A primeira leitura que eu fiz da exposição de Harun Farocki ocorreu
antes mesmo de eu ter visitado a própria no Paço das Artes. Essa leitura parte da icônica imagem que ilustra o website do espaço, no caso, um frame retirado de um dos filmes-instalações de Farocki. Nessa imagem, vemos o herói virtual em primeira pessoa (first person) segurando uma arma, seu longo cano traça uma linha em perspectiva até o seu alvo em segundo plano: uma menina que detém uma certa verossimilhança com as nativas pintadas por Gauguin. Há aqui um forte contraste entre a figura masculina que olha e que está munida de poder bélico, e a figura feminina que, de costas e aparentemente desprotegida, não percebe que está sendo observada.
Ao ver essa imagem, que faz parte do filme-instalação Parallel IV,
cheguei a acreditar que a exposição giraria apenas em torno dos limites éticos dos video games, porém a discussão de Farocki se ramifica em outras problemáticas pertencentes a esse e a outros tipos contemporâneos de imagens técnicas. Vale notar que Farocki se utiliza fundamentalmente dos códigos lineares do cinema para falar desse espaço virtual, labiríntico e supostamente open world dos video games, caso contrário, haveria um joystick para que pudéssemos interagir com as projeções. Talvez seja pelo uso de uma outra linguagem, que Farocki consegue se distanciar e expor as contradições e limites da imagética dos video games, já que de outra maneira, ficaríamos por demais absortos, e impregnados da falsa e sedutora realidade que os mundos virtuais dos games nos propiciam. Dentro da exposição, desinibidamente assisti os filmes fora de sequência: Parallel IV, Interface, Catch Phrases – Catch Images, Parallel II, Parallel I e Parallel III. E algumas vezes, os assisti do meio para o final/do começo para o meio. Abaixo, irei tentar resumidamente descrever alguns dos pensamentos que tive em cada parte da exposição. Parallel I: Nesse filme, a historicidade dos video games é revelada através de quatro elementos plásticos-virtuais: grama, água, fogo e nuvem. No início, os video games, de maneira similar à empreitada plástica neo- impressionista, parte do fato de que pequenos quadrados de luzes coloridas (pixels) justapostos conseguem formar imagens maiores (sprites). Farocki demonstra a evolução dessas materialidades virtuais, que nos dias de hoje, atingem um alto padrão fotorrealista. Porém, essas imagens não são nada mais do que ilusões, assim como a fotografia e o cinema demonstraram ser com o passar do tempo. Entretanto, ao observarmos as atuais construções de imagens virtuais nos games, percebemos o quanto a constituição ilusória dessas imagens parece ser manipulável ao infinito: uma superfície pode estar coberta de água, parecer com um oceano, mas por dentro ser oca, vazia de tudo; nuvens podem ser esticadas, redimencionadas, reagrupadas em alguns clicks por um designer; cada folha de uma árvore pode ser programada a reagir a um vento que não existe, causando uma ilusória sensação de que suas folhas farfalham à brisa passante. Essas manipulações virtuais, ao meu ver, parecem inaugurar um novo tipo de mimese, onde a natureza não é apenas copiada pelo artista, mas deve ser recriada por meio de processos que envolvem códigos, simulações físicas e probabilidades matemáticas. Parallel II: Os vídeos games atuais, ao contrário dos filmes, propõem uma maior liberdade de exploração e interação com seus mundos virtuais. Hoje é muito comum ouvir o termo sandbox para designar os games onde se pode fazer de tudo e de todos os jeitos. Farocki contradiz essa falsa sensação de liberdade que os games pretendem dar aos seus jogadores, ao expor suas insuficiências, que muitas das vezes são atreladas às punições ou aos surreais bugs e glitches. Isso fica evidente quando vemos nos filmes um jogador morrer instantaneamente ao tentar cruzar uma barreira limítrofe, ou quando assistimos a cena de um jogador que, ao ignorar o aviso de que ele estava deixando uma área segura do jogo, acaba caindo em queda livre num limbo virtual infinito. No final, a voz em off que narra o filme pergunta: quão longe nosso destemido herói poderá ir? Talvez a melhor resposta para essa pergunta seria: até aonde permitirem que ele vá. Parallel III: Nesse filme, Farocki nos transporta com um travelling para frente direto para a ação que está ocorrendo dentro de um jogo de guerra. É essa a visão de mundo pertencente ao jogador, limitada como os quatro quantos de uma fotografia, mas que é atraente e ilusória demais para que o mesmo perceba que está acorrentado à ela. Com um travelling para trás, Farocki nos leva para fora da ação, até as bordas do mesmo cenário: vemos do alto um mundo inacabado, dotado de falsos backgrounds, lacunas, barreiras e vazios. Essa é a visão de mundo dos programadores, inacessível aos jogadores que não possuem as ferramentas e os conhecimentos necessários (mods e hacks) que podem corromper a estrutura pré-programada do jogo. Em outra parte do vídeo, Farocki nos convoca a refletir sobre um monolito virtual recoberto por uma textura que lembra um mármore, e que sustenta em seu topo uma escultura qualquer. No plano do jogador, o bloco se revela maciço e intransponível. No plano do programador, Farocki consegue ir além ao colocar uma câmera virtual fazendo um travelling através do bloco, além de ela ignorar qualquer barreira física-virtual, ela ainda revela que o objeto por dentro é oco e que suas paredes são incompreensivelmente transparentes. Parallel IV: Discute-se aqui a figura do herói, geralmente do gênero masculino (reforçada pelo coçar dos genitais, por estar segurando uma arma ou pelos punhos em riste) que em contato com o mundo virtual e seus habitantes (ou coadjuvantes), interage e recebe os reflexos de suas ações. Esbarrar em alguém, sacar uma arma em público ou agredir voluntariamente uma pessoa causam reações individuais ou coletivas. Porém, apesar da aparente máscara de realidade (textures) que recobre a pele, o cabelo, e as roupas desses habitantes virtuais, eles reagem dentro de certas limitações impostas pelo seus programadores. Mecanismos internos como a memória, a consciência e o livre- arbítrio são tão mal emulados, que suas reações exteriores, através de movimentos ou falas pré-gravadas, se tornam copiosamente repetitivas, exageradas, robóticas, extinguindo qualquer realismo pretendido por seus programas. Catch Phrases – Catch Images: Em outra parte da exposição, regressamos às inquietações de Farocki anteriores aos video games. Na primeira delas, assistimos a uma entrevista entre o artista e o filósofo Vilém Flusser. Os dois dialogam profundamente sobre a primeira página de um tablóide, e debatem sobre a relação promíscua que há entre textos e imagens nesse tipo de mídia. A capa do jornal se revela, em uma primeira leitura, por meio de sua estrutura fragmentária, um amontoado caótico de palavras, símbolos e imagens, manipuladas de todos os jeitos. O título sensacionalista, “Noite Sangrenta”, é impresso com letras brancas sobre um fundo preto, o qual Flusser argumenta que o texto, nessas condições gráficas, evidência magicamente o fato ocorrido. Logo acima, uma foto da vítima morta é estampada com efeito de recorte. Em outro pedaço do jornal, Farocki atenta-se para duas fotos de uma mesma mulher vítima de homicídio: a primeira foto se sustenta pelo discurso da fotogenia (observamos uma foto da bela e jovem vítima sorrindo para a câmera); a segunda foto, para reforçar o discurso empático da primeira, sustenta-se no mito maternal (nessa foto, a mulher beija um bebê). Por fim, Flusser utiliza a palavra demagogia para sintetizar os discursos do objeto que acabara de ver. Demagogia no seu sentido pejorativo, que traduzo por: aqueles que conduzem o povo através de manobras sentimentais ou por falsas promessas. Interface: Nesse último filme-instalação, vemos um vídeo metalinguístico bifurcado em duas telas, que contém uma autoanálise do processo de pré-produção (a escrita), produção (a imagem e o som) e de pós- produção (o corte das imagens e dos sons) dos filmes de Farocki. Ao refletir sobre seus processos de fabricação de imagens, o artista parece estar consciente de sua própria idolatria, e durante todo o filme, vai comparando e sobrepondo imagem após imagem: gravações televisionadas, sua autoimagem, imagens estáticas, trechos de filmes, imagens dentro de imagens etc.; e essas imagens seguem conversando com outras imagens que as espelham na tela dupla, e com outras que as seguirão a cada frame deixado para trás. Em um outro momento marcante, Farocki fala sobre a sensação de tatear um filme de rolo e sentir as ranhuras desse material entre os dedos, tatear que se difere do apertar de botões dos modernos aparelhos de vídeo daquela época, onde a imagem já não é mais palpável, mas sim pura virtualidade, assim como hoje são os videos games. Deixo por fim, duas dicas de leituras do filósofo Vilém Flusser, que me auxiliaram na construção desse texto, e que discutem mais profundamente as questões das imagens técnicas incluídas nesse post: O universo das imagens técnicas. Elogio da superficialidade (São Paulo,2010); A Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia (São Paulo, 1983).