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EDUCAÇÃO AMBIENTAL
PARA O SEMIÁRIDO
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CAPÍTULO 13
CARTOGRAFIA DO IMAGINÁRIO NO MUNDO DA
PESQUISA
MICHÈLE SATO
Transformar o mundo.
[Karl Marx]
Mudar a vida!
[Arthur Rimbaud]
(89)
http://www.hundertwasser.at/english/texts/philosophie.php
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que a natureza tem lagartixas transparentes que mostram as veias,
gosmas de lesmas plasmadas nas paredes e cheiros de carniças na
decomposição da matéria! Sem temer pelo exótico, muito menos pela
desordem, Wolff (2002) apoia-se na teoria do clinamen (90) para
evocar a liberdade como um ato aleatório do corpo em todas as
direções. Imprevisível, mas certeiro, um pequeno revoar das asas de
uma borboleta amazônica pode causar um tufão nos Estados Unidos.
O caos, o feio e o primitivo, assim, podem representar a guinada
conceitual prigoginiana que nos convida para repensar os conflitos
socioambientais para além da consideração harmônica presente nos
discursos ambientais da Modernidade.
A segunda pele é o vestuário, nas relações do comércio, do
mercado instituído pelo capital e inclusive na hipocrisia em julgar o
outro pelas suas vestimentas. Hundertwasser argumenta também a
padronização do uniforme, convidando-nos para criar nossas próprias
modas como passaporte social, com direito às diferenças da
diversidade. Sygmund Bauman (2001) transcende este debate,
convidando-nos a repensar os modelos de vida que assumimos, no
mercado rápido que dita a moda, uniformiza a todos e que escapa de
nossas mãos pela rapidez do mercado [modernidade líquida].
A terceira pele é a casa, que o genial arquiteto Hundertwasser
metaforiza sobre “o direito de janela e o dever de árvore”, isto é, ter o
direito de enfeitar coisas íntimas, como o olho de nossa janela, mas
respeitar o espaço coletivo, reconhecendo a árvore como oikos de
todos, anunciando uma nova estética ecológica. Plantando nas
paredes, propõe que o húmus não seja só da terra, mas também da
estrutura arquitetônica, tornando as paredes esteticamente repintadas e
replantadas! Manoel de Barros (2006) poderia acrescentar que ele
desejaria ser o chão, só para sentir que as árvores pudessem crescer
nele!
(90)
O conceito do clinamen foi trazido por Ilya Prigogine (1984) e caracteriza-se por
um evento mínimo que pode desorganizar cenários macros. Espontâneo e
imprevisível, este movimento atômico foi desprezado pelos cientistas durante muito
tempo, mas depois constatou-se que as desarmonias eram mais interessantes às
observações e aos estudos das ciências naturais, igualmente importante em outras
áreas do saber.
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A quarta pele é a sociedade, na formação da identidade, da
cidadania e do culto das pequenas tradições como moedas, bandeiras
ou símbolos que podem ser recriados. Das diversas linguagens,
enredos e polissemia de uma complexa rede de biodiversidade e das
diferenças culturais que narram uma Nação (BHABHA, 2003). São as
relações postas nas armadilhas do que Fredric Jameson (1991) alerta
sobre o capitalismo tardio: ALIE-NAÇÃO. Com cuidado, Stuart Hall
(1997) argumenta que a rapidez e as mudanças da Modernidade
Tardia são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos que
produzem uma variedade de identidades híbridas.
Para Hundertwasser, a quinta pele é a ecologia, trançada com
as demais peles, fecundas na natureza, mas que solicitam um
envolvimento político, tanto na ação individual cotidiana quanto em
movimentos organizados. A tríade húmus-humano-humanidade é,
assim, consonante com outras tríades do EU-OUTRO-MUNDO
merleau-pontyano, e possivelmente nunca conseguiremos enxergar,
face a face, nossas ideias e nossa liberdade, e talvez por isso, nunca
paramos de trabalhar. Ecoam também nas vozes de Paulo Freire
(1992) e tantos outros que direta ou indiretamente navegaram por
mares ecologistas, pautando a educação como porto seguro, sem
esquecer que entre o mar revolto e a calmaria, “navegar é preciso
(91)
”.
Hundertwasser não comentou sobre uma sexta pele de
universos paralelos. Talvez Henri Lefebvre (1991) o fizesse, em suas
teorias sobre espaços absolutos e espaços abstratos, inscrevendo a
humanidade no espaço social e deixando o barco à deriva quando se
tratava do espaço além da Terra. Pesquisadores da física afirmam que
outros universos podem ser possíveis, como na existência de
membranas e das onze dimensões da teoria das cordas. Mas a física
quântica nos fornece mais de uma maneira de interpretar o mundo que
nos cerca, o que conduz às novas experimentações astrofísicas sobre
(91)
Frase célebre de Pompeu, um general romano que frente aos marinheiros
amedrontados em viajar pelos mares, resguardando suas vidas em plena guerra, ele
dizia: “Navigare necesse; vivere non est necesse”. Deste fato histórico, é possível
que Fernando Pessoa tenha escrito seu poema “Navegar é preciso, viver não é
preciso”.
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os universos paralelos, como Deutsch (1977), que tem abordado a
existência do multiverso e a viagem no tempo pela computação
quântica. Parece que as ciências, genericamente ditas, encontram-se
num eixo abstrato para tentar responder velhas perguntas: quem
somos, de onde viemos, ou como e para quê viemos. Com tratamentos
investigativos diferenciados, física e filosofia se alinham para
compreender o “verso”, seja ele uno ou múltiplo, visível ou não
visível (MERLEAU-PONTY, 1964). Bachelard (1989) compreendia
que o verso pode ter grande influência na alma. Talvez represente,
também, uma “com-versa” entre aqueles que não temem a dialética
entre a ciência e a poesia...
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A mistura de alguns transportes é interessante porque nos
possibilita diversas interpretações e descobertas. Um helicóptero pode
dar a magnífica visão de uma floresta com arco-íris, possibilitando o
olhar íntimo da janela [olhar de passarinho]. Entretanto, é essencial
uma caminhada que nos dê o dever coletivo da árvore, o de vasculhar
a grama e construir uma fenomenologia fofoqueira, esmiuçando o
trajeto que pode ser mais interessante do que meu destino final [sentir
de passarinho]. A autonomia da locomoção, contudo, parece ser a
atração maior desta aventura intelectual que me guio no momento.
Na CARTOGRAFIA DO IMAGINÁRIO, ao invés de peles do
arquiteto Hundertwasser, pensei nos 4 elementos bachelardianos como
substratos fenomenológicos da investigação. Dito de outro jeito, talvez
possamos usar a metáfora dos 4 elementos naquilo que Bachelard
(1988) considerava sobre o processo de aprendizagem: formação –
deformação – transformação – reformação. Ou seja, uma viagem de
carro que me tire os preconceitos prévios dos obstáculos
epistemológicos, tipo: “quem tem carro é burguês” [deformação]. Do
aprender a dirigir [formação], seja câmbio automático, “hidromático
ou quebramático”... Do escapar da batida por reflexos rápidos, na
transformação de conhecimentos mecânicos misturados com os
intuitivos, para chegar num destino e recomeçar o planejamento de
uma nova viagem [reformação].
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É possível que alguém me pergunte a razão de 7 pontos e não 8,
já que são 4 elementos subdivididos. Deixei apenas a água [gênese]
sozinha para chegar num heptágono cabalístico – talvez para dar
importância às identidades que cada qual carrega, nas máscaras que
nos envolvem em múltiplas relações sociais.
Adotei a metáfora do direito da janela e do dever da árvore
para cada item que considero essencial para gente que faz militância e
pesquisa. Uma janela traz o mundo externo para o nosso interior, e
dialeticamente, ela nos projeta ao exterior cintilando nossos sonhos. É
o símbolo da apreensão de um mundo em devir que se oculta em seu
interior. Enxergamos a floresta de nossas janelas, distante em seu
conjunto de paisagem externa. É o nosso direito do pensamento
poético [eu com o mundo, na ressonância de uma energia
centrípeta], fugidio nas palavras e ações, mas na intimidade de uma
moldura que vê e sente o mundo.
A árvore tem sentido imanente e transcendente: das raízes
profundas ergue-se um tronco que se vertilicaliza pela terra, com fúria
rebelde contra a lei da gravidade, abrindo-se delicadamente em folhas
para religar a terra ao céu azul. Saímos da pele que envolve a casa
com janelas para ingressar numa pele social de inquietação de um
“mundo sendo” (FREIRE, 1992) e por isso, não mais meramente
contemplativo. É o dever do ato poético [eu e o outro com o mundo,
na repercussão de uma energia centrífuga], errático em tentativas e
descobertas, mas no coletivo de um mundo que possui várias janelas,
no acolhimento ao outro por meio do compromisso ético que talvez o
genial surrealista belga, René Magritte, quisesse filosofar por meio da
imagem [Figura 2]: nossa capacidade de abrir as cortinas que nos
envolvem para ouvir a voz de sangue oriundo de um mundo injusto
que exige a nossa presença, que envolve o tecido solitário, porque tem
como sonho íntimo a coragem de explodir em lutas coletivas.
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Figura 2 - A voz do sangue. (Fonte: René Magritte).
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Um outro cuidado é examinar o tamanho da mochila nesta
viagem territorial de definição dos objetivos. Das diversas leituras
realizadas, e de tantos desejos em querer mudar a vida, muitas coisas
ficarão de fora, e é preciso ter coragem para renunciar certos conceitos
ou sonhos, do contrário uma matriz colorida ofuscará a compreensão
exata daquilo que estamos propondo a estudar. Religando conceitos e
sob o lume epistemológico, a meta agora é expor rigorosamente os
objetivos inseridos num dado território, num certo período, e num
certo contexto histórico. Revelando o labirinto, a intrincada trama
num jogo de espelhos, e a genialidade em se formular ‘perguntas
inteligentes’, já que do humano, “amamos o que dele podemos
escrever” (BACHELARD, 1989, p.14).
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pelas ciências, contra as vagas “opiniões” [ou achismos]. Na
academia, há a veemente necessidade de aliar prática e teoria!
Numa viagem de barco, por exemplo, faz-se jus a um salva-
vidas, objeto que seria inútil num passeio a pé na catedral de Notre
Dame em Paris. Portanto, compreender o tecido conceitual da essência
metodológica, fortalece “a imagem” de uma viagem científica, desde
que justifica a opção do veículo elegido para traçar a rota e chegar ao
destino desejado.
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entrega apaixonada de quem quer mudar a vida pelo ato e pensamento
da pesquisa!
Uma pesquisa científica difere da midiática não pelo tipo de
perguntas, mas exatamente pela intencionalidade delas; e pela maneira
que as respostas serão tratadas à luz das reflexões teóricas que
consubstanciam a pesquisa. Para cada etapa, não basta apenas
descrever a caminhada, mas é preciso submergir a prática e fazer
emergir a teoria. Na superfície da água que fará círculos concêntricos,
enganando-nos se a força é centrífuga ou centrípeta, a imagem
narcísica refletida poderá ser a sensação cansada de um enorme
esvaziamento da busca, que sai do coração às periferias da Terra...
Mas vazará, igualmente, o paradoxo contraditório de ter milhões de
dados que causarão o transbordamento metodológico. Vale respirar
fundo e destacar as principais paragens e passagens da viagem:
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O geógrafo, ou o etnógrafo podem descrever bem
os tipos mais variados de habitação. Sob esta
variedade, o fenomenólogo faz o esforço para
aprender o germe da felicidade. Encontrar a concha
primordial da casa é a tarefa primeira da
fenomenologia (BACHELARD, 1989, p. 24).
6. AR ESSENCIAL [Discussão]
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Durante a longa viagem, que ouvimos sons, saboreamos frutos,
cheiramos flores ou dormimos à margem de estradas solitárias,
inúmeras aprendizagens foram construídas e um turbilhão de emoções
invadiu as estradas... Quando iniciamos a viagem e fechamos nossas
casas na aventura científica, deixamos a casa em liberdade, pois
partimos nos nossos ich oníricos da madrugada. É hora, agora, de
reabrir a casa... E é possível que ao iche-la, agora do lado de dentro
(BAUMAN, 1998), percamos a liberdade de aprendizagem empírica.
Mas são possíveis outras formas de aprendizagens oníricas: a leitura
de bons livros, consultas na internet ou um bom descanso na própria
cama com o travesseiro de penas de ganso...
Na parede da casa, onde um espelho é posto magistralmente
para cintilar os nossos sonhos, talvez seja o momento de ir além dele e
conseguir enxergar o que a viagem científica conseguiu refletir no
tecido social. Para muito além de uma biografia ecológica e do direito
da janela, a meta agora é considerar o outro, e nesta imensidão do
multiverso poético, saber explicitar os sentidos e significados da
pesquisa no dever da árvore. Das relações superficiais da folha, é
preciso adentrar na profundidade da raiz, e de pele em pele, o “eu da
janela” torna-se consonante com o “nós da árvore”.
A poética criadora é diametralmente oposta da poética
reprodutora e, por isso, não basta meramente transcrever trechos de
longas entrevistas, mas é essencial realizar um enorme exercício de
aliar prática e teoria na produção de conhecimentos. De fato, é a parte
mais difícil da pesquisa, pois à imagem exposta, interpretações e
fecundos diálogos epistemológicos devem entrar em cena. A banca
examinadora será a crítica literária que cumprirá seu interessante papel
de levantar a lebre e, por vezes, até deixar o trabalho de ponta cabeça.
Citando Frobenius, Bachelard comentava que “uma obra não nasce
somente de um ponto de vista, mas de um jogo de forças” (1998, p.
392). Por isso, a escolha de bons nomes que compreenderão a viagem
científica realizada, trazendo bons argumentos que possam contribuir
na pintura desta imagem, também faz parte da inteligência poética que
a pesquisa necessita.
Da capacidade argumentativa e da força textual dependerá o
bom desenho que revela o resultado de uma pesquisa com discussões
apimentadas. É preciso sublinhar que uma pesquisa não é uma
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‘massagem no ego’ e, portanto, a honestidade em explicitar os erros
constitui-se a necessária ética do pesquisador. Entre os incursos e
sobrevoos, a tática necessária na interpretação da viagem é ponderar
com todos os prós e contras. A pós-modernidade é residual e ao invés
de aniquilar totalmente a modernidade, apropria-se de suas estratégias
para que novas táticas possam ser construídas. Manter o rigor das
ciências parece ser a essência desta etapa, mas isso não implica em
deixar de aliá-la ao devaneio poético que sustenta as miríades de
sonhos da viagem que chegou ao fim. Afinal, o alvorecer da janela
anuncia uma próxima viagem de incompletude existencial refletida na
árvore...
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pesquisa do imaginário pode nos trazer – a capacidade de transformar
a nós mesmos!
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Homi Bhabha publicou 2 livros: “Nação e narração” [livro ainda sem a tradução
ao português] e o “local da cultura”, publicado pela Universidade Federal de
Minas Gerais. O seu terceiro livro “right to narrate” [direito de narrar] ainda não
foi publicado, mas já anunciado.
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somente criticá-la, reinventa o momento investigativo. Haverá, por
certo, vários caminhos instituintes que conduzam a pesquisa. Da
capacidade de arguir, estudar, observar e escrever dependerá o talento
da pesquisa – uma viagem como um andarilho, que sabe saborear os
orvalhos da manhã, no caminhar a pé pela relva, mas que também
sobrevoa como passarinho, olhando a mata de um planeta que nos
convida a pensar sobre seu futuro. Para todos, diria Chico. Com todos,
complementaria Magritte.
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Referências
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CARIDE, J. A. A educación ambiental como investigación educativa.
AmbientalMente Sustentable, ano II, v.1, n.3, p. 33-55, 2007.
GABLIK, S. Magritte. New York: Thames & Hudson & Tokyo /Dai
Nippon, 1992.
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