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A primeira ediclo de Sociedade de ris- co foi publicada na Alemanha em 1986, logo apés 0 acidente de Chernobyl: ines- peradamente, uma asina nuclear construl- da para fins pacificos eem regime de segu- anga mixime foi pelos aes naquela ci de ucraniana, espalhendo caos © pavor pe la Europa c suspendendo a respiragdo do planeta CO livro de Ulrich Beck chega agora 20 Brasil comprovando sus atualidade€ 0 vi- gor de sua argumentacio. Afinal, ele coin- cide com a reiteragio de um circuito dia bélico integeado por catistrofes, crises € ceagédias que se sucedem em Ambito glo- bal, inquietam ¢ intrigam, Se ineluitmos no circuto a escalada da violéncia banal, do terrorismo e dos crimes hediondos, a sensegdo de mal-estar que impregna a vi- da cotidiana, 0 retorno de doengas que s¢ acreditava controladas, 0 desemprego es- ‘rucaral, a desorientagdo dos jovens em relagio a0 futuro e 0 desequilibrio ecol6- ico, entre tantas coisas, vemo-nos num cea gue eg explo mining Seria esse cortejo de hosroresedificul dades a expressio de acidentes nocmais, de fallas sstémices passives de prevengio oa da "vingance” de ume natureza cansada de superexploragio? Ainda que tais mo- tivos possam ser plausiveis, nie hd como descartar a hipdtese principal que emer ge do presesite livco: passamos a viver em meio a0s efeitos colaterais de uma civili- 2aglo —a modernidade capitalist indus- trial — que seguepitou ¢ sait dos trlhos, voleando-se contra si prépria e escapando, dos controles que visam ordené-le. ‘Mobilizando de modo consistente wma audmirivel rede de conhecimentos ¢infor- mages, lvro de Beck convertense nm lissico comtemporineo. Tornou-se obri- ‘zatério para quem deseja entrar em conta- to coma realidade do mundo atval sem «air aa mesmice das densincias ocas contra a globalizago ov o neoliberalismo ¢ sem Ulrich Beck SOCIEDADE DE RISCO Rumo a uma outra modernidade Tradugio Sebastige Nascimento Tell urna entrevista inéita com o autor editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Leds. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sio Paulo- SP Brasil ‘Tel/Fax (11) 3811-6777 wwoediora34.com.be Copyright © Edivora 34 Lda. edigzo brasileca), 2010 Risikogesellschaft @ Subckamp Verlag, Frankfurt am Main, 1986 ‘Tradugdo © Sebastido Nascimento, 2010 [A FOTOGORA DE QUALQUER FOLIA DESTE LVRO f LEGAL E CORTIGURA UMA APROPRIAGO INDEVIDA DOS DIRTTOS ITELECTUAK PATRIMOSIASS DO AUTOR, ‘A tradugdo desta obca contou com 0 apoio de Goeche-Instivt, ‘que é patrocinado pelo Ministério das Relagies Exteriores da Alemanka. Titulo original: Risikogesellschaft: auf dem Weg i eine andere Moderne Capa, projeo gréfico e editoraguo eletrOnica: Bracher & Malta Produgio Grafica Prepacayio: Luciano Gatti Revisor Mell Brites 1" sigh - 2010, 2° Edigfo - 2011 (1° Reimpressio - 2013) (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Bek Uh 4. rte” Socedade deca rme ur oce Iso g7s.96.-79264800 “Traugo det Regt 1. Stiga. 2: Moder, 3. Soidnée leans, I Nessie, Sebaat Th: Ben, Anti LT, eo. SOCIEDADE DE RISCO A propésito da obra sen 7 Prefacio un u Primeira parte No vurcko cwrtizatoxr0: 05 CONTORNOS DA SOCIEDADE DE RISCO .. 21 1. Sobre a Iégica da distribuigdo de rigueca € da distribuicao de riscos svn 23 2. Teoria politica do conhecimento da seciedade de risco . 61 Segunda parte INDIVIDUALIZAGKO DA DESIGUALDADE SOCIAL: SOBRE A DESTRADICIONALIZAGLO DAS FORMAS DB VIDA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL 105 3, Para além da classe e do estrato so 113 4, Eu sou eu: sobre 0 um semi 0 outro, © um com 0 outro € 0 um contra 9 Ouro na relacio entre os sexos dentro ¢ fore da famili 149 5. Individvalizagao, institucionalizacio e padronizagio das condigdes de vida c dos modelos biograficos 189 6, Despadronizagio do trabalho assalarisdo: sobre o futuro da formacao profissional e do emprego 203 Teroeira perte ‘MODERNIZAGKO EEFLEXIVA: SOBRE A GENFRALIZAGAO DA CIENGIAE DA POLITICA num 229 7. Citncia para além da verdade e do esclarecimento? Reflexividade e erftica do desenvolvimento cientifico-tecnolégico 8. Dissolugdo das fronteiras da politica: sobre a relacio entre controle politico ¢ transformacio somos 238 téenico-econdmica na sociedade de risco 275 Bibliografia eae a 343 Anexo: Diélogo com Ultich Beck, Arthur Bueno .. 361 Indice das matérias se 377 Sobre 0 autor 383 A propésito da obra Pobre em catistrofes histéricas este século na verdade no foi: duas guerras mundiais, Auschwitz, Nagasaki, logo Harrisburg e Bhopal, ¢ agora Chemobyl. Iso exige precaugio na escolha des palavras e aguca 0 olhar para singularidades historicas. Todo o sofrimento, toda a miséria eroda a violéncia que seres homanos infligiram a seres humanos eram até ento reservados & categoria dos “outros” — judens, negros, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas ete, De um lado, havia cercas, campos, distritos, blocos mili res , de outro, as prOprias quatro paredes — fronteiras reais ¢ simbélicas, atras das quais aqueles que aparentemente néo eam afetados podiam se re- colher. Isso tudo continua a existir e, 20 mesmo tempo, desde Chernobyl, deixou de existir. £ 0 fim dos “outros”, 0 fim de todas as nossas bem culti- vadas possibilidades de distanciamento, algo que se tornou palpavel com a contaminacao nuclear. A miséria pode ser segregada, mas nao os perigos da era nuclear. B ai reside a novidade de sue forca cultural ¢ politica, Sua vio- Iacia ¢ a violéncia do perigo, que suprime todas as zones de protesao € todas as diferenciagées da modernidade, Essa dinamica que suprime as fronteizas do perigo nfo depende do grau de contaminagio ou da disputa em tomno de seus efeitos, Muito pelo contrs- to, todas as medigdesjé so feitas sob a guilhotina da consternagio generali- zada, A admissio de uma contaminagio nuclear perigosa equivale & admiss#0 da inexisténcia de qualquer saida possivd para regides, paises ou continen- tes intciros. Sobrevivencia e (te)conhecimento do perigo se contradizem. F. esse fato que torna a disputa em torno de medigdes, valores maximos acei- taveis e efeitos de curto e longo prazo, algo candente para a pr6pria existén- cia. S6 precisamos aos perguntar uma tinica vez.0 que é que de fato poderia ter sido feito diferente se houvesse ocorrido uma contaminagio do ar, da gua, da fauna e dos seres humanos que alcangasse, também segundo pa- rametros oficiais, uma proporcio acentuadamente perigosa. Nesse ¢880, a vida — respicar, comer, beber — seria ntecrompida ou restrita por uma ‘A peopésite da obra 7 medida oficial? O gue acontece com a populagio de um continente inteiro que, em diferentes graus (de acordo com variveis *fatalistas” como vento, ‘condigScs atmosféticas, distancia em relacZo a0 local do acidente ete.) éir- seversivelmente contaminada? Podem (grupos de) paises ser mantidos em ‘quarentena? Desencadeia-se um caos interno? Ou enti, mesmo num caso desses, tudo acabatia precisando acontecer como aconteceu em Chernobyl? Perguntas como essas revelam o tipo de suscetibilidade objetiva na qual 0 Gingnostco do pega coined com senacto de ineutveldesamparo dian tedele. Na modemidade desenvolvida, que surgiu para anular as limicagdes impostas pelo nascimento ¢ para oferecer 4s pessoas uma posigio na estru- ‘tra social em razo de suas proprias escolhas e esforgos, emerge um novo tipo de destino “adscrito” em funcao do perigo, do qual nenhum esforgo permite escapar. Este se assemelha mais ao destino estamental da Idade Mé- dia que as posigaes de classe do século XIX. Apesar disso, no se vé nele a desigualdade dos estamentos (nem grupos marginais, nem diferenga entre campo e cidade ou de origem nacional ou étnica, e por ai afora). Diferente ddos estamentos ou das classes, ele nao se encontra soba égide da necessida- de, e sim sob 0 signo do miedo; cle nao é um “residuo tradicional”, mas um roduto da modernidade, particularmente em seu estigio de desenvelvimento mais avangado. Usinas nucteares — o auge das forges produtivas ¢ criativas humanas — converteram-se também, desde Chernobyl, em simbolos de uma ‘moderna Idade Média do perigo. Flas designam ameacas que tcansformam © individualismo moderno, jé levado por sua vez a0 limite, em seu mais ex- teemo contririo, Os reflexos de uma outra época ainda esto muito vivos: como poderei eu proteger a mim mesmo ¢ aos meus? E consellios destinados a esfera pri- vada, que ja nio existe, vo de vento em popa. Mas, na verdade, todos a da vivem sob 0 choque antropolégico de uma dependéncia “natural” das formas de vida civilizatérias, uma dependéncia experimentada em meio & ameaca e que suspendet todos os nossos conceitos de “emancipacéo” e “vida prépria”, de nacionalidade, espaco e tempo. Longe daqui, no oeste da Unio Soviética, ou seja, de agora em diante, em nosso entorno préximo, aconte- cou um aciderite — nada deliberado ou agressivo, na verdade algo que de fato deveria ter sido evitado, mas que, por sew carter excepeional, também & normal, ou mais, é humauo mesmo, Nao é a falha que produe a catéstrofe, ‘mas os sistemas que tcansformam a humanidade do erro em inconcebiveis forgas destrutivas. Para a avaliagio dos perigos, todes dependem de inseru- -mentos de medicio, de teorias ¢, sobretudo: de sen desconhecimento— incla- ’ Sociedade de etco sive os especialistas que ainda ha pouco haviam anunciado 0 império de 10 mit anos da seguranga probabilistica atémica ¢ que agora enfatizam, com uma seguranca renovada de tirae 0 fOlego, que o perigo jamais seria agudo. Em tudo isso, destaca-se 0 peculiar amdlgama de natureza e sociedade por meio do qual © perigo passa por cima de tudo 0 que the podesia opor resistencia, De saida, 0 hibrido da “mavemn arémica” — essa forca da cviliza- do invertida e convertida em forga da natureza, na qual histéria ¢ fendme- no atmosférico entram numa comunho tio paradoxal quanto avassaladora. ‘Todo o mundo conectado eletronicamente acompanha estazrecido seu cur so. A Sesperanga residual” por um vert “favordvel” (os pobres suecos!) revela entio, mais do que muitas palavras, a inteira medida do desamparo ‘de um mundo altamente civilizado, que havia erguido muros e arame farpa- do, mobilizado exército e policia, tudo isso para proteger suas fronteiras. Una vieada “desfavoravel” do vento, ¢ cinda por cima chuva — que azar! — ed se revela a fuilidade de tentar proteger a sociedade da natureza con- taminade e jogar 0 perigo nuclear para o “outro” do “meio ambiente”, Essa experiéncia, que por um instante chegou a esmagar nossa forma de vida atual, reflete a impoténcia do sistema industrial mandial diante da “natuteza” industrialmente integrada ¢ contaminada. A oposigdo entre na- tureza e sociedade € uma construc do século XIX, que serve ao duplo pro- pésito de controlar ¢ ignorar a natureza. A natuceza foi subjugada ¢ explo- rada no final do século XX e, assim, traniformada de fendmeno externo em interno, de fen6meno predererminado en, fabricado. Ac longo de sua trans- formagao tecnolégico-industrial e de sua comercializacao global, a natureza foi absorvida pelo sistema industrial, Dessa forma, ela se converteu, a0 mes- ‘mo tempo, em pré-requisito indispensavel do modo de vida 1o sistema in- dustrial. Dependéncia do consumo ¢ do mercado agora também significam ‘um novo tipo de dependéncia da “natureza”, ¢ essa dependéncia imanente dda “natureza” em relacZo ao sistema mercantile converte, no ¢ com 0 sis- tema mercantil, em lei do modo de vida na civilizagio industrial. Contra as ameagas da natureza externa, aprendemos a construti caba- nas e-a acumular conhecimentos. Diante das ameagas da segunda natureza, absorvida no sistema industrial, vemo-nos praticamente indefesos. Perigos vyém a reboque do consumo cotidiano. Eles viajam com o vento e a agua, escondem-se por toda a parte e, junto com o que hd de mais indispensivel & vida — 0 ar, a comida, a roupe, 0s objetos domésticos —, atravessam todas as barreiras altamente controladas de proteco da modernidade. Quando, depois do acidente, agies de defesa e prevengio jé nao cabem, resta (aparen- ‘emente) uma finica atividades desmentir, um apaziguamento que gera medo ‘A propésito da obrs ‘e que, associado ao grau de suscetibilidade generalizada condenada a pass vidade, alimenta sua agressividade. Bssa atividade residual, diante do risco residual realmente existente, encontra na inconcebibilidade € impercepti- bilidade do perigo seus ciimplices mais eficazes. © reverso da natureza socializada € « socializagao dos danos & nature- ‘za, sua transformacéo em ameagas sociais, econdmicas e politicas sistémticas da sociedade mundial altamente industeializada. Na globalidade da conce- minagao e nas cadeias mundiais de alimentos ¢ produtos, as ameagas a vida na cultura industrial passam por mesamorfoses sociais do perigos regras da ‘vida cotidiana so viradas de cabega para baixo. Mercados colapsam. Pre- ‘valece a caréncia em meio & abundancia. Caudais de demandas so desenca- deados. Sistemas jucidicos ndo dao conta das situagdes de fato. As questées sais prementes provocam desdém, Cuidados médicos falham, Edificios de racionalidade cientifica ruem. Governos tombam. Eteitores indecisos fogem E tudo isso sent que a suscetibilidade das pessoas tenha qualquer coisa que ver com suas aces, ou suas ofensas com suas realizacées, e a0 mesmo tem- po em que a realidade segue inalterada diante de nossos sentidos. Esse é 0 fim do século XIX, 0 fim da sociedade industrial classica, com suas ideias de soberania do Estado Nacional, automatismo do progresso, classes, principio do desempenho, natureza, realidade, conhecimento cientifico exc. O discurso da sociedade (industrial) de risco, também e principalmen- te nesse sentido — enunciado ha cerca de um ano contca muita resisténcia de vozes internas ¢ externas —, manteve wm amargo sabor de verdade, Mui- 0 do que se imps por escrito, de modo ainda argumentativo — a indis- cemibilidade dos perigos, sua dependéncia do saber, sua supranacionalida- de, a “desapropriagio ecolégica”, a mudanca repentina da normalidade em absurdo etc. —~, pode ser lido apés Chernobyl como uma trivial deserigao do presente. ‘Ab, pudesse ter continuado a ser a evocagio de um futuro a ser evitado! Ulich Beck Bamberg, meio de 1986 10 Sociedade de cisco Prefacio (© tema deste livro € 0 discreto prefixo “p6s”, Ble &a palavracchave de nossa época. Tudo é “pés”. Ao “pés-industrialismo” jé nos acostumamos hi algum tempo. Ainda lhe associamos alguns contetidos. Com a “pés-moder- nidade”, tudo jd comeca a ficar mais nebuloso, Na penuinbra conceitual do pés-esclarecimento, todos os gatos s4o perdos, “Pos” éa senha para a deso- rientagio que se deixa levar pela moda. Hla aponta para um além que no é capaz de nomear, enquanto, nos contedidos, que simulteneamente nomeia € nega, mantém-se na rigidez do que jé € conhecido, Passado mais “pds” — ‘essa € a roveita bisica com a qual confrontamos, em verborragica ¢ obtusa confusio, uma realidade que parece sair dos tilbos. Este livro é uma tentativa de seguir o rastro da patticula “p68” (ou, em seu lugar, “avangado”, “tardio”, “ultca”), le & movido pelo esforgo de com- ppreender 0s contetidos que o desenvolvimento histérico da modernidade nas ‘iltimas dvas, es décadas — especialmente na Alemanha Ocidental —, atri- buiu a essa particu. Isso somente poders ser feito num daro confronto com as velhas teorias e habitos de pensamento que, com o acréscimo da particula “pés”, tiveram sua validade profongada, Uma vez que estes velhos hébitos do se aninhain somente nos outros, masem mim também, por vezes ressoa liveo adentro um ruido de lata, cuja intensidade também se deve ao fato de {que tive que pr para corcer as objegSes que fago 2 mim mesmo. Algumas passagens poderio, assim, acabar soande estridentes, precipitadas ou exces- sivamente ir6nicas. A usual ponderagio académica, contudo, nao bastaria para escapar ao campo de gravidade do pensamento corrente. ‘Os argumentos aqui apresentados nio sfo necessariamente representa- tivos, como exigiriam as regras da pesquisa social empirica. Eles se pautam por uma outra pretensio: a despeito de um passado ainda vigente, tornar vistvel o futuro que jé se anuncia no presente, Apoiando-se numa compara- ‘gdo hist6rica, pode-se dizer que foram escritos com a mesma perspective de tum observador do cenétio social no inicio do século XIX, que buscasse, por Prelstio n ‘rds das fachadas da era agricola feudal e decadente, os tragos que jé anun- ciavam uma era industrial ainda inédita. Em tempos de mudanga estrucural, «a representatividade dos argumentos indicaria uma alianca com o passadoe acabaria obstruindo o olhar voltado para um futuro que jd comeca a despon- tar no horizonte do presente, Nesse sentido, este liveo contém sem pouco de teoria social prospectiva, empiricamente orientada — mas sem todas as sal- vaguardas metodolégicas. Ele se apoia na avaliagdo de que somos testemunhas oculares — sujeitos € objetos — de uma ruptura no interior da modernidade, a qual se destaca dos contoros da sociedade industrial cléssica ¢ assume uma nova forma — aqui denominada “sociedade (industrial) de risco”. Isso exige um dificil equilfbrio entre as contradigées de continuidade e cesura na modernidade, {que se refletem mais uma vez nas oposigdes entre modernidade e sociedade industrial e entre sociedade industtial e sociedade de risco. O fato de que esas diferenciagBes de época ainda hoje continuam ocotrendo na realidade é o que pretendo mostrar neste livro. Sobre como se deve diferencié-las detalhada- mente € algo que veremos a partir de propostas de desenvolvimento social, Antes que qualquer clareza a respeito disso possa ser obtida, é preciso que uum pouco mais do fururo se torne visivel. ‘A incerteza teérica corresponde a incerteza pratica. Aqueles que se agar- ram ao esclarecimento, tal como éle se apresenta em suas premissas do século XIX, com o intuito de contrapor-se a0 assalto da “irracionalidade do espit to do tempo”, sio peremptoriamente contrariados, da mesma forma como aqueles que querem deixar que todo o projeto da modernidade, bem como as anomalias que se acumulam, escoe rio da histéria abaixo, Nada resta a actescentar ao panorama assustador, suficientemente di- fundido por todos os setores do mercado de opinides, de uma civlizacéo que ameaga a si mesma; menos ainda as manifestagdes de uma Nova Perplexi dade, que se extraviaram das dicotomias ordenadoras de um mundo do i dustrialismo ainda “intacto” mesmo em suas contradigdes. © presente livro trata do segundo passo, daquele que se segue 2 isso. Ele eleva esse pr6prio estado de coisas a objeto de explicagio. Sua questo é como é possivel en tender e compreender, em um pensamento sociologicamente informado € inspirado, esse atordoamento do espirito do tempo, 0 qual seria cinico ne- Bar sob o pretexto de critica ideolégica e, a0 mesmo tempo, perigoso accitar sem reservas. A ideia-mestra tedrica, a ser elaborada com esse propésito, pode ser mais facilmente exposta em uma analogia hist6rica: assim como no sé- culo XIX a modernizagio dissolven a esclerosada sociedade agrdria esta- mental e, ao depurd-la, extraiy a imagem estrutural da sociedade industrial, 2 Sociedade de rsce hoje a modernizagto dissolve os contomas da sociedade industrial e, ta con tinuidade da modernidade, surge uma oxéra configuracao social. ‘Os limites dessa analogia apontam simultaneamente para as peculiari- dades dessa perspectiva. No século XTX, a modernizagio se consumou contra ‘o pano de fundo de seu contrério: um mundo tradicional e uma natureza que cabia conhecer e controlar. Hoje, na virada do século XXI, a modernizagao consumia e perdeu seu contrario, enconttando-se afinal a si mesma em meio 4 premissas e principios funcionais socioindustriais. A modemnizagéo no ho- rizonte empirico da pré-modernidade & suplantada pelas situagbes problemé- ticas da modernizaao autorreferencial. Se no século XIX foram os privilé- gios estamentais ¢ as imagens religiosas do mando que passacam por um desencantamento, hoje é 0 entendimento cientifico ¢tecnol6gico da sociedade industrial classica que passa pelo mesmo processo — as formas de vida e de trabalho na familia nuclear na profissio, os papéis-modelo de homens © mulheres ete. A modernizagao nos trilhos da sociedade industrial é substitus- da por uma modernizasao das premissas da sociedade industrial, que ndo estava prevista em qualquer dos manuais te6ricos ou livros de receitas polt- ticas do século XIX. E essa iminente oposigao entre modernidade ¢ socieda- de industcal (em todas as suas variantesi que atualmente nos confunde em nosso sistema de coordenadas, a.nés que estsvamos até a medula acostuma- dos a conceber a modernidade nas categorias da sociedade industrial. ssa diferenciagdo entre moderniza¢io da tradicio e modernizagio da sociedade industrial, ou dito de outra forma: entre modernizacio simples € reflexiva, ainda ha de nos ocupar longamente. Nas paginas seguintes, ela serd abordada por meio da considerago de situagoes concretas. Apesar de ainda ser completamente imprevisivel quais “sstrelas fixes” do pensamento so- cioindustral serdo extintas 20 longo desta recém-iniciada racionalizagio de segundo grat, ja se pode supor com algum fundamento que isso vale inelu- sive para “leis” aparentemente péteeas, como a da diferenciagéo funcional 00 a da produgéo em massa baseada na estrutura fabri. Duas consequéncias destacam claremente 0 carater inslito dessa pers- pectiva. Ela assevera o que atf ent&o parecia impensavel: que a sociedade industrial, justamente em sua concretizi¢Zo, ou seja, nos pasos leves da normalidade, se despede do paleo da bistria, saindo pelos bastidores dos ‘efeitos secundirios —e nio do modo como até hoje havia sido previsto nos lieros ilusteados da teoria social: com um estrondo politico (revolugio ov cleigbes democréticas). E ela vai mais longe ao afirmar que 0 cenario “an- timodernista” que atualmente inquieta 0 mundo — critica da ciéncia, da tecnologia, do progresso, novos movimestos sociais — niio contradiz a mo~ Preficio . B dernidade, mas representa a expressio de seu desenvolvimento ulterior, pata aléma do projeto da sociedade industrial. (© contetido geral da modecnidade contrapde-se a suas incrustagées € redugdes no projeto da sociedade industrial. O acesso a essa visio é bloquea- do por um mizo renitente, até hoje pouco conhecido, a0 qual o pensamento social no século XIX se via fundamentalmente preso ¢ que ainda continua a langar suas sombras sobre o final do século XX: 0 mito de que a sociedade industrial desenvolvida, com sua articnlagao esquemética de trabalho e vida, seus setores produtivos, sen pensamento em categorias de crescimento eco- némico, sua compreensio cientifica e vecnolégica e suas formas democrati- cas, constitui uma sociedade inteiramente moderna, 0 épice da modernidade, para além do que nada de razodvel existe que possa sequer set mencionado. Esse’ mito tem miuitas manifestagies. Entre suas modalidades mais eficazes, encontra-se 0 despropésito a respeito do fim da histéria social. Em varian- tes otimistas ¢ pessimistas, ele fascina justamente o pensamento da época em {que o perperuado sistema de inovag4o comeca a se renovar gragas & din. a liberada nele mesmo, f por isso que sequer podemos conceber a possibi lidade de uma transformacdo da configuracio social na modernidade, pois 6s teérieos do capitalismo socioindustrial converteram essa configucacéo histérica da modernidade, que em aspectos fundamentais segue vinculada a seu oposto no século XIX, emt algo aprioristico, Na pergunta, tributéria de Kant, pelas condicées de possibilidade de sociedades modernas, os histori- ccamente contingentes contornos, linhas de conflitoe prinefpios funcionais do capitalismo industrial foram elevados a condigées necessarias da moderni- dade, A excentricidade com que se assume até hoje na pesquisa em ciéncias sociais que na sociedade industrial tudo se transforma — familia, profissio, {abrica, classe, trabalho assalaciado, ciéncia —e que 20 mesmo tempo nada de essencial muda — familia, profissio, fabriea, classe, trabalhe assalatiado, ciéncia — € s6 mais uma evidéncia disso, Mais urgente do que nunca, precisamos de esquemas de interpretagéo {que nos fagam ~ sem nos langar equivocamente & eterna ¢ velha novidade, repleta de saudades ¢ bem relacionada com as discretas cdmaras do tesouro da tradigio— repensar a novidade que nos atropela e que nos permita viver € atuar com cla. Seguir as pistas de novos conceitos, que jé se mostram em meio aos cacos dos antigos, é empreendimento dificil. Para uns, soa a “mu danga sistemica” ¢ cai na érea turva de competéacia dos servigos de inteli- séncia, Outros se encapsularam em convicedes irrevogaveis e, diante de uma fidelidade aos principios sectérios sustentada mesmo contra 0 impulso mais {ntimo — e ela pode ter muitos nomes: marxismo, feminismo, pensamento 4 Sociedade de riseo quantitativo, especializagio —, comegarr agora a se bater contra tudo agui- lo que lembra o cheito da dissidéncia extraviada. ‘Apesar disso ou por isso mesmo: 0 mundo nao esta acabando, pelo ‘menos no porque © mundo do século XIX esti acabando. Apesar de que isso também seja um exagero. E sabido que o mundo social do século XIX jamais foi muito estavel. Muitas vezes ele rain — em pensamento. Na verdade, cle foi enterrado antes mesmo de ter chegado a nascer. Vivenciamos atual- ‘mente as visbes de Nierasche ow os dramas conjugais e familiares da jé “clés- sica” (0 que quer dizer: velha) modernidade literétia, outrora encenados no paleo, sendo na verdade-vividos (mais ou menos) representativamente na cozinha e no quarto de dormir. Ou seja, 0 que hé muito tempo foi previsto acontece. E, apesar de tudo, acontece com um atraso de — contando nos

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