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o Espelho de Morse e

Outros Espelhos�(
Otávio Velho

( 1988), de forma igualmente genero­


espelho de Pr6spero (Morse: sa e aberta, aceitou o desafio. Cabe a
1988) é um livro com um es· nós outros, creio. não interromper o
tranho percurso. Até hoje não jogo. Aproveitar a inesperada oportu·
foi publicado na língua e no nidade para estimular o debate num
país de origem. Acabou saindo no momento que por muitos motivos ten·
México (1982) e, agora, entre nós. de a ser mesquinho, voltado para si
Revela·nos um Richard Morse até mesmo e pouco animador. 10 nesse es·
certo ponto nosso desconhecido. Não pírito que é apresentado o presente
é apenas o Morse brasilianista a que texto, tentando acrescentar mais um
já nos acostumáramos, nem o Morse espelho a essa galeria.
dos pseudônimos que com fino humor O diálogo entre Richard Morse e
se referia a personagens e situações Simon Schwartzman de certa forma
que com ele compartilhávamos. Não lembrou a piada dos dois amigos que
deixa de ser com uma ponta de ciúme acabam brigando porque disputam a
que "descobrimos" ter que dividi·lo primazia sobre quem pede desculpas,
com meio mundo. E com muitos sécu­ cada um querendo impedir o outro de
los. O livro é generoso não só na ma· fazê·lo. Morse insiste em que a Ibero
neira com que nos vê, mas também América é que tem algo a dizer ao
no seu escopo, que obriga a sair da mundo de hoje e Simon em que te·
rotina intelectual e espiritual c a nos mos é que nos livrar das servidões da
enxergarmos num quadro muito mais herança colonial e periférica par. ai·
amplo. 10 também provocativo. por· cançar a racionalidade e • modemi·
que lança novas idéios e desafia·nos a dade mal ou bem representadas pelas
rever as nossas. Simon Schwartzman "sociedades ocidentais". Este parece

• Agradeço 80S pürlicipsnlcs do curso T�Ori8 da Ideologia c da Cultura (2,- semes·


lrt:/88) do Programo de Pós-Gráduação em Antropologia Social do Museu Nacional. da
UFRJ. durante o quul roram elaboradas ou modificadas muitas das idEias aqui expostas.
E também a Mariza Peirano. que me levou involuntariamenle a escrever eSle artigo.
F.�/lIIlm: Hi6/ddemi, Rio d\' h�lro. \lol. 1. n. l, 19119. p. <H-I01.
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 95

ser um jogo de espelhos mais perfeito deteve é que parecem estar em jogo
do que nos propõe o próprio Morse. precisamente posições e pré-posições
" como se o espelho não fosse de extremamente díspares no que diz res­
Próspero, mas como se cada um, per­ peito a "teorias da mudança", para
guntando ao seu espelho, se alegrasse utilizar uma expressão já muito con­
com a existência de alguém mais lin­ taminada por conotações valorativas.
do! E nisso é que talvez estejam sen­ " sobre isso que gostaria de fazer al­
do não só generosos, mas o mais au­ gumas considerações de maneira bre­
têntico, Simon, como uma espécie de ve e certamente incompleta.
porta-voz. representando uma ciência Um ponto central para Morse e que
social modernizadora, ansiosa pela orienta a sua comparação é a relação
busca de soluções para o (nosso) país; com a tradição. " a idéia de um pro­
e Morse. assumindo plenamente o pa­ cesso de transformação apoiado numa
peI que lhe cai tão bem de represen­ dialética da tradição. Nisso ele não
tante do centro decadente, falando está inteiramente sozinho. Após um
para o orbe. mas colocando-se num tempo em que o culto moderno à rup­
plano mais abstrato, onde não cabem tura e ao novo não permitia à maio­
soluções para um mundo em crise, ria dos analistas pensar a mudança -
mas apenas mensagens, distância e a pelo menos a "grande mudança" -
busca de arranjos cuja precariedade é em outros termos, a evidência dos ra­
reconhecida. Ao contrário do que su­ tos obrigou-os a admitirem possibili­
gere Simon. não há em Morse ilusões dades menos drásticas em termos de
assim tão grandes a respeito da pró­ descontinuidade. Entre nós a obra de
pria (bero América, num mundo acei· Barrington Moare jr. As orige/ls so­
to como irremediavelmente caótico. eiais da ditadura e da democracia
No fundo, é o esfarrapado pedindo ( 1966) foi um marco e teve suas res­
ajuda ao roto. sonâncias. E isso mesmo se podendo
". aliás. essa diferença de perspec· dizer, como s6i acontecer nas ciências
tiva que por vezes faz com que o diá­ sociais, que se estava apenas recor­
logo corra o risco de se tornar de sur· dando algo que de há muito já era
dos. O esforço analítico e compreensi­ sabido. Mas fiel ainda ao espírito da
vo de Morse. Simon passa por alto. modernidade triunfante, I feita essa
Vai direto 80S riscos. Preocupa-se importante ressalva (ver, entre outros.
com as implicações das proposições Schwartzman, 1975 e Velho, 1976),
de Morse, de certa forma enfiando a a ruptura continuou a ser privilegia­
carapuça que Morse prepara para os da como exemplo mais perfeito e aca­
cientistas sociais "prátiços". Simon, bado de mudança sintetizado no mito
por outro lado, pode legitimamente da revolução.
perguntar-se se as colocações de Mor· Os tempos mudam e sem dúvida o
se são assim tão "ingênuas". Afinal. clima de menor otimismo quanto ao
a caracterização que faz do caminho espírito prometéico faz repensar o
íbero e do caminho anglo pressupõe (des)valor da tradição. No confronto
um estado de inércia do segundo que com O privilegiamento da ruptura isso
torna bastante desigual, de fato, a aparece como o espírito da não-mu­
comparaçao COm sua vivaz e organIca dança. Mas na verdade essa caracteri­
_ • A •

"dialética da tradição" íbero-católica zação não faz inteira justiça à reto­


que se desdobra a parti r da escolás­ mada do argumento. No plano teórico
tica. No que. porém, Simon não se e epistemológico isso pode ser ates-
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tado, por exemplo, pela sofisticação em favor de uma reificação da reiHca­


do debate em torno da hermenêutica. ção dessa tradição tão vivamente ex­
que é ela mesma redescoberta e revi· pressa com a ajuda dos teóricos de
gorada pelas várias linhas de pensa­ Frankfurt (basicamente Adorno e
mento que privilegiam a interpretação Horkheimer), mas que absolutiza a
em contraste com outras mais convic­ banalidade até o limite, realmente. da
tas de seu estatuto de cientificidade. caricatura.
Morse (sem referência à hermenêu­
lica) aplica esse paradoxalmente "no­
vo" espírito à análise das duas Robert Bellah em seu The broken
"opções" do Grande Desígnio Oci­ covenant (1975) pode ser um ponto
dental. Mas agora com os sinais tro­ de partida. Sobretudo porque, como
cados. Eu diria que Simon, por outro Morse reconhece ao citá-lo ( 1988:
lado, com todas as nuances mantém­ 26/7), estão ambos trabalhando no
se basicamente fiel a modernidade mesmo plano: o dos significados cul­
triunfante na sua vertente liberal. que turais. A diferença está em que para
no nosso contexto implica uma ruptu­ pensar a "opção anglo-protestante" de
ra ainda por se fazer ou completar. Morse, Bellah parte de Calvino e dos
" esse, parece-me, o foco da divergên­ puritanos, e não da linhagem de Hob­
cia. E a partir daí outras coisas po­ bes e Locke, como Morse, que nisso
dem se revelar. acompanha a maioria dos cientistas
Uma delas é que Morse ainda paga políticos. Ao fazê-lo, nao só coloca o
um tributo ao espírito da modernida­ assunto em outro plano, como também
de triunfante. Simplesmente porque, põe sob outra perspectiva os teóricos
num certo sentido. não desconfia da e os desenvolvimentos políticos poste­
sua (dela) ideologia. Para a herme­ riores. Fundamentalmente, traz à luz
nêutica. de uma forma talvez mais a natureza original da noção de pacto
radical. o confronto sequer poderia (coverlan/), como não sendo apenas
no fundo ser tomado em termos da um contrato entre homens, mas o es­
disputa entre tradição e ruplura. O .abelecimento, primordialmente, de
ser é interpretante. Não há como, no uma relação pessoal com Deus tendo
final das comas, fugir disso.2 Mas como modelo a aliança do povo eleito
por outro lado, alguma coisa de dife­ judeu, no Antigo Testamento. O fato
rente parece de fato estar colocada. de ser "construído", embora lhe retire
Assim, Morse e os demais que têm in­ no contraste com a tradição escolás­
sistido nisso talvez apontem direta­ tica que privilegia o "natural", uma
mente para algo a que talvez não se referência externa, não lhe tira a di­
tenha dado a devida atenção: é que mensão de transcendência. E nem a
estão em jogo diferentes relações com dimensão social, na medida em que
a tradição (e, portanto, talvez diferen­
estão envolvidos indivíduos, mas tam­
tes hermenêuticas, por assim dizer).
bém um povo.
Haveria então em Morse ao mesmo
. . " a partir desse pressuposto que se
tempo um sintoma e uma ausenCl8.
-

Outros autores, por sua vez, têm re­ estabelece a relação entre os homens.
pensado a questão da tradição nas Em síntese:
pr6prias "sociedades ocidentais".
Com sua ajuda talvez possamos ca­ "Boa parte da crítica à sociedade
racterizar essa vàriante da relaçao americana tem-se baseado na acei­
com a tradição, que Morse despreza tação da ideologia racionalista.
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 97

lecnicislo, utilitarista que esbocei tais do mito americano, estão em re­


brevemente, e tem-se preocupado lação de analogia, respectivamente
em apontar até onde esse modelo �
com conversão e pacto, noções priorj
na verdade não funciona bem: tariamente religiosas e bíblicas.
que O Estado não é neutro nO que A partir dessa perspectiva, os de­
diz respeito aos grupos de inte­ senvolvimentos políticos posteriores a
resse, que o auto-interesse de al­ que a maioria dos analistas políticos
guns americanos é muito melhor 5: at�m ganha '!' um novo enfoque e
servido que o de outros, e assim sao VIStos - ainda utilizando catego­
por diante. A intenção crítica des­ rias originalmente bíblicas e religiosas
te livro é bem diferente. Espero - c �mo desvio, transgressão, dege­
mostrar que o modelo liberal uti­ ,
neraçao, ahenação etc. Produto da
litarista não foi a concepção moral perda dos significados transcenden­
e religiosa fundamental da Améri­ tais...
ca, apesar de ela ser receptiva em
Por detrás dessa perda esteve uma
certas direções ao desenvolvimen­
to desse modelo. Essa concepção �udança drásHca na própria concep­
çao da natureza humana. Da dramáti­
original, que nunca cessou de ser
ca tensão calvinista entre o crente e
operativa, baseava-se numa imagi­
o mundo (não facilmente transformá­
nativa concepção religiosa e mo­
vel, ao contrário do que parece julgar
rai da vida que levava em conta
um weberianismo vulgar, em ideolo­
um escopo muito mais amplo de
gia), passou-se ao reino da inocência
necessidades sociais, éticas. estéti­
do americano tranqüilo:
cas e religiosas do que aquelas
com as quais o modelo utilitarista
" . . . a ênfase era numa mudança
pode lidar. Sem argumentar a fa­
da vontade ao illvés de um renas·
vor de um reavivamento literal
cimento radical, na capacidade do
dessa concepção allterior, espero
homem se reformar ao invés da
mostrar que somente um novo e
necessidade da morte do seu e um
imaginativo contexto religioso,
novo nascimento em Cristo, Esses
moral e social para a ciência e a
ensmamentos transformaram a vi-

tecnologia fará possível atravessar


são calvinista da natureza peca·
as tormentas que parecem aden­
minosa do homem praticamente
sar-se sobre nás no final do século
no seu oposto. Tanto o homem
vinte." (Bel/ah, 1975: xiv)
quanto O mundo, pelo menos na
América, são essencialmente ino­
Esse pacto, por sua vez, pressupu­
nha uma conversão como forma de centes. Existem .armadilhas e ten-
-

liberação do cativeiro do pecado.' A loções a serem evitadas, mas sâo


natureza acidentais, e não da essência da
na, fundamentalmente pecaminosa. � ondição humana. E nessa simples
e
por isso não há garantia de manuten­ e harmoniosa visão da existência
ção do pacto, a não ser na medida da humana o sucesso mundano é evi­
fidelidade do povo a seu Deus. P;ra dência clara de virtude moral e
isso é necessário avivar, sempre, essa salvação religiosa. As últimas bar­
relação; e Bellah mostra a importân­ reiras culturais à glorificação do
cia política dos reavivamentos religio­ sucesso nos negócios como a prin­
sos na história americana. Revolução cipal finalidade do homem esta­
e constituição, categorias [undamen- vam praticamenle derrubadas no
98 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

final do século dezenove." (Bel· dessa ética e dessa visão de mundo,


lah, 1975: 75·76) bem como de seu funcionamento. Pa­
ra o caso inglês, Edmund Leites
Penetrou-se num mundo do "senso (1987) realiza um interessante traba­
comum e do simples fato" (p. 76), lho em que mostra a elaboração de
uma "harmonia de idealismo moral e uma "ética da constância" que subs­
.religioso sem tensão", "uma concep­ titui a "cultura do temperamento os­
ção particularmente inocente da vida cilante" da Idade Média e, mesmo, dos
humana", "postas de lado as ambi­ primórdios da Reforma. Heinz-Dieter
güidades morais mais escuras da vi­ Kittsteiner (1984) realiza trabalho se­
da" (p. 81). melhante para a Alemanha luterana,
Que distância de Calvino, para mostrando a passagem do primado da
quem: graça para o primado da virtude, que
tem o seu momento culminante no
". .. que o homem, cabalmente Iluminismo e a autonomização da
instruido de que em seu poder consciência com Kant:
nada lhe foi deixado de bom, e de
que de todos os lados cercado está "Num sentido muito real, o pr6-
da mais miseranda necessidade, prio cidadão tornou-se agora o
seja, no entanto, ensinado a aspi­ juiz interno que expede dolorosas
rar ao bem, de que é carente, e à penalidades. Com isso tudo, ele no
liberdade, de que foi privado, e entanto desprendeu-se da graça, a
sejal destarte, mais incisivamente dádiva desse ser estranho que ha­
despertado da inação, do que se via se imposto a ele. . .. A socie­
de suprema virtude se imaginasse dade burguesa foi concebida co­
dotado.' (Calvino, 1985: 15).' mo a sociedade dos filhos virtuo­
sos." (Kittsteiner, 1984: 971)
Trata-se, portanto, de uma verda­
deira inversão. Bellah tende a passar Ruptu.ra? De certa forma sim.
por alto as razões disso e a lógica do Mas uma ruptura que é ao mesmo
funcionamento desse sistema do pri­ tempo inversão, é suspeita. Ainda
mado da inocência. Quem, no entan­ mais que se dá nos quadros de uma
to, sem ter tido a experiência desse lógica cultural que já a prevê, enquan­
fundo original, teve a do contato de to desvio. De qualquer forma, esses
uma maneira ou de outra com essa

autores (Leites menos) não parecem
moral da inocência americana, não pensar que o movimento tenha chega­
pode deixar de admirar-se com sua do ao fim. Como diz Kittsteiner:
força e eficácia. A ponto de para a
maioria dos nossos cientistas políticos "A hist6ria da graça e da virtude,
continuar a ser - no momento mes­ no entanto, não termina com a
mo da sua crise - o modelo da vir­ posição kantiana da autonomia
tude secular a ser alcançado. E para da consciência. A virtude não po­
muitos dos próprios analistas america­ dia atingir aquilo que seus parti­
nos - como Richard Sennet (1988) dários esperava/ll - não apenas
- o passado a ser revigorado. porque novas áreas de sentimen­
Outros autores - de perspectivas tos de culpa irromperam com a
compatibilizável com a de Bellah - transferência do controle para
tratam mais a fundo da construção dentro da pessoa, mas também
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 99

porque uma nova sociedade bur­ ciável do próprio processo de secula­


rização, na medida que um Deus pes­

guesa e a moralidade correspon­


dente não emergiram e, em ter­ soal e transcendente necessariamente
mos históricos, não podiam ter dessacraliza o mundo. Apenas, igual­
emergido. Com o surgimento e mente num certo movimento de re­
expansão do capitalismo, a graça tomo, mostra também como o atels­
novamente teve que ser chamada mo seria ao mesmo tempo rebento e
em aurElio." (1984: 971)' desvio nessa dialética, posto que de­
saparecida a garantia divina da des­
A descrição da situação atual para sacralização do mundo, esse tende de
esses autores não é muito diferente novo, por diversas formas e "idola­
da de Morse e os frankfurtianos. Mas trias" assumidas ou não, a ressacrali­
ao invés de se apelar (como Morse) zar-se. O retorno ao Deus pessoal (ao
para um outro modelo, apela·se para pacto?) seria paradoxalmente condi­
um movimento que é ele mesmo pro. ção para o prosseguimento. e culmina­
prio dessa tradição: o reavivamento, ção desse movimento.
o retomo às origens, privilegiando a
Jante da tradição diante de tradições
"secundárias". Desse ponto de vista, Morse, portanto, subestima a rique·
mais do que ruptura o movimento za de sua própria herança. Para a
pode ser visto também como uma es­ qual, inclusive, mais propriamente
pécie de dialética, porém muito me­ parece acionável a referência aos ar·
nOs "positivau, arquitetônica e cumu­ quétipos por ele feita (p. 162). Resta
lativa do que aquela apresentada por saber se essa riqueza ainda significa
Morse para o caso íbero-católico. potencialidade, como pensa Simon.
Aliás, Senoet e os frankfurtianos Ou se, na medida em que na verdade
(entre outros) também parecem pen­ dependa de um movimento tão dra­
sar em termos de· um retorno às ori­ mático, tão sem concessões e media­
gens. Só que a origem - consisten­ ções (ao contrário de fbero-católico\,
temente com a própria lógica da in­ tão carismático enfim, de fato não
versão - passa a ser 8 tlma ética e haja mais como acioná-lo para sair
uma cultura secularizadas. Mas o mo· da "jaula de ferro".· Pelo menos a
vimento é o mesmo, podendo-se, sigo critica católica "orgânica" parece jul­
nificativamente, reconhecer a matriz gar que desde que se privilegia a re­
original, 7 embora inspire entre a nos· lação individual, as portas estão ine­
sa intelectualidade uma trajetória di· vitavelmente abertas para os desen­
ferente - a da busca d. construção volvimentos posteriores já assinala­
de uma ética secular, que em geral dos. E os antropólogos certamente re·
passa por cima da crise dessa ética. conhecerão aqui algumas raízes da
discussão hoje quase que populari7Jl­
Outro autor que no reino da dia·
da em cert.os meios pela obra de
lética das doutrinas também de certa
Leuis Dumont em torno da oposição
forma aborda as razões desse movi­
entre holismo e individualismo (a que
mento é J. B. Metz ( 1969), um teólogo
o próprio Morse parece ter dedicado
(católico) alemão. Ao contrário das
associações que se tem feito ultima· ateoção posteriornleote a O espelho
mente entre o cristianismo e o supos· de Pr6spero).
to "retorno do sagrado", mostra ca­ De qualquer forma, para não pen­
ma o (judaico)-cristianismo é indisso- sarmos em termos de um estrito cul·
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luralismo, talvez valha a pena imagi­ cionista) entre a relação pessoal com Deus
e a ética em Temor e tremor (1974), a per­
narmos a ruptura, a dialética da Ira­
t'ir do episódio do sacrifício de Isaac por
dição e o retorno às origens como um Abraão (Gen, 22). Já no que diz respeito
estoque de possibilidades (a ser mais especificamente à graça, uma reflexão não
teorizado) aberto a nós todos e com­ menos vrvida foi proporcionada recente­
mente pelo filme dinamnrquês A festa de
binável de variadas formas_ Afinal de
Babette.
contas, algumas possibilidades que
7 . Desse ponto de vista, o uso que Morse
nos parecem particularmente incom· Caz dos Crankfurtianos é apenas parcial. E
patíveis com o mundo moderno tal­ como na verdade eles fazem a crítica da
razão instrumental em nome da razão, tam·
vez só o sejam na medida em que a
bém nao parece adequado associá-los dire·
própria imagem do mundo moderno tamente ao irracionalismo, como faz Simon.
seja uma construção dos intelectuais.· 8. A sugestão, evidentemente. é que esse
movimento corresponde àquele privilegiado
por Weber do péndulo carisma-racionaliza­
Notas ção. Não deixa, aliás, de ser tentador ima­
ginar os dois clássicos das ciências sociais,
I. Insisto nessa qualificação (triunfante) Durkheim e Weber como pensadores cujas
I

para fugir ao debate sobre se se trata ou categorias Cundamentais de análise derivam


não da própria modernidade que está em desses dois modelos, o primeiro (no caso
questão. não necessariamente "[bera", mas pelo
2.
No campo da história isso de certa menos associável à escolástica) a partir da
forma foi dramatizado pela rebeldia de precedência do social (e da ffsociedade"),
Theda Skocpol (1979). que buscou, JUSla­ e o segundo tendo como referência básica
mente, apontar os elementos de continui­ a ação social significativa dos indivíduos.
dade que acompanham as grandes revolu- 9. Para os criticas de Morse céticos
quanto às possibilidades da mensagem da
-

çoes.
3. Para uma análise do fundo religioso escolástica nos dias de hoje. talvez valha
por detrás da importante noção de cati· a pena consultar os trabalhos de Henrique

veiro no meio rural brasileiro, ver Velho de Lima Vaz (1986 e 1988, nesse último
(1987). particularmente a conclusão do ensaio sobrl!
ttica e Direito), que tem feito importante
4. Em sua versão secular vulgarizada.
rerlexão sobre o tema. onde inclusive deba­
tais noçõcs (desvio. degeneração etc.) ten­
te com alguns dos autores mais significa·
deram a ser identificadas com uma estrei­
tivos da ciência política contemporânea.
teza ideológica moralista incapaz de abar­
car o conjunto dos comportamentos huma·
nos. Cabe notar. no entanto. que original­
Bibliografia
mente tais noções opunham·se ao mal abso­
luto maniquefsta em contraste com o qual
BELLAH. Robert N. 1975. TIIe broken
reconhecia uma rererência inicial "positiva"
covenarTt: Americmr civil religion in time
(Ricocur, 1969).
of Irial. New York, The Seabury Press.
S.
Curioso e sintomático como esse
CALVINO. João. 1985. As institutos ou
mesmo tipo de mudança desperta no histo·
Tratado da religião cristã, vol. 11. São
riador marxista Christopher Hill (entre
Paulo, Casa Editora Presbiteriana.
outros) admiração, porque "certos espíritos
corajosos começavam a indagar como um HILL. Christopher. 1988. O e/pifO de Deus.
Deus onipotente e beneficente poderia con­ São Paulo. Companhia das Letras.
denar a maior parte dos seres humanos a KIERKEGAARD, Soren Aabye. 1974.
uma eternidade de torturas devido à irens­ Temor e tremor. São Paulo. Abril. Col.
gressão de um remoto antepassado" (HiII. Os Pensadores. XXXI.
1988: 20). Para uma visão menos banal da KITTSTEINER. Heinz-Dieter. 1984. "From
concepção de pecado original c da questão grace to virtue: conceming a change in
do mal. ver Ricoeur (1969). lhe prescntal'ion oC the parable of the
6 . Dentro dessa tradição. Kierkegaard prodigal son in the 18th and early 19th
realiza uma descrição vívida da disti1lçiio centuries", Social Science 111formaliol1,
(difícil de captar de uma perspectiva redu- vol. 23. n. 6.
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 101

LEITES. Edmund._1981. A ('Onsciéncia puri. SKOCPOL, Theda. 1979. States and social
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METZ. J. B. 1969. Teologia do mundo. de Iiloso/ia: problemas de fronteira. São
Lisboa-Rio de Janeiro. Moraes Editores. Paulo, Ed. Loyola.
MOORE J R., Barrington. 1966. Social ori· --
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homem público. São Paulo. Companhia livro Capitalismo outorit6rio e compesinalo
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