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UM ESTUDO DE CASO
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi discutir a constituição da subjetividade das crianças que
vivenciam a experiência de ter um dos seus pais sob a tutela do Estado. Percebemos
que as crianças não só padecem com a ausência do progenitor, mas também, vivem um
sentimento de exclusão de diversas dimensões - econômica, social e moral - o que
interfere significativamente no desenvolvimento delas.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade é marcada por diversos problemas sociais que na maioria das vezes são
fruto da exclusão social. A desigualdade, o preconceito, a marginalidade, a injustiça
social estão presentes em todos os países. O modelo de desenvolvimento econômico,
capitalista, implantando na quase totalidade das sociedades do mundo não garantiu o
bem-estar social, econômico e cultural de uma maioria. Essa maioria, excluída do
sistema, vive em situação de pobreza, com rendimentos que não garantem sequer o
atendimento de suas necessidades mais básicas, tais como alimentação, saúde vestuário
e educação.
O Brasil, mesmo despontando entre os 10% mais ricos do mundo, está entre os
primeiros em desigualdade social. Pois aqui, o percentual de 1% dos mais ricos
acumulam o mesmo valor que os 50% mais pobres. Há no País, 56,9 milhões de pessoas
abaixo da linha da pobreza e, dessas, 24,7 milhões vivem em extrema pobreza
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2003). A
desigualdade continua sendo uma marca brasileira. “Vive-se no país, atualmente, um
verdadeiro apartheid social” (VÉRAS, apud GOMES; PEREIRA, 2005, p. 360).
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Professora do Ensino Fundamental e Psicóloga com Especialização em Infância e Educação Inclusiva
pela Universidade Federal do Espírito Santo.
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É justamente nesse cenário de miséria e violência que encontramos a criança que foi
separada de um de seus pais por conta do crime. Permanecendo nesse cenário, em
situação de vulnerabilidade, além de enfrentar os problemas ocasionados pela injustiça
social, a criança passa a conviver com a quebra de vínculos e o preconceito. Mas qual o
impacto disso tudo na vida da criança?
Para Kaloustian e Ferrari (apud GOMES; PEREIRA, 2005, p. 360): “Por de trás da
criança excluída da escola, nas favelas, no trabalho precoce urbano e rural e em situação
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de risco, está a família desassistida ou inatingida pela política oficial”. Beckman (2007)
chama atenção para a deficiência nas políticas de educação ao se referir, principalmente,
a educação escolar de crianças que tem um dos seus progenitores sob tutela do Estado:
Outro aspecto de igual relevância são as indagações levantadas por Santos (2006) ao
investigar como uma criança pequena vive a experiência da referência paterna
submetida à tutela do Estado. Para manter o vínculo com seus pais, as crianças
vivenciam situações constrangedoras no presídio, pois passam pelo mesmo processo de
revista que os adultos. Segundo Santos (2006, p. 598), inexiste
Em seus estudos sobre a gênese dos processos psíquicos, Wallon explora o papel do
outro na constituição do eu. É a presença do outro que, desde cedo, garante a
sobrevivência física da criança, mas, sobretudo, sua inserção na cultura.
Segundo Pino (2005), na teoria vygotskyana, a relação com o outro constitui a forma
concreta que as pessoas tomam, ou seja, as ações e reações dos envolvidos numa
relação, e complementa:
uma cultura.
Se o plano intersubjetivo não é plano do outro, mas o da relação com o outro, o plano
intrassubjetivo não é mera reprodução de ações mediadas socialmente, nem suas ações
são determinadas linearmente pelo meio, pois ele não responde passivamente às
solicitações externas, e muito menos é passivamente moldado por este meio. “O sujeito
não é passivo, nem apenas ativo: é interativo” (GÓES, 1991, p. 21). Nesse sentido, a
concepção de sujeito na teoria de Vygotsky, é a do sujeito interativo, em que a dinâmica
da relação com o outro é mediada socialmente.
3 METODOLOGIA
Para o registro de dados, foi utilizado o diário de campo. Com esse instrumento,
registramos por escrito as vivências captadas, assim como nossas impressões,
questionamentos e hipóteses.
1. Bruno é o primeiro filho de seu pai e segundo de sua mãe. Tem dois irmãos,
uma menina de 13 anos e um menino de 7 anos. A profissão do pai é padeiro
e sua mãe é salgadeira. Situação do pai no ato do aprisionamento:
desempregado. No decorrer da pesquisa, a família morava de aluguel e recebia
apoio dos avôs paternos.
2. Sandra é a primeira filha de seu pai e segunda de sua mãe. Tem uma irmã de
13 anos. Seu pai é pedreiro e sua mãe era operadora de máquina. Pais
separados. Situação da mãe no ato do aprisionamento: desempregada. No
decorrer da pesquisa, Sandra morava com seu pai em casa própria.
4 DISCUSSÃO
Após a prisão do pai, Bruno e seus irmãos passaram a morar com seus avôs. Sua mãe,
desempregada, voltou a trabalhar. Somente depois de 10 meses do aprisionamento do
progenitor as crianças começaram a ver o pai no presídio.
É relevante ressaltar que somente Bruno passou a visitar o pai no presídio. A mais velha
não é filha biológica, portanto não pode visitá-lo. O mais novo não se sente à vontade
quanto à política de revista. Nesse caso, na maioria das vezes, é Bruno quem vai visitar
o pai. O constrangimento e a humilhação experienciados pelo irmão mais jovem são
alguns elementos que acompanham a condição de familiares dos presidiários, passar por
situações vexatórias quando são revistados. Em concordância com Santos (2006),
carecemos de leis específicas que atendam às necessidades das crianças que têm um dos
seus progenitores sob a tutela do Estado. Na busca por literatura e no diálogo com
profissionais da Secretaria de Estado da Justiça (SEJUS), encontramos pouco ou quase
nada de dados oficiais sobre a política de regulamentação acerca da criança que visita os
presídios do Espírito Santo.
Seguindo o mesmo critério, o art.18 diz: “É dever de todos velar pela dignidade da
criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
vexatório ou constrangedor”.
A busca por uma explicação para o comportamento de Bruno, por parte da escola, não
considera as inquietações enfrentadas em sua vida familiar. Então, a configuração de
uma imagem de aluno agressivo e indisciplinado, interfere em sua identidade e na
percepção de si como pessoa indesejada.
No que tange às relações entre Bruno e suas professoras, percebemos a quase ausência
do diálogo e de conhecimento e compreensão em relação à sua situação. Também não
havia elogios, fato que poderia influenciar negativamente na sua autoestima. Sendo
assim, supomos que o fato de ser rotulada de indisciplinada e insuportável traz
prejuízos à construção subjetiva da criança. O diálogo e a compreensão são
fundamentais para o seu desenvolvimento.
Discorrendo sobre essa questão, Zaluar (apud COSTA, 2000, p. 64) afirma:
Geralmente, as escolas convivem com uma grande diversidade e, na maioria das vezes,
não consegue lidar com elas. Por isso, presenciamos uma exclusão multifacetada, que
atinge o pobre, o da “boca”, o filho de presidiário, enfim, o “diferente”, fruto do estigma
que pesa sobre a população local, sobretudo moradores da região do tráfico.
[...] a escola, entendida como um local que possibilita uma vivência social
diferente da do grupo familiar, tem um relevante papel, que não é, como já se
pensou, o de compensar carências (culturais, afetivas, sociais etc.) do aluno e
sim oferecer a oportunidade de ele ter acesso a informações e experiências
novas e desafiadoras capazes de provocar transformações e de desencadear
processos de desenvolvimento e comportamento.
Para Vygotsky (MOLON, 2009), o eu se constitui na relação com o outro, que ocorre na
e pela linguagem. A criança se apropria dos significados construídos pela cultura e esses
passam a regular sua vida no plano intrapsicológico.
Foi na relação com os profissionais da escola que presenciamos Bruno ser considerado
indisciplinado, agressivo, insuportável e, o mais surpreendente, algumas dessas palavras
foram dirigidas diretamente a ele. No decorrer da pesquisa, perguntávamos o que mais
Bruno ouvia a seu respeito, e de que modo isso influenciou na constituição de sua
subjetividade, na consciência de si.
profundas. Seu “referencial” (Bruno tem o nome do pai) está no presídio. Não
compreende muito bem por que seu pai está naquele lugar e sente raiva daqueles que
fizeram isso com ele. Já expressou a seguinte frase para sua mãe:
“QUANDO CRESCER, VOU MATAR ESSES FILHOS DA PUTA QUE FIZERAM ISSO COM
MEU PAI”.
Em sua trajetória escolar, não encontrou com facilidade pessoas que pudessem
compreendê-lo, porque não expressa verbalmente o que sente e seus gestos ríspidos, na
maioria das vezes, são erroneamente interpretados. É em função disso que
presenciamos uma criança sofrida e ríspida. No entanto, demonstrou-se afável, quando
acolhido pela pesquisadora, talvez a manifestação de uma carência por falta do
acolhimento por parte dos profissionais da escola.
A última vez que vimos Bruno e conversamos com ele, estava sentado na cadeira na
porta de entrada da escola no intervalo de um turno para outro. Em suas mãos, uma bola
vazia feita por seu pai no presídio. Esperava o professor de Educação Física chegar para
encher sua bola. Perguntamos como estava, e sua resposta girou em torno da progressão
para a série seguinte e a visita do pai que se aproximava.
Olhando para aquele menino descalço e com um presente de seu pai na mão numa
atitude de “espera”, questionávamos se, também, no interior daquela criança, havia
esperança. Esperança por ter de volta uma família, parecida com aquela que tinha antes
da reclusão do pai.
Na literatura internacional, os dados estatísticos apontam que, quando o pai está preso,
na maioria das vezes, a criança fica sob os cuidados da mãe. No entanto, quando a mãe
é a presidiária, somente 10% das crianças permanecem sob o cuidado do companheiro
(GABEL, apud STELLA, 2009). Segundo Stella (2009, p. 22), a prisão materna tem
outros efeitos sobre as crianças:
Em 11 meses de aprisionamento da mãe, Sandra só a viu uma vez, quando ainda estava
em Colatina. Nos primeiros meses, chegou a falar com ela por telefone, depois disso
não mais.
Sandra não fala muito de sua mãe, mas, no mês de setembro, mês de seu aniversário,
criou expectativas de que sua mãe pudesse ligar, conta o pai. Na escola, com a
pesquisadora, já manifestou o desejo de falar com sua mãe:
Em seu caderno de desenho encontramos Sílvia, sua mãe, Sandra e Paula de mãos dadas
(Figura 1):
Numa conversa informal, Sandra relatou um pouco sobre o que espera da mãe.
Segundo ela, Sílvia hoje está no presídio porque se envolveu com o tráfico de drogas,
mas, no único contato que teve com a mãe, disse para ela:
“QUANDO VOCÊ SAIR DAÍ, VAI MORAR EU, VOCÊ E PAULA. VOCÊ VAI PARAR COM
ISSO, PORQUE SE NÃO NUNCA MAIS VOU TE VER”.
Nesse dia, Sandra revelou que sente muitas saudades de sua mãe e que espera muito ver
as três juntas novamente. Dificilmente visitava a família de sua mãe, mas recebia
proteção de seu tio e de sua irmã mais velha. Ambos falavam a Sandra por telefone:
Sua professora, Bárbara (terceira daquele ano), nos relatou que já encontrou o tio de
Sandra na sala esperando a turma entrar. Segundo ela, ele foi até a escola confrontar o
“menino” que havia implicado com sua sobrinha. Aliviada, pois desconfiou que ele
pudesse estar portando uma arma, conseguiu contornar a situação, até mesmo porque o
menino estava ausente.
Pensando nas crianças que moram nessa periferia, sobretudo as mais expostas ao tráfico
de drogas, somos levados a considerar que elas se relacionam com pessoas que
representam um risco, mas que, paradoxalmente, as protegem.
Sandra passou por três professoras. Sua primeira professora julgou que a sala de sua
colega estava mais adequada ao ritmo de Sandra, então, houve um remanejamento.
Logo depois, no final do segundo bimestre, sua professora deixou a escola e a rede
contratou uma nova professora, Bárbara.
Foi o suficiente para que sua segunda professora a julgasse como indisciplinada.
Sandra manifestou o desejo de que sua mãe abandonasse o tráfico e fosse morar com ela
e sua irmã. A ambiguidade pontuada nos discursos de Sandra reflete a “gangorra
emocional” vivenciada por ela, ora amparada por momentos de emoção, baseados na
saudade e no desejo de viver com a mãe, ora pela necessidade de se espelhar na figura
materna e de seus familiares para se defender dos outros, sobretudo seus colegas de
sala.
Diante do que foi exposto até aqui, procuramos responder ao nosso problema de
pesquisa: e a constituição da subjetividade de Sandra?
Sandra é carinhosa e meiga, mas solitária. A relação com a mãe, relatada muitas vezes
com muita emoção, deixou não só boas recordações, mas o desejo de Sandra voltar a
viver com ela e a irmã.
A figura materna para Sandra tem tanta importância que a ausência feminina em casa
fez com que ela se apegasse às suas professoras. A relação de cuidado com Sandra
apareceu em todas as professoras, quando ela, minuciosamente, relatava a sua relação
com a mãe. De menina quase rebelde, a menina carente, essa foi a transição da
representação de Sandra por parte de suas professoras.
Estivemos com Bruno durante quase todo o ano letivo de 2009 e somente com Glória,
sua quarta professora, presenciamos uma atitude mais atenta às reais necessidades de
Bruno.
“EU SEI QUE HÁ DIAS QUE ELA ESTÁ IMPOSSIBILITADA DE REALIZAR AS TAREFAS E
ISSO EU RESPEITO. PASSEI A CONVERSAR MAIS COM ELA, ACOMPANHAR MAIS AS
ATIVIDADES. SANDRA PROGREDIU MUITO”.
(PROFESSORA BÁRBARA)
Deixamos Bruno e Sandra cheios de expectativas. O pai de Bruno passaria o natal com
a família, iria ficar uma semana em casa. A mãe de Sandra foi transferida para o
presídio da região metropolitana de Vitória, o que possibilitaria visitá-la. Bruno visitava
seu pai a cada 15 dias, em média. Sandra há mais de um ano não via sua mãe. Nas
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últimas semanas, estava muito cabisbaixa, nos braços de Bárbara, chegou a chorar de
saudades da mãe.
Nas histórias fictícias, queremos sempre o final feliz; na vida real não é muito diferente.
Durante a pesquisa, ficávamos imaginando até onde iria a vida escolar de Bruno e
Sandra? Qual seria o fim? Como seria quando tivessem a oportunidade de conviver com
seus pais novamente? Com certeza não sabemos, entretanto, as últimas frases ouvidas
pelos profissionais da escola nos deram uma esperança de que, pelo menos na escola, as
coisas poderiam mudar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em termos gerais, as crianças que têm um de seus pais no presídio vivenciam e sofrem
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6 REFERÊNCIAS