa” (ALMEIDA, 2005,
florescimento dos poderes estaduais”. p. 74). O princípio geral que norteia a re-
partição de competência entre as entidades
do Estado federal, segundo Silva (2002, p.
3. A repartição de competências
477), é o da predominância de interesse, pela
na Constituição de 1988 qual cabe à União as matérias de interesse
A história da federação brasileira não é nacional, enquanto compete aos Estados as
retilínea. Ao contrário, caracteriza-se por matérias de interesse regional e aos Municí-
períodos cíclicos de breves expansões e de pios as matérias de interesse local.
longas restrições à autonomia dos entes No sistema da Constituição de 1988, con-
federativos, com consequentes retrações ou vivem a repartição horizontal e a repartição
alargamentos dos poderes e competências vertical de competências. Sob a orientação de
da União. Tal percurso autoriza Almeida repartição horizontal, foram relacionadas as
(2005, p. 44) a concluir que, pelo menos até competências da União, no campo material

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e legislativo, permanecendo os Estados com mente em função do tratamento que deu à
as competências remanescentes e os Municí- competência legislativa” (ALMEIDA, 2005,
pios com as competências definidas indicati- p. 76). Para Horta (2002, p. 446), a “tarefa de
vamente (BRASIL, 1988, arts. 21, 22, 25 e 30). reconstrução e de retificação não se limitou a
O Distrito Federal acumula as competências repor o edifício demolido na sua arquitetura
estaduais e municipais, com poucas exceções anterior”, mas se projetou “além da edifi-
(arts. 21, XIII, XIV, e 22, XVII ). cação reconstruída, para introduzir novos
Quanto à repartição vertical, ela se aplica fundamentos e modernizar o federalismo
onde possa haver atuação concorrente dos constitucional brasileiro”. Desses novos
entes federativos. Foram previstos domínios fundamentos, o autor destaca a singular
de execução comum, em que pode ocorrer inclusão do Município como um dos entes
a atuação concomitante e cooperativa entre que compõem a “união indissolúvel da Re-
União, Estados, Distrito Federal e Municípios pública Federativa” (BRASIL, 1988, art. 1o)
(BRASIL, 1988, art. 23). No campo legislati- e a diversificação da repartição de compe-
vo, foram definidos domínios de legislação tências, com inspiração na Lei Fundamental
concorrente, nos quais a União estabelece as de Bonn, distribuída, a partir de então, em
regras gerais, a serem suplementadas pelos diversos domínios (HORTA, 2002, p. 446).
Estados, Distrito Federal e pelos Municípios Almeida (2005, p. 77) faz uma avaliação
(BRASIL, 1988, arts. 24 e 30, II). positiva, em tese, do sistema de repartição de
De forma não sistemática, também há competências configurado na Constituição
previsão de competência legislativa concor- de 1988, entendendo ser “potencialmente
rente em alguns domínios que a Constituição hábil a ensejar um federalismo de equilí-
atribui como privativos da União (BRASIL, brio”. Identifica nas competências comparti-
1988, art. 22, IX, XXI, XXIV, XXVII). Ainda lhadas (legislativas concorrentes e materiais
nas matérias privativas da União, admite-se comuns) mecanismos que podem levar à
a possibilidade de delegação aos Estados do ampliação dos horizontes e ao incentivo da
poder de legislar sobre questões específicas criatividade dos Estados. Argumenta, po-
(BRASIL, 1988, art. 22, par. único). rém, que um juízo mais definitivo depende
A repartição de competências da Cons- do conteúdo das competências privativas e
tituição de 1988 seguiu as linhas do fede- compartilhadas previstas no sistema.
ralismo contemporâneo europeu, mais
especificamente da Lei Fundamental de 3.1. As competências privativas da União
Bonn (HORTA, 2002, p. 446), de onde Desde a origem do federalismo, cons-
buscou várias de seus preceitos. Lembra tam nas constituições federais a enume-
Almeida (2005, p. 76) que a Constituição ração dos poderes da União. Esse rol se
brasileira de 1934 também serviu como fez necessário porque ali se continham as
fonte de inspiração para o constituinte de competências conferidas pelos Estados ao
1987/88, particularmente quanto ao rol de poder federal que constituíam, permane-
competências materiais comuns (BRASIL, cendo as competências remanescentes com
1934, art. 10), cujo conteúdo foi parcial- os próprios Estados. Entretanto, os poderes
mente repetido pela Constituição de 1988 federais foram gradativamente estendidos,
(BRASIL, 1988, art. 23). não só pela enumeração de competências,
O modelo adotado teve a pretensão mas também por mecanismos como a teoria
de tirar o melhor proveito da utilização dos poderes implícitos.
das competências concorrentes, que havia Não obstante, jamais deixou de ser ne-
significado um avanço, na Alemanha, “no cessária a enumeração das competências da
sentido de propiciar um relacionamento União. As constituições federais brasileiras
federativo melhor balanceado, principal- não fogem a essa regra. Apesar de toda a

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largueza que os poderes federais assumi- competência da União, que não deixa muito
ram na história, sempre houve nos textos para os Estados”. Comparando-o com os
constitucionais um rol que delimitava (ou preceitos equivalentes nas Constituições de
procurava delimitar) os poderes da União. 1891 e 1946, revela-se o acentuado processo
Tradicionalmente, porém, as constituições de centralização pelo qual passou o Estado
brasileiras reuniram, em um só dispositivo, federal brasileiro.
tanto as competências materiais quanto as Em comparação com o regime consti-
legislativas. Por exemplo, no regime cons- tucional precedente, Almeida (2005, p. 91)
titucional anterior, elas estavam juntas no registra que as competências materiais da
art. 8o (BRASIL, 1967, art. 8o). A novidade União foram ampliadas na Constituição de
da Constituição de 1988 foi cindir a enume- 1988. Avalia que essa não era a intenção dos
ração de competências privativas da União constituintes, a julgar pelo desejo de descen-
em dois artigos: o art. 21 para as competên- tralização dos poderes que foi divulgado à
cias materiais e o art. 22 para as legislativas época dos trabalhos, mas o que resultou da
(BRASIL, 1988, arts. 21 e 22). elaboração da nova Carta Política foi um
reforço dos poderes da União. Acredita,
3.1.1. As competências materiais então, que os constituintes de 1987/88 se
privativas da União deram conta de que os poderes que a União
O art. 21 reúne as competências ma- detinha no regime constitucional anterior
teriais da União, isto é, as atividades e deveriam, realmente, estar sob seu encargo.
encargos que a União está habilitada a A autora conclui que “a grande maioria
desempenhar, sejam elas de cunho político, dos poderes arrolados não poderia deixar
administrativo, econômico ou social (AL- de estar ali”, ora porque se enquadravam
MEIDA, 2005, p. 84). Ou seja, reúnem-se na categoria dos poderes que somente po-
nesse dispositivo as competências de índole deriam ser exercidos por quem representa
executiva ou não-legislativa da União. a unidade do Estado federal, ora porque
Ferreira Filho (1997, p. 151) vê uma tê- articulam soluções para problemas que
nue tendência de reversão da centralização afetam mais de um ou todos os Estados-
na Constituição de 1988, embora constate membros (ALMEIDA, 2005, p. 91).
que o art. 21, mais do que nenhum outro, re- Com efeito, justificam-se como sendo da
vela a realidade da federação brasileira, ao União as competências reunidas nos três
mostrar, “insofismavelmente, a vastidão da agrupamentos a seguir:

Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal
I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de orga-
nizações internacionais;
II – declarar a guerra e celebrar a paz;
III – assegurar a defesa nacional;
Autoridade do Estado no plano in- IV – permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças
ternacional, guerra e paz, e defesa do estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam
território temporariamente;
VI – autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material
bélico;
XXII – executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de
fronteiras (redação dada pela EC 19/1998);
Proteção da ordem constitucional em V – decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção
momentos de crise federal;
VII – emitir moeda;
VIII – administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as opera-
Moeda e câmbio
ções de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e
capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;

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Também devem ser da União as compe- gurança. Igualmente, são de índole federal
tências referentes ao Distrito Federal, pelas os serviços oficiais de estatística, geografia,
especificidades que este ente federativo geologia e cartografia de âmbito nacional.
apresenta em termos institucionais e de se- Esses grupos estão representados abaixo:

Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal
XIII – organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a
Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios;
XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de
Distrito Federal
bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência
financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por
meio de fundo próprio (redação dada pela EC 19/1998).
XV – organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia,
Serviços oficiais
geologia e cartografia de âmbito nacional;

O próximo agrupamento, porém, enseja tre as competências privativas da União:


alguma polêmica acerca de sua inserção en-
Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal
IX – elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do
Planos de ordenação do território território e de desenvolvimento econômico e social;
e de desenvolvimento econômico XVIII – planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades
e social, calamidades públicas, públicas, especialmente as secas e as inundações;
desenvolvimento urbano. XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habi-
tação, saneamento básico e transportes urbanos;

Almeida (2005, p. 91) sugere que al- Outra competência privativa da União
gumas dessas competências poderiam que se pode questionar refere-se à área do
compor o rol de competências comuns. planejamento nacional e regional. Almeida
Uma delas seria a de planejar e promover (2005, p. 92) lembra que o planejamento é
a defesa permanente contra as calamida- informado pelos princípios da “unidade
des públicas (inc. XVIII), especialmente as por integração” e da “globalidade”, o que
secas e inundações. O socorro aos Estados resulta em dificuldade de conciliação com
em caso de calamidade pública foi o pri- a autonomia das unidades federadas. Con-
meiro (e único, à época) instrumento de tudo, argumenta a autora, embora possa
cooperação entre eles e a União (BRASIL, utilizar-se de processos de centralização
1891, art. 5o) e serviu, muitas vezes, como autocráticos, o planejamento pode valer-se
instrumento de interferência federal nos de medidas de coordenação com a forma
assuntos de economia interna dos Estados. federativa, por meio da concertação dos
Para Ferreira Filho (1997, p. 161), o apelo à planos federal e estaduais. Isso depende-
União para que prestasse socorro às secas ria do desenvolvimento que se desse à lei
do Nordeste “foi um fator importantíssimo que “estabelecerá as diretrizes e bases do
que ponderavelmente contribuiu para a planejamento do desenvolvimento nacional
centralização no federalismo brasileiro”. equilibrado, o qual incorporará e compa-
Apesar da relevância da atuação da União, tibilizará os planos nacionais e regionais
especialmente na função de planejamento, de desenvolvimento” (BRASIL, 1988, art.
não se justifica que essa competência não 174, § 1o).
seja compartilhada com os próprios entes A competência para “elaborar e executar
federativos envolvidos nas reiteradas planos nacionais e regionais de ordenação
ocorrências. do território e de desenvolvimento econô-

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mico e social” (inc. IX) coloca a União em mínio, pelo menos, encontra-se restrita à
posição de força em relação aos demais concepção de diretrizes, embora aquele que
entes federativos, sobretudo se for conside- as elabora possa impor e controlar padrões
rado que serão buscadas ações em prol da de comportamento, tal como demonstrou a
eficiência das medidas, que muitas vezes experiência norte-americana. Não obstante,
demandam uniformidade para obtenção Ferreira Filho (1997, p. 162) identifica na
de ganhos de economia de escala. Vale disposição um “inegável sentido centraliza-
observar que a competência envolve não dor”, pois essas matérias eram, tradicional-
só a elaboração, mas também a execução de mente, de peculiar interesse municipal.
planos nacionais e regionais, o que enseja Algumas das competências materiais
evidente interferência na economia interna deferidas à União têm relação com a sua
dos entes federativos. Pondera Ferreira Filho competência legislativa. Um exemplo é a
(1997, p. 156) que a União não poderá obri- concessão de anistia, que decorre da com-
gar os Estados a observar o plano regional, petência de legislar sobre direito penal, pois
“embora não lhe faltem maneiras de induzi- ela “consiste ato que apaga para todos os
los a tanto, especialmente por expedientes efeitos uma infração penal” (FERREIRA
financeiros”. O autor também vislumbra FILHO, 1997, p. 160). Além disso, ela é usu-
problemas nos planos de ordenação do almente aplicada a crimes políticos. Outro
território, já que esbarram na autonomia es- caso é o da atividade de garimpagem, que se
tadual e municipal. Inclusive, lembra que a relaciona com a disciplina legal, a cargo da
própria Constituição defere aos Municípios União, das jazidas, minas e outros recursos
a competência para dispor sobre o que for minerais (BRASIL, 1988, art. 22, XII). O mes-
de interesse local e nisso se inclui o plano mo se pode dizer com relação à inspeção
diretor (BRASIL, 1988, arts. 30, I e 182). do trabalho, pois a legislação sobre direito
A interferência da União também se do trabalho é exclusiva da União. Nesse
manifesta na competência de “instituir aspecto, contudo, se poderia cogitar de uma
diretrizes para o desenvolvimento urbano, atuação conjunta dos entes federativos, o
inclusive habitação, saneamento básico e que resultaria em melhor desempenho da
transportes urbanos” (inc. XX). Nesse do- atividade de fiscalização do trabalho.
Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal

Anistia XVII – conceder anistia;

Inspeção do trabalho XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;

XXV – estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de


Garimpo
garimpagem, em forma associativa.

Outras tantas competências se referem de tratamento em nível nacional, seja por


a diretrizes, exploração, concessão ou per- sua natureza, por razões de relação custo-
missão de serviços públicos que o consti- investimento ou de conveniência estratégi-
tuinte entendeu deverem ter uniformidade ca. São as referentes às seguintes áreas:
Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal
X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;
XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou per-
Comunicações (serviço postal e
missão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá
telecomunicações)
sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros
aspectos institucionais (redação dada pela EC 8/1995);

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 223


Incisos do artigo 21 da
Agrupamento
Constituição Federal
XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou per-
missão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens (redação dada
Rádio e televisão
pela EC 8/1995);
XVI – exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas
e de programas de rádio e televisão;
XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou per-
missão:
b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento ener-
Água e energia elétrica gético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam
os potenciais hidroenergéticos;
XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e
definir critérios de outorga de direitos de seu uso;
XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou per-
missão:
c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;
d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasi-
leiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado
Transporte, navegação e viação ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de
passageiros;
f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
XXI – estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de via-
ção;
XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza
e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e
reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e
seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida
para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização
Serviços e instalações nucleares
de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais
(redação dada pela EC 49/2006);
c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização
e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas;
(redação dada pela EC 49/2006);
d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência
de culpa (redação dada pela EC 49/2006);

O elenco do art. 21, porém, não esgota 3.1.2. As competências legislativas


as competências materiais privativas da privativas da União
União, que podem ser encontradas também
em outros dispositivos da Constituição de Há uma correspondência entre as com-
1988. Entre eles, podem ser lembrados: art. petências materiais da União e as suas com-
164 (emitir moeda); art. 176 (pesquisa e la- petências legislativas (FERREIRA FILHO,
vra de recursos minerais e aproveitamento 2007, p. 62), porque, na maior parte das ve-
de energia hidráulica); art. 177 (petróleo, zes, a execução da atividade deve basear-se
gás natural e outros hidrocarbonetos); art. em uma norma legal emanada do próprio
184 (desapropriação para fins de reforma ente. Por isso, existe uma correlação entre
agrária); art. 194 (organizar a seguridade o art. 21 (competência material) e o art. 22
social); art. 198 (organizar o sistema único (competência legislativa) da Constituição
de saúde); art. 214 (estabelecer o plano (BRASIL, 1988, arts. 21 e 22). Isso ocorre
nacional de educação). nos casos seguintes:

224 Revista de Informação Legislativa


Incisos do artigo 22 da
Agrupamento
Constituição Federal
IV – águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;
V – serviço postal;
VI – sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;
VII – política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;
IX – diretrizes da política nacional de transportes;
X – regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e
Competências legislativas com
aeroespacial;
equivalência nas competências
XII – jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia;
materiais do art. 21, ou conexas
XVII – organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública
a elas.
do Distrito Federal e dos Territórios, bem como organização administrativa
destes;
XVIII – sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais;
XXVI – atividades nucleares de qualquer natureza;
XXVIII – defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa
civil e mobilização nacional.

O mesmo se dá com algumas competên- Nessa hipótese, o quadro a seguir indica os


cias materiais da União que estão previstas, dispositivos correspondentes em colchetes
de modo esparso, no texto constitucional. que se seguem à transcrição dos incisos:
Incisos do artigo 22 da
Agrupamento
Constituição Federal
XIV – populações indígenas [ver art. 231];
XXII – competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária
Competências legislativas com
federais [ver art. 144, §§ 1o a 3o].
equivalência nas competências
XXIII – seguridade social [ver art. 194];
materiais da União esparsas na
XXIV – diretrizes e bases da educação nacional [ver art. 211];
Constituição, ou conexas a elas.
XXV – registros públicos [ver art. 236];
XXIX – propaganda comercial [ver art. 220, §§ 3o, II e 4o]

Outros domínios, embora não tenham nados pela instância federal, porque dizem
correspondência imediata com as compe- respeito à nação e sua relação com o exterior
tências materiais do art. 21 ou de normas e os estrangeiros:
esparsas, são assuntos tipicamente discipli-
Incisos do artigo 22 da
Agrupamento
Constituição Federal
VIII – comércio exterior e interestadual;
Competências legislativas tipica- XIII – nacionalidade, cidadania e naturalização;
mente federais XV – emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estran-
geiros;

Em alguns casos, a competência legis- caráter nacional, para fomentar uma ação
lativa da União foi determinada porque se ordenada e uniforme na área. Esses grupos
entendeu necessário constituir sistemas de estão relacionados a seguir:
Incisos do artigo 22 da
Agrupamento
Constituição Federal
XI - trânsito e transporte;
XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o
Sistemas de caráter nacional exercício de profissões;
XIX - sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular;
XX - sistemas de consórcios e sorteios;

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 225


Mas o art. 22 vai além das competências federativos, principalmente quanto à
legislativas da União que se dirigem às prerrogativa de autolegislação. Em geral,
suas próprias competências de execução a motivação para isso é conferir um único
ou coordenação. Ele também contempla tratamento para o tema em todo o País,
domínios de legislação que têm incidên- evitando desigualdades e distorções que
cia sobre todos os cidadãos ou entes da poderiam ser provocadas por disciplinas
federação. Nesse caso, a Constituição distintas nos entes federados. Esse o caso
Federal acaba, muitas vezes, por proce- típico das matérias jurídicas, relacionadas
der a limitação na autonomia dos entes no quadro abaixo:

Agrupamento Incisos do artigo 22 da Constituição Federal


I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo,
Jurídicas
aeronáutico, espacial e do trabalho;

As competências da União na área do à sua finalidade, mas observa que, pelo


direito, que contempla cada vez mais domí- menos, foram passados para a legislação
nios desde a Constituição de 1934, dão en- concorrente os “procedimentos em matéria
sejo ao que se pode chamar de centralização processual” e a “criação, funcionamento e
jurídica (FERREIRA FILHO, 1997, p. 165). processo do juizado de pequenas causas”
Para Almeida (2005, p. 102), é adequado (BRASIL, 1988, art. 24, inc. X e XI).
que o direito substantivo provenha de fonte Dois incisos do art. 22 tratam da disci-
única, pois a disparidade de ordenamentos plina de institutos que promovem interfe-
provocaria incerteza e insegurança nas rência no direito de propriedade: a desa-
relações jurídicas estabelecidas entre par- propriação e a requisição civil ou militar.
tes domiciliadas em Estados distintos. A Por tratar de assuntos previstos nos direitos
autora concorda com Ferreira Filho (1997, e garantias fundamentais (BRASIL, 1988,
p. 165) no sentido de que o direito proces- art. 5o, XXIV e XXV), o constituinte houve
sual deveria ser adaptado às condições de por bem defini-los como de competência
cada região, para que atendesse melhor da União:
Agrupamento Incisos do artigo 22 da Constituição Federal
II – desapropriação;
Interferência na propriedade III – requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo
de guerra;

Finalmente, quatro incisos do art. locação nas competências privativas enseja


22 prevêem a competência privativa da uma inadequação técnica, porque aquelas
União para editar “diretrizes” ou “nor- expressões impõem uma repartição verti-
mas gerais” nas matérias que menciona. cal de competências. São os seguintes os
Conforme Almeida (2005, p. 103), sua co- incisos:
Agrupamento Incisos do artigo 22 da Constituição Federal
IX – diretrizes da política nacional de transportes;
XXI – normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias,
convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros
militares;
XXIV – diretrizes e bases da educação nacional;
Normas gerais
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades,
para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no
art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista,
nos termos do art. 173, § 1o, III (redação dada pela EC 19/1998).

226 Revista de Informação Legislativa


Os incisos IX e XXIV constam nos Sundfeld (1993, p. 277) indica como
quadros anteriores, relacionados entre motivo de inclusão do tema das licitações
as matérias legislativas que têm conexão no art. 22 o fato deste dispositivo conferir
com competências materiais da União. A a competência legislativa de normas gerais
competência da União para dispor sobre para a União, sem outorgar competência
normas gerais de organização das polícias suplementar aos Estados, tal como ocorreria
militares e corpos de bombeiros, segundo no art. 24. Para o autor, permite-se, com isso,
Ferreira Filho (1997, p. 175), tem origem na que os Municípios exerçam poderes equiva-
ameaça que essas forças representam para o lentes aos dos Estados com relação à matéria,
nível federal, conforme comprova a história o que não poderia ocorrer se o tema fosse
– e de que é exemplo a Revolução Constitu- contemplado nas competências concorrentes
cionalista de 1932 –. Por isso, consagrou-se entre União e Estados do art. 24.
a tradição constitucional de a União exercer Uma questão relacionada é saber se a
controle, aumentado progressivamente, previsão de legislação sobre normas gerais
sobre as forças militares estaduais. no art. 22 resulta na impossibilidade de os
Quanto à competência para editar nor- Estados exercerem a competência legislativa
mas gerais de licitação e contratação, ela plena, se não existir lei federal sobre o tema
tem origem na interpretação, sob o regime (art. 24, § 3o). E, nesse caso, se os Municípios
constitucional anterior, de que a licitação poderiam dispor livremente sobre a matéria,
se enquadrava como matéria de direito no âmbito do interesse local (art. 30, I), ou se
financeiro, para concentrá-la na União somente poderiam suplementar as disposi-
(ALMEIDA, 2005, p. 102; FERREIRA FI- ções estaduais (art. 30, II). O que se mostra
LHO, 1997, p. 177). A Constituição de 1988 adequado, no caso, é que cada ente dispo-
reconheceu tratar-se de matéria de direito nha suas normas particulares, sem legislar
administrativo e, como tal, integrante da supletivamente sobre normas gerais, deven-
competência de cada ente federado. Con- do então recorrer a outros instrumentos de
tudo, o constituinte preferiu que a União preenchimento de lacuna, como a analogia
editasse normas gerais sobre o tema, tendo e os princípios gerais de direito.
em vista a conveniência de uniformização Por fim, é necessário registrar que as
da matéria e suas conexões com os princí- competências legislativas da União não
pios da impessoalidade e da moralidade estão integralmente previstas no art. 22.
(BRASIL, 1988, art. 37). Existem inúmeros outros dispositivos cons-
Almeida (2005, p. 104) sugere que os titucionais que prevêem a edição de lei para
dispositivos apontados deveriam constar regular assuntos de competência da União.
no art. 24 e não no art. 22. Para a autora, a O exemplo mais marcante disso é o art. 48,
competência legislativa suplementar, nesses que, ao dispor sobre as atribuições do Con-
casos, já é dos Estados “por direito próprio”, gresso Nacional, relaciona quinze incisos
pois compete à União apenas a normati- contendo domínios de legislação federal.
vidade geral (ALMEIDA, 2005, p. 106). A Não é à toa que existe, reconhecidamente,
interpretação do Supremo Tribunal Federal, legislação em profusão na área federal.
contudo, considera que o Estado-membro
atua, nessas situações, por intermédio do 3.1.3. Delegação de competências
exercício de sua competência remanescente legislativas privativas da União
(ARAÚJO, 2001, p. 115). Essa posição evita Provavelmente para compensar a con-
que seja deslocada, por via de interpreta- centração de domínios legislativos na área
ção, uma competência que a Constituição federal, a Constituição de 1988 admite
consagrou como privativa da União para o que lei complementar autorize os Estados
sistema de legislação concorrente. a legislar sobre questões específicas das

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 227


matérias relacionadas no art. 22 (BRASIL, 3.2. As competências
1988, art. 22, par. único). É uma tentativa de remanescentes dos Estados
resguardar algum campo de normatização
para os Estados, para disciplinarem sobre O art. 25, § 1o, da Constituição Federal
suas particularidades. traz a norma de atribuição de competências
Essa possibilidade não é uma inovação remanescentes, ao dispor que “são reserva-
do constituinte de 1987/88. Desde a Consti- das aos Estados as competências que não
tuição de 1937 já se previa faculdade equiva- lhes sejam vedadas por esta Constituição”
lente aos Estados, “quando se trate de ques- (BRASIL, 1988, art. 25). Essa disposição se
tão que interesse, de maneira predominante, estende ao Distrito Federal (BRASIL, 1988,
a um ou alguns Estados” (BRASIL, 1937, art. art. 32, § 1o).
17). Mas, na época, a lei estadual dependia A cláusula de atribuição das compe-
da aprovação do governo federal. tências remanescentes aos Estados está
Essa regra foi modificada nas Constitui- presente, com variações de redação, desde
ções seguintes, dando forma à legislação a primeira Constituição Federal brasileira,
supletiva ou complementar dos Estados, com inspiração no modelo norte-ameri-
prevista tanto no art. 6o da Carta de 1946, cano. Por causa do processo de formação
quanto no art. 8o, § 2o, da Carta de 1967. Em por segregação da federação brasileira,
ambas, essa possibilidade somente incidia Ferreira Filho (1997, p. 197) defende que
para algumas poucas competências legisla- era mais adequada a redação de 1967, que
tivas privativas da União, mas serviu como dizia serem “conferidos” aos Estados os
o germe da legislação concorrente no direi- poderes remanescentes, do que as de 1946 e
to constitucional brasileiro. A Constituição de 1988, que utilizaram o verbo “reservar”,
de 1988 não indicou quais matérias, entre porque os Estados-membros não detinham
as listadas no art. 22, podem ser objeto da poderes que pudessem ser reservados, mas,
delegação. Algumas delas não a admitem, ao contrário, receberam aqueles que o ente
como no caso das que regulam atividades central lhes atribuiu.
executadas pela União, ou daquelas que Tradicionalmente, os Estados permane-
não possam ter desdobramentos específicos ciam com as competências que não eram
nos Estados. conferidas à União. Como os Municípios
Questão interessante diz respeito à pos- foram erigidos a entes federativos, as com-
sibilidade ou não de a delegação dirigir-se petências estaduais passaram não só a ser
apenas a um ou alguns Estados. Ferreira comprimidas por cima, mas também por
Filho (1997, p. 178) admite essa hipótese, baixo. Atualmente, cabem aos Estados as
“caso em que a norma assim editada apenas competências que não se incluem entre as
terá eficácia no território deste”. Almeida competências que a Constituição confere,
(2005, p. 110), entretanto, rejeita que tal de- explicita ou implicitamente, à União ou aos
legação seja feita de forma desigual, em face Municípios. Assim, Ferreira Filho (1997, p.
do princípio da igualdade de tratamento 197) tem razão quando afirma que os Es-
tradicionalmente assegurado às entidades tados tiveram suas competências bastante
federadas, o que mantém a simetria de reduzidas em extensão e em importância.
nosso federalismo. Lamenta que não tenha Essas observações sobre a competência
sido utilizada a fórmula da Constituição remanescente dos Estados valem tanto para
de 1937, que admitia a delegação apenas o campo material quanto para a área legis-
quando se tratasse de questão de interesse lativa, uma vez que nem uma nem outra
de um ou alguns Estados, porque aí estaria se encontra discriminada na Constituição
possibilitado o tratamento diferenciado, o Federal.
que poderia contribuir para reduzir as desi- Fugindo à regra das competências enu-
gualdades regionais e sociais brasileiras. meradas estaduais, o § 2o do art. 25 prevê
228 Revista de Informação Legislativa
caber aos Estados explorar diretamente, dos Municípios e a sua divisão em distritos
ou mediante concessão, os serviços de gás dependiam de lei estadual (BRASIL, 1969,
canalizado (BRASIL, 1988, art. 25). A razão art. 14, par. único).
dessa menção expressa é que o setor inte- Como novidade, a Constituição faculta
ressa aos Estados e à União, em vista do aos Estados a instituição, por lei comple-
monopólio de pesquisa e lavra de jazidas de mentar, de regiões metropolitanas, aglome-
gás natural (BRASIL, 1988, art. 177, I), mas rações urbanas e microrregiões, constituídas
também aos Municípios, por se referir a ser- por agrupamentos de Municípios limítrofes,
viços locais. O constituinte encarregou-se para integrar a organização, o planejamento
de evitar conflitos e atribuiu a competência e a execução de funções públicas de interesse
aos Estados. Trata-se, aparentemente, de comum (BRASIL, 1998, art. 25, § 3o). Assim,
uma “liberalidade” que a União e os Muni- a criação das regiões metropolitanas, antes
cípios fizeram aos Estados, deixando-lhes, deferida à União, hoje cabe aos Estados.
pelo menos, essa área de competência. Além das regiões, os Estados podem
Fora essa, as competências materiais optar pela criação de outros entes intra-
privativas dos Estados resumem-se, na estaduais, como as aglomerações urbanas
verdade, a competências administrativas e e as microrregiões. O objetivo volta-se ao
financeiras. E a disciplina dessas matérias, planejamento, organização e execução de
por sua vez, forma quase todo o conjunto funções públicas de interesse comum. Entre-
das suas competências legislativas privati- tanto, Ferreira Filho (1997, p. 199) vislumbra
vas (ALMEIDA, 2005, p. 128). dificuldades na compatibilização dessa
As Constituições precedentes atribuíam finalidade com a autonomia municipal,
aos Estados a competência de criarem e especialmente pela condição de entes fede-
organizarem os Municípios e os distritos. rativos dos Municípios. Por isso, entende
Agora, a criação de Município, embora que as regiões, aglomerações urbanas e mi-
ainda exija lei estadual, tem sua disciplina crorregiões deverão desempenhar um papel
geral no art. 18 da Constituição Federal e, de coordenação, a ser exercido basicamente
depois da Emenda Constitucional no 15, de pela persuasão junto aos Municípios.
1996, também depende de lei complementar
federal. Esta norma veio conter o aumento 3.3. As competências privativas
do número de Municípios, ocorrido após dos Municípios
a Constituição de 1988, por meio de um Na atribuição das competências munici-
controle centralizado na União. pais, a Constituição de 1988 adotou um siste-
Com a elevação a ente federativo, o ma misto (BRASIL, 1988, art. 30). Nas compe-
próprio Município dispõe sobre sua orga- tências materiais, preferiu relacioná-las. Nas
nização, por meio de lei orgânica (BRASIL, legislativas privativas, adotou a tradicional
1988, art. 29). Quanto à criação, organização forma de não enumerar, dizendo-a circuns-
e supressão de distritos, trata-se agora de crita ao “peculiar interesse do Município”,
uma competência material dos Municípios, substituída, agora, para “interesse local”.
que deverão observar a legislação estadual Atribuiu ao Município, ainda, competências
pertinente (BRASIL, 1988, art. 30, IV). No legislativas concorrentes para suplementar
regime constitucional anterior, a criação a legislação federal e a estadual.

Incisos do artigo 30 da
Agrupamento
Constituição Federal
Competência legislativa privativa I – legislar sobre assuntos de interesse local;
Competência legislativa concor-
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
rente

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 229


Para definir as competências legislativas uma distinção entre elas, devendo preva-
privativas dos Municípios, a Constituição lecer o entendimento de que se referem
Federal diz caber-lhes legislar sobre as- ao interesse predominante do Município,
suntos de interesse local (BRASIL, 1988, e não do exclusivo, até porque este seria
art. 30, I). Em linhas gerais, esse é o critério atualmente de difícil possibilidade.
adotado para a delimitação das competên- Quanto às competências materiais
cias municipais: o do “peculiar interesse” privativas do Município, elas estão exem-
ou do “interesse local”. Aquela primeira plificadas em alguns incisos do art. 30, mas
expressão foi adotada desde a primeira podem ser buscadas no próprio conceito
Constituição Federal brasileira (BRASIL, de “interesse local” e, eventualmente, em
1891, art. 68); esta última foi utilizada ape- dispositivos esparsos da Constituição
nas na mais recente, provavelmente apenas Federal. São as seguintes as competências
para veicular de modo diferente o mesmo explicitamente enumeradas dos Municí-
conceito. De todo modo, não se identifica pios:

Incisos do artigo 30 da
Agrupamento
Constituição Federal
III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como
Tributária aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas
e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação esta-
dual;
Distritos e ordenamento territorial VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, me-
diante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação
do solo urbano;
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou per-
Serviços públicos missão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo, que tem caráter essencial;
VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
programas de educação infantil e de ensino fundamental (redação dada
Social (educação e saúde) pela EC 53/2006);
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
serviços de atendimento à saúde da população;
Proteção do patrimônio histórico- IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, obser-
cultural vada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A menção à competência tributária do Como já foi abordado, a elevação do


Município não tem equivalente na União e Município a ente federativo ensejou a
no Estado. Ela decorre da descrição que a transferência para ele da competência, ante-
própria Constituição Federal faz do sistema riormente pertencente ao Estado-membro,
tributário e, em especial, dos impostos do de criar, organizar e suprimir os distritos,
Município (BRASIL, 1988, art. 156). Tam- que são circunscrições administrativas
bém, não constitui novidade, visto que a municipais. Mas como a criação de distritos
Constituição de 1934 já previa a autonomia continua a ter repercussões para o Estado-
municipal em especial para “a decretação membro, a Constituição exige que os Muni-
dos seus impostos e taxas, a arrecadação e cípios atendam à legislação estadual.
aplicação das suas rendas” (BRASIL, 1934, Cabe ao Município, ainda, promover
art. 13, II). De qualquer modo, conferiu adequado ordenamento territorial, median-
destaque à transparência na prestação de te planejamento e controle do uso, do par-
contas, prevista na parte final do dispo- celamento e da ocupação do solo urbano.
sitivo. Embora a matéria seja de evidente interesse
230 Revista de Informação Legislativa
local, o Município deverá compatibilizar de ensino da União, Estados e Municípios,
seu plano diretor com os planos nacionais garante assistência técnica e financeira e
e regionais de ordenação do território, de estabelece uma divisão de atribuições aos
competência privativa da União (BRASIL, entes federados, cabendo aos Municípios
1988, art. 21, IX), assim como aos ditames do atuação prioritária no ensino fundamental
direito urbanístico, cuja competência é con- e na educação infantil.
corrente entre União e Estados (BRASIL, Situação equivalente existe na área de
1988, art. 24, I). O plano diretor, aprovado saúde, em que cabe ao Município prestar
pela Câmara Municipal, é o instrumento os serviços de atendimento à saúde da
básico da política de desenvolvimento e de população, com a cooperação técnica e fi-
expansão urbana, cujo objetivo é ordenar o nanceira da União e do Estado. A atuação
pleno desenvolvimento das funções sociais do Município segue as diretrizes do sistema
da cidade e garantir o bem-estar de seus único de saúde, do qual participam, de
habitantes (BRASIL, 1988, art. 182). forma integrada, todos os entes federados
Também no que diz respeito aos servi- (BRASIL, 1988, art. 198).
ços públicos, vale o interesse local como Por fim, cabe aos Municípios proteger
critério de distinção da competência o patrimônio histórico-cultural local, ob-
municipal. Cumpre registrar que, desde servada a legislação e a ação fiscalizadora
a Constituição de 1934, atribui-se ao Mu- federal e estadual. Trata-se de atuar, em
nicípio “a organização dos serviços de sua seu âmbito, na proteção das obras e bens
competência” (BRASIL, 1934, art. 13, III). de valor histórico, artístico e cultural,
O Município poderá organizar e prestar impedindo-lhes a evasão, a destruição e a
os serviços de interesse local diretamente descaracterização (BRASIL, 1988, art. 23,
ou sob regime de concessão. O dispositivo III e IV).
exemplifica, como de competência muni- Como se vê, o rol do art. 30 da Cons-
cipal, o transporte coletivo, inclusive para tituição Federal não acrescenta muito,
acentuar seu caráter essencial. Não obs- uma vez que apenas procura sistematizar
tante, vale lembrar que à União compete – mesmo assim, de forma incompleta – as
privativamente instituir diretrizes para os competências materiais municipais. Além
transportes urbanos, as quais deverão ser disso, mistura competências privativas
seguidas pelos Municípios. com parcelas de competências comuns dos
As demais competências, relativas a Municípios.
educação, saúde e patrimônio histórico-
cultural são, na verdade, de atuação comum 3.4. As competências comuns
dos entes federativos, tanto assim que (materiais concorrentes)
constam do art. 23 da Constituição Federal A repartição de competências no Esta-
(BRASIL, 1988, art. 23, II, III e V). Contudo, do federal mostrou-se, na realidade, mais
elas vêm relacionadas como competências complexa do que a classificação em poderes
dos Municípios para reforçar a atuação enumerados e poderes remanescentes seria
específica que a esfera municipal desempe- capaz de apreender. Embora boa parte dos
nha nessas áreas. poderes se constituísse de competências
Na área de educação, compete aos Mu- exclusivas da União ou dos Estados, consta-
nicípios manter programas de educação tou-se a existência de poderes compartilha-
infantil e de ensino fundamental, com a co- dos entre os entes da federação, que levou à
operação técnica e financeira da União e do noção de competências concorrentes.
Estado. A disposição se compatibiliza com Tal como procedeu quanto às competên-
o art. 211, que determina a organização, cias da União, a Constituição de 1988 tratou
em regime de colaboração, dos sistemas em dispositivos separados as competências

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 231


concorrentes de natureza material, que concorrente, haverá uma delimitação de
qualifica como “comum” aos três níveis da esferas entre a União e os demais entes
federação (BRASIL, 1988, art. 23) e as com- federativos.
petências concorrentes legislativas para a Conforme lembra Almeida (2005, p.
União e os Estados (BRASIL, 1988, art. 24). 133), o desempenho das competências ma-
teriais deverá pressupor a regulamentação
3.4.1. Enumeração das normativa das matérias, que, por sua vez,
competências comuns seguirá as regras de competência legislati-
A competência material comum aos ní- va. Observa que “essas regras sinalizam, no
veis da federação enseja uma co-responsa- caso, para a preponderância da União”.
bilidade entre elas, de modo que atuem de Realmente, é interessante buscar a
forma cooperada para a consecução desses competência normativa de cada um dos
encargos atribuídos ao poder público. Se, domínios de competência material comum.
por um lado, a competência comum admite Isso porque serão essas normas que deve-
a capacidade de ação de todos os níveis rão determinar a forma de atuação comum
federativos nos domínios contemplados, de dos entes federativos, respeitadas as suas
outro exige a participação deles no desem- respectivas autonomias. Essa comparação,
penho conjunto das competências. com efeito, demonstra uma forte correla-
Contudo, na visão de Ferreira Filho ção entre as competências concorrentes
(1997, p. 178), isso não significa que os entes material e legislativa, com participação
federativos estejam em pé de igualdade preponderante da União.
em relação às competências concorrentes. Em apenas dois casos a competência
Argumenta o autor que, sendo a Adminis- material comum não encontra imediata
tração sujeita ao princípio da legalidade, a correspondência com as competências
lei é que definirá a tarefa de cada um desses relacionadas nos arts. 21 e 22 (privativas
entes. Em decorrência da legislação perti- material e legislativa da União) e 24 (con-
nente, em sua maioria também de natureza corrente):

Competência material comum Competência legislativa correspondente


I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das
instituições democráticas e conservar o patrimônio [não enumerada]
público;
X – combater as causas da pobreza e os fatores de
marginalização, promovendo a integração social dos [não enumerada]
setores desfavorecidos;

O primeiro inciso define mais uma da União ou com a legislação concorrente,


obrigação de todos os entes federativos na qual cabe à União dispor sobre normas
do que, propriamente, uma competência gerais. Por isso, o acerto em se afirmar que
de execução. O inciso X, por sua vez, não é a União que, na verdade, disciplinará a
delimita exatamente um domínio material, forma de atuação conjunta dos entes fede-
mas um fim a ser perseguido, em conexão rativos, respeitados os contornos básicos
com um dos objetivos fundamentais da da própria Constituição e das autonomias
República Federativa do Brasil, que é o de estadual e municipal.
“erradicar a pobreza e a marginalização e Há um dos domínios de competência
reduzir as desigualdades sociais e regio- material concorrente que se submete inteira-
nais” (BRASIL, 1988, art. 3o, III). mente à competência legislativa privativa da
As demais competências materiais en- União, qual seja o relativo à pesquisa e ex-
contram ligação com a legislação privativa ploração de recursos hídricos e minerais:

232 Revista de Informação Legislativa


Competência material comum Competência legislativa correspondente
Da União: Art. 22, IV – águas, energia, informática,
XI – registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões
telecomunicações e radiodifusão;
de direitos de pesquisa e exploração de recursos
Da União: Art. 22, XII – jazidas, minas, outros recursos
hídricos e minerais em seus territórios;
minerais e metalurgia;

Além da competência para legislar sobre aproveitamento, e pertencem à União,


águas, energia, jazidas, minas e recursos garantida ao concessionário a propriedade
minerais (BRASIL, 1988, art. 22, IV e XII), do produto da lavra. Para tanto, essas ativi-
à União cabe “instituir sistema nacional dades são realizadas mediante autorização
de gerenciamento de recursos hídricos e ou concessão da União. Nos termos da lei, é
definir critérios de outorga de direitos de assegurada aos Estados, ao Distrito Federal
seu uso” (BRASIL, 1988, art. 21, XIX), assim e aos Municípios, bem como aos órgãos da
como explorar, diretamente ou mediante administração direta da União, participa-
autorização, concessão ou permissão, os ção no resultado da exploração dos recursos
“serviços e instalações de energia elétrica e no respectivo território, ou compensação
o aproveitamento energético dos cursos de financeira por essa exploração (art. 20, §
água, em articulação com os Estados onde 1o). Nesse sentido é que se admite a com-
se situam os potenciais hidroenergéticos” petência concorrente comum de “registrar,
(BRASIL, 1988, art. 21, XII, b). acompanhar e fiscalizar as concessões de
A exploração desses recursos hidráu- direitos de pesquisa e exploração de recur-
licos e minerais beneficia, inicialmente, a sos hídricos e minerais em seus territórios”
União. Dispõe o art. 176 da CF que os re- (BRASIL, 1988, art. 23, XI).
cursos minerais e os potenciais de energia Duas outras competências materiais
hidráulica constituem propriedade distinta concorrentes baseiam-se em diretrizes tra-
da do solo, para efeito de exploração ou çadas pela União:

Competência material comum Competência legislativa correspondente


Da União: Art. 22, XXIV – diretrizes e bases da educação
V – proporcionar os meios de acesso à [...] à edu-
nacional [ver art. 211];
cação [...];
Comum: Art. 24, IX – educação, [...];
Da União: Art. 21, XX – instituir diretrizes para o de-
IX – promover programas de construção de mora-
senvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento
dias e a melhoria das condições habitacionais e de
básico e transportes urbanos;
saneamento básico;
Comum: Art. 24, I – direito [...] urbanístico;

No inciso V do art. 23 figura a importan- amento básico (art. 21, XX). Desse modo,
te área da educação, na qual a União legisla os “programas de construção de moradias
sobre as diretrizes e bases da educação na- e a melhoria das condições habitacionais e
cional (art. 22, XXIV). Nesse setor, a própria de saneamento básicos” (BRASIL, 1988, art.
Constituição Federal traçou uma divisão 23, IX), a serem promovidos por todos os
vertical de competências, ao dispor que os entes federativos, deverão estar coerentes
Estados atuarão prioritariamente no ensino com aquelas diretrizes, além de seguir as
fundamental e médio e os Municípios, no normas gerais estabelecidas pela União na
ensino fundamental e na educação infantil legislação sobre direito urbanístico (BRA-
(art. 211, §§ 2o e 3o). SIL, 1988, art. 24, I).
Outra área em que deverão ser seguidas As demais competências materiais co-
as diretrizes da União é a de desenvolvi- muns do art. 23 estão todas vinculadas a
mento urbano, inclusive habitação e sane- competências legislativas concorrentes:

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 233


Competência material comum Competência legislativa correspondente
Comum: Art. 24, XII – previdência social, proteção e
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção defesa da saúde;
e garantia das pessoas portadoras de deficiência; Comum: Art. 24, XIV – proteção e integração social das
pessoas portadoras de deficiência;
III – proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monu- Comum: Art. 24, VII – proteção ao patrimônio histórico,
mentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios cultural, artístico, turístico e paisagístico;
arqueológicos; Comum: Art. 24, VIII – responsabilidade por dano [...]
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracte- a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
rização de obras de arte e de outros bens de valor turístico e paisagístico;
histórico, artístico ou cultural;
V – proporcionar os meios de acesso à cultura, [...] Comum: Art. 24, IX – educação, cultura, ensino e
e à ciência; desporto;
Comum: Art. 24, VI – florestas, caça, pesca, fauna,
conservação da natureza, defesa do solo e dos recur-
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição
sos naturais, proteção do meio ambiente e controle da
em qualquer de suas formas;
poluição;
VII – preservar as florestas, a fauna e a flora;
Comum: Art. 24, VIII – responsabilidade por dano ao
meio ambiente [...];
Comum: Art. 24, V – produção e consumo;
Da União: Art. 187. A política agrícola será planeja-
VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar da e executada na forma da lei, com a participação
o abastecimento alimentar; efetiva do setor de produção [...] § 1o – Incluem-se no
planejamento agrícola as atividades agro-industriais,
agropecuárias, [...].
Comum: Art. 24, IX – educação, cultura, ensino e
XII – estabelecer e implantar política de educação
desporto;
para a segurança do trânsito
Da União: Art. 22, XI – trânsito e transporte;

Nesses domínios, cabe à União estabe- domínio, em virtude da dificuldade de se


lecer as normas gerais e aos Estados e Mu- estabelecer uma regra única para todos
nicípios editar as normas suplementares, eles.
relacionadas às suas respectivas peculiari- Como era antes, Ferreira Filho (1997, p.
dades (arts. 24, §§ 1o e 2o; e 30, II). 182) e Almeida (2005, p. 133) não tinham
muita esperança que a lei complementar
3.4.2. Formas de cooperação contribuísse muito para a colaboração entre
Ainda no terreno das competências os entes federativos, pois ela não poderia
materiais comuns, cabe analisar a possibi- desatender as normas constitucionais de
lidade que abre o parágrafo único de art. repartição de competência que já coman-
23, segundo o qual leis complementares dam e limitam a cooperação entre aqueles.
fixarão normas para a cooperação entre a E, como foi visto, essa cooperação se impõe
União, os Estados, o Distrito Federal e os com preponderância da União, sob a égide
Municípios, tendo em vista o equilíbrio do da legislação federal.
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito Assim, a alteração do parágrafo único
nacional. De início, a redação original do do art. 23 poderá ainda não ser suficiente
dispositivo previa apenas uma lei com- para incrementar a cooperação entre os
plementar. A Emenda Constitucional no entes federativos. A simples pluralidade
53, de 19 de dezembro de 2006, substituiu de leis complementares pode não trazer
a expressão “lei complementar” por “leis o impulso suficiente ao instituto porque a
complementares”, para que as normas de União, provavelmente, deverá preferir le-
cooperação possam ser fixadas para cada gislar sobre os domínios comuns mediante

234 Revista de Informação Legislativa


leis ordinárias, cujo quorum de aprovação Contudo, para afastar dúvidas, a Emen-
é de maioria simples, no exercício de sua da Constitucional n o 19, de 4 de junho
competência legislativa privativa ou con- de 1998, deu nova redação ao art. 241 da
corrente (de estabelecer normas gerais). Constituição Federal, para estabelecer que
Afinal, tanto em uma espécie normativa a União, os Estados, o Distrito Federal e os
quanto na outra a União tem como limite Municípios poderão disciplinar, por meio
a autonomia estadual e municipal, fixada de lei, os consórcios públicos e os convênios
pela Constituição Federal, não servindo a de cooperação entre os entes federados,
lei complementar, apesar do quorum qua- autorizando a gestão associada de serviços
lificado de maioria absoluta, para alargar públicos, bem como a transferência total
mais limites ou impor obrigações mais ou parcial de encargos, serviços, pessoal e
rigorosas para os Estados e Municípios. bens essenciais à continuidade dos serviços
Interessante questão é suscitada por transferidos. Silva (2002, p. 481) esclarece
Almeida (2005, p. 135-137) quanto à possibi- que os convênios de cooperação veiculam
lidade de execução de leis e serviços de uma acordos de entes federativos de espécies
esfera federativa por servidores de outra. distintas, enquanto os consórcios públicos
Lembra a autora que a Constituição de 1988 são acordos firmados entre entes federati-
não repetiu, em sua redação original, a nor- vos da mesma espécie.
ma contida na Constituição anterior, que A Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005,
permitia aos entes federativos celebrar con- dispõe sobre normas gerais para a União, os
vênios para a execução suas leis, serviços Estados, o Distrito Federal e os Municípios
e decisões, por intermédio de funcionários contratarem consórcios públicos para a re-
federais, estaduais ou municipais (BRASIL, alização de objetivos de interesse comum.
1969, art. 13, § 3o). Havia controvérsia sobre Não obstante, Abrucio (2001, p. 103) iden-
se o parágrafo único do art. 23 poderia, ou tifica certa fragilidade institucional nesse
não, estabelecer norma equivalente, em face instrumento jurídico, pois os consórcios
do silêncio da Constituição. “ficam à mercê das mudanças políticas e
A propósito do sistema de execução do apoio social de mais de uma cidade, que
de serviços, Silva (2002, p. 480) distingue tem de se manter ao longo do tempo”.
três sistemas: a) imediato, segundo o qual Os convênios baseados no art. 241 da
cada ente federativo mantém sua própria Constituição Federal, por sua vez, têm
administração, com funcionários próprios, como primeiro exemplo a Lei no 11.473, de
independentes uns dos outros e subordi- 10 de maio de 2007 (decorrente da conver-
nados aos respectivos governos (EUA, Ar- são da Medida Provisória no 345, de 2007),
gentina); b) mediato, pelo qual os serviços que dispõe sobre a cooperação federativa
federais são executados, em cada Estado, no âmbito da segurança pública. Esta nor-
por funcionários deste, mantendo a União ma prevê a possibilidade da União firmar
pequeno corpo de servidores incumbidos convênios com os Estados e o Distrito Fe-
da vigilância e fiscalização (Alemanha, deral para executar atividades e serviços
Índia); c) misto, que permite que serviços imprescindíveis à preservação da ordem
de um ente sejam executados por servido- pública e da incolumidade das pessoas e
res de outro, e vice-versa (Suíça, Áustria). do patrimônio. A cooperação compreende
Registra o autor que o sistema brasileiro ações conjuntas, transferências de recur-
é o de execução imediata. Entretanto, via sos e desenvolvimento de atividades de
no parágrafo único do art. 23 a possibili- capacitação de profissionais, instituindo,
dade de estabelecer cooperação entre as para tanto, a Força Nacional de Segurança
entidades. Pública.

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 235


3.5. As competências legislativas tinção entre a competência concorrente
concorrentes cumulativa e a não-cumulativa (que o autor
prefere denominar, respectivamente, de
3.5.1. Classificação das competências clássica e limitada). Em 1891, nem uma nem
legislativas concorrentes outra recebeu acolhida.
A Constituição de 1934 inaugurou a
A competência legislativa concorrente competência concorrente, das duas espécies,
possibilita que mais de um ente federati- misturando-as no artigo 5o, que arrolava as
vo legisle sobre um mesmo domínio. As competências privativas da União, mas cujo
competências concorrentes podem ser de § 3o admitia, em diversos domínios, a “legis-
duas espécies: cumulativas (ou clássicas); lação estadual supletiva ou complementar”
e não-cumulativas (ou limitadas). para atender “às peculiaridades locais,
Conforme Ferreira Filho (1997, p. 182), suprir lacunas ou deficiências da legislação
a concorrência cumulativa existe quando federal, sem dispensar as exigências desta”
não há limites prévios para o exercício da (BRASIL, 1934, art. 5o). A distinção entre
competência por parte dos entes federativos as espécies de legislação concorrente era
envolvidos. Mas, havendo choque entre a possível porque, no caso da não-cumulativa
norma estadual e a federal, prevalece a nor- (limitada), a matéria foi precedida pelas
ma da União. Por isso, Moreira Neto (1988, expressões “diretrizes”, “normas funda-
p. 131) caracteriza a concorrência cumulati- mentais” ou “normas gerais”.
va clássica “pela disponibilidade ilimitada A mesma forma foi adotada pela Consti-
do ente central de legislar sobre a matéria, tuição de 1946. O art. 6o apontava as alíneas
até mesmo podendo esgotá-la”. Aos Estados do inciso XV do art. 5o, que relacionava
remanescem os poderes de suprir a ausência as matérias de competência privativa da
de norma federal, ou de complementá-la, se União, nas quais não estava excluída “a
existir, para preencher lacunas. legislação estadual supletiva ou comple-
Essa espécie de competência concor- mentar” (BRASIL, 1946, arts. 6o). Entre
rente supõe a prevalência da norma de essas, duas alíneas continham domínios de
maior abrangência, de modo que o direito competência concorrente limitada: “b) nor-
nacional tem preferência sobre o direito mas gerais de direito financeiro; de seguro
local. Essa preferência se justifica, sobre- e previdência social; de defesa e proteção
tudo, pelo “primado do interesse nacional, da saúde; e de regime penitenciário”; e “d)
prestigiando-se sua expressão política diretrizes e bases da educação nacional”
máxima com vistas aos efeitos integradores (BRASIL, 1946, arts. 5o, XV, grifos nossos).
sobre a nação como um todo” (MOREIRA Tanto a Constituição de 1967 quanto
NETO, 1988, p. 130, grifos do autor). a Emenda Constitucional no 1, de 1969,
A competência concorrente não-cu- mantiveram a sistemática anterior. No texto
mulativa (ou limitada) implica uma re- constitucional de 1969, o parágrafo único do
partição vertical, em que se verifica uma art. 8o remete às alíneas do inciso XVII do
correspondência entre o nível federativo e mesmo dispositivo, que contempla as ma-
a abrangência da legislação, de modo que térias de competência legislativa privativa
cabe à União dispor sobre normas gerais e da União, nas quais “não exclui a [compe-
aos Estados adotar normas suplementares, tência] dos Estados para legislar supletiva-
dirigidas para o seu âmbito e especificidade mente [...], respeitada a lei federal” (BRASIL,
de atuação. 1969, art. 8o). Entre essas alíneas, quatro
Conforme demonstra Moreira Neto são de competência cumulativa. As duas
(1988, p. 132), as Constituições brasileiras não-cumulativas são: “c) normas gerais sobre
não trataram de forma sistemática a dis- orçamento, despesa e gestão patrimonial e

236 Revista de Informação Legislativa


financeira de natureza pública; taxa judici- concorrente não-cumulativa generalizou-se
ária, custas e emolumentos remuneratórios na Constituição de 1988, a ponto de primar
dos serviços forenses, de registro públicos e sobre a feição clássica da legislação concor-
notariais; de direito financeiro; de seguro e rente cumulativa.
previdência social; de defesa e proteção da
saúde; de regime penitenciário” (redação da 3.5.2. Enumeração das competências
EC 7/77); e “q) diretrizes e bases da educação legislativas concorrentes
nacional; normas gerais sobre desportos” A Constituição Federal relacionou, no
(BRASIL, 1969, art. 8o, grifos nossos). art. 24, os domínios de competência legisla-
Como observa Moreira Neto (1988, p. tiva concorrente não-cumulativa. São eles,
135), o instituto da competência legislativa agrupados por temas:

Agrupamento Incisos do artigo 24 da Constituição Federal


I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urba-
Direito e orçamento nístico;
II – orçamento;
III – juntas comerciais;
Produção, consumo e comércio V – produção e consumo;
VIII – responsabilidade por dano [...] ao consumidor [...];
IV – custas dos serviços forenses;
X – criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas
Justiça e assistência judiciária causas;
XI – procedimentos em matéria processual;
XIII – assistência jurídica e Defensoria pública;
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa
Meio Ambiente; solo e recursos na- do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e con-
turais trole da poluição;
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente [...];
VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico
Patrimônio cultural, turístico e paisa- e paisagístico;
gístico VIII – responsabilidade por dano [...] a bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
Educação, cultura e desporto IX – educação, cultura, ensino e desporto;
Previdência social e saúde; XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;
XIV – proteção e integração social das pessoas portadoras de de-
Pessoas portadoras de deficiência
ficiência;
Infância e juventude XV – proteção à infância e à juventude;
Polícia civil XVI – organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.

Não obstante a possibilidade de pre- o direito penitenciário ganhou referência


valência da União, imposta por sua capa- mais ampla (antes, a menção era ao regime
cidade de editar normas gerais, o exame penitenciário).
desse rol de competências faz alguma Do grupo “Produção, consumo e comér-
justiça à intenção descentralizadora dos cio”, a legislação sobre as juntas comerciais
constituintes de 1987/88. Em relação ao e a produção e consumo eram concorrentes
direito anterior, houve razoável inovação cumulativas, passando agora a limitadas.
de matérias incluídas nas competências Não havia previsão de legislação concor-
legislativas concorrentes. rente sobre a responsabilidade por dano
Do grupo “Direito e orçamento”, já ao consumidor.
constavam os direitos tributário, financei- Apenas as custas dos serviços forenses
ro e a matéria orçamentária. Os direitos integravam a competência concorrente não-
econômico e urbanístico são novidade e cumulativa no texto constitucional de 1969.

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 237


O restante do grupo “Justiça e assistência (FERREIRA FILHO, 1997, p. 183). A forma
judiciária” constitui inovação, no sentido de dessa repartição, na Constituição de 1988,
uma maior adequação do processo judicial assenta-se nos parágrafos do art. 24.
às realidades estaduais. Pelo dispositivo, a União limita-se a
O maior avanço da legislação concor- estabelecer normas gerais (art. 24, § 1o).
rente situa-se nos grupos “Meio Ambiente; Aos Estados, cabe editar a legislação su-
solo e recursos naturais” e “Patrimônio plementar (art. 24, § 2o). Inexistindo a lei
cultural, turístico e paisagístico”. É de federal sobre normas gerais, os Estados
grande relevância que os Estados possam podem exercer a competência legislativa
participar na legislação ambiental, especial- plena, para atender a suas peculiaridades
mente em um país de grandes dimensões (art. 24, § 3o). Sobrevindo a lei federal sobre
e variedades como o Brasil. A proteção normas gerais, suspende-se a eficácia da
ao patrimônio histórico-cultural, antes de lei estadual, no que lhe for contrário (art.
competência cumulativa (BRASIL, 1969, 24, § 4o).
art. 180), passa a ter limites para cada esfera Esse mecanismo impõe uma série de
federativa. conceitos que devem ser esclarecidos. O
No grupo de “Educação, cultura e primeiro, e mais polêmico, é o de normas
desporto”, apenas a cultura é novidade gerais. Não se trata de uma novidade em
na legislação concorrente não-cumulativa, nosso direito constitucional, pois a Cons-
pois a educação e o desporto já tinham tituição de 1934 já se referiu a normas
suas diretrizes e normas gerais delineadas gerais na competência da União (BRASIL,
pela União desde 1969. Também não são 1934, art. 5o, XIX, i), utilizando-se, ainda,
novidades os domínios da “Previdência de expressões equivalentes, como “nor-
social e saúde”. Mas a proteção das pessoas mas fundamentais” e “diretrizes”. Desse
portadoras de deficiência e a proteção da modo, as “normas gerais” impõem um
infância e da juventude formam novos do- limite à legislação federal, mas de precisão
mínios concorrentes não-cumulativos. duvidosa. Com efeito, há uma margem de
Quanto à “Polícia civil”, porém, verifica- incerteza sobre até que ponto a legislação
se uma centralização, pois a matéria era an- ainda é “geral”, não está particularizando
tes integralmente regulada pelos Estados. o tema e, com isso, invadindo a esfera de
Desde 1988, a União pode estabelecer nor- competência estadual.
mas gerais sobre a organização, garantias, Ainda sob a égide da Constituição
direitos e deveres das polícias civis. pretérita, Ramos (1986, p. 129) observa
Por fim, cumpre registrar que o rol do que o conceito de normas gerais “contém
art. 24 não é exaustivo. Assim, existem ou- uma considerável zona de indeterminação,
tras hipóteses1 de competência legislativa aclarável somente pelo aplicador da lei, no
concorrente não-cumulativa ao longo do deslinde do caso concreto”. Afirma que
texto constitucional de 1988. “não pode haver normatividade genérica
se a preocupação não é a de regular os ca-
3.5.3. Normas gerais e normas racteres jurídicos básicos, fundamentais, da
suplementares situação subjacente”, de modo que se deve
A competência legislativa concorrente repelir, com veemência, a ideia de que a
não-cumulativa institui uma verdadeira União pode, por lei, transformar em geral
repartição vertical do poder de legislar todo e qualquer aspecto da matéria em foco.
Conclui que o conceito de normas gerais
1
Almeida (2005, p. 143) registra os seguintes exem-
“não faculta ao legislador federal a regu-
plos: arts. 21, XX e XXI; 22, IX, XXI, XXIV, XXVII; 146, lação exaustiva da matéria, posto que im-
IV; 236, par. único; 61, § 1o, “d” e 134, par. único. porta em circunscrever as normas federais

238 Revista de Informação Legislativa


ao campo da generalidade, dos princípios reçam limites, ao mesmo tempo, para os
básicos” (RAMOS, 1986, p. 129). legisladores federais e estaduais, embora
Conforme Moreira Neto (1988, p. 140), possam estendê-los para os aplicadores
“a dificuldade está em precisar o critério federais e, eventualmente, os estaduais [...]”
distintivo do que sejam normas gerais e (MOREIRA NETO, 1988, p. 152).
do que sejam normas específicas”. O au- Essa peculiaridade, por sua vez, leva à
tor lembra que essa discussão teve maior caracterização das normas gerais como um
desenvolvimento, no Brasil, no âmbito do terceiro gênero normativo, intermediário
direito financeiro. Nessa seara, é famosa a entre as normas-princípios, que se situam
formulação de Carlos A. C. Pinto (1949, p. no extremo de abstração e generalização
24, apud Almeida, 2005, p. 148), que pro- dos princípios, e as normas-particulari-
cura identificar as normas gerais por meio zantes, que se colocam no outro extremo,
de excludentes. Desse modo, afirma que de concreção e particularização dos atos
não são normas gerais: a) as que objetivem jurídicos. As normas-princípios dirigem-
especialmente uma ou algumas dentre se predominantemente aos legisladores e
as várias pessoas congêneres de direito as normas-particularizantes voltam-se à
público, participantes de determinadas disciplina das relações jurídicas substan-
relações jurídicas; b) as que visem, parti- ciais entre os indivíduos. As normas gerais,
cularizadamente, determinadas situações embora se destinem ordinariamente ao
ou institutos jurídicos, com exclusão de legislador, se dirigem extraordinariamente
outros, da mesma condição ou espécie; c) ao aplicador. Na primeira hipótese, têm efi-
as que se afastem dos aspectos fundamen- cácia jurídica indireta e mediata; na última,
tais ou básicos, descendo a pormenores ou têm eficácia direta e imediata (MOREIRA
detalhes. NETO, 1988, p. 158).
Em busca de um ângulo positivo, após Moreira Neto (1988, p. 159) chega, en-
amplo inventário da doutrina, Moreira fim, à seguinte definição:
Neto (1988, p. 149) sintetiza as seguintes “[...] Normas gerais são declarações
características das normas gerais: a) es- principiológicas que cabe à União
tabelecem princípios, diretrizes, linhas editar, no uso de sua competência
mestres e regras jurídicas; b) não podem concorrente limitada, restrita ao es-
entrar em pormenores ou detalhes nem, tabelecimento de diretrizes nacionais
muito menos, esgotar o assunto legislado; sobre certos assuntos, que deverão
c) devem ser regras nacionais, uniforme- ser respeitadas pelos Estados-mem-
mente aplicáveis a todos os entes públicos; bros na feitura das suas respectivas
d) devem ser regras uniformes para todas as legislações, através de normas es-
situações homogêneas; e) só cabem quando pecíficas e particularizantes que as
preencham lacunas constitucionais ou dis- detalharão, de modo que possam ser
ponham sobre áreas de conflito; f) devem aplicadas, direta e imediatamente, às
referir-se a questões fundamentais; g) são relações e situações concretas a que
limitadas, no sentido de não poderem vio- se destinam, em seus respectivos âm-
lar a autonomia dos Estados; h) são normas bitos políticos“ (MOREIRA NETO,
de aplicação direta. 1988, p. 159).
Há, ainda, uma “sobrecaracterística” Para Ferraz Júnior (1995, p. 249), dois
de grande relevância, qual seja o fato de critérios auxiliam na caracterização das
as normas gerais se caracterizarem como normas gerais. O primeiro é o lógico e
“conceito-limite”, o que as torna peculiares enseja a classificação das normas quanto
no contexto do poder organizado de uma ao conteúdo e quanto ao destinatário.
federação. Segundo o autor, elas “ende- Quanto ao conteúdo, as normas são gerais

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quando a matéria prescrita se reporta a Antes, podia-se entender que a compe-
toda e qualquer ocorrência da espécie, tência supletiva se referia a suprir, subs-
distinguindo-se das normas singulares tituir ou fazer as vezes de algo; enquanto
(um só caso) e particulares (alguns casos). a competência complementar significaria
Quanto ao destinatário, uma norma é geral acrescentar pormenores, desdobrar ou
quando se aplica à universalidade deles, detalhar o conteúdo de uma regra geral.
distinguindo-se das normas especiais, que Agora surge um novo termo, a compe-
se destinam a uma coletividade ou catego- tência suplementar, que tem um sentido
ria de destinatários. abrangente, que compreende tanto a com-
Contudo, segundo o autor, o critério petência supletiva quanto a complementar
mais útil é o teleológico, pois a caracteri- (ALMEIDA, 2005, p. 152).
zação das normas gerais há de se reportar No caso de existirem as normas gerais
ao interesse prevalecente na organização da União, os Estados permanecem, então,
federativa. Como o federalismo coopera- com a competência complementar de
tivo vê na necessidade de uniformização pormenorizá-las, pela elaboração de suas
de certos interesses um ponto básico da normas específicas. Se as normas gerais
colaboração, toda matéria que extravase fixam o que é uniforme a todos, as normas
o interesse circunscrito de uma unidade complementares virão, exatamente, dispor
“porque é comum (todos têm o mesmo sobre as necessidades e especificidades de
interesse) ou porque envolve tipologias, cada Estado.
conceituações que, se particularizadas num Faltando, porém, as normas gerais da
âmbito autônomo, engendrariam conflitos União, os Estados podem exercer a compe-
ou dificuldades no intercâmbio nacional, tência legislativa plena, para atender a suas
constitui matéria de norma geral” (FER- peculiaridades (art. 24, § 3o), o que equivale
RAZ JÚNIOR, 1995, p. 249). a dizer que passam a exercer a competência
Por fim, vale ressaltar uma característica supletiva. Trata-se de uma competência que
das normas gerais mencionada por todos, o Estado exerce em caráter excepcional.
que é o fato de serem nacionais. Conforme Nesse caso, o Estado disporá da compe-
observa Cambi (1998, p. 252), na elaboração tência legislativa plena, vale dizer, poderá
das normas gerais, a União desempenha até mesmo estabelecer normas gerais ou
atividade diversa daquela que exerce quan- princípios, que servirão de base para o seu
do elabora a legislação federal (dirigida desenvolvimento próprio e específico da
somente à União). Ao dispor sobre as nor- matéria, mas deve se ater ao necessário para
mas gerais, o Congresso Nacional exerce o atender a suas peculiaridades.
poder de prescrever normas nacionalmente Conforme Ferraz Júnior (1995, p. 250,
uniformes, vinculantes a todos os entes grifo do autor), trata-se de uma competência
federativos. Na síntese de Moreira Neto legislativa plena com “função colmatadora de
(1988, p. 158), “seu fim é a uniformização do lacuna”, pois o legislador estadual pode “le-
essencial sem cercear o acidental, peculiar gislar sobre normas gerais naquilo que elas
das unidades federadas”. constituem condições de possibilidade para
Diz o § 2o do art. 24 que a competência a legislação própria sobre normas particula-
da União para legislar sobre normas gerais res”. Por essa razão, acrescenta o autor, “só
não exclui a competência suplementar dos podem ser gerais quanto ao conteúdo, mas
Estados. Esse é outro termo a ser esclareci- não quanto aos destinatários: só obrigam nos
do, especialmente porque não foi utilizado limites da autonomia estadual”. Ou seja, a
pelas Constituições brasileiras anteriores, norma elaborada pelo Estado, no desempe-
que preferiram, desde 1934, os termos nho da competência supletiva, somente tem
“supletiva” e “complementar”. validade no âmbito de seu território, não se

240 Revista de Informação Legislativa


podendo estender suas disposições (gerais no § 3o, pois a competência legislativa ple-
ou específicas) para outros Estados. na é exercida pelos Estados apenas “para
Por fim, sobrevindo a lei nacional sobre atender a suas peculiaridades” e colmatar
normas gerais, suspende-se a eficácia da lei a lacuna (FERRAZ JÚNIOR, 1995, p. 250).
estadual no que lhe for contrário (art. 24, § Mesmo que depois sobrevenha a legislação
4o). Tanto as normas estaduais decorrentes federal, esta ainda estará limitada a “esta-
da competência supletiva quanto as prove- belecer normas gerais” (§ 1o), afastando a
nientes da competência complementar que legislação estadual apenas nesse campo,
se coloquem em choque com as normas ge- conforme adverte Cambi (1998, p. 257).
rais da legislação nacional terão sua eficácia
suspensa. Isso resulta na inaplicabilidade 3.5.4. A competência suplementar
da lei estadual, e não em sua revogação, de dos Municípios
forma que se, no futuro, houver a revoga- Diz a Constituição Federal que os Mu-
ção da lei federal, a lei estadual recobrará nicípios podem suplementar a legislação
sua eficácia e voltará a incidir. federal e a estadual no que couber (BRA-
Sobre a aplicação do disposto no art. 24, SIL, 1988, art. 30, II). Observa-se, porém,
§ 4o, Cambi (1998, p. 257) faz uma interes- que os Municípios, embora partícipes da
sante advertência: “antes de se averiguar se competência material comum, não foram
a legislação nacional contraria a legislação contemplados na competência legislativa
estadual, é preciso verificar se o exercício da concorrente.
competência concorrente por parte da co- Com isso, pode-se afirmar que os Mu-
munidade total [União] foi legítima”. Com nicípios não compartilham da repartição
razão o autor, pois somente estará suspenso vertical de competências legislativas fixada
aquilo que contrariar as normas gerais da pelo art. 24 da Constituição Federal. Ou
União, não se podendo admitir que a le- seja, no caso dos Municípios, a competên-
gislação nacional trate de especificidades cia suplementar é cumulativa e, portanto,
e, com isso, acabe por suspender normas sujeita ao primado tanto da legislação da
estaduais estabelecidas no regular exercício União quanto da legislação estadual. Além
do direito de legislar dos Estados. disso, a competência legislativa suple-
No julgamento, pelo Supremo Tribunal mentar do Município está circunscrita aos
Federal, da Ação Direta de Inconstitucio- assuntos de interesse local (art. 30, I), pois
nalidade no 3.098/SP, o relator, Ministro não se pode admitir legislação municipal
Carlos Velloso, defende que os §§ 1o e 2odo que fuja a seu âmbito de atuação (ALMEI-
art. 24 compreendem uma competência DA, 2005, p. 157).
concorrente não-cumulativa, enquanto os Verifica-se, portanto, que o espaço de
§§ 3o e 4o do mesmo dispositivo compreen- regulação do Município pode ser bem
dem uma competência cumulativa, porque, restrito. Com efeito, Sundfeld (1993, p.
na inexistência de normas gerais da União, 278) observa que “a União só edita normas
os Estados exercem uma competência le- gerais, de modo que à norma suplementar
gislativa plena, e a posterior incidência da estadual é reservada toda regulação que
legislação federal afasta a legislação esta- não for geral. A norma suplementar estadu-
dual (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, al pode [...] regular exaustivamente o tema,
2005). Embora respeitável, não se mostra donde caber ao Município tratar apenas do
inteiramente adequada essa posição. Como que ainda restar”. Por isso, conclui o autor
vimos antes (e o Ministro também informa), que a diferença entre a competência suple-
na competência cumulativa os entes polí- mentar dos Estados e a dos Municípios é
ticos legislam sobre a mesma matéria, sem que aquela se exerce num campo reservado
limitações. Ora, não é isso o que se verifica e esta num campo residual.
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Como bem argumenta Almeida (2005, p. Por isso, a tarefa de equilibrar as forças
159), a questão da competência suplementar presentes num dado contexto não se coloca
municipal mereceria um tratamento consti- apenas na criação de uma federação, mas
tucional mais adequado, para não prejudi- continuará existindo e marcando seu desen-
car a articulação do sistema de repartição volvimento, razão pela qual o federalismo
de competências, especialmente quanto deve ser visto como um conceito dinâmico,
à competência legislativa concorrente, na porque “não existe ‘o federalismo’, mas
qual o constituinte apostou para chegar à um federalismo ‘atual’ em determinada
descentralização de poderes na federação federação” (BOTHE, 1995, p. 6).
brasileira. Essa necessidade é acentuada Para Abrucio (2001, p. 100), a história
pelo fato de a maioria das competências federativa brasileira pode ser resumida à
materiais municipais, inclusive as arroladas dificuldade de adequação dos princípios da
no art. 30, terem correspondência com as autonomia e da interdependência entre os
competências legislativas concorrentes, de entes federativos. A autonomia foi muitas
modo que deveria ser mais bem ajustada a vezes utilizada para uma descentralização
compatibilidade entre os arts. 24 e 30, II. que não se associou à responsabilidade
ou à capacidade dos entes federativos,
dominada por interesses patrimoniais e
4. Considerações finais
pela ausência de controle público sobre
Sommermann (2003, p. 2.281) observa os governantes. Já a interdependência se
que o federalismo se desenvolve sempre em revelou, na maioria das vezes, como uma
um paralelogramo de forças centrípetas e imposição centralizadora e autoritária do
forças centrífugas. A tendência dominante governo federal, colocada por uma força
é centrípeta (em prol da unidade), tal qual situada acima do pacto federativo.
originalmente ocorreu nos Estados Unidos Embora tenha introduzido alterações
da América, quando os vários Estados, en- na estrutura federativa brasileira, a Cons-
tão reunidos em confederação, formaram tituição de 1988 não conseguiu romper
um só Estado federal. Não obstante, tão fortemente com essas tradições. O autor
logo estabelecido o novo Estado, o princí- aponta pelo menos dois avanços e alguns
pio federalista passa a ser invocado, com vícios que persistem. Os avanços, obtidos
frequência, na direção centrífuga, “para especialmente após a estabilização econô-
defender ou fortalecer a autonomia dos mica, são: o reordenamento das finanças
Estados membros da federação”, como federativas, de que é o maior exemplo e ins-
no caso da Alemanha, em que se associa trumento a Lei de Responsabilidade Fiscal;
o fortalecimento do federalismo com o e a descentralização de algumas políticas
aumento de esfera de competências dos públicas, associadas a recursos vinculados
Länder (SOMMERMANN, 2003, p. 2.281). a fundos constitucionais.
De todo modo, observa Bothe (1995, p. Como vícios, perduram entre outros:
5), o federalismo é uma question of degree, uma ampla centralização tributária; a
cujo critério essencial está nas possibi- pouca coordenação intergovernamental,
lidades de solução que oferece para um pela ausência de fóruns ou mecanismos
problema histórico-político relacionado de participação e deliberação de todos os
ao conceito do moderno Estado territorial, níveis de governo; uma visão fiscalista de
a saber, a existência de forças políticas ajuste financeiro, que não leva à transfor-
opostas de integração e de desintegração mação futura de estruturas administrativas
num determinado espaço geográfico. Sua e políticas dos governos subnacionais; e a
finalidade é simultaneamente gerar e man- instauração de uma competição selvagem
ter tanto a unidade quanto a diversidade. e predatória entre os entes federativos, de

242 Revista de Informação Legislativa


que é expressão mais clara a guerra fiscal, ameaça erodir as competências locais e
com consequente adiamento da redu- regionais. Essa constatação traz consigo
ção das desigualdades regionais no país diversos dilemas para o federalismo, tais
(ABRUCIO, 2001, p. 104). como o da universalização versus focaliza-
Nagel (2002, p. 93) mostra que o federa- ção das políticas públicas, o da uniformi-
lismo cooperativo apresenta uma tendência dade versus diversidade na configuração
de reforçar mais a função co-determinante das medidas de solução, e o da coopera-
dos Estados-membros em nível federal, ção versus competição na relação entre os
mediante participação nas decisões nacio- entes federativos. Por tudo isso, deve-se
nais, do que a preservar ou expandir suas dar razão a Almeida (2005, p. 91), quando
autonomias. Essa característica é reforçada afirma que os constituintes de 1987/88,
pelo fato de que, na Alemanha, a União pre- apesar de toda a pressão pela descentra-
valece nas competências legislativas, mas lização, constataram que “a recomposição
os Länder são encarregados da execução das do equilíbrio federativo é problema muito
leis, sob supervisão daquela, do que resulta mais complicado do que se pode imaginar
uma necessária cooperação entre as esferas à primeira vista”.
federativas. No mesmo sentido, Renzsch
(1995, p. 40) observa que o federalismo na
Alemanha se baseia numa divisão das ta-
refas públicas, nas quais a Federação cuida Referências
da maior parte da legislação e os Länder da ABRUCIO, Fernando Luiz. A reconstrução das fun-
implementação das políticas. ções governamentais no federalismo brasileiro. In:
No Brasil, contudo, cada esfera fede- HOFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, José Mário Bra-
rativa executa os seus próprios serviços, siliense (Org.). Federalismo na Alemanha e no Brasil. São
mediante administração própria, o que Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 95-105.
diminui ainda mais a perspectiva da coo- ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências
peração. Na realidade, pode-se identificar, na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005.
nesse aspecto, um descompasso entre a ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. O condomínio
legislação concorrente alemã e a brasileira. legislativo: um estudo sobre a possibilidade de apli-
Na Alemanha, a preponderância da legis- cação do princípio da subsidiariedade na repartição
lação federal justifica-se por esse esquema de competências legislativas concorrentes entre a
de divisão de tarefas, em que os padrões de União e Estados-membros prevista na Constituição
Federal brasileira de 1988. Recife, 2001. Dissertação
gestão são decididos na esfera federal, para (Mestrado)-Universidade Federal de Pernambuco.
conferir homogeneidade às condições de
vida no país, cabendo aos Länder as ações BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da
subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro:
necessárias para execução das políticas
Forense, 1997.
definidas. No Brasil, a própria União, em
regra, executa as suas políticas, de modo BOTHE, Michael. Federalismo: um conceito em
transformação histórica. In: FUNDAÇÃO KONRAD-
que a legislação concorrente acaba por
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