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Texto Apresentação Anpuh-MS

Olá, boa tarde a todos, é um prazer estar aqui. Gostaria de agradecer à mesa por
ter aceitado minha proposta e ter fornecido esse espaço com pesquisas tão interessantes.
Estou extremamente animado com os temas.

Enfim, a presente exposição é um fragmento da minha atual pesquisa de


doutorado. São apenas esforços que tateiam abordagens e levantam mais questões do
que soluções. Hoje tenho por objetivo demonstrar o esforço realizado pelo astrônomo
Carl Sagan em circunscrever, conectar e atribuir significado ao tempo, à história e ao
universo considerando a problemática das mudanças climáticas na última década do
século XX. Tenho como hipótese que, em resposta às catástrofes climáticas, através do
conceito de Cosmos, Carl Sagan almejava elevar a história à dimensões planetárias,
produzindo uma união entre o tempo humano e o cósmico.

Analisar-se-á primariamente quatro livros do autor, sendo estes: Pálido ponto


azul, O mundo assombrado pelos demônios e Bilhões & Bilhões, em que constam a
questão ambiental, e Cosmos, no qual encontramos a cosmologia do autor. A questão
que me interessa na presente exposição é o esforço da construção do que o autor vai
chamar de Cosmos. O que eu estou tateando é que a temporalidade, especialmente
contemporânea, para ser pensada de forma efetiva, tem de levar em conta a ontologia
dos agentes envolvidos.

Nesse sentido, sob o aspecto contextual de Sagan, eu sigo a linha de que o cenário
das mudanças climática trouxe a necessidade de analisar e reconstruir as concepções do
planeta e as relações que estabelecemos. Em outras palavras, Sagan está em conjunto
com uma série de autores que estavam, por consequência do possível fim do mundo,
tentando produzir uma reavaliação do próprio entendimento, sobretudo Ocidental, do
que é a Terra – o que alguns autores chamam de Intrusão da Terra/Gaia/Planetário...
Mais do que isso, não é o objeto da exposição de hoje, mas a gente pode levar isso para
as perguntas, a temporalidade/ontologia de Sagan é uma que está em conflito com
outras, sobretudo a do mundo dos conservadores negacionistas.

Alinho-me com os filósofos Alyne Castro e Patrice Maniglier na perspectiva de


que as mudanças climáticas trouxeram para a luz a existência de muitos mundos, ou
eco-ontologias, dentro de um Mundo. Em seu artigo, How many Earths? The
Geological Turn in Anthropology, o filósofo Patrice Maniglier vai propor que não
devemos pensar a Terra como um ecossistema, ou um ecossistema de ecossistemas, mas
como um atravessamento de ciclos.

Nessa lógica, o sentido global do Aquecimento Global significa que o ocorre no


Rio de Janeiro não é necessariamente “exatamente a mesma coisa” que ocorre no
Alaska, ou em Nápoles ou em Abuja, e eu cito Maniglier, “mas não deixa de ser parte
de algo que deve ser interpretado como um”. As ontologias seriam as formas de habitar
esse planeta.

Segundo Alyne Castro, “as ontologias são mundos por meio dos quais a Terra
transita”. Do ponto de vista filosófico, a autora afirmou que os seres, nas ontologias,
existem de modo relacional e diferencial, ou seja, enquanto ocupantes de posições, ou
perspectivas, que variam conforme a função que exercem nos arranjos ontológicos
próprios às diversas cosmologias. Logo, só podemos falar na unidade da Terra na
existência desses pontos de vista acerca de suas expressões e de seus entes – em que
diversas ontologias entram em contato. Do ponto de vista prático, existem um
pluriverso de formas para o “recrutamento” dos seres na composição de uma ontologia
– como os seres humanos da Terra Grande Floresta dos Yanomami ou a Natureza como
fonte de recursos para Homo economicus neoliberalal.

Podemos pensar a Terra como sendo ao mesmo tempo a condição de possibilidade

das variações geontológicas e a unidade que se pode construir a partir dessas variações

(isto é, o conjunto das variações geontológicas existentes).

Cabe agora entendermos os arranjos e recrutamentos realizados por Carl Sagan

para entendermos a temporalidade contida em seus escritos. A fonte em que

encontraremos esses arranjos estará em seu livro Cosmos. Cito a introdução deste livro:

Pouco a pouco fomo-nos afastando do Cosmos. Comparado com as


nossas preocupações do dia-a-dia, tem-nos parecido irrelevante e
distante. Mas a ciência veio descobrir não só a grandiosidade desse
universo, não só que esse universo era acessível à compreensão
humana, mas também que num sentido muito real e profundo, nós
fazemos parte dele, nascemos dele e a ele estão fortemente ligados os
nossos destinos.
A escolha de Sagan para o termo Cosmos (segundo autor Sagan: “ordem das
coisas”) faz referência a um conceito que se apresenta com seu significado atual a partir
do XIX. Nesse período vamos encontrar a publicação do primeiro volume da obra
Kosmos – um esboço de uma descrição física do universo, de Alexander Von
Humboldt. A escolha de Humboldt para o termo Kosmos buscou estabelecer um
conexão direta com os gregos Antigos ao reintroduzir de uma palavra Antiga no léxico
Moderno a fim de alterar o paradigma intelectual do conhecimento científico da época.

Para Humboldt, os outros termos como Mundo, globo ou Terra não eram o
suficiente para compreender a dinâmica cósmica. Para o autor, ver a Terra era ver a
humanidade refletida no abismo sideral. É uma perspectiva muito similar a de Sagan.
Lemos no Cosmos de Sagan, e eu o cito: “algo em nós reconhece o Cosmos como nosso
lar. Nós somos feitos de poeiras das estrelas. Nossa origem e evolução tem sido ligada
a eventos cósmicos distantes. A exploração do Cosmos é uma viagem de
autodescobrimento”. Ou seja, há um conexão direta entre nós e o Planeta. Somos parte
do cosmos.

Segundo Sagan, após toda a evolução cósmica, a humanidade, com o “método


científico”, foi a forma pela qual o Cosmos conseguiu “olhar a si mesmo”. Somado a
isso, biologicamente, por conta de nossa consciência, os humanos seriam raros e teriam
o privilégio de influenciar e, talvez, controlar seus futuros. Por conseguinte, a
humanidade teria a obrigação de lutar pela vida na Terra, não apenas por ela mesma,
mas por todos aqueles, humanos e não humanos, que vieram antes e a quem “devemos
favores”, e por todos aqueles que viriam depois. Logo, há um recrutamento dos seres de
forma que a humanidade possui uma responsabilidade para com o resto dos seres no
passado, no presente e no futuro.

A questão que se coloca agora é: se a catástrofe que se profetiza com as mudanças


climáticas estava no cerne de qualquer planejamento futuro, qual a relação histórica
pode ser estabelecida entre a ação humana e a contemplação do Cosmos? Sagan parece
nos fornecer pistas: olhamos outros planetas para compreender o nosso. Segundo o
astrofísico, ao explorarmos o universo, ampliamos nosso espectro de possibilidades. A
partir da análise da inospitalidade dos outros planetas, “nós aprendemos como um
planeta pode dar errado”. Nesse sentido, Sagan conclui, e isso é importante, que a
ciência espacial deveria ser concebida como um mecanismo de compreensão histórica
– a história do Cosmos, logo, a história da humanidade.
O esforço de Sagan acreditava que olhar para outros planetas seria como ver a
Terra em distintos momentos temporais. Novamente, tal perspectiva demonstra a
univocidade das temporalidades do Cosmos na perspectiva cosmológica.
Nesse momento, as proposição de Dipesh Chakrabarty são úteis para nós
compreendermos essa temporalidade que se forma. Chakrabarty propõe pensar o
conceito de Planeta enquanto uma categoria humanística. Pois, as Ciências do Sistema
Terra fornecem ao ser humano um passado longo, com diversas camadas e
essencialmente heterotemporal, colocando em conjunto três histórias com distintas
escalas de tempo: (1) a história do planeta, (2) a história da vida no planeta e (3) a
história do globo fabricada na lógica dos impérios, do capital e da tecnologia.
Chakrabarty salienta, a existência do que ele chama de regime de historicidade
planetário ou Antropocênico, em que a dimensão do Planeta aparece enquanto
constitutiva da experiência do tempo histórico contemporânea e evoca preocupações de
ordem filosófica-humanística. Encarar o Planeta, para o autor, é encontrar algo que é
indiferente à existência humana, mas que está inserido nos debates acerca da
moralidade.
Essa análise de Chakrabarty é interessante para mim, pois, em Pálido Ponto Azul,
Sagan diz que se nos mantermos presos ao estudo de um único mundo, não saberemos o
que pode ou poderia ter sido do nosso. Sagan apontou ainda que, ao olhar a Terra de sua
órbita, “de fora”, é possível entender porque não há tal coisa como problema ambiental
local, pois moléculas e gases não respeitam fronteiras, não compreendem a noção de
soberania nacional – há uma visão transnacional da catástrofe.
Recaptulando nosso percurso então, nessa apresentação de hoje, o que me
interessou mais foi a criação dessa “cosmologia”, no qual Sagan coloca em contato a
humanidade, o planeta e o universo, pois assim, podemos ver uma clara tentativa da
sincronização desses tempos com durações e ritmos diversos. A união dessas
temporalidades resulta na tomada de responsabilidade da humanidade para com a Terra
e seus habitantes, de modo que se lide com as mudanças climáticas. É uma
temporalidade que surge justamente da necessidade de reavaliar diversos aspectos tendo
em vista a catástrofe que se anuncia. Mais do que isso é uma temporalidade fruto de
uma concepção de mundo que está em contato com diversas outras concepções.
***
Já é comum entre nós historiadores o reconhecimento de que a realidade social é
composto por diversas temporalidades. Distintas experiências e concepções de tempo
habitam o tecido social e se relacionam de forma, geralmente, conflituosa. Isso só
ocorre porque possuímos diferentes arranjos ontológicos. No caso de Sagan, a
perspectiva cosmológica do autor está traçando um conflito com outras concepções de
mundo: em especial a dos conservadores (republicanos) e dos negacionistas.
Sagan realizou uma contundente crítica aos republicanos e conservadores, e
nominalmente aos mandatos dos presidentes Ronald Reagan (1981–1989) e George H.
W. Bush (1989–1993). Em Bilhões & Bilhões, a segunda parte do livro toda reservada a
isso, sendo intitulada “O que os conservadores estão conservando?”, na qual há uma
aberta relação estabelecida entre o negacionismo climático e o espectro conservador
estadunidense. No capítulo 23 de O mundo assombrado pelos demônios, o astrofísico
criticou a postura do governo Reagan de menosprezar a relevância da ciência para a
sociedade, de forma que se posicionou claramente para o público acerca de sua
orientação política.
Historicamente, o negacionismo acerca da mutação climática foi intensamente
produzida pela administração Reagan, tornando-se um política oficial de governo. O
mandato de Reagan foi responsável por inventar uma “incerteza sistemática” a fim de
promover a negação das mudanças climáticas e dos males decorrentes de alguns
compostos químicos. Isso não foi fruto de uma ingenuidade ou ignorância para com os
fatos, mas sim de uma atitude deliberada, pois, como ficou evidente nos anos
posteriores, existia plena ciência da veracidade dos dados acerca das mudanças
climáticas. A partir de 1990, esse negacionismo maturado na década anterior ganharia
ainda mais força e potência diante da opinião pública estadunidense. Isso significou um
crescimento dos discursos de business as usual e de saídas que implicavam na mesma
lógica pautada no desenvolvimentismo que causaram a ameaça climática.
Sagan lutou durante os últimos anos de sua vida contra as fracas e inexistentes

propostas governamentais para o uso irresponsável de tecnologias perigosas, salientando

que estas geralmente eram subordinadas aos interesses de curto prazo de nações e

corporações. Sagan escreveu ainda em Bilhões & Bilhões que talvez “os produtos da

ciência sejam simplesmente poderosos demais, perigosos demais, para nós”.

O que temos, portanto, é, pra usar o vocabulário de Bruno Latour, uma “guerra

dos mundos” no contexto estadunidense: de um lado, o planeta que habita o Cosmos de

Sagan e de outro o mundo dos negacionista-lobbystas que tentam manter um sistema

neoliberal de exploração/destruição do planeta. Ambos os mundos em questão – além


dos outros milhares outros, como o dos povos originários, das populações quilombolas,

das periferias, etc – apresentam suas concepções e experiências do tempo. Concepções e

experiências estas que estão em oposição, que se transformam em políticas do tempo.

O tempo de apresentação nos é restrito aqui e o próprio caráter inicial de minha

pesquisa fez com que vários temas não fossem aprofundados, como as implicações

políticas, o papel atribuído a cada dimensão temporal e as diferenças e afinidades entre

temporalidades. Eu tenho ciência disso. Entretanto, espero que minha fala tenha

fornecido um material mínimo pra nós conversarmos aqui e trocarmos ideias. Obrigado

pelo espaço. Boa tarde.

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