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G E N É T I C A

RETRATO
A formação da população
brasileira tem provocado
debates. Embora todos
concordem que somos o
produto de um complexo
processo de miscigenação

MOLECUL
entre ameríndios, europeus
e africanos, as opiniões
divergem sobre os
detalhes e o resultado
desse processo. Afinal,
quanto há de ameríndio,
europeu e africano em cada
um de nós? Nosso estudo
genético com DNA de
brasileiros brancos revela
que a esmagadora maioria
das linhagens paternas
da população branca
do país veio da Europa,
mas que,
surpreendentemente,
60% das linhagens
maternas são ameríndias
ou africanas.

Sérgio D. J. Pena,
Denise R. Carvalho-Silva,
Juliana Alves-Silva,
Vânia F. Prado,
Departamento de Bioquímica
e Imunologia,
Universidade Federal
de Minas Gerais
e Fabrício R. Santos
Departamento de Biologia Geral,
Universidade Federal
de Minas Gerais

1166 •• CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE •• vvooll.. 2277 •• nnºº 115599


G E N É T I C A

LAR DO BRASIL
Muitos autores, usando metodologia histórica, sociológica e antropo-
lógica, já analisaram as origens do
povo brasileiro: Paulo Prado em Re-
trato do Brasil (1927), Gilberto Freyre
em Casa grande e senzala (1933),
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes
do Brasil (1936) e Darcy Ribeiro em
várias obras, culminando em O povo
brasileiro (1995). Nós usamos novas
ferramentas – a genética molecular e
a genética de populações – para
reconstituir e compreender o proces-
so que gerou o brasileiro atual, no
momento em que comemoramos 500
anos da chegada dos europeus ao
Brasil.
O geneticista norte-americano
John Avise definiu a filogeografia
como o campo de estudo dos princí-
pios e processos que governam a dis-
tribuição geográfica de linhagens
genealógicas dentro das espécies, com
ênfase em fatores históricos. Ela in-
tegra conhecimentos de genética
molecular, genética de populações,
filogenética, demografia e geografia
histórica. Sabendo que linhagens
genealógicas ameríndias, européias e
africanas contribuíram para a com-
posição da população brasileira, de-
cidimos mapear na população branca
do Brasil atual as distribuições espa-
ciais dessas linhagens em um contex-
to histórico. Para isso, amostras de
DNA da população do Norte, Nordes-
te, Sudeste e Sul do Brasil foram
estudadas com dois marcadores mo-
leculares de linhagens genealógicas:
o cromossomo Y para estabelecer li-
nhagens paternas (patrilinhagens) e

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Figura 1. res denominadas mitocôndrias), que apresentam


Na fertilização propriedades genéticas em comum. Primeiro, eles
humana, só os
espermatozóides são herdados de apenas um dos pais: o cromossomo
que têm o Y é transmitido através do espermatozóide paterno
cromossomo apenas para filhos homens e o DNA mitocondrial é
Y geram filhos transmitido através do óvulo materno para filhos e
homens filhas (figura 1). Segundo, não trocam genes com
(patrilinhagem),
e só as outros segmentos genômicos (não se recombinam),
mitocôndrias sendo transmitidos às gerações seguintes em blocos
maternas de genes (denominados ‘haplótipos’).
(do óvulo) são Esses blocos permanecem inalterados em
transferidas, o DNA mitocondrial para estabelecer linhagens ma- patrilinhagens ou matrilinhagens (figura 2) até que
para todos
ternas (matrilinhagens). Comparações com estudos ocorra uma mutação. As mutações ocorridas duran-
os filhos
(matrilinhagem) realizados em populações de outros países permiti- te a evolução humana geraram variações (‘polimor-
– a mitocôndria ram estabelecer a origem geográfica da vasta maio- fismos’) dos haplótipos que servem como marca-
paterna pode ria dessas linhagens genealógicas. dores de linhagem. Além disso, o cromossomo Y e o
penetrar DNA mitocondrial fornecem informações comple-
o óvulo,
A genética reconstruindo a história mentares, permitindo traçar patrilinhagens e
mas perde-se
por diluição Há duas estratégias que a genética molecular pode matrilinhagens que alcançam dezenas de gerações
usar para responder perguntas sobre a história no passado, podendo assim reconstruir a história
evolucionária humana: estudar populações atuais genética de um povo (figura 3).
para fazer inferências históricas, como neste traba- Entretanto, o que os haplótipos de DNA
lho, ou resgatar DNA humano de múmias e ossadas mitocondrial e do cromossomo Y nos informam é
arqueológicas para reconstituir a estrutura genética uma parcela muito pequena da contribuição genéti-
de populações do passado. ca dos antepassados de um indivíduo, porque este
A segunda estratégia, chamada de arqueologia tem quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós, 32 tetravós
molecular, tem progredido muito (estudos de DNA e assim por diante (figura 4). O estudo do haplótipo
mitocondrial em ossadas de 24 mil anos, mostra- de cromossomo Y informa sobre apenas um desses
ram, por exemplo, que o homem de Neandertal não antepassados homens e o do DNA mitocondrial
foi um antepassado do homem moderno). Entretan- sobre apenas uma antepassada – eles não informam
to, os estudos genéticos de populações atuais usan- nada sobre todos os outros antepassados com seus
do os ‘polimorfismos’ de DNA (regiões do genoma milhares de genes.
humano onde há diferenças entre indivíduos nor- Para usar uma analogia, imaginemos que Diogo
mais) são mais confiáveis cientificamente. Essa é a Álvares, o famoso ‘Caramuru’, tenha passado seu
mesma técnica adotada em testes de determinação sobrenome para seus filhos, e estes para os próprios
Figura 2. de paternidade, criminalística molecular e filhos, e assim por diante, criando apenas uma
Mecanismos mapeamento de genes. patrilinhagem Álvares no Brasil. Agora imaginemos
de transmissão A existência de diferentes tipos de polimorfismo um indivíduo contemporâneo chamado João Álva-
hereditária de de DNA, classificados de acordo com
cromossomos Y
e de DNA sua natureza molecular e sua locali-
mitocondrial zação no genoma, possibilita estu-
(representado dos diversos. Polimorfismos em
por um círculo) autossomos (cromossomos não-se-
na mesma xuais) são ótimos marcadores de in-
família:
as pessoas dividualidade. Como todos temos
destacadas duas cópias de cada autossomo e as
em amarelo cópias de cada par trocam genes
pertencem (A) (recombinam-se) a cada geração, as
à mesma combinações são efêmeras, impedin-
patrilinhagem
(têm do que duas pessoas tenham o mes-
cromossomos Y mo genoma.
idênticos), ou Situação diferente é observada
(B) à mesma no segmento exclusivo do cromosso-
matrilinhagem mo sexual Y (presente apenas em
(têm DNA
mitocondrial homens) e no DNA mitocondrial
idêntico) (DNA presente em organelas celula-

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res. O sobrenome Álvares indica-


ria que ele descende de Caramu-
ru, mas daria informação sobre
uma fração minúscula da sua
genealogia, pois não diria nada
sobre toda a família de sua mãe,
de sua avó paterna etc.

As variações
do cromossomo Y
O cromossomo Y humano tem
três partes distintas (figura 5).
Duas pequenas regiões, nas ex-
tremidades dos dois ‘braços’ des-
se cromossomo, mostram homo-
logia (mesmos genes, na mesma Figura 3. Em cada geração Figura 4. As linhagens do
seqüência) com o cromossomo X alguns cromossomos Y (ou DNAs cromossomo Y (azul) ou do DNA
mitocondriais) são transmitidos mitocondrial (vermelho) fornecem
e se recombinam com este. Por para os filhos e outros são uma fração minúscula da
isso, são chamadas de pseudo- perdidos, o que significa que, informação de nossa genealogia:
autossômicas. A terceira parte após grande número de gerações, temos quatro avós (dois avôs
(mais de 90% do cromossomo) é todos os cromossomos Y e duas avós), oito bisavós,
exclusiva do Y e não sofre re- (ou DNAs mitocondriais) 16 trisavós, 32 tetravós etc.,
sobreviventes provavelmente e tanto o DNA mitocondrial quanto
combinação – os haplótipos des- serão descendentes o cromossomo Y vêm de apenas
sa parte são transmitidos inal- de um único ancestral uma pessoa de cada geração
terados de pai para filho por ge-
rações e gerações.
Para identificar os diferentes haplótipos neces- população asiática na qual esse haplótipo era o mais
sitamos estudar polimorfismos de DNA, que podem freqüente (o ‘haplótipo fundador’).
possuir velocidades evolucionárias diferentes. No Seria então possível usar esse haplótipo para
estudo das linhagens de cromossomo Y em brasilei- encontrar a população asiática de onde ele veio?
ros, optamos por polimorfismos de evolução lenta, Fizemos estudos genéticos em DNA de centenas de
ou UEPs (do inglês unique event polymorphisms), homens de inúmeras populações de todo o mundo,
que indicam eventos mutacionais únicos. Há dois com ênfase especial em populações da Sibéria e da
tipos de UEPs: os que resultam da mudança de uma Mongólia, usando 30 UEPs do cromossomo Y huma-
só base da seqüência do DNA (SNP, do inglês single no. Descobrimos que duas populações que habitam
nucleotide polymorphism), e os decorrentes da ‘en- em regiões adjacentes na Sibéria Central eram as
trada’ de uma curta seqüência de bases (‘retroposon’) mais similares aos ameríndios: os Ketis (da bacia do Figura 5.
em uma determinada posição no cromossomo. A rio Yenissey) e os Altais (das montanhas Altai). Tais Estrutura
(esquema) do
identificação desses polimorfismos é utilíssima para dados apontam para essa região siberiana como o cromossomo Y
a reconstrução da história de migrações em popula- berço mais provável dos ameríndios. humano:
ções humanas. as regiões
Um bom exemplo foi a com- As variações pseudo-
provação científica de que a mai- do DNA mitocondrial autossômicas
(em vermelho)
oria dos indígenas das Américas O DNA mitocondrial humano é recombinam-
descende de populações da área circular, muito pequeno (16.569 se com regiões
central da Sibéria, na Ásia. Em pares de bases), e situa-se no cito- homólogas do
1995, o estudo de polimorfismos plasma, dentro das mitocôndrias, cromossomo X,
de cromossomo Y de ameríndios as usinas energéticas das células, trocando
genes, mas a
de 18 tribos indígenas, da Argenti- como visto na figura 1. Acredita- porção Y-
na até os Estados Unidos, nos se que as mitocôndrias eram mi- específica (em
permitiu identificar apenas um crorganismos independentes que, azul) não sofre
haplótipo na grande maioria englobados por ancestrais de nos- recombinação
deles. Nossos dados reforçavam sas células, tornaram-se simbion- e é passada
‘em bloco’
a noção de que os ameríndios das tes ao longo da evolução, tanto (haplótipo) de
três Américas eram provenien- que conservam características de pai para filho
tes da migração de uma única DNA microbiano. 4

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O DNA mitocondrial huma- son, na Universidade da Califórnia (em Berkeley).


NÃO EXISTEM RAÇAS no possui duas regiões com pro- Eles estudaram RFLPs no DNA mitocondrial de 147
priedades evolutivas diferen- indivíduos de várias origens geográficas e elabora-
A razão pela qual ‘raça’ está entre tes. A maior região (mais de 90% ram uma árvore filogenética que apontava apenas um
aspas no texto é que, embora o do total), é codificante, ou seja, ancestral comum: o DNA mitocondrial de uma mu-
IBGE ainda use o termo, é usada como molde para sínte- lher que viveu na África há cerca de 200 mil anos.
ele é mais uma construção social se de RNA. A taxa de mutação Quatro anos depois, o mesmo grupo confirmou os
e cultural do que biológica. nessa região é cerca de cinco ve- resultados pelo seqüenciamento da alça D. Embora a
Do ponto de vista genético, zes maior do que a do DNA nu- metodologia estatística desses estudos tenha sido
não existem raças humanas. clear. A segunda região, cha- posteriormente criticada e a estimativa de idade
O homem moderno distribuiu-se mada de ‘alça D’, tem em torno reduzida para 150 mil anos, a conclusão básica, de
geograficamente e desenvolveu de 1.122 pares de bases, não é que o homem moderno emergiu em época recente na
características físicas, incluindo codificante e evolui cinco vezes África, foi corroborada por outros estudos genéticos.
cor da pele, por adaptação mais rápido que o resto da mo-
ao ambiente de cada nicho lécula (portanto, 25 vezes mais Amostragem da população brasileira
geográfico. Geneticamente, rápido que o DNA nuclear). Em O Brasil tinha 157.070.163 habitantes em 1996,
no entanto, não houve geral, estudam-se as duas re- distribuídos pelas regiões Norte (11.288.259), Nor-
diversificação suficiente entre giões, seqüenciando o DNA mi- deste (44.766.851), Sudeste (67.000.738), Sul
esses grupos geográficos para tocondrial nos dois trechos mais (23.513.736) e Centro-Oeste (10.500.579), segundo
caracterizar raças em um sentido variáveis da alça D e procuran- o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
biológico, como mostrou do SNPs em posições específi- Quanto à ‘raça’ (ver ‘Não existem raças’), o IBGE
recentemente o geneticista cas da região maior. A busca de adotou um critério simplista – segundo a cor da
americano Alan Templeton. SNPs é feita com enzimas de pele, por autoclassificação: branca, preta, amarela,
Isso introduz uma dificuldade: restrição, que cortam o DNA em parda, indígena e sem declaração – para obter a
como podemos nos referir seqüências específicas (com distribuição das cores de pele no Brasil como um
a certos grupos, como os índios quatro a seis bases) – alterações todo e nas cinco principais regiões (figura 6).
brasileiros? Uma nomenclatura na seqüência do DNA mitocon- A análise dos dados sobre ‘raça’ revela um gradi-
que tem sido crescentemente drial podem eliminar sítios de ente (do Norte para o Sul) nas proporções relativas
usada é a de ‘etnias’, que restrição ou criar um novo onde das cores de pele: brancos são 22,7% da população
deveriam ser definidas (de modo não havia nenhum. SNPs estu- no Norte e 83,3% no Sul. Nota-se ainda que o Su-
muito amplo) como grupos dados com enzimas de restrição deste é a região em que as proporções mais se asse-
populacionais que têm recebem o nome especial de melham às do Brasil como um todo. Tais dados de-
características físicas ou culturais RFLPs (do inglês restriction frag- monstram a dificuldade de obter uma amostra re-
em comum. A definição de etnia ment length polymorphisms, ou presentativa da população brasileira para pesquisa
como “um grupo biológico e seja, polimorfismos de tamanho genética, principalmente sabendo-se que tais estu-
culturalmente homogêneo”, de fragmentos de restrição). dos são complexos demais para que se analise gran-
dada pelo Novo Dicionário Aurélio O melhor exemplo de recons- de número de indivíduos.
(1a edição), é errada. Não existe trução da evolução a partir do Nós optamos, por razões teóricas e logísticas,
na Terra nenhum grupo humano DNA mitocondrial foi dado em pelo estudo de uma amostra de 200 indivíduos (247
biologicamente (nem 1987 pelo grupo de Allan Wil- para o DNA mitocondrial), o que é um bom número
culturalmente)
homogêneo. REGIÃO COR OU ‘RAÇA’
Branca Preta Amarela Parda Indígena S/ declaração
Centro-Oeste 4.418.571 292.943 30.686 4.615.250 52.750 14.853
(9.425.053) (46,9 %) (3,1 %) (0,3 %) (49 %) (0,6 %) (0,1 %)
Nordeste 11.317.738 2.368.206 27.371 28.611.078 55.854 113.865
(42.494.112) (26,6 %) (5,6 %) (0,06 %) (67,3 %) (0,13 %) (0,3 %)
Figura 6. Norte 2.279.173 329.261 13.994 7.230.657 124.618 49.670
Distribuição (10.027.373) (22,7 %) (3,3 %) (0,1 %) (72,1 %) (1,2 %) (0,5 %)
dos brasileiros,
Sudeste 39.260.994 3.662.794 471.732 18.985.393 30.584 328.649
por regiões
FONTE: IBGE - CENSO DEMOGRÁFICO

(62.740.146) (62,6 %) (5,8 %) (0,8 %) (30,2 %) (0,05 %) (0,5 %)


geográficas,
em 1991, Sul 18.428.446 681.926 86.875 2.873.707 30.342 27.835
de acordo com (22.129.131) (83,3 %) (3,1 %) (0,4 %) (13 %) (0,1 %) (0,1 %)
a cor da pele (por Brasil 75.704.922 7.335.130 630.658 62.316.085 294.148 534.872
autoclassificação) (146.815.815) (51,6 %) (5 %) (0,4 %) (42,4 %) (0,2 %) (0,4 %)

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em termos de estudos filogeográficos humanos (por


exemplo, o estudo de várias populações mundiais
da ‘Eva mitocondrial’ do grupo de Allan Wilson
incluiu apenas 147 indivíduos), distribuídos em
quatro das cinco principais regiões geográficas do
Brasil: 50 indivíduos do Sudeste (Minas Gerais; 99
pessoas no caso do DNA mitocondrial), 50 indiví-
duos do Norte (Amazonas, Rondônia, Acre e Pará;
48 no caso do DNA mitocondrial), 50 indivíduos do
Nordeste (Pernambuco) e 50 indivíduos do Sul (Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná).
Para evitar que essa escolha, em cada região,
afetasse os resultados, restringimos nossa amostra à
população branca, majoritária no Brasil (51,6%). Já
existem várias análises sobre a proporção de genes
europeus em negros brasileiros (os dados anteriores
à era do DNA foram reunidos por Francisco Salzano
e Newton Freire-Maia no livro A study of brazilian
populations, de 1970), mas nenhum bom estudo da
presença de linhagens ameríndias e africanas na
população branca. no Sul da África. À medida que os homens migraram Figura 7.
Obtivemos amostras de DNA (colhidas com per- para novas regiões, o conjunto inicial de genes foi Principais
haplogrupos
missão e codificadas para garantir total anonimato) sendo alterado por mutações, o que gerou novos
de
de indivíduos não-aparentados, todos autoclassifi- haplótipos, cada um comportando-se como uma cromossomo Y,
cados como brancos, escolhidos ao acaso entre uni- linhagem evolutiva independente. Em geral, quanto com as
versitários e pacientes que se submeteram a estudos mais antigo o haplótipo, maior sua distribuição ligações
de determinação de paternidade. A amostragem, geográfica. filogenéticas
entre eles e a
porém, incluiu principalmente pessoas de classe Um dos eventos mais precoces na evolução do
distribuição
média e classe média alta, o que poderia afetar as cromossomo Y, por exemplo, teria sido a mudança de geográfica
conclusões dos estudos. Por isso, amostras de DNA adenina (A) para guanina (G) na posição 1532. Isso
de trabalhadores rurais brancos do vale do Jequi- alterou o conjunto ancestral (chamado haplótipo 7) e
tinhonha (MG) – cedidas pelos professores Carlos criou o haplótipo 2, presente em todos os con-
Maurício Antunes e Roberto Campos Amado, do tinentes. Nos estudos práticos, usa-se o conceito
Departamento de Parasitologia da UFMG – foram mais amplo de ‘haplogrupo’ (grupo de haplótipos
estudadas, para comparação. intimamente relacionados). Eventos mutacionais já
estudados definem os principais haplogrupos, que
Patrilinhagens em brasileiros brancos em geral têm distribuição geográfica restrita (figura
Os estudos filogeográficos usando o cromossomo Y 7). A exceção é o haplogrupo 2, mas novos marcadores
baseiam-se na teoria, aceita universalmente, de que estão sendo pesquisados para que, em breve, seja
todos os haplótipos de cromossomos Y existentes alcançada uma melhor resolução dentro desse grupo.
hoje derivam de um haplótipo ancestral que estaria Nosso estudo filogeográfico de brasileiros bran-
presente entre os primeiros Homo sapiens, ainda cos (figura 8) permite deduzir que a imensa maioria
hoje encontrado em bosquímanos !Kung, que vivem das linhagens de cromossomo Y do país é de origem 4

HAPLOGRUPO ORIGEM GEOGRÁFICA NORTE NORDESTE SUDESTE SUL BRASIL PORTUGAL Figura 8.
Origem dos
Haplogrupo 8 África subsaariana 0 4 4 0 2 1
cromossomos Y
Haplogrupo 21 Áf. do Norte e Mediter. 13 8 16 16 14 12 de brasileiros
Haplogrupo 1 Europa 56 67 56 52 57 66 brancos e de
portugueses
Haplogrupo 9 Mediterrâneo 14 2 10 4 8 6 (em %) — o
Haplogrupo22 Bascos e Catalões 0 0 2 0 1 2 haplogrupo 2
Haplogrupo 2 Europa, Ásia ou África 14 19 12 28 19 13 (em destaque)
é o único sem
Haplogrupo 18 Ameríndios 0 0 0 0 0 0 origem
Haplogrupo 20 Japoneses e Coreanos 2 0 0 0 1 0 geográfica
definida

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Figura 9. país de origem da maioria dos imigrantes europeus

FONTES: FRANCISCO SALZANO (1986) E DARCY RIBEIRO (1995)


(1500-1808) (1851-1960)
Origem para o Brasil (figura 9).
das migrações ORIGEM NÚMERO ORIGEM NÚMERO
Mas de onde veio o excesso de haplogrupo 2, já
para o Brasil, Portugal 465.000 Portugal 1.732.000
sem incluir que a proporção entre brasileiros é maior que entre
os escravos Itália 1.619.000 portugueses? Não do leste da Ásia, pois é pequena a
africanos, Espanha 694.000 proporção, no país, de cromossomos Y japoneses e
nos três coreanos. Uma pista surge da comparação das re-
primeiros Alemanha 250.000
Japão 229.000 giões do Brasil: a maior proporção do haplogrupo 2
séculos após o
descobrimento ocorre no Sul (28%), onde foi importante a imigra-
Total 4.523.000
e desde ção de alemães e outros europeus, e a segunda no
meados do Nordeste (19%), palco da invasão holandesa. Mes-
século 19 européia, mais especificamente portuguesa (como mo existindo outras contribuições (do Oriente Mé-
revela a semelhança com dados referentes a 93 dio, por exemplo), a Europa é também a origem mais
portugueses, obtidos em colaboração com o gene- provável do excesso de haplogrupo 2. Assim, no
ticista Jorge Rocha, da Universidade do Porto). Cha- mínimo 66% e no máximo 85% (este talvez mais
ma atenção a contribuição mínima de cromossomos próximo da verdade) dos cromossomos Y em bran-
Y vindos da África sub-saariana (haplogrupo 8, com cos brasileiros vieram da Europa.
2% do total) e ameríndios (haplogrupo 18, nenhum). Também é alta a proporção – em brasileiros
Em contraste, os cromossomos Y europeus (ha- (14%) e portugueses (12%) – do haplogrupo 21, en-
plogrupo 1) estão presentes na grande maioria (57%) contrado basicamente no norte da África e, em
dos brasileiros. Tal participação aumenta quando se menor proporção, em áreas mediterrâneas. O grupo
admite que o haplogrupo 2 (19% da amostra) tem do geneticista Antônio Amorim, na Universidade
sua principal origem na Europa. Há várias linhas de do Porto, demonstrou que em Portugal a freqüência
evidência nesse sentido. Esse haplogrupo, por exem- do haplogrupo 21 aumenta gradativamente do norte
plo, é comum em portugueses (13%), e Portugal é o para o sul, atingindo quase 25% no Algarve, no

Haplogrupo Origem geográfica Norte Nordeste Sudeste Sul Brasil


L1a África 0 8 2 2 3
L1b África 0 2 1 2 1
L1c África 4 4 8 2 5
L2 África 2 10 8 0 6
L3d África 0 4 0 4 2
L3e África 7 14 11 0 8
L3* África 0 2 2 0 1
TOTAL África 15 44 34 12 28
U6 Áf. do Norte e Mediter. 2 0 2 2 2
H Europa 8 22 1 24 17
Pre-V Europa 2 2 5 4 3
HV* Europa 0 0 0 2 0,4
U Europa 4 6 5 8 6
pre*HV Europa 0 0 0 2 0,4
J Europa 6 2 1 12 4
T Europa 7 2 4 8 5
I Europa 2 0 0 0 0,4
X Europa e Ameríndios 0 0 2 4 1
TOTAL Europa 31 34 33 64 39
Figura 10. A Ameríndios e Asiáticos 8 8 13 8 10
Origens
dos DNAs B Ameríndios e Asiáticos 17 6 11 6 10
mitocondriais C Ameríndios e Asiáticos 21 2 6 6 8
identificados D Ameríndios e Asiáticos 8 6 4 4 5
em brasileiros
brancos (em %) TOTAL Ameríndios 54 22 33 24 33

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extremo sul. A explicação histó-


rica mais provável é que esse
haplogrupo é uma relíquia gené-
tica dos sete séculos de invasão
da península Ibérica, na Idade
Média, pelos mouros (oriundos
do norte da África).
Sua alta freqüência em brasi-
leiros deve-se então aos portu-
gueses, pois não há registros so-
bre a vinda para o Brasil de nú-
meros significativos de escravos do norte da África
(o que é reforçado pela baixa proporção de linha-
gens de DNA mitocondrial do norte africano encon-
trada em nossos estudos). Se o haplogrupo 21 foi
trazido por portugueses, deve ser somado às contri-
buições européias. Assim podemos concluir que a
imensa maioria das linhagens de cromossomo Y dos
brasileiros brancos veio da Europa, especialmente
de Portugal. respectivamente por 44%, 14% e 10% do total des- Figura 11.
As proporções mínimas de cromossomos Y afri- sas linhagens. A árvore
canos e ameríndios constatadas poderiam levantar Como os ameríndios vieram da Ásia, o DNA de haplogrupos
de DNA
dúvidas sobre a adequação da amostra. Sabendo que mitocondrial não os diferencia dos asiáticos. Assim, mitocondrial
a distribuição de cores de pele é desigual nos seg- assumimos que todas as linhagens asiáticas obtidas em brasileiros,
mentos sociais do Brasil, poderia o predomínio de (haplogrupos A, B, C e D) eram ameríndias. Como construída com
pessoas de classe média e classe média alta na nossa não encontramos no Brasil outras linhagens da Ásia base na
amostra viciar os resultados, apontando maior que não ocorram também entre ameríndios, qual- informação
da seqüência
ancestralidade européia? Um fato desmente isso. O quer erro decorrente da adoção dessa premissa deve da alça D usando
estudo dos cromossomos Y de 10 indivíduos bran- ser muito pequeno. Já a grande diversidade de método de
cos de baixa renda do vale do Jequitinhonha (MG) haplogrupos africanos é compatível com o fato de máxima
também não detectou haplótipos ameríndios ou da que os escravos foram trazidos para o Brasil de parcimônia
África subsaariana. muitas áreas (principalmente do oeste africano, mas (menor número
de mudanças
também de Moçambique, no leste). em cada ‘ramo’),
Matrilinhagens em brasileiros brancos O fato de encontrarmos 33% de matrilinhagens mostra três
As linhagens de DNA mitocondrial de todo o mundo autóctones permite-nos calcular que em torno de grupos distintos
dividem-se em três grandes conjuntos, os super- 45 milhões de brasileiros possuem DNA mitocon- de linhagens:
haplogrupos L1, L2 e L3. Os dois primeiros são drial originário de ameríndios. Em outras palavras, africanas (azul),
ameríndias
especificamente africanos, enquanto o último ocor- embora desde 1500 o número de nativos no Brasil (vermelho)
re em todos os continentes, mas pode ser subdividi- tenha se reduzido a 10% do original (de cerca de e européias
do em haplogrupos típicos de populações africanas, 3,5 milhões para 325 mil), o número de pessoas (verde) — como
européias, asiáticas e ameríndias. com DNA mitocondrial ameríndio aumentou mais não foram
A classificação por DNA mitocondrial é bem de 10 vezes. usadas
informações que
mais complexa que a baseada no cromossomo Y. Em permitiriam
ameríndios brasileiros, por exemplo, há apenas um Raízes filogenéticas do Brasil maior separação,
haplogrupo principal de Y, mas quatro de DNA Os resultados obtidos demonstram que a imensa há linhagens
mitocondrial (A, B, C e D). A diversidade de DNAs maioria (provavelmente mais de 90%) das patrili- africanas entre
mitocondriais também foi muito grande em brasi- nhagens dos brancos brasileiros é de origem euro- européias e entre
ameríndias,
leiros brancos: 171 haplótipos distintos em 247 péia, enquanto a maioria (aproximadamente 60%) e linhagens
indivíduos (figura 10). Ao contrário do revelado das matrilinhagens é de origem ameríndia ou afri- ameríndias entre
pelo estudo do cromossomo Y (ampla maioria de cana. européias
haplogrupos europeus), os DNA mitocondriais tive- As patrilinhagens, embora sejam maciçamente (a maior
ram, para todo o Brasil, uma distribuição de origens européias e muito semelhantes à distribuição em distância
dos haplótipos
geográficas bem mais uniforme: 33% de linhagens Portugal, exibem ainda considerável variabilidade. africanos indica
ameríndias, 28% de africanas e 39% de européias Isso deve-se à alta diversidade genética dos ibéricos, sua maior
(figura 11). Entre as linhagens européias, destacam- fruto de muitas invasões e imigrações: celtas, fe- diversidade)
se os haplogrupos H, T e J, sendo responsáveis nícios, gregos, romanos, suevos, visigodos, judeus, 4

abril de 2000 • CIÊNCIA HOJE • 23


G E N É T I C A

Figura 12.
Linhagens REGIÃO POPULAÇÃO FRAÇÃO DE LINHAGENS NÚMERO DE LINHAGENS
ameríndias BRANCA AMERÍNDIAS EM BRANCOS POR REGIÃO
de DNA (OBTIDA NO ESTUDO) (POPULAÇÃO X FRAÇÃO)
mitocondrial Norte 2.279.173 0,54 1.230.753
(matrilinhagens)
Centro-Oeste 4.418.571 (0,33)* 1.458.128
na população
branca (cálculo Nordeste 11.317.738 0,22 2.489.902
com base nos Sudeste 39.260.994 0,33 12.956.128
percentuais
obtidos Sul 18.428.446 0,22 4.054.258
no estudo, BRASIL 75.704.922 29,3%** 22.189.169
aplicados aos
Obs.: * Como não houve amostragem no Centro-Oeste, foi usada a mesma fração do Sudeste.
totais de brancos
** Percentual calculado após a soma do número de linhagens obtido em cada região.
em cada região) –
o percentual
final obtido
(29,3%) árabes e bérberes. A maior mistura gênica certamen- variações consideráveis de região para região, se-
é semelhante te ocorreu nos 700 anos de ocupação por mouros gundo o padrão esperado pela história de coloniza-
à proporção ção de cada uma (figura 12). No Sul, são europeus
(até 1492), e está expressa na alta freqüência do
geral de 33%
(sobre a amostra haplótipo 21 (do norte da África) em portugueses – 66% dos haplótipos, o que reflete a ampla imigração
estudada) e, através deles, nos brasileiros. da Europa para a região nos séculos 19 e 20. No
Outra pista interessante é a alta freqüência do Norte, onde a presença indígena é elevada, 54% das
haplogrupo 9 do cromossomo Y em portugueses e matrilinhagens são ameríndias. No Nordeste, como
brasileiros. Esse haplogrupo ocorre em toda a área esperado, predominam matrilinhagens africanas
mediterrânea, mas atinge suas freqüências máximas (44%). No Sudeste, a distribuição das linhagens é
em judeus e libaneses. Até o final do século 14, muito uniforme. Apesar da alta diversidade de li-
grande quantidade de judeus vivia na península nhagens de DNA mitocondrial européias e africa-
Ibérica, em aparente harmonia com cristãos e mu- nas, não foi possível relacionar haplogrupos especí-
çulmanos. No século 15, a discriminação aumentou ficos a regiões brasileiras. As linhagens européias
até que os judeus, exceto os que se converteram ao H, T e J predominam em todas as regiões e não
cristianismo (‘cristãos novos’), foram expulsos de apresentam um padrão específico de distribuição.
Portugal, em 1509. Embora fosse proibido a judeus Isso é consistente com o fato de que dentro da
e mouros emigrar para as Américas, muitos cristãos Europa a diferenciação de matrilinhagens é bastan-
novos vieram para o Brasil, provavelmente trazendo te pobre.
o haplogrupo 9. No caso das linhagens africanas, sabe-se que a
Por sua vez, os imigrantes que chegaram ao Brasil maioria dos escravos trazidos para o Brasil veio da
a partir da metade do século 19, em especial italia- costa oeste da África, da vasta região entre o rio
nos, espanhóis, alemães, japoneses e sírio-libane- Senegal (no norte) e a Angola portuguesa (no sul).
ses, deixaram sua ‘marca’ no aumento (em relação a Os escravos chamados de ‘minas’, aprisionados na
Portugal) da freqüência dos haplogrupos mediterrâ- parte mais ao norte dessa região, chamados de
neos 21 e 9 (italianos, espanhóis e sírio-libaneses) e ‘minas’, constituíam cerca de um terço do total
na presença dos haplogrupos 22 (espanhóis) e 20 trazido para o Brasil (figura 13) e concentraram-se
(japoneses). Como foi dito, a presença dos alemães inicialmente na Bahia – muitos tinham a religião
no Sul e dos holandeses no Nordeste provavelmente ioruba, de onde veio o candomblé baiano. A maioria
reduziu a freqüência dos haplogrupos mediterrâne- dos escravos do Rio de Janeiro e Minas Gerais veio
os nessas regiões e aumentou a do haplótipo 2. de Angola – de tribos que falavam dialetos do tronco
Já os estudos de DNA mitocondrial revelam pro- bantu. Entretanto, as consideráveis migrações de
porções gerais de 33% de linhagens ameríndias, escravos ocorridas entre os estados, no século 19,
28% de africanas e 39% de européias, mas com homogeneizaram sua distribuição. Sabe-se pouco
sobre a distribuição de haplogrupos de DNA
mitocondrial na África, especialmente em Angola.
Assim, fica difícil fazer inferências filogeográficas a
PERÍODO NÚMERO partir dos nossos resultados, que mostram que os
FONTE: FRANCISCO SALZANO (1986)

1551-1700 580.000 haplogrupos L3e e L1c constituem quase 50% dos


Figura 13. africanos.
Desembarques 1701-1810 1.891.000
de escravos As linhagens ameríndias mostraram um padrão
1810-1857 1.145.000
africanos curioso. O haplogrupo A foi o mais comum no
no Brasil TOTAL 3.616.000 Nordeste, Sudeste e Sul (36% do total das três

24 • CIÊNCIA HOJE • vol. 27 • nº 159


G E N É T I C A

regiões), enquanto o C foi o mais 1500 1871 1890 1990 Figura 14.
comum no Norte (38%). Novos Crescimento
Ameríndios 4.500.000 440.000 440.000 280.000 da população
estudos estão sendo iniciados para
Brancos ... 3.854.000 6.302.000 81.407.000 brasileira após
tentar explicar essa correlação o descobrimento
Negros ... 1.976.000 2.098.000 7.264.000
geográfica.
Pardos ... 4.262.000 5.934.000 57.822.000
O retrato molecular TOTAL 2.000.000 9.930.000 14.333.000 147.306.000
do Brasil no contexto
histórico
Em resumo, nossos estudos filogeográficos com que os homens “casem e vivam (...) apartados dos
brasileiros brancos revelam um padrão de reprodu- pecados, em que agora vivem”. A coroa portuguesa,
ção direcional: a imensa maioria das patrilinhagens que tolerava relacionamentos entre portugueses e
é européia, enquanto a maioria das matrilinhagens índias desde o início da colonização, passou a esti-
(cerca de 60%) é ameríndia ou africana. Os resulta- mular casamentos desse tipo oficialmente por um
dos combinam com o que se sabe sobre o povoamen- Alvará de Lei emitido em 4 de abril de 1755 pelo
to pós-cabralino do Brasil. marquês de Pombal. A idéia de Pombal, aparente-
Exceto pelas invasões (temporárias) de franceses mente, era povoar o Brasil, garantindo sua ocupa-
no Rio de Janeiro e de holandeses em Pernambuco, ção, mas essa política surpreendentemente liberal
praticamente apenas portugueses vieram para o não se estendeu aos africanos. É óbvio, porém, que
Brasil até o início do século 19. Os primeiros imi- a mistura de portugueses com africanas continuou.
grantes portugueses não trouxeram suas mulheres, A partir da metade do século 19, o Brasil recebeu
e registros históricos indicam que iniciaram rapida- enormes levas de novos imigrantes, destacando-se
mente um processo de miscigenação com mulheres portugueses e italianos, seguidos de espanhóis, ale- Sugestões
indígenas. Com a vinda dos escravos, a partir da mães, japoneses e sírio-libaneses. Entre 1872 e 1890, para leitura
segunda metade do século 16, a miscigenação esten- por exemplo, a população de brancos brasileiros
CANN, R.L.;
deu-se às africanas. aumentou em 12,5 milhões (figura 14). Embora STONEKING, M.;
Em 1552, em carta ao rei D. João, o padre Manuel muitos imigrantes tenham vindo com suas famílias WILSON, A. C.
da Nóbrega fala da falta de mulheres brancas na (em especial os alemães), havia um excesso signifi- ‘Mitochondrial DNA
and human
nova colônia, e pede que estas sejam enviadas, para cativo de homens em outros grupos. Como os imi- evolution’, in
FONTE: ADAPTADO DE DARCY RIBEIRO, (1995) — OS DADOS ORIGINAIS SOBRE A POPULAÇÃO INDÍGENA, DE 1940, FORAM ATUALIZADOS COM BASE EM PESQUISAS MAIS RECENTES

grantes eram em geral pobres, casavam-se com mu- Nature, v. 325,


p. 31, 1987.
lheres também pobres, o que no Brasil significava PENA, S.D.; SANTOS,
mulheres de pele escura (por causa da correlação F.R.; BIANCHI, N.O.;
BRAVI, C.M.;
entre cor da pele e classe social). Isso está ilustrado CARNESE, F.R.;
no quadro A redenção de Can, de Modesto Brocos y ROTHHAMMER, F.;
Gomes, pintado em 1895 (figura 15). GERELSAIKHAN, T.
et al . ‘A major
Vários autores, dentre os quais despontam os já founder Y-
mencionados Prado, Freyre, Holanda e Ribeiro chromosome
haplotype in
enfatizaram a natureza triíbrida da população brasi- Amerindians’, in
leira, a partir dos ameríndios, europeus e africanos. Nature Genetics,
Os dados que obtivemos dão respaldo científico a v. 11, p. 15, 1995.
SANTOS, F.R.;
essa noção e acrescentam um importante detalhe: a PANDYA, A.; TYLER-
contribuição européia foi basicamente através de SMITH, C.; PENA,
S.D.; SCHANFIELD,
homens e a ameríndia e africana foi principalmente M.; LEONARD,
através de mulheres. A presença de 60% de W.R.; OSIPOVA, L.
matrilinhagens ameríndias e africanas em brasilei- et al . ‘The central
Siberian origin for
ros brancos é inesperadamente alta e, por isso, tem native American Y
Figura 15. No óleo A redenção de Can (1895), pintado grande relevância social. chromosomes’, in
por Modesto Brocos y Gomes, a avó negra agradece American Journal of
O Brasil certamente não é uma ‘democracia ra- Human Genetics,
aos céus pelo neto branco (no colo da mãe, uma
cial’. Prova disso é a necessidade de uma lei para v. 64, p. 619, 1999.
mulata). O pai é branco e parece um imigrante de TEMPLETON, A.R.
origem ibérica ou mediterrânea. Segundo a Bíblia, proibir o racismo. Pode ser ingênuo de nossa parte,
‘Human races: a
Can, um dos filhos de Noé, recebeu uma maldição mas gostaríamos de acreditar que se os muitos genetic and
(ele e seus descendentes seriam escravos) e por isso brancos brasileiros que têm DNA mitocondrial evolutionary
pensadores que queriam adequar a ciência ao texto perspective’, in
ameríndio ou africano se conscientizassem disso American
bíblico o apontaram por séculos como o antepassado
valorizariam mais a exuberante diversidade genéti- Anthropologist,
dos povos negros. Como a idéia do pintor era v. 100, p. 632,
representar o ‘branqueamento da raça’, isso ca do nosso povo e, quem sabe, construiriam no 1999.
representava a ‘redenção’ de Can. século 21 uma sociedade mais justa e harmônica.■

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