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Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura

Cosmos e Catástrofe no Antropoceno: as discussões climáticas


nos livros de Carl Sagan na última década do século XX

Linha de pesquisa: Teoria, Historiografia e História


Intelectual
Doutorado

Marlon Ferreira dos Reis

2021
Tema

Considerando as discussões ambientais contemporâneas, o presente projeto almeja


analisar a questão das mudanças climáticas, na última década do século XX, sob
perspectiva do astrofísico e divulgador científico Carl Edward Sagan (1934-1996).
Objetiva-se explicitar a construção de mundo de Sagan, seu Cosmos, e a elaboração
discursiva da temporalidade da crise climática. Para tanto, analisar-se-á primariamente
quatro livros, sendo estes: Cosmos (1980), Pálido Ponto Azul (1994), O Mundo
Assombrado pelos Demônios (1996) e Bilhões & Bilhões (1997). Como hipótese, sugere-
se que a temporalidade é fruto de uma construção de mundo, nos termos de Patrice
Maniglier e Alyne Castro, que se apresenta para nós através de uma rede conceitual
própria.
É possível que o leitor conheça Carl Sagan justamente pelo projeto de divulgação
científica Cosmos, que consistiu na produção de uma série televisiva e na publicação de
um livro na década de 1980. O projeto alcançou grande expressão, tendo a série sido
exibida em diversos países e o livro permanecendo por dois anos seguidos entre os cinco
mais vendidos dos Estados Unidos da América 1.
Sendo lançado nos anos finais da Guerra Fria, o projeto de Sagan foi um marco da
ciência contemporânea no que tange ao seu contato com o público mais amplo. A proposta
base era aparentemente simples: aproximar das pessoas as concepções e descobertas
científicas, demonstrando como suas vidas cotidianas possuíam relação com o cosmos.
Lemos, ainda na introdução do livro:
Pouco a pouco fomo-nos afastando do Cosmos. Comparado com as
nossas preocupações do dia-a-dia, tem-nos parecido irrelevante e
distante. Mas a ciência veio descobrir não só a grandiosidade desse
universo, não só que esse universo era acessível à compreensão
humana, mas também que num sentido muito real e profundo, nós
fazemos parte dele, nascemos dele e a ele estão fortemente ligados os
nossos destinos.2
O projeto foi um sucesso e seu impacto cultural foi tamanho que, em 2012, a
Library of Congress colocou o livro Cosmos como um dos 88 livros que moldaram a
América, ao lado de nomes como Thomas Jefferson, Lyman Frank Baum e Malcom

1
FREYESLEBEN, Aline F. A atuação do “cientista-celebridade” – um olhar sobre a tradição intelectual
de Carl Sagan. Revista Vernáculo, nº 46 – segundo semestre, 2020, pp. 117-133.
2
SAGAN, Carl. Cosmos. New York: Ballantine Books, 1985, p. 6
X.3Apesar da premissa aparentemente simples, existem estratos mais profundos que
podem ser um solo frutífero de análises sobre a experiência do tempo contemporânea. A
começar pela escolha do termo.
Segundo o autor, “Cosmos” é uma referência direta à palavra grega κόσμος, que
significava “a ordem do universo”, sendo, de certo modo, “o oposto do Caos”, implicando
em uma profunda “interconexão entre todas as coisas”.4 O interessante para essa
pesquisa são as razões pelas quais foi empregado esse termo em específico e não outra
expressão ordinária referente ao universo. Já é de consenso nas discussões recentes sobre
o Antropoceno que, com a descoberta das mudanças climáticas na segunda metade do
século XX, houve um significativo esforço por parte de alguns autores de reimaginar e
ressignificar as relações e os entendimentos acerca do planeta Terra. Nesse período,
vemos o surgimento de concepções mais ou menos sofisticadas do que até então tinha
sido tomado como dado – no intervalo de poucas décadas, uma extensa bibliografia seria
produzida à luz da Hipótese de Gaia, da Intrusão do Planetário, da Vingança de Medeia,
e, óbvio, do Cosmos.
Alinho-me com os filósofos Alyne Castro e Patrice Maniglier na perspectiva de que
as mudanças climáticas levantaram a discussão da existência de muitos mundos, ou
(geo)ontologias, dentro de um Mundo. Antecipando um pouco a discussão teórica, em
seu artigo, How many Earths? The Geological Turn in Anthropology, o Maniglier vai
propor que não devemos pensar a Terra como um ecossistema, ou um ecossistema de
ecossistemas, mas como um atravessamento de ciclos. Nessa lógica, o sentido global do
“Aquecimento Global” advém do fato de que o que se passa no Rio de Janeiro não é
“exatamente a mesma coisa” que ocorre no Alaska, ou em Nápoles ou em Abuja, “mas
não deixa de ser parte de algo que deve ser interpretado como um”.5 No vocabulário dos
autores, sobretudo de Alyne Castro, existem mundos, ou seja, concepções
(geo)ontológicas, dentro de um único Mundo. A nível de exemplo, a relação entre seres
humanos e não-humanos no mundo da Terra Grande Floresta dos Yanomami é uma
completamente distinta da que existe no Cosmos de Sagan ou no “globo” Moderno.

3 LIBRARY OF CONGRESS. Books that Shaped America Exhibition. 2012. Disponível em: <
https://www.loc.gov/exhibits/books-that-shaped-america/1900-to-1950.html#obj0 >. Último acesso em:
24/04/2023.
4
SAGAN, Carl. Op. Cit, 1985, p. 16
5
MANIGLIER, Patrice. How many Earths? The geological turn in anthropology. The Otherwise, vol. 1,
2019, p. 67. Disponível online em: < http://theotherwise.net/articles/article_sample.html >. Último acesso:
24/04/2023.
Evidentemente, na história da Modernidade, a concepção de mundo do “Ocidente”
foi capaz de minimamente silenciar e fazer esquecer os mundos outros existentes no
Mundo. Apenas em um fenômeno relativamente recente, sobretudo pelo esforço
filosófico e pela democratização dos discursos (públicos e acadêmicos) é que o espaço
para outras (geo)ontologias foi (re)conquistado. Dito isso, não acredito que a concepção
de Sagan seja um rompimento com a visão Moderna sobre o planeta, ou seja, ele não se
insere nesse movimento de protagonismo de outros mundos. Todavia, as discussões sobre
o pluriverso de mundos na “Terra” nos permite pensar o Cosmos de Sagan sem considerá-
lo um pressuposto ontológico. Ao realizarmos um “estranhamento” dessa visão, é
possível notar que a cosmologia de Sagan é uma variação significativa da ontologia
Moderna.
Para entendermos a visão de Sagan, acredito ser preciso retornar XIX, mais
especificamente em 1845, quando vamos encontrar a publicação do primeiro volume, dos
cinco, da obra Kosmos – um esboço de uma descrição física do universo, de Alexander
Von Humboldt (1769-1859). O leitor atento já percebeu a semelhanças entre as duas
obras. Mais do que uma simples coincidência, foi o trabalho de Humboldt o responsável
por reintroduzir no vocabulário científico o referido termo da Antiguidade grega,
transliterado na palavra Kosmos, a fim de se referir ao universo.
Segundo Humboldt, a análise da natureza era inseparável do estudo da mente em
seu contexto material, social e cultural e a reintrodução de uma palavra Antiga no léxico
Moderno foi uma tentativa deliberada de preencher essa pressuposição. O naturalista
alemão visou alterar o paradigma intelectual do conhecimento científico, pois, segundo o
próprio, termos como “universo”, “Terra” e “mundo” não eram capazes de capturar as
qualidades observadas. Recuperando o pensamento de Pitágoras e Aristóteles, Humboldt
defendeu que o Kosmos seria “a reunião de todas as coisas no céu e na terra, a
universalidade das coisas criadas que constituem o mundo perceptível”. 6 Na leitura
humboldtiana da Antiguidade Clássica, κόσμος significava tanto “ordem” quanto
“adorno”, assim sendo, o Kosmos concentrava simultaneamente uma potência científica
e poética. Em outras palavras, apontava para os fenômenos da natureza e para o
sentimento oriundo da contemplação racional do universo: sem a experiência poética
haveria um universo, mas não haveria um Kosmos.7

6
WALLS, Laura D. The passage to Cosmos: Alexander von Humboldt and the shaping of America. The
University of Chicago Press, 2009, p. 220.
7
Ibidem, p. 221-222.
O trabalho de Humboldt foi bem-sucedido em popularizar o termo Kosmos e,
simultaneamente, consolidar um “novo” paradigma na forma de se enxergar a natureza.
A partir dele, estabeleceu-se um relativo consenso acerca da relação de continuidade
ontológica entre a Terra, o espaço sideral e a humanidade. Essa perspectiva de um sistema
universal unitário e ordenado persevera nos discursos científicos até a data presente, tendo
Carl Sagan reproduzido, até certo ponto, o paradigma humboldtiano em seus trabalhos.
Sagan chega a citar o livro Kosmos de Humboldt em seu Cosmos, porém, apenas
em uma rápida nota de rodapé, na qual o divulgador afirmou que o autor alemão
influenciou Charles Darwin a realizar suas viagens e observar a natureza. 8 Portanto,
Sagan estava ciente da existência da obra e é altamente provável que conhecia a
perspectiva humboldtiana do universo. Todavia, em nenhum dos livros de Sagan
encontramos menções diretas a afinidade entre ambos tampouco se credita a perspectiva
do Cosmos a Humboldt. Podemos apenas inferir algumas influências Antigas comuns a
ambos (como Pitágoras e Plutarco) e notar que Sagan foi leitor de autores que adotaram
a visão kosmológica (como Charles Darwin, Henry David Thoreau e Ralph Emmerson).9
O fato é que Carl Sagan apreendeu a principal lição do Kosmos: que nós somos “poeiras
das estrelas”. Para Humboldt, ver a Terra era ver a humanidade refletida no abismo sideral
e a humanidade era a versão do cosmos que aprendeu a olhar para si mesmo.10 Nas
palavras de Sagan, em 1980: “algo em nós reconhece o Cosmos como nosso lar. Nós
somos feitos de poeiras das estrelas. Nossa origem e evolução tem sido ligada a eventos
cósmicos distantes. A exploração do Cosmos é uma viagem de autodescobrimento”. 11
Carl Sagan expressa ativamente uma concepção de que a ciência é o único
mecanismo capaz de descobrir as verdades desta “unidade” universal. A questão é que o
discurso científico de Sagan também se propõe a estabelecer uma base “sagrada” do todo,
compreendida dentro da experiência estética de contemplação do conhecimento
científico. A proposta do astrofísico é de uma ciência em consonância com o universo,
capaz de oferecer uma perspectiva cósmica da realidade. O próprio “método científico”
aparece como um produto do Cosmos que, ao permitir a humanidade olhar para o

8
Vale observar que o Kosmos de Humboldt é posterior à viagem de Darwin no navio Beagle. Foi em 1839
que Darwin publicou seus diários de sua jornada e com suas teorias. Logo, a informação de Sagan não
procede, levantando o questionamento da origem da influência humboldtiana no astrofísico.
9 É provável que Sagan teve seu contato com o Kosmos de Humbolt mediado por algum desses três

autores, talvez os três, e nunca leu, de fato, o material original.


10
WALLS, Laura D. Op. Cit..
11
SAGAN, Carl. Op. Cit., 1985, pp. 193.
universo, a inunda com sentimentos inefáveis, sublimes e temerosos.12 Ainda em 1980,
Sagan escreveu:
se temos de cultuar um poder maior que nós mesmos, não faz sentido reverenciar
o Sol e as estrelas? Oculta em toda investigação astronômica, às vezes soterrada
tão fundo que nem o próprio pesquisador tem ciência de sua presença, subjaz uma
semente de reverente temor.13
Em Bilhões & Bilhões, dezessete anos depois e agora considerando a ameaça
climática, o autor argumentará que “os esforços para proteger e valorizar o meio ambiente
precisam ser infundidos com uma visão do sagrado”.14 Segundo Sagan, biologicamente,
por conta de sua consciência, os humanos seriam raros e teriam o privilégio de influenciar
e, talvez, controlar seus futuros. Por conseguinte, a humanidade teria a obrigação de lutar
pela vida na Terra, não apenas por ela mesma, mas por todos aqueles, humanos e de outras
espécies, que vieram antes e a quem “devemos favores”, e por todos aqueles que virão.
Essa passagem é um atestado de que não existe nenhuma causa mais urgente e apropriada
do que proteger o futuro das espécies; “nenhuma convenção social, nenhum sistema
político, nenhuma hipótese econômica, nenhum dogma religioso é mais importante”.15
A questão que se coloca é: se a catástrofe que se profetiza com as mudanças
climáticas estava no cerne de qualquer planejamento futuro que se desejasse realizar, qual
a relação histórica pode ser estabelecida entre a ação humana e a contemplação do
Cosmos? Sagan parece nos fornecer pistas: olhamos outros planetas para compreender o
nosso. Segundo o astrofísico, ao explorar o universo, amplia-se o espectro de
possibilidades, e começa-se a entender o que ocorre se há muito de uma coisa ou pouco
de outra em um planeta, como no exemplar efeito estufa de Vênus. A partir do estudo
racional do universo, “nós aprendemos como um planeta pode dar errado”.16
Sagan atestou que a ciência espacial deveria ser concebida como um mecanismo de
compreensão histórica – a história do Cosmos, logo, a história da humanidade. A conexão
entre explorar outros mundos e proteger o nosso seria mais evidente no estudo do clima
da Terra, pois quando os cientistas olharam para o espaço, viram a fragilidade dos corpos
celestes e a existência de outros ambientes possíveis. 17

12
LESSL, Thomas M. Science and the sacred cosmos: the ideological rhetoric of Carl Sagan. Quarterly
Journal of Speech, vol. 75, nº 2, 1985, pp. 175-187.
13 SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 309
14
SAGAN, Carl. Billions & Billions – thoughts on life and death at the brink of the millennium. New
York: Ballantine Books, 1997, p. 77
15
Ibidem, p. 42.
16
SAGAN, Carl. Pale Blue Dot: a vision of the human future in space. New York: Random House, 1994,
p. 113
17 Sagan elenca que a descoberta do aquecimento global e do perigo dos Cloro-Flúor-Carbonetos (CFCs)

possuem relações com pesquisas sobre os planetas Vênus e Marte; no que tange ao Inverno Nuclear,
Esse ponto é crucial, pois tendo a crer que o Cosmos não se sustenta apenas por seu
esforço em propor algo “novo”. Parece-me evidente que esse Cosmos é um que está em
disputa com outros mundos e com outras variações da ontologia Moderna. Sagan
enumera seus adversários: os negacionistas, os “místicos” e o militarismo. Cada um
desses “grupos” aparece nos discursos de Sagan, inclusive no projeto Cosmos, como
sendo os principais males de seu tempo. O Cosmos é uma visão que se constrói em
oposição a essas outras concepções - vale ressaltar que essas cosmovisões também podem
ser pensadas como variações da ontologia Moderna. É na disputa que se constrói sua
visão do mundo e, por conseguinte, sua temporalidade.
Diversas vezes questões políticas aparecem nos textos de forma explícita e esse
aspecto não deve ser menosprezado. Nos três últimos livros que servem de fonte para essa
pesquisa, Sagan realizou uma contundente crítica aos republicanos e conservadores, e
nominalmente aos mandatos dos presidentes Ronald Reagan (1981–1989) e George H.
W. Bush (1989–1993). Em Bilhões & Bilhões, a segunda parte do livro é intitulada “O
que os conservadores estão conservando?”, e se constrói uma aberta relação entre o
negacionismo climático e o espectro conservador/republicano estadunidense.18
Aos olhos do divulgador científico, o único grupo que parecia se preocupar
rotineiramente com o futuro humano, com as “catástrofes ainda não vistas em toda a
história escrita de nossa espécie”, era o dos cientistas. O perigo climático descoberto foi
tão grande que seria prudente levar a sério mesmo uma pequena possibilidade da grave
ameaça das mudanças ambientais, justamente por ser praxe humana querer negar o
desagradável: quando se trata do julgamento racional, “quanto pior a catástrofe, mais
difícil é manter o equilíbrio”. 19 Somado a isso, Sagan questionou como seria possível
tomar decisões inteligentes no âmbito da política nacional sem utilizar da expertise
científica.
O capítulo 23 de O mundo assombrado pelos demônios, intitulado Maxwell e os
nerds, se inicia com duas epígrafes, uma de Reagan e outra de George Washington,
respectivamente.20 A primeira cito integralmente: “Por que deveríamos subsidiar a

dentre os pensadores que o teorizaram, Carl Sagan incluso, dois eram cientistas planetários per se, e os
outros três publicaram diversos artigos sobre o tema.
18
SAGAN, Carl. Op. Cit., 1994.
19
SAGAN, Carl. The Demon-Haunted World: science as a candle in the dark. New York: Random House,
1996.
20
Nesse mesmo capítulo, Sagan relatou que, enquanto escrevia, no ano de 1995, o Congresso estadunidense
dissolvia o Escritório de Avaliação Tecnológica (Office of Technology Assessment), a instituição
especificamente responsável em aconselhar a Casa Branca e o Senado no que tange à ciência e tecnologia.
curiosidade intelectual?”; e a segunda parafraseio: não há nada que devemos patrocinar
mais do que a ciência e literatura, pois o conhecimento é, em todos os países, a base para
a felicidade pública. O astrofísico desaprovou a postura do governo Reagan de
menosprezar a relevância da ciência para a sociedade e se posicionou claramente para o
público acerca de sua orientação política. 21
Como bem salientou o antropólogo Bruno Latour, em seu texto junto de Dipesh
Chakrabarty, Conflitos de proporções planetárias, a ignorância acerca da mutação
climática foi intensamente produzida pela administração Reagan, tornando-se uma
política oficial de governo. O mandato de Reagan foi responsável por inventar uma
“incerteza sistemática” a fim de promover a negação das mudanças climáticas e dos males
decorrentes de alguns compostos químicos (como os CFCs). Isso não resultou de uma
ingenuidade ou ignorância para com os fatos, mas sim de uma atitude deliberada, pois,
como ficou evidente nos anos posteriores, existia plena ciência da veracidade dos dados
sobre o tema. A partir de 1990, esse negacionismo maturado na década anterior ganharia
ainda mais força e potência diante da opinião pública. Isso significou um crescimento dos
discursos de business as usual e de saídas que implicavam na mesma lógica que causara
a disrupção climática.22
No oitavo capítulo de Bilhões & Bilhões, lê-se que, na perspectiva do autor, a
humanidade enfrentava algo absolutamente novo e sem precedentes na história. A
percepção de que a vida depende de quantidades minúsculas de gases como o ozônio e
que máquinas e indústrias causam um estrago ambiental planetário estava começando a
aparecer. Sagan explicitou que as proibições propostas pelos governos ao uso
irresponsável da tecnologia eram fracas ou inexistentes, e geralmente subordinadas aos
interesses nacionais e corporativos de curto prazo. Em uma passagem de
autoquestionamento, Sagan ponderou que talvez “os produtos da ciência sejam
simplesmente poderosos demais, perigosos demais, para nós”.23
A postura do objeto dessa pesquisa não foi isolada. O movimento dos cientistas de
ir a público e expressar suas preocupações em relação ao futuro da humanidade e ao uso
de tecnologias belicosas foi um marco da Guerra Fria. A partir da fabricação e utilização
das bombas atômicas em 1945, figuras eminentes do meio acadêmico adentraram no

21
SAGAN, Carl. Op. Cit. 1996.
22
CHAKRABARTY, Dipesh; LATOUR, Bruno. Conflicts of Planetary Proportions – a conversation.
Journal of the Philosophy of History, vol. 14, nº 3, 2020, p. 1-36.
23
SAGAN, Carl. Op. Cit., 1997
espaço político para clamar uma postura ética em relação aos dispositivos nucleares que
possibilitavam a aniquilação da vida na Terra. Nos anos de 1980, Richard Turco, Owen
Toon, Thomas Ackerman, James Pollack e Carl Sagan propuseram a hipótese do “inverno
nuclear”, isto é, que a utilização de diversas bombas atômicas acarretaria no esfriamento
do planeta, e por consequência, em uma ameaça à vida na Terra. Essa proposta não ficou
reclusa aos debates dos especialistas, pois foi trazida ao público pelo próprio Sagan a fim
de mobilizá-lo. O ponto crucial não era mais o poder que a ciência deu à humanidade,
mas “a criação de um conhecimento cujo próprio sentido era sua relevância – ou
interferência intrusiva em – nas questões políticas”. 24 A decisão de ir ao público com
resultados “incertos”, de se afirmar que não há certeza de qual será o cenário futuro para
o planeta, quebrou a posição tradicional da ciência de pôr o peso nos fatos e apelou para
os conflitos sociopolíticos e para os medos do público.
O enquadramento teórico-metodológico

Como dito anteriormente, estou em consonância com Castro e Maniglier acerca


da diversidade de mundos dentro da Terra. Cabe agora explicitar melhor o que entendo
por “mundo”. Segundo Alyne Castro, “as ontologias são mundos por meio dos quais
a Terra transita”. Do ponto de vista filosófico, a autora afirmou que os seres, nas
ontologias, existem de modo relacional e diferencial, ou seja, enquanto ocupantes de
posições, ou perspectivas, que variam conforme a função que exercem nos arranjos
ontológicos próprios às diversas cosmologias. Do ponto de vista prático, existe um
pluriverso de formas para o “recrutamento” dos seres na composição de uma
ontologia. Logo, podemos pensar a Terra como sendo ao mesmo tempo a condição de
possibilidade das variações (geo)ontológicas e a unidade que se pode construir a partir
dessas variações, i. e., o conjunto das variações (geo)ontológicas existentes.

De forma resumida, o mundo construído por Sagan é um que arranjará seus seres
(a humanidade, os animais, os seres não-vivos, os corpos celestes, etc) de uma
determinada maneira, ocupando posições e funções específicas quando comparados com
os entes de outros mundos. Novamente, cabe frisar que não creio que Sagan tenha um
mundo radicalmente distinto da concepção tradicional Moderna, mas o autor delineia
nuances significativos para o entendimento da temporalidade contemporânea. A meu ver,

24
STENGERS, Isabelle. Accepting the reality of Gaia: a fundamental shift? In: HAMILTON, Clive;
BONNEUIL, Chirstophe; GEMENNE, François (org). The Anthropocene and the Global
Environmental Crisis: rethinking modernity in a new epoch. London: Routledge, 2015, pp. 136).
Sagan expressa uma “ontologia Moderna expandida”, i.e., um mundo que retém
elementos tradicionais do “Ocidente”, mas que reorganiza certos arranjos – a exemplo da
concepção da relação entre humanos e não-humanos. O Cosmos é uma variação do
mundo Moderno.
Dando prosseguimento, falar das discussões climáticas perpassa por compreender
disputas e embates políticos, tanto na esfera pública quanto no âmbito acadêmico. Do
ponto de vista teórico, as discussões e negações acerca das mutações climáticas implicam
em consciências históricas distintas e posições que refletem determinadas noções de
tempo (e espaço) que não devem ser tomadas como secundárias. A partir do momento em
que não tomamos a temporalidade Moderna como um “pressuposto ontológico” dos
discursos temporais, surge a necessidade de elucidar de qual maneira tentarei me
aproximar da questão da temporalidade. Para tanto, baseio-me nas proposições de
Rodrigo Turin, em seu ensaio Tempos Precários, e na contribuição de María Ínez
Mudrovcic, em seu artigo The politics of time, the politics of history.
Um dos pontos centrais do argumento de Turin é a defesa da dificuldade em definir
o que é ser contemporâneo face à uma realidade social dividida por múltiplas experiências
do tempo. Como resposta, o autor indicou a ideia da “não contemporaneidade do
contemporâneo”, i.e., assumir que o tempo perdeu sua hegemoneidade, produzindo uma
dessincronização estrutural entre as esferas sociais. Turin argumentou que uma saída
possível dessa problemática do contemporâneo é a ideia de cotemporalidade, isto é, uma
“concordância de tempos múltiplos” essencialmente marcada por uma “multiplicidade
não resolvida”. É o reconhecimento de que o tempo não possui centro e não pode ser
apreendido como totalidade.25 Por conseguinte, um modo de organizar minimamente a
dimensão disjuntiva e assimétrica das temporalidades é interrogar-se sobre os
“mecanismos de sincronização dos tempos”. Nesse caso, a dimensão climática é sem
dúvida um elemento que nos força a habitar “um mesmo tempo”: “diante do tempo
catastrófico da natureza, todos nos tornamos contemporâneos”. 26
É relevante, portanto, atentar aos modos pelos quais esse mecanismo sincronizador
que é a catástrofe climática foi enunciado por Sagan. Em suma, enxergar como os termos

25
TURIN, Rodrigo. Tempos Precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Zazie Edições:
pequena biblioteca de ensaios (online), 2019, pp. 14. Disponível em: <
https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/5d6bbdd368abb200010a6389/15673
42037866/PEQUENA+BIBLIOTECA+DE+ENSAIOS_RODRIGO+TURIN_ZAZIE+EDICOES_2019.p
df >.
26
Idem.
utilizados para adjetivar, substantivar, descrever e remontar são a própria realização da
experiência temporal. Nesse sentido, é necessário compreender a rede conceitual de
Sagan a fim de compreender a temporalidade específica do mundo de Sagan. Turin realiza
três observações para análises semânticas reveladoras de temporalidades: (1) é preciso se
atentar que os conceitos em questão não são novos, mas vêm ganhando novos significados
(como “Cosmos”, “Catástrofe”, “História”, “Planeta”, etc); (2) que esses conceitos não
podem ser compreendidos individualmente, mas devem ser compreendidos nas relações
que estabelecem entre si na rede semântica que os definem e que possibilitam seus efeitos;
(3) por último, é preciso pensar esses conceitos dentro de uma forma específica de
linguagem deixando de lado outras que possam emergir.27 No caso desta pesquisa, ao se
atentar a rede semântica formada e aos discursos em que ela se insere, pode-se
compreender melhor a forma pela qual a estruturação do tempo histórico se estabeleceu
face ao mundo elencado por Sagan - o Cosmos.
Por sua vez, Mudrovcic centra-se na noção de “políticas do tempo” de uma
perspectiva performativa, i.e., a autora defende que a periodização é uma forma de “agir
no tempo” - sobretudo no emprego do conceito de “contemporaneidade”. A concepção
de “performativo” empregada remete a J. L. Austin, que defendeu a emissão do enunciado
como uma execução de uma ação. Somado a isso, as distinções temporais entre presente,
passado e futuro são também performáticas, sendo resultados de ações linguísticas
realizadas no presente. 28 As políticas do tempo qualificam o passado, o presente e o
futuro, não se restringindo apenas ao caráter cronologicamente quantitativo. Portanto,
“política do tempo” é uma ferramenta heurística que nos ajuda a compreender que
“certain linguistic acts in the present (de)construct the articulations between past and
future”.29 Em suma, a noção de políticas do tempo nos permite questionar como
estabelecemos os limites das nossas dimensões temporais e demonstrar como criamos
formas de alteridade temporal que são estranhas à mera simultaneidade cronológica.
A proposta de Mudrovcic é útil para essa pesquisa ao passo que, assim como Turin,
nos remete a possibilidade de apreensão da temporalidade através da construção
linguística. Apesar do texto da autora utilizar de um vocabulário que flerte com a ideia
do tempo enquanto uma entidade, acredito que suas contribuições acerca da

27
TURIN, Rodrigo. Op. Cit.
28 MUDROVCIC, María Inéz. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries?.
Rethinking History, vol. 23, nº 4, 2019, p. 457
29 MUDROVCIC, María Inéz. Op. Cit., p. 458.
performatividade da temporalidade sejam cruciais para elucidar a dimensão construída do
tempo do Cosmos.
Somado a isso, para realizar a análise da temporalidade oriunda da linguagem,
inspirar-me-ei nas proposições de Reinhart Koselleck, sobretudo em suas reflexões acerca
dos estratos do tempo. Na proposta koselleckiana, “estratos do tempo” remetem às
formações geológicas que remontam a tempos e profundidades diferentes, que se
transformaram e se diferenciaram umas das outras de modos distintos ao longo dos
períodos. É, portanto, uma metáfora, indicando que “os tempos históricos consistem em
vários estratos que remetem uns aos outros, mas que não dependem completamente uns
dos outros”.30 Em suma, a teoria koselleckiana versa sobre as (múltiplas) durações que
compõem as temporalidades históricas.
Segundo Koselleck, a linguagem possui uma historicidade distinta da própria
sequência de eventos, pois o número de palavras, a sintaxe, a semântica, e outros
componentes linguísticos são limitados e tem estabilidade mais duradoura, enquanto a
história eventual (o objeto da linguagem) é potencialmente ilimitada. Por conseguinte,
uma língua não só armazena experiências que subsistem ao caso individual, ela também
limita essas experiências ao possibilitar a expressão dos eventos dentro de determinadas
maneiras. Os termos linguísticos dependem dos conteúdos de experiência histórica que
foram incorporados a eles, sendo assim, a durabilidade maior da linguagem revela
estruturas de profundidade temporal diferentemente escalonadas. 31 Desse modo,
conceitos antigos e novos coexistem na realidade cotidiana, de forma que “tempos
históricos se multiplicaram, cada um estabelecendo uma presença num cosmos histórico
próprio”.32
Eduardo Wright Cardoso, em seu artigo A história como pintura: da dimensão
pictórica à textual na historiografia francesa da primeira metade do século XIX, propõe
que reapropriações conceituais e de topoi Antigos podem ocorrer em determinados
períodos de reformulações conceituais. 33 Tendo a crer que podemos pensar que a noção
de Cosmos de Sagan pode ser uma reapropriação do conceito Antigo, através da tradição

30
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: estudos sobre história. Trad. Markus Hediger; Rio de
Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014, pp. 19-20.
31
KOSELLECK, Reinhart. Op. Cit., 2020, pp. 51
32
HÖLSCHER, Lucian. Mysteries of Historical Order. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber
(org.). Breaking up Time: Negotiating the borders between presente, past and future. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 2013, pp. 134.
33
CARDOSO, Eduardo W. A histórica como pintura: da dimensão pictórica à textual na historiografia
francesa da primeira metade do século XIX. Ouro Preto: História da Historiografia, vol. 12, nº 30, 2019.
Pp. 170-197.
humboldtiana, expressando demandas de conexão entre a humanidade e o universo.
Contudo, essas demandas passam por reformulações oriundas da necessidade em analisar
e reconstruir, frente a crise climática atual, concepções acerca do planeta e das relações
que podem ser estabelecidas com este.
A proposição de Dipesh Chakrabarty de pensar o conceito de Planeta enquanto uma
categoria humanística será demasiadamente cara para a presente pesquisa. Pois, segundo
Chakrabarty, as Ciências do Sistema Terra (CST), área responsável pelo estudo dos
ciclos, fluxos e relações existentes na Terra, forneceram ao ser humano um passado longo,
com diversas camadas e essencialmente heterotemporal, colocando em conjunto três
histórias com distintas escalas de tempo: (1) a história do planeta, (2) a história da vida
no planeta e (3) a história do globo fabricada na lógica dos impérios, do capital e da
tecnologia. Chakrabarty salienta, baseando-se no vocabulário do historiador francês
François Hartog, a existência do que ele chama de regime de historicidade planetário ou
Antropocênico, no qual a dimensão do Planeta aparece enquanto constitutiva da
experiência do tempo histórico contemporânea. O argumento central é que a noção de
Planeta emerge como uma dimensão do pensamento humanista contemporâneo, uma
categoria existencial e, portanto, de preocupação filosófica. Diferentemente do que ocorre
com as categorias de “mundo”, “globo” ou “Terra”, o Planeta não precisa
necessariamente estabelecer uma relação dependente da humanidade.34
O estudo dos planetas implica, ao mesmo tempo, na retirada da Terra de sua
centralidade do ponto de vista cosmológico simultaneamente com uma aclamação de que
ela ocupa o centro das preocupações políticas e filosóficas acerca do futuro. Encontrar o
Planeta é encontrar algo que é indiferente à existência humana, mas que está inserido nos
debates acerca da moralidade e do futuro: ao trazer a Terra “de fora”, inicia-se uma
empreitada comparativa com outros mundos possíveis. Como colocou Sagan, em Pálido
Ponto Azul, se nos mantermos presos ao estudo de um único mundo, não saberemos o que
pode ou poderia ter sido do nosso.35
As ciências planetárias desembocaram no reconhecimento da interferência humana
nos processos de longa duração, trazendo um senso de urgência e um movimento que

34
A ciência do aquecimento global não é sequer específica ao nosso mundo, mas é parte do que é chamado
de ciências planetárias – campo que Carl Sagan atuou desde sua formação inicial, quando, em sua tese de
doutorado, estudou os gases de efeito estufa na atmosfera do planeta Vênus. As Ciências do Sistema Terra
são um produto direto da Guerra Fria e da competição civil-militar que se desenrolou na busca pela
conquista do espaço sideral. Lembremos que na década de 1960, James Lovelock trabalhava para Carl
Sagan, na NASA, observando Marte, quando desenvolveu suas ideias acerca da Hipótese de Gaia.
35
SAGAN, Carl. Op. Cit., 1995, pp. 113.
Chakrabarty chama de “encarando o planetário”, no qual a ideia de global é desafiada e
implodida pela existência dessa categoria que traz novas questões e novos agentes para o
debate público.36 Bruno Latour, em consonância com Chakrabarty, acrescentou que esse
novo período trouxe consigo a necessidade em aceitar que não é no mundo, no globo ou
na Terra que os humanos residem, mas sim no Planeta. A problemática trazida pela ideia
do Planeta é que este aparece não mais como um corpo celeste sem expressão, mas
enquanto um “contrapeso” que reage à ação humana.37
Esse “contrapeso” ao humano está sendo interpretado de maneira distintas desde
que a possibilidade de aniquilação global despontou no horizonte e, como salientei no
tópico anterior, Sagan não só possuía tal consciência, como seu Cosmos é uma resposta a
essas variações. Sagan, ao elevar a história a dimensões planetárias, incorpora o triplo
passado elucidado por Chakrabarty, sobretudo ao criar um passado no Tempo Profundo
para a humanidade. Ao dizer que somos feitos de “poeira de estrelas”, Sagan colocou o
ponto de partida da história humana na singularidade do Big Bang.
A contradição dessa concepção reside num duplo movimento de (1) atestar a
insignificância da humanidade frente a um tempo absurdo, ausente de sentido; e (2) atacar
aqueles que não estão em sincronia com o atual estado científico-filosófico compartilhado
pelo autor. O apontamento de Chakrabarty sobre a categoria de Planeta nos é excelente:
na escala cósmica, há a insignificância; na escala do mundo, evoca-se uma moralidade a
ser seguida.
Nessa linha, como nos elucida María Ínez Mudrovcic, a periodização não é apenas
o ato descrever o tempo histórico, mas também a discriminações de quem ou o que
pertence ao passado e ao presente: “periodization is not merely a representation of time
but an act of language”.38 A contemporaneidade não se define exclusivamente pelo
“antes” e “depois”, mas também pela discriminação dentro do presente. Nasce uma noção
de que nem todos os contemporâneos compartilham o mesmo presente cronológico, uma
“dessincronização qualitativa”.39 A exclusão no presente ocorre porque a
contemporaneidade resulta em uma decisão normativa, uma política de tempo, cujo
anacronismo é tomado como norte e é gerador de uma alteridade temporal qualitativa. No
caso de Sagan, os negacionistas são aqueles com o “pensamentos oriundos da Idade das

36
CHAKRABARTY, Dipesh. The Planet: an emergente humanista category. Critical Inquiry, vol. 46,
2019, pp. 1-31.
37
CHAKRABARTY, Dipesh; LATOUR, Bruno. Op. Cit..
38 MUDROVCIC, María Inéz. Op. Cit., p. 457
39 Ibidem, p. 466.
Trevas” que impedem que o futuro se concretize ao negar a tanto a ameaça que nos assola
quanto o “mecanismo de autoconhecimento” criado pelo Cosmos.
Hipóteses de trabalho

A partir do que foi apresentado, tenho como três hipóteses que se interrelacionam

mutualmente. (1) Acredito ser claro que toda temporalidade deriva de mundos com

arranjos ontológicos próprios. Logo, a multiplicidade temporal, inserida nas disputas

humanas, revela sobretudo mundos e suas variaçõs. Somado a isso, (2) tendo a crer que

que Carl Sagan elaborou uma temporalidade específica da contemporaneidade ao passo

que se propôs a (re)construir sua variação do mundo (Moderno). Apesar de ainda estar

preso a ontologia Moderna, ao nos aproximarmos da cosmovisão de Sagan, podemos

compreender como o pensamento Moderno precisou se reestruturar frente às ameaças

existenciais de origem antrópica. Por fim, (3) a cosmovisão de Sagan é uma que surge em

oposição a outras visões, sobretudo às variações da ontologia Moderna, de modo que o

Cosmos pode ser entendido como um ato performativo e normativo da temporalidade.

Fontes

Como já foi brevemente citado, as fontes centrais dessa pesquisa serão quatro livros
de Carl Sagan: Cosmos: uma viagem pessoal (1980), Pálido Ponto Azul: uma visão do
futuro da humanidade no espaço (1994), O mundo assombrado pelos demônios: a ciência
vista como uma vela no escuro (1995) e Bilhões & Bilhões: reflexões sobre vida e morte
na virada do milênio (1997).
Ressalta-se aqui que essas fontes não são tratados ou livros acadêmicos, mas
materiais em forma de ensaio em que se misturam as opiniões do autor, descrições de
descobertas, fatos e leis científicas, anedotas, processos históricos entre outras formas e
conteúdos. O caráter plural (e diversas vezes contraditório) das fontes em questão terá de
ser analisado a partir de uma perspectiva que considera a própria condição de
inteligibilidade histórica dessa produção como derivada de sua reinserção “em um
contexto social e cultural – simbólico e material – historicamente específico que, na
maioria dos casos, será o contemporâneo dessa produção”. 40 É necessário reconhecer que
toda obra está atravessada por coordenadas que lhe são extrínsecas e por posturas tomadas
pelo autor que moldam sua “persona”. A face do cientista é apenas uma no jogo de
autoridades que Sagan mobiliza em seus textos: a figura da celebridade, do entertainer, e
do ativista são outras talvez até mais significativas do que homem das ciências.
Logo, em um primeiro plano, a metodologia deste trabalho consistirá, na esteira de
Turin e Mudrovcic, na análise da forma pela qual o Cosmos e como a crise climática
produzem juntos uma temporalidade própria. Em segundo lugar, apesar de não estar
fazendo História dos Conceitos em si, inspiro-me na reinvindicação teórico-metodológica
mínima proposta por Koselleck, na qual se compreende que: “os conflitos políticos e
sociais do passado devem ser descobertos e interpretados através do horizonte conceitual
que lhes é coetâneo em termos dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e
desempenhados pelos autores que participam desses conflitos”. 41 Portanto, deve-se
atentar que todos os conceitos possuem dois aspectos; (1) por um lado, eles apontam para
algo exterior a eles, para o contexto no qual são usados; (2) por outro, esta realidade é
percebida em termos de categorias fornecidas pela linguagem. Os termos aqui estudados
serão colocados em relação de continuidade ou descontinuidade das estruturas políticas,
sociais e econômicas que são contemporâneas a estes.42
Considerando isso, gostaria de fornecer brevemente algumas informações que creio
serem úteis para justificar a escolha dos referidos livros para serem a base desta pesquisa.
Cosmos, obra mais famosa de Sagan, realça a história e a evolução cósmica,
explorando diversos temas, desde a origem do universo até indivíduos ilustres da ciência
moderna. É um livro que almeja tratar de temas científicos de forma que seja acessível ao
público geral, buscando produzir um fascínio pela prática da ciência e pelo universo. O
livro possui treze capítulos, nos quais pouco se fala sobre aquecimento global, entretanto,
é nesse trabalho que é possível encontrar a definição do termo que dá nome ao livro.
Logo, é de crucial importância que se utilize deste como base para compreender os
fundamentos do pensamento do autor.

40 MYERS, Jorge. Músicas distantes. Algumas notas sobre a história 23intelectual hoje: horizontes velhos
e novos, perspectivas que se abrem. In: SÁ, Maria Elisa. História intelectual latino-americana:
itinerários, debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016, p. 24-25.
41
JASMIN, Marcelo G; JÚNIOR, João F. História dos conceitos: dois momentos de um encontro
intelectual. In: ________(org). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora
PUC-Rio: Edições Loyola: IUPERJ, 2006. p. 23.
42
Idem.
Pálido Ponto Azul contém 22 capítulos que versam sobre o futuro da humanidade
no espaço. Nesse livro, Sagan justificou o gasto em pesquisas espaciais afirmando que o
conhecimento do espaço pode significar a sobrevivência da espécie humana na Terra, de
forma que a exploração espacial altera a percepção de quem somos e do lugar que
ocupamos no universo. Por conseguinte, ao discutir as possibilidades humanas de
exploração espacial, o divulgador colocou questões que ameaçavam seu presente,
sobretudo as mudanças climáticas, propondo uma visão da Terra vista de fora.
O mundo assombrado pelos demônios é o último livro publicado em vida por
Sagan, no qual o autor visou reafirmar o poder positivo e os benefícios da ciência a fim
de reforçar valores de racionalidade na sociedade contemporânea. É um trabalho que
almeja dar respostas às pseudociências e ao misticismo presentes na sociedade
estadunidense. Em determinados trechos, o autor se dispõe a discutir diversas facetas da
crise climática, desde a explicação científica até as ações políticas que precisam ser
tomadas para evitar a catástrofe.
Bilhões & Bilhões foi o último livro escrito por Sagan, sendo publicado
postumamente, em junho de 1997. De modo geral, os capítulos refletem sobre as questões
acerca da vida e da morte na virada do milênio, falando sobretudo acerca das ameaças
climáticas e nucleares. Ao todo são 19 capítulos, divididos em três partes: a segunda parte,
que vai do capítulo 7 até o 13, é a que mais nos interessa, tendo em vista que sua temática
é a crise climática.
Para além dessas fontes, outras secundárias servirão de apoio, como artigos e livros
também publicados pelo astrofísico. Somado a essas, utilizarei de duas biografias de
Sagan, a fim de verificar o possível contato deste último com autores que possam fornecer
pistas acerca da concepção de Cosmos elaborada por Sagan. Acredito, portanto, que seja
possível delinear minimamente as referências conceituais e intelectuais que o astrofísico
estadunidense utilizou a fim de conceber sua ideia de Cosmos ao compará-la com as
contribuições Antigas e Modernas de paradigmas universais.

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