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Questão 1

A destruição do cortiço Cabeça de Porco marcou o fim de uma era, pois dramatizou o
processo de erradicação dos cortiços no Rio de Janeiro (iniciando o século das favelas) e
explicitou uma postura específica dos usos do “higienismo” na administração fluminense.
É exatamente da destruição desse cortiço que Sidney Schaloub1 levanta seus
questionamentos – que auxiliarão na presente resposta. Ao longo dos anos republicanos
cresce a vontade da elite brasileira em controlar e impor uma ordem aos habitantes pobres
dos cortiços da cidade. Ideia que foi reforçada ainda mais com as mudanças causadas pelo
crescimento desses cortiços, decorrente especialmente da expansão demográfica e do fim
da escravidão.
Tendo isso em vista, “Barata Ribeiro [o prefeito por trás da destruição do Cabeça de
Porco], homem pequeno e magricela, devia ser um Hércules dos ‘novos tempos’, e sua
missão era purificar a cidade, livrando-a definitivamente daquele ‘mundo de imundice’”.2
Schaloub aponta que em um estudo feito na França em 1840 por um policial, buscou-se
traçar um perfil das “classes perigosas das populações da grande cidade”. O que saiu
desse estudo, na verdade, fora que a produção de uma descrição da realidade de vivência
da população pobre.
A correlação da noção de “classes pobres” com a de “classes perigosas” foi um forte fator
de ameaça à cidadania dos habitantes dos cortiços fluminenses. O nascimento de uma
nova gestão do espaço da cidade, baseada na intervenção estatal nos cortiços e o
fortalecimento de um discurso que legitimava os intervenções repressivas do Estado.
Sidney Schaloub afirma que as concepções de virtude da elite brasileira correlacionavam
as noções classes pobres com classes viciosas. Pois, o bom cidadão é aquele que trabalha,
e por consequência, acumula. A ideia de “vício” vem da incapacidade de acumular.
Portanto, o indivíduo que não acumula, vive na pobreza, logo, já é um suspeito de não ser
um bom trabalhador. Sobre esse raciocínio o autor diz que apesar dos parlamentarem
terem utilizado de mecanismos lógicos, tirou-se “conclusões a respeito de coisa alguma,
pois, [...] seu raciocínio se desenvolveu a partir de uma abstração, de um vazio, de nada”.3
Um fator que fomentou ainda mais a conduta preconceituosa estatal foi a crescente
entrada de higienistas no aparato político, fortalecendo sua ideologia. Que afirmavam
como um conjunto de princípios destinados a conduzir o país à civilização através de
critérios e técnicas “científicas”. Porém, o que de fato existia, era que toda a realidade
histórica e suas especificidades político-sociais são ignoradas. A postura higienista nada
mais era do que a tentativa de legitimar os preconceitos da elite brasileira acerca das
populações pobres, o que existia era mais um dos inúmeros processos de “saneamento
moral” das populações indesejadas do Rio de Janeiro.
A relação feita entre pobreza e perigo criou uma “suspeição generalizada” que dura até
os dias de hoje. Essa suspeição, na época, significou a possibilidade de repressão das
classes, mesmo que isso fosse contra os princípios liberais constituídos ainda no período
monárquico. Ou seja, as populações pobres se tornaram os suspeitos preferenciais da
ontologia dos vícios que assolavam a sociedade republicana. Mas não só isso, sabe-se
também que os cortiços foram importantes para a luta dos escravos contra a escravidão e
para a manifestação da cultura popular. “Em outras palavras, a decisão política de

1
Schaloub.
2
Schaloub. P. 19
3
Ibidem, p. 22.
expulsar as classes populares das áreas centrais da cidade podia estar associada a uma
tentativa de desarticulação da memória recente dos movimentos sociais urbanos”.4
A Higiene pública fora aglutinada ao discurso do “caminho para o progresso”, implicando
na existência de uma forma “científica” de lidar com a situação. Civilização, ordem e
progresso estariam conectados no discurso dos “técnicos” positivistas, especialmente
após o golpe republicano, pois tais palavras estariam ligadas a ideia de “limpeza” e
“beleza” – no sentido de fazer a civilização europeia nos trópicos. Outra fator a ser
considerado pelo autor, é de que as autoridades policiais compartilhavam do discurso dos
higienistas e clamam por medidas contra a imundice dos cortiços. Contra os policiais, há
os fiscais da freguesia, que os acusam de perseguição. No meio disso, há a Câmara
Municipal, no meio do fogo cruzado, tendo a responsabilidade de traçar os rumos das
próximas ações.

Questão 2
O capítulo da autora Cristiana Schettini parte do polêmico habeas corpus impetrado a
favor das meretrizes expulsas de suas casas no centro da cidade do Rio de Janeiro, pois
esse acontecimento simbolizou as expectativas e perspectivas dos direitos individuais na
recém consolidada República – ao estabelecerem relações com seus vizinhos, policiais,
advogados, etc., as prostitutas adentraram inevitavelmente nesse debate. O advogado que
solicitara o habeas corpus, Evaristo de Moraes, apontava que qualquer um deveria ter o
direito constitucional do mesmo, independente da sua posição profissional.
“O delegado [que comandava a expulsão das prostitutas] e seus
aliados eram partidários de uma concepção republicana
autoritária, jacobina e positivista em que a supremacia do poder
executivo sobre os demais poderes, e até sobre a lei, se justificava
pela ideia de que o presidente da República incorporaria o
incorporaria o interesse geral e coletivo da nação”.5
Sendo assim, as campanhas para policiar a prostituição no Rio de Janeiro resultaram no
relativo reconhecimento social de certas prerrogativas policiais, em especial a de agir
independente do respaldo legal em certos casos. A expressão “poder da polícia” se não
representava isso, representava pelo menos as aspirações dos policiais em termos de ação
efetiva e aumento de poder.
“Por sua vez, quando Evaristo de Moraes impetrou uma ordem
de habeas corpus em favor das mulheres atingidas [...], ele
mobilizou uma concepção radicalmente distinta do que deveria
ser o regime republicano, em que o mais importante era a
garantia dos direitos básicos a todas as pessoas, independente do
status moral, por meio do cumprimento princípios
constitucionais”.6
Tendo isso em vista, temos aqui duas concepções de república radicalmente distintas entre
si que colocam as meretrizes sob perspectivas distintas: por um lado, a concepção do
delegado, implicava na afirmação que era de interesse nacional que houvesse um

4
Ibidem, p. 26
5
Schettini, p. 35
6
Idem.
“saneamento moral”, uma defesa da “honra” nacional acima de tudo, que separava os
indivíduos em moralmente válidos e inválidos e por outro lado, na perspectiva do
advogado, temos a ideia do direito individual acima de todos os direitos, uma ampliação
da ideia de cidadania.
Portanto, há a ideia em algumas classes sociais que a identidade nacional e os caminhos
a serem tomados para a civilização esbarravam em uma forte necessidade de proteger a
“honra” da família brasileira perante os vícios das classes mais baixas: “a honra da família
era crucial para a defesa da civilização e para a construção de uma nação moderna”. 7
Dessa forma, a visita do Rei Alberto e da Rainha Elisabeth potencializaram um debate de
como a cidade do Rio deveria ser representada para o exterior, qual seria a identidade
nacional que marcaria o imaginário da realeza belga. Para a elite brasileira não havia
dúvida: era necessário evidenciar a defesa dos valores de família e da honra.
“Muitos cariocas competiam para representar a nação perante o rei e a rainha da Bélgica,
escondiam suas ideologias sobre classe e raça atrás de uma retórica sobre honra, enquanto
promoviam as ideologias sobre as relações de gênero que essa retórica realçava”. 8 A
autora desta citação aponta que as relações de gênero e classe eram fundamentais para
distinguir socialmente os indivíduos na sociedade republicana no pós-Primeira Guerra.
Utilizava-se, assim, o conceito de “família” para promover segregações, tanto no que
tange a homens e mulheres (os primeiros ocupavam, de acordo com sua “natureza” o
espaço público e as segundas o espaço privado), quanto de classes (a classe popular e a
“classe honrada”, ou seja, a elite e a classe média, que se distinguiam pela geografia que
ocupavam. A “família”, como modelo para a própria elite, era a família construída sobre
bases ideais do modo europeu, distante das classes populares viciadas.
Analisando os aspectos apresentados nessas reflexões, é possível notar que as normas de
gênero eram um forte instrumento de manutenção social e do controle do espaço público-
privado; a relação entre público-privado e de mulheres “puras” e “impuras” existia para
a construção de uma reputação sobre as mulheres das classes populares – visto que o
resguardo no espaço privado era ligado a ideia de “honestidade sexual”.

7
Caulfield, p. 109
8
Ibidem, p. 111

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