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Outros Espelhos�(
Otávio Velho
ser um jogo de espelhos mais perfeito deteve é que parecem estar em jogo
do que nos propõe o próprio Morse. precisamente posições e pré-posições
" como se o espelho não fosse de extremamente díspares no que diz res
Próspero, mas como se cada um, per peito a "teorias da mudança", para
guntando ao seu espelho, se alegrasse utilizar uma expressão já muito con
com a existência de alguém mais lin taminada por conotações valorativas.
do! E nisso é que talvez estejam sen " sobre isso que gostaria de fazer al
do não só generosos, mas o mais au gumas considerações de maneira bre
têntico, Simon, como uma espécie de ve e certamente incompleta.
porta-voz. representando uma ciência Um ponto central para Morse e que
social modernizadora, ansiosa pela orienta a sua comparação é a relação
busca de soluções para o (nosso) país; com a tradição. " a idéia de um pro
e Morse. assumindo plenamente o pa cesso de transformação apoiado numa
peI que lhe cai tão bem de represen dialética da tradição. Nisso ele não
tante do centro decadente, falando está inteiramente sozinho. Após um
para o orbe. mas colocando-se num tempo em que o culto moderno à rup
plano mais abstrato, onde não cabem tura e ao novo não permitia à maio
soluções para um mundo em crise, ria dos analistas pensar a mudança -
mas apenas mensagens, distância e a pelo menos a "grande mudança" -
busca de arranjos cuja precariedade é em outros termos, a evidência dos ra
reconhecida. Ao contrário do que su tos obrigou-os a admitirem possibili
gere Simon. não há em Morse ilusões dades menos drásticas em termos de
assim tão grandes a respeito da pró descontinuidade. Entre nós a obra de
pria (bero América, num mundo acei· Barrington Moare jr. As orige/ls so
to como irremediavelmente caótico. eiais da ditadura e da democracia
No fundo, é o esfarrapado pedindo ( 1966) foi um marco e teve suas res
ajuda ao roto. sonâncias. E isso mesmo se podendo
". aliás. essa diferença de perspec· dizer, como s6i acontecer nas ciências
tiva que por vezes faz com que o diá sociais, que se estava apenas recor
logo corra o risco de se tornar de sur· dando algo que de há muito já era
dos. O esforço analítico e compreensi sabido. Mas fiel ainda ao espírito da
vo de Morse. Simon passa por alto. modernidade triunfante, I feita essa
Vai direto 80S riscos. Preocupa-se importante ressalva (ver, entre outros.
com as implicações das proposições Schwartzman, 1975 e Velho, 1976),
de Morse, de certa forma enfiando a a ruptura continuou a ser privilegia
carapuça que Morse prepara para os da como exemplo mais perfeito e aca
cientistas sociais "prátiços". Simon, bado de mudança sintetizado no mito
por outro lado, pode legitimamente da revolução.
perguntar-se se as colocações de Mor· Os tempos mudam e sem dúvida o
se são assim tão "ingênuas". Afinal. clima de menor otimismo quanto ao
a caracterização que faz do caminho espírito prometéico faz repensar o
íbero e do caminho anglo pressupõe (des)valor da tradição. No confronto
um estado de inércia do segundo que com O privilegiamento da ruptura isso
torna bastante desigual, de fato, a aparece como o espírito da não-mu
comparaçao COm sua vivaz e organIca dança. Mas na verdade essa caracteri
_ • A •
Outros autores, por sua vez, têm re estabelece a relação entre os homens.
pensado a questão da tradição nas Em síntese:
pr6prias "sociedades ocidentais".
Com sua ajuda talvez possamos ca "Boa parte da crítica à sociedade
racterizar essa vàriante da relaçao americana tem-se baseado na acei
com a tradição, que Morse despreza tação da ideologia racionalista.
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 97
luralismo, talvez valha a pena imagi cionista) entre a relação pessoal com Deus
e a ética em Temor e tremor (1974), a per
narmos a ruptura, a dialética da Ira
t'ir do episódio do sacrifício de Isaac por
dição e o retorno às origens como um Abraão (Gen, 22). Já no que diz respeito
estoque de possibilidades (a ser mais especificamente à graça, uma reflexão não
teorizado) aberto a nós todos e com menos vrvida foi proporcionada recente
mente pelo filme dinamnrquês A festa de
binável de variadas formas_ Afinal de
Babette.
contas, algumas possibilidades que
7 . Desse ponto de vista, o uso que Morse
nos parecem particularmente incom· Caz dos Crankfurtianos é apenas parcial. E
patíveis com o mundo moderno tal como na verdade eles fazem a crítica da
razão instrumental em nome da razão, tam·
vez só o sejam na medida em que a
bém nao parece adequado associá-los dire·
própria imagem do mundo moderno tamente ao irracionalismo, como faz Simon.
seja uma construção dos intelectuais.· 8. A sugestão, evidentemente. é que esse
movimento corresponde àquele privilegiado
por Weber do péndulo carisma-racionaliza
Notas ção. Não deixa, aliás, de ser tentador ima
ginar os dois clássicos das ciências sociais,
I. Insisto nessa qualificação (triunfante) Durkheim e Weber como pensadores cujas
I
çoes.
3. Para uma análise do fundo religioso escolástica nos dias de hoje. talvez valha
por detrás da importante noção de cati· a pena consultar os trabalhos de Henrique
veiro no meio rural brasileiro, ver Velho de Lima Vaz (1986 e 1988, nesse último
(1987). particularmente a conclusão do ensaio sobrl!
ttica e Direito), que tem feito importante
4. Em sua versão secular vulgarizada.
rerlexão sobre o tema. onde inclusive deba
tais noçõcs (desvio. degeneração etc.) ten
te com alguns dos autores mais significa·
deram a ser identificadas com uma estrei
tivos da ciência política contemporânea.
teza ideológica moralista incapaz de abar
car o conjunto dos comportamentos huma·
nos. Cabe notar. no entanto. que original
Bibliografia
mente tais noções opunham·se ao mal abso
luto maniquefsta em contraste com o qual
BELLAH. Robert N. 1975. TIIe broken
reconhecia uma rererência inicial "positiva"
covenarTt: Americmr civil religion in time
(Ricocur, 1969).
of Irial. New York, The Seabury Press.
S.
Curioso e sintomático como esse
CALVINO. João. 1985. As institutos ou
mesmo tipo de mudança desperta no histo·
Tratado da religião cristã, vol. 11. São
riador marxista Christopher Hill (entre
Paulo, Casa Editora Presbiteriana.
outros) admiração, porque "certos espíritos
corajosos começavam a indagar como um HILL. Christopher. 1988. O e/pifO de Deus.
Deus onipotente e beneficente poderia con São Paulo. Companhia das Letras.
denar a maior parte dos seres humanos a KIERKEGAARD, Soren Aabye. 1974.
uma eternidade de torturas devido à irens Temor e tremor. São Paulo. Abril. Col.
gressão de um remoto antepassado" (HiII. Os Pensadores. XXXI.
1988: 20). Para uma visão menos banal da KITTSTEINER. Heinz-Dieter. 1984. "From
concepção de pecado original c da questão grace to virtue: conceming a change in
do mal. ver Ricoeur (1969). lhe prescntal'ion oC the parable of the
6 . Dentro dessa tradição. Kierkegaard prodigal son in the 18th and early 19th
realiza uma descrição vívida da disti1lçiio centuries", Social Science 111formaliol1,
(difícil de captar de uma perspectiva redu- vol. 23. n. 6.
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 101
LEITES. Edmund._1981. A ('Onsciéncia puri. SKOCPOL, Theda. 1979. States and social
tona e a sexualidade moderna. São Paulo. revolutions. Cambridge University Press.
Brasiliense. VAZ, Henrique C. de Lima. 1986. Escritos
METZ. J. B. 1969. Teologia do mundo. de Iiloso/ia: problemas de fronteira. São
Lisboa-Rio de Janeiro. Moraes Editores. Paulo, Ed. Loyola.
MOORE J R., Barrington. 1966. Social ori· --
1988. Escritos de filosofia J/: ética e
o
--o 1988. "O espelhO De Morse", Novos Otávio Velho t professor do Programa
Estudos CE9RAP. de Pós-Graduação em Antropologia Social
SENNET, Richard. 1988. O deel/nio do do Museu Nacional da UFRJ e autor do
homem público. São Paulo. Companhia livro Capitalismo outorit6rio e compesinalo
das Letras. (2.' ed. São Paulo, DireI. 1979).
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