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THIAGO RODRIGUES PEREIRA

3 DECISÕES DO
STF ANALISADAS
FILOSOFICAMENTE
COMO A FILOSOFIA PODE AUXILIAR NA
TOMADA DE DECISÃO JURÍDICA  
THIAGO RODRIGUES PEREIRA

3 DECISÕES DO
STF ANALISADAS
FILOSOFICAMENTE
COMO A FILOSOFIA PODE AUXILIAR NA
TOMADA DE DECISÃO JURÍDICA  

1ª Edição

Edição do Autor
Niterói
2018
Conteúdo

3 Apresentação

A Importância de Tomás de Aquino na


5 Fundamentação Filosófica do Princípio da
Insignificância 

18 A ADPF 54 e a anencefalia – breves


considerações filosóficas 

As conduções Coercitivas e o Medo

32 do Poder Judiciário no Brasil – como


a filosofia pode contribuir para
proteção do cidadão

49 Bibliografia

51 Informações

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Apresentação

Quando um dos maiores jus filósofos do Direito, Hans Kelsen, escreveu sua mais

importante obra, Teoria Pura do Direito, em 1934, o Direito alcançou a tão esperada

autonomia científica, passando a possuir um objeto científico plenamente

identificável (1) .

Com isso, parecia que todos os problemas teóricos do Direito seriam finalmente

resolvidos.

Assim, Kelsen, pensando a partir de uma lógica kantiana da Crítica da Razão Pura,

pretende criar uma metodologia que pudesse “blindar” a ciência do Direito das

influências da moralidade, da sociologia, da psicologia, da antropologia, dentre

outras, e principalmente da filosofia. 

Cumpre alertar sempre que Kelsen escreveu sobre uma “teoria”, e o problema da

sua teoria, como de todas as faces do positivismo jurídico, é que na prática, se

mostrou nociva e extremamente perigosa.

(1) O Direito era acusado de ser mera técnica e não ciência por não possuir um objeto científico até Hans Kelsen afirmar que seria
a lei (em sentido formal), ou seja, as normas postas pelas autoridades competentes, ficando de fora fatores meta jurídicos como
os fatores sociais, econômicos, morais, políticos, etc., o objeto científico do Direito
Contudo, após a II Guerra Mundial, verificou-se a impossibilidade prática da

teoria do positivismo jurídico, pois se mostrou equivocado excluir os demais

ramos científicos do Direito, pois, diferente do que pensou Kelsen, o Direito não

é puro, pelo contrário, ele é mestiço. Essa relação intrínseca com os demais

ramos científicos é uma marca indelével de sua característica.

Partindo da premissa do erro teórico kelseniano, que acabou se mostrando mais

grave ainda na prática, a presente obra visa analisar decisões do Supremo

Tribunal Federal – STF apresentando a influencia e necessidade da filosofia para

compreensão de como a corte máxima brasileira decidiu o caso concreto, nem

sempre acertadamente, data máxima vênia, procurando encontras as bases

filosóficas as quais as decisões ora analisadas estão assentadas.

Assim, serão abordadas algumas teorias filosóficas utilizadas nas decisões

analisadas ou que deveriam ter sido utilizadas para que a questão submetida ao

excelso pretório fosse analisada e decidida da forma constitucionalmente correta.


CAPÍTULO 1

A IMPORTÂNCIA

DE TOMÁS DE

AQUINO NA

FUNDAMENTAÇÃO

FILOSÓFICA DO

PRINCÍPIO DA

INSIGNIFICÂNCIA 
CAPÍTULO I

A Importância de Tomás de Aquino


na Fundamentação Filosófica do
Princípio da Insignificância 

Introdução

O Direito, diferente do pensado por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito,

não é uma ciência que consiga se fechar em si mesma, pelo contrário, por ser uma

ciência social aplicada, talvez seja das mais “mestiças” ciências existentes.

O texto constitucional deve refletir os valores consagrados naquela sociedade,

tanto internamente quanto em sua relação com outros Estados e organismos

internacionais, sendo principalmente um catálogo de direitos básicos e princípios a

nortear não apenas a relação entre indivíduos e Estado, como também entre os

próprios indivíduos e em todas as ações estatais, seja de qual ordem for.

Uma constituição é tão importante que deve não apenas refletir o pensamento

momentâneo de uma sociedade, mas inclusive defender minorias contra maiorias

passageiras, no chamado poder contra-majoritário.

Para fazer valer o sentido correto do texto constitucional, deve o Tribunal

Constitucional, que aqui no Brasil fica a cargo do Supremo Tribunal Federal – STF, 

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velar para que seja respeitada à constituição e principalmente os valores contidos

naquele texto.

Entretanto, tanto o texto constitucional quanto os infraconstitucionais, não

derivam simplesmente do intelecto do legislador, mas são frutos de lutas e

conquistas sociais.

A filosofia muito contribuiu e contribui para a evolução do pensamento humano

como um todo, inclusive do pensamento jurídico. No presente estudo, irei

brevemente demonstrar que apenas o Direito possuiu o princípio da insignificância

(ou da bagatela) em razão da influência do pensamento de Tomás de Aquino.

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I – Tomas de Aquino é a oculta compensatio

Tomás de Aquino é considerado um dos maiores filósofos do medievo, tendo

escrito sua principal obra, a Suma Teológica, uma obra sofisticada, que dependendo

da edição chega a mais de 8 volumes, com mais de 500 laudas cada. Além do

próprio conteúdo de sua obra, ela terá grande importância, pois foi escrita em uma

época em que o pensamento dominante da Igreja tinha como base o entendimento

de Platão por Agostinho (2) . 

Na alta  e em boa parte da baixa idade média, a leitura dos clássicos gregos e

romanos se tornou heresia, podendo ser severamente punido quem desobedecesse

tal ordem. Os clássicos são banidos da Europa, mas encontraram refúgio no mundo

árabe, que traduziram para o árabe e guardaram com o desvelo merecido.

No meio da alta idade média, iniciava-se a invasão moura (árabes oriundos do norte

da África) na península ibérica, e com essa invasão, além dos costumes, cultura e

afins, as obras clássicas, até então proibidas, regressaram à Europa.

Após a tradução especialmente do grego para o árabe, filósofos árabes como

Avicena, Al Farabi, dentre outros, traduziram a obra quase completa de Aristóteles

do árabe para o latim, e será essa versão em latim que Tomás de Aquino terá

contato. Esse contato com a obra aristotélica marcará profundamente Aquino, que

o adotará como marco teórico da sua obra Suma Teológica.

(2) Tanto Agostinho como Tomás de Aquino foram de grande importância para o pensamento medieval, especialmente para a
Igreja Católica, vindo a serem canonizados após suas mortes.

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Entretanto, o que poderia ser apenas uma opção metodológica, se transformou em

uma grande heresia, fruto de muita coragem por parte de Aquino, pois como

mencionado, a única visão permitia na época em termos filosóficos seria a visão

agostiniana de Platão. E nada mais!

Então, o ato de ler Aristóteles e utilizá-lo como seu marco teórico, mostrou, além

da profunda erudição, a enorme coragem de Aquino. Se no início sua obra foi

recebida com enorme desconfiança por parte de uns, com desprezo por outros

(principalmente os agostinianos), foi recebida com entusiasmo e encanto por

outros, marcando de forma indelével a própria história da humanidade, pois

provocou talvez o primeiro grande conflito ideológico dentro da  Igreja, após a

visão platônico-agostiniana se tornar hegemônica.

A importância de Aquino se demonstra na celeridade de sua canonização, onde em

menos de 100 anos se tornaria um dos santos da Igreja Católica.

Na Suma Teológica, Aquino não apenas se detém em elucubrações teóricas ou

teológicas, mas também com uma vida mais prática, incluindo o Direito e sua

relação com os homens e com as sagradas escrituras.

Na presente pesquisa, o que mais interessa será demonstrar a influência de Aquino

no surgimento do princípio da insignificância ou bagatela.

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No artigo 7 do livro VI da sua Suma Teológica, Aquino irá desenvolver seu

pensamento sobre licitude ou ilicitude de roubar por necessidade. Aquino (2013, v.

VI, p165) começa sua escrita afirmando, sobre as penitências, que estaria escrito em

um cânon : "Se alguém, impelido pela fome e pela nudez, furtar comida, roupa ou

gado, fará penitência por três semanas". A conclusão seria, portanto, óbvia a

princípio, pois apenas há penitência em relação a um ato errado. Se há penitência

pelo ato de roubar, é porque tal ato é errado, tenha sido praticado em qualquer

circunstância.

Portanto, Aquino vai mencionar que, a princípio, uma coisa má em si não poderia

vir a se tornar boa apenas por ter um fim bom. Portanto, o furto chamado famélico

seria de qualquer forma um ato errado. Entretanto, Aquino irá demonstrar que tal

ideia inicial estaria equivocada.

Para isso irá recorrer a sua divisão das leis. Entende Aquino que existem 4 leis. A lei

eterna, que seria a razão ou plano da sabedoria de Deus, enquanto Ele dirige todos

os atos e movimentos de todas as criaturas. A lei divina é causa de todas as demais

leis, e todos os seres, racionais ou irracionais, a ela estarão submetidos. Entretanto,

apenas Deus tem acesso a essa lei. 

Existe também as leis naturais. A lei natural será a participação da lei divina no ser

racional, o ser humano. Apesar de serem em raiz oriunda da mesma força criadora,

Deus, se diferenciam, pois a natural diz respeito apenas aos aspectos morais dos

seres humanos.

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Aquino também apresenta uma outra espécie de lei, a lei humana, que é a lei feita

pelo homem para os casos mais particulares da vida do ser humano na Terra, mas

sempre devendo estar de acordo com as leis naturais (já que o ser humano não tem

acesso a lei eterna, por ser exclusiva do intelecto de Deus. Apesar do homem

possuir uma centelha desse intelecto, não possuiu a sua plenitude).

Por fim, existem as leis reveladas ou divino-positiva, que seriam as leis divinas que,

por Deus entender ser necessário dirimir qualquer dúvida possível, revelou algumas

leis naturais para serem escritas por homens escolhidos por Deus. Tanto o Antigo

como o Novo Testamento são exemplos das leis reveladas, sendo o Decálogo de

Moisés o melhor exemplo.

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Assim, Aquino vai afirmar que a subsistência é um direito natural do ser humano, e

quando tal direito é negado a um indivíduo e em razão disso ele pratica um roubo,

tal roubo não configuraria um crime ou ato errado, pois ele o está fazendo para dar

concretude a uma lei natural que está sendo vilipendiada por uma lei humana.

Portanto, Aquino (2013, v. VI, p166) irá falar que  

“se a necessidade é de tal modo evidente e urgente, que

seja manifesto que se deva obviar à instante necessidade

com os bens ao nosso alcance, quando por exemplo é

iminente o perigo para a pessoa e não se pode salvá-la de

outro modo, então alguém pode licitamente satisfazer à

própria necessidade utilizando o bem de outrem, dele se

apoderando manifesta ou ocultamente. E esse ato, em sua

própria natureza, não é furto ou rapina”.

Se encontra em Aquino portanto a primeira defesa real do princípio da

insignificância ou da bagatela, hoje consagrado em alguns ordenamentos mas

basicamente em toda a jurisprudência ocidental.

II – A Aplicação da oculta compensatio no STF

O STF vem aplicando o princípio da insignificância ou da bagatela, de forte

influência de Aquino, conforme já mencionado, em várias decisões.

O Excelso Pretório aplica o referido princípio normalmente com o objetivo de

salvaguardar o direito de locomoção do indivíduo que acaba prezo por furtos ou

roubos que se enquadrem na ideia defendida por Aquino. 

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Para realizar isso, até pelo princípio da inércia que norteia o Poder Judiciário como

regra geral, o STF acaba por apenas julgar tais casos, via de regra, em forma de

recurso em sede de habeas corpus.

O habeas corpus é previsto no artigo 5º, inciso LXVIII da CRFB/88, e serve para

devolver a liberdade de locomoção a um indivíduo que a perdeu por ato ilegal do

Poder Público, assim disposto: “conceder ‑se ‑á habeas corpus sempre que alguém

sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de

locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

 
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO.

TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A

aplicação do princípio da insignificância há de ser

criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a

beneficiar as classes subalternas, conduzindo à

atipicidade da conduta de quem comete delito movido

por razões análogas às que toma São Tomás de

Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta

compensatio. A conduta do paciente não excede esse

modelo. 3. O paciente tentou subtrair de um

estabelecimento comercial mercadorias de valores

inexpressivos. O direito penal não deve se ocupar de

condutas que não causem lesão significativa a bens

jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao 

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titular do bem tutelado, bem assim à integridade da

ordem social. Ordem deferida.(HC97189, Rel. Min.

Ellen Gracie, julgamento em 09.06.2009, Segunda

Turma, DJE de 12.08.2009)

A aplicação pela Min. Ellen Gracie da teoria oculta compensatio

de Aquino obedeceu

exatamente a ideia original contida na Suma Teológica e supramencionada, ou seja,

para os casos de pessoas com condições sócio-econômicas de miséria. Entretanto,

essa ideia foi ampliada, amparando também furtos que, não teriam relação com a

subsistência do ser humano, mas que, pelo seu valor ínfimo, aplicou-se o mesmo

princípio.

  “FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA

INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA

COMPENSATIO

A aplicação do princípio da insignificância há de ser

criteriosa e casuística. Princípio que se presta a

beneficiar as classes subalternas, conduzindo à

atipicidade da conduta de quem comete delito

movido por razões análogas às que adota São Tomás

de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta

compensatio

. A conduta do paciente não excede esse

modelo. O paciente se apropriou de um violão cujo

valor restou estimado em R$ 90,00. 

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O direito penal não deve se ocupar de condutas que

não causem lesão significativa a bens jurídicos

relevantes ou prejuízos importantes ao titular do bem

tutelado, bem assim à integridade da ordem social.”

(HC 94.770, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, julgamento

em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 12-12-2008.)

Assim, muitos aplicam e defendem o princípio da insignificância ou da bagatela sem

se darem conta que tal princípio tem seu fundamento na filosofia, no pensamento

de Tomas de Aquino.

Além disso, a ideia defendida por Aquino da oculta compensatio se mostra em total

consonância com os ditames constitucionais atuais pois a atual carta constitucional

brasileira tem como um dos seus fundamentos, contido no inciso III do artigo 1º

justamente a dignidade da pessoa humana. Indo mais além, o texto constitucional é

explícito quando afirma que são objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil, contidos no artigo 3º e seus incisos: construir uma sociedade livre, justa e

solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem

de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras

formas de discriminação

Portanto, aplicar tal preceito defendido por Tomás de Aquino é tanto moral como

absolutamente constitucional, sendo um corolário dos direitos humanos e uma das

faces da dignidade da pessoa humana. 

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III – Considerações Finais

Conforme já mencionado, o Direito não é uma ilha isolada dos demais ramos do

saber humano e muito menos da sociedade.

O Direito influencia, mas sem dúvida é muito mais influenciado. No presente

estudo, apresentou-se brevemente que o princípio da insignificância, muito

utilizado no direito penal, encontra suas raízes na filosofia, mais precisamente

dentro do pensamento de Tomás de Aquino.

Pretendeu-se demonstrar como a filosofia pode, e ajuda, o jurista não apenas a

entender uma lei ou um princípio, mas a encontrar as bases filosóficas as quais, tal

preceitos legal está assentado. Sem buscar tal origem, fica o jurista dentro de uma

redoma de mediocridade, acreditando que a fundamentação de um instituto seria

apenas legal, quando na verdade é muito mais sofisticada.

Não se propõe a substituição da ciência do Direito pela filosofia, pelo contrário. A

filosofia deve servir como auxílio do jurista, abrindo sua mente para buscar sempre

as bases, a fundamentação daquele instituto, que muitas vezes é encontrado em

uma obra do baixo medievo, como a Suma Teológica de Tomás de Aquino, ou as

vezes nos clássicos gregos.

Com a leitura da Suma Teológica, se encontra a fundamentação do princípio da

bagatela, e com isso se compreende com exatidão o preceito moral e religioso que

influenciou Aquino ao defender a oculta compensatio. 

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Tais preceitos, de coadunar uma lei humana com uma lei natural, defendida por

Aquino, parece ainda ser atual com a obrigatoriedade de coadunar uma lei positiva

com os direitos humanos. Assim, a filosofia tem e muito a contribuir com o

desenvolvimento do Direito e principalmente do cientista do Direito.

Em pleno início do século XXI, o cientista do Direito deve cada vez mais possuir um

conhecimento aprofundado da ciência do Direito, sem olvidar a importância de um

conhecimento holístico. Deve unir outros ramos do saber, em especial a filosofia,

na busca do que há de mais importante na vida, que são os momentos felizes, que é

levar uma vida minimamente digna à todas as pessoas, conforme determina o texto

constitucional de 1988.

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CAPÍTULO II

A ADPF 54 E A

ANENCEFALIA

 – BREVES

CONSIDERAÇÕES

FILOSÓFICAS
CAPÍTULO II

A ADPF 54 e a anencefalia – breves


considerações filosóficas 

Introdução

O Supremo Tribunal Federal – STF, em 12 de abril de 2012, decidiu pela

possibilidade da interrupção da gestação do feto anencéfalo, através da ADPF (1) 

nº54, por ampla maioria, ficando vencidos os ministros Ricardo Lewandowsky e

Cesar Peluso que conheciam da ação, mas julgavam-na improcedente.

Nessa decisão histórica, com base no voto do ministro relator Marco Aurélio de

Mello, o STF passou a entender ser vedado a interpretação segundo a qual a

gestante de feto anencéfalo incorreria no crime de aborto, previsto no artigo 128 do

Código Penal – CP, ou seja, interromper a gestação nessa hipótese deixou de ser

considerado crime de aborto.

Mais do que analisar se a decisão está ou não correta juridicamente, o objetivo do

presente ensaio é analisar alguns argumentos do ministro relator à luz da filosofia,

para entender como o Excelso Pretório chegou a referida decisão.

Com isso, procurar-se-á demonstrar que a decisão, apesar de jurídica, encontra 

(1) A ADPF é a sigla para uma ação prevista na CRFB/88 em seu artigo 102, §1º denominada Arguição por Descumprimento de
Preceito Fundamental.

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seu fundamento longe da ciência do Direito, mas sim em outras áreas do

conhecimento humano, no presente caso na filosofia, mostrando assim, que o

Direito está muito mais próximo da teoria dos sistemas luhmiana (2)  do que da

teoria pura kelseniana (3) .

Assim, serão abordados fundamentos do STF com a natureza de um não ser

atribuída ao anencéfalo, o argumento do Estado laico e do afastamento dos

ministros de valores religiosos e, por fim, sobre a incongruência da vedação

a doação de órgãos do anencéfalo em razão da opção pela liberação da interrupção

(ou será aborto) da gestação. 

Assista à aula sobre os


pensamentos de Luhman e
Kelsen, disponível no canal do
YouTube e no site do Novo
Liceu: www.novoliceu.com

(2) Para Nicklas Luhmann, o Direito seria um sistema operativamente fechado, pois possui um regramento próprio, mas seria
cognitivamente aberto, ou seja, o Direito muitas das vezes necessita buscar em outras áreas do conhecimento humano elementos
essenciais para dirimir uma questão.

(3) Hans Kelsen acreditava na ideia de uma pureza do Direito, onde o grande objetivo seria encontrar o objeto de investigação da
ciência do Direito. Para isso criou uma metodologia que objetivava “blindar” o Direito dos outros ramos do saber humano, como a
filosofia, moralidade, religião, psicologia, etc, ficando conhecida essa corrente jus filosófica de positivismo jurídico legalista (ou
normativista). Com o advento dos acontecimentos do holocausto da 2ª Guerra Mundial, boa parte da comunidade científica
entendeu que não se poderia pensar o Direito dessa forma pura, pois o Direito é na verdade uma ciência social aplicada, e,
portanto, elementos exteriores a ele, acabariam por também fazer parte do Direito.

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I – Opção pelo termo interrupção e não aborto – o anencéfalo,
segundo o STF seria um não ser.

Desde a proposta da referida ADPF, pelo advogado da ação e hoje ministro do STF,

Luiz Roberto Barroso, optou-se por utilizar a nomenclatura interrupção ao invés do

vocábulo clássico usado para tais casos, que sempre foi aborto (4) . E qual o motivo

para essa escolha e seus fundamentos filosóficos?

A palavra aborto soa muito forte em uma sociedade com ampla maioria cristã como

a brasileira, logo, para que a teoria a ser defendida não ganhasse nos primeiros

momentos inúmeros opositores, optou-se a época pela substituição de aborto por

interrupção da gestação. Essa troca pareceu muito mais uma opção com o intuito de

vencer a querela do que em se buscar um debate amplo, honesto e sincero.

Somente se fala em aborto, ou seja, não nascimento, de um alguém que esteja vivo,

mesmo que intrauterino. Já na interrupção da gestação, a ideia é que não existe

vida dentro do útero materno, logo, não há aborto, mas a interrupção de uma

gestação que irá gerar um natimorto. 

Portanto, o anencéfalo não seria um ser, filosoficamente falando, mas um não ser!

Sobre a distinção do ser e do não ser, Parmênides (sem data, p.1) afirma, em seus

fragmentos que chegaram até nós que:

(4) Aborto é um vocábulo que deriva da palavra orior, que em latim quer dizer nascer, e seu contrário, não nascer, seria aborior,
derivando até a língua portuguesa como aborto.

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Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção

ouvindo a palavra  acerca das únicas vias de

questionamento que são a pensar: uma, para o que é

e, como tal, não é para não ser, é o caminho de

persuasão — pois segue pela Verdade —, outra, para o

que não é e, como tal, é preciso não ser, esta via

afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável;

pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não

é realizável, nem tampouco se diria: (...) pois o mesmo

é a pensar e a ser.

Conforme Parmênides afirma, só podemos falar do ser, mas nunca do não ser, pois

o não ser não sendo, nada se tem como falar. Foi exatamente essa regra de lógica

que foi aplicada na decisão do STF. Qual a fundamentação utilizada para usar o

termo aborto? A fundamentação seria que o anencéfalo seria um não ser, e como do

não ser nada se pode ao menos falar, não se poderia atribuir a ele sofrer um aborto,

pois nada dele se pode falar, principalmente que possui vida. Assim, estaríamos

diante de um não ser, pois o anencéfalo não possui uma condição básica para ser

um ser, que é possuir vida, pensar minimamente.

Em relação a brevidade do presente ensaio, não será objeto de análise os

argumentos contrários a essa teoria de que o anencéfalo seria um não ser, teoria

aliás a qual me filio, pois, o intuito no momento é de apresentar alguns argumentos

filosóficos contidos na decisão da ADPF nº 54.

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II – O Brasil é um Estado Laico, mas não ateu.

Praticamente todos os Estados ocidentais são laicos, mas entender o que isso

significa é de suma importância.

Laicidade de um Estado não pode ser confundida com a ideia de um Estado ateu.

Naquele, simplesmente o Estado não professa nenhuma crença específica, ou seja,

não existem normas religiosas que pairam acima de um texto constitucional, sendo

permitido que os cidadãos, dentro de uma razoabilidade, professem qualquer credo

sem distinção. No segundo, não só o Estado não possuiu uma religião que norteia

sua atuação como proíbe seus cidadãos que professem qualquer credo.

O Brasil, por força do artigo 5º VI da CRFB/88, é um país laico, onde “é inviolável a

liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos

religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas

liturgias”. Sendo assim, a religiosidade é um elemento cultural respeitado e

defendido dentro do texto constitucional. Logo, argumentos religiosos podem

perfeitamente estar dentro da discussão sobre anencefalia, qualquer que seja a

religião, pois faz parte do sentimento de pertencimento do cidadão.

Não se está defendendo que apenas argumentos religiosos sejam utilizados, mas a

forma pela qual o STF defendeu a ideia de Estado laico, ideia essa que em momento

algum nem mesmo as entidades que atuaram como amicus curea nesse julgamento

defenderam.

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Se não existe ou ao menos não temos como afirmar ser verdadeiro ou falso uma

existência metafísica, o que temos então seria o dasein, expressão criada por

Heidegger para dizer que o que existe é um ser aí, o ser inserido no mundo, e não

um ser metafísico, ou mesmo virtudes metafísicas perfeitas existentes em um

mundo perfeito, como idealizava Platão em seu mundo das ideias.

Percebe-se facilmente a tentativa de escamotear o que é realmente nessa

discussão, talvez pela culpa religiosa (que a influência tanto quer esconder), que

seria uma discussão sobre o aborto efetivamente.

O medo de desagradar parentes, sociedade, religião e afins parece soar mais alto, e

assim, cria-se subterfúgios para não se admitir uma opção justificável pró aborto.

Mas dizer-se-pró-aborto leva contra si toda uma moralidade dominante. Não se

está aqui defendendo o aborto em si, mas simplesmente tentando mostrar que a

opção em si, não parece ter sido imbuída de sinceridade, mas de uma saída jurídica

para um problema moral dos ministros, e de muitos outros.

Assista à aula disponível no


site www.novoliceu.com sobre
a alegoria da caverna de
Platão que explica essa visão
dual platônica sobre a
existência de mundos
distintos.

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Do outro lado temos a gestante, sofrida, carregando um ser (ou será um não ser)

que, na melhor das hipóteses, ficará menor tempo encarnado do que se poderia

esperar. Não se pode esquecer essa gestante, pois é ela quem passará por todos os

estágios da gestação. Muitas delas também carregarão esse sentimento de culpa,

antes, durante e depois do cometimento da interrupção da gestação (ou será

aborto?).

Portanto, essa criação da figura da interrupção da gestação foi uma criação

inteligente, pois conseguiu satisfazer a culpa daqueles que gostariam de defender o

aborto, mas não possuem a coragem para dize-lo.

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Essa culpa, que nos é colocada desde a mais tenra idade, denunciada por Nietzsche

em praticamente todas as suas obras, encontrou na decisão da ADPF nº54 o seu

melhor exemplo. Daí o risco sempre recorrente de julgarmos de acordo com nossas

idiossincrasias, com nossos valores, com nossos medos e temores. Como Nietzsche

(2010, aforismo 133) afirma 

provavelmente restará ainda aquele pesar que é

aparentado e se acha misturado ao medo das punições da

justiça profana ou do desprezo dos homens; ao menos o

pesar dos remorsos, o aguilhão mais agudo do sentimento

de culpa, é atenuado, quando percebemos que com nossos

atos violamos a tradição humana, as leis e ordenações

humanas, mas ainda não colocamos em perigo "a eterna

salvação da alma" e sua relação com a divindade. 

Merece ser mencionado que, um tema complexo como esse, sem qualquer previsão

expressa na constituição, é no mínimo de grande risco ser julgado por julgadores

alçados ao posto máximo por um processo de escolha indireta, ou seja, com um

déficit democrático.

Além disso, é recorrente o equívoco hermenêutico, que será brevemente

mencionado em ensaio a seguir, sobre como os julgadores cometem o erro de

decidir com suas pré-compreensões, ao invés de passar por todo o círculo (ou

espiral) hermenêutico.

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III – Sobre a doação de órgãos do anencéfalo 

Durante o voto do Min. Relator Marco Aurélio, o mesmo mencionou por diversas

vezes que não se poderia obrigar uma gestante a doar os órgãos do anencéfalo, e

para isso citou o pensamento de Kant, afirmando que, sendo a gestante obrigada a

tal gesto, estaria se “coisificando” a mesma, ou seja, estar-se-ia tratando-a como

meio para uma outra finalidade, sendo que ela deveria ser tratada sempre como um

fim e si mesma.

Em relação a tal afirmativa, não há que discordar, inclusive em relação aos

argumentos aduzidos pelo relator. Entretanto, a discussão não deveria ser essa!

Não se deveria discutir tal obrigatoriedade da gestante, pois seria absurda tal

obrigatoriedade, mas sim se a mesma poderia doar.

O caso hipotético a ser analisado seria se uma gestante, utilizando sua autonomia

da vontade, optasse em levar sua gestação até o final e então decidisse por doar

seus órgãos.

O laudo médico contrário à doação afirma que a maioria dos órgãos dos

anencéfalos não serviria por problemas congênitos, entretanto tal posição não é só

pacífica como mesmo essa posição afirma que a maioria e não a totalidade. Em

posição contrária, o próprio Conselho Federal de Medicina – CFM que emitiu a

Resolução 1.752 de 8 de setembro de 2004 que autorizaria os médicos a realizarem

a retirada e consequente transplante dos órgãos do anencéfalo.

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Portanto, o próprio CFM reconhece a possibilidade fática de doação de órgãos de

anencéfalos.

O que torna essa questão ainda mais complexa é justamente o parecer nº 24 de

2003 do CFM que dá as diretrizes para a doação, e que acaba por afirmar a

dificuldade em se precisar o momento da morte do anencéfalo.

É aí que se percebe o problema lógico da decisão do STF. No primeiro item do

presente ensaio demonstrou-se que o STF entendeu o anencéfalo como sendo um

não ser, justamente por nunca ter tido efetivamente vida, até por isso denominou

de interrupção e não de aborto. Contudo, o parecer nº24/2003 do CFM discorre

sobre a dificuldade em se precisar o momento da morte do anencéfalo.

Ora, se o parecer do CFM afirma não conseguir definir o momento de morte do

anencéfalo, é porque antes existia vida no mesmo, e existindo vida, estar-se-ia

falando de aborto e não de interrupção.

Percebe-se, portanto, claramente que mesmo diante dos argumentos do CFM, que

por óbvio serão muito mais robustos do que um parecer de outro médico, o

ministro relator e a maioria dos ministros do STF preferiu escolher os fundamentos

que melhor se coadunavam com sua opção moral, querendo, entretanto, dar uma

roupagem científica, que na verdade, como toda ciência, nem absoluta é. Foi

simplesmente uma opção tomada, não uma verdade universal nos moldes

platônicos ou kantianos.

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Não haveria nenhuma afronta a dignidade do anencéfalo doar seus órgãos, já que

ele não seria um ser, mas um não ser. Entretanto, como não existe um mínimo de

certeza no que diz respeito ao final da vida do anencéfalo, melhor seria aplicar a

teoria ética do cuidado, de preservar o anencéfalo, impedindo a doação de seus

órgãos justamente por não se precisar o momento de sua morte.

Contudo, defender que ele é um não ser, por isso não ensejaria a proteção contra o

aborto contida no artigo 128 do Código Penal e também vedar a doação de órgãos, é

uma total afronta a lógica. Uma escolha anula a outra! Ele não pode ser um não ser

em relação ao aborto, mas um ser para a doação de órgãos.

Em razão disso que se espera que um julgado sempre aplica o círculo (ou espiral)

hermenêutico na hora de decidir, pois decidir apenas com base em uma pré-

compreensão e ainda procurando uma fundamentação para livrar a mente da culpa

por um suposto pecado, não tem como dar certo.

Quando o juiz pretende decidir de forma pessoal, solipsista, ignorando a

constituição e os demais textos legais, a decisão será nos moldes do entendimento

do próprio julgador, com base em seus valores pessoais, a decisão será eivada de

erro, de vício, pois sempre deverá ser a constituição o norte hermenêutico seguro a

ser perquirido, conforme ensina Lenio Streck (2013).

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Considerações Finais

Esses foram apenas alguns argumentos defendidos pelo Min. Relator Marco Aurélio

para embasar seu voto, acompanhado pela maioria do STF autorizando a chamada

interrupção da gestação do feto anencéfalo. Existiriam vários outros argumentos

que poderiam ser analisados à luz da filosofia, mas que pela brevidade do presente

ensaio não comportaria.

Contudo, alguns elementos interessantes podem ser extraídos do presente escrito.

Primeiro, o STF optou pelo perigoso caminho trilhado pelo advogado, hoje Ministro

do próprio STF Luiz Roberto Barroso, de considerar o anencéfalo um não ser, e por

isso não merecedor da proteção legal e constitucional legada aos demais fetos que

não sofrem dessa má formação.

Conforme mencionado, Parmênides já ensinava que do não ser, nada se pode dizer,

muito menos legislar ou proteger. Sendo assim, o anencéfalo não faria juiz a

referida guarida constitucional e legal, nos termos do voto do ministro relator.

Interessante também a fúria pela qual os ministros corriam em afirmar a laicidade

do Estado, como que mostrando que eles não iriam utilizar de seus próprios valores

religiosos naquele julgamento. Parecia que os valores religiosos, qualquer que

fossem, seriam menos importantes do que qualquer outros dado, principalmente

científico, que seria trazido. Essa visão demonstra de forma indelével a correção

das críticas nietzschianas ao apego pela ciência, como se ela pudesse nos dar o

único caminho seguro a seguir, esquecendo que a ciência se faz com acerto e erro,

e que uma teoria científica sempre possuirá alguma, mesmo que mínima, chance de

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estar errada.

Portanto, os valores e argumentos religiosos devem receber tratamento digno no

momento das discussões justamente por fazerem parte da sociedade. Além disso,

Nietzsche denunciava que a ciência não seria neutra e pura nos moldes idealizados

pelos modernos, justamente por ser feita por homens, assim como o Direito

também nunca foi nem será neutro. Sempre haverão valores por trás das pesquisas

científicas, e essa não é uma crítica, mas simplesmente uma constatação, e em

razão disso, dever-se-á lidar com isso.

Não existe a possibilidade de uma “blindagem” do cientista, e muito menos do

jurista e ministro, justamente porque todos estamos inseridos no mundo, como já

denunciava Heidegger. Tentar esconder esse fato não parece o mais correto. Por

isso Lenio Streck propõe a hermenêutica filosófica aplicada ao Direito, onde o

hermeneuta sempre deverá procurar atribuir o sentido ao texto legal aquele

sentido que melhor se coadune com os princípios constitucionais. Quando saímos

desse paradigma constitucional, corremos sério risco de cair em um paradigma

pior do que o positivista jurídico (qualquer um), pois cairemos em um paradigma

eminentemente decisionista, onde o julgador decide com base no que ele entende

por correto, com base em seus próprios valores morais, suas idiossincrasias, seus

traumas, medos e afins.

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CAPÍTULO III

AS CONDUÇÕES

COERCITIVAS E O

MEDO DO PODER

JUDICIÁRIO NO

BRASIL

– COMO A FILOSOFIA

PODE CONTRIBUIR

PARA PROTEÇÃO DO

CIDADÃO 
CAPÍTULO III

As conduções Coercitivas e o Medo do


Poder Judiciário no Brasil
– como a filosofia pode contribuir para
proteção do cidadão 

Introdução

A presente pesquisa nasceu após uma inquietação com tantas conduções

coercitivas nos últimos 2 anos em solo brasileiro. Com a decisão do Ministro Gilmar

Mendes em relação a pedidos de liminar em sede de ADPFs limitando tais

conduções, o momento para tecer algumas linhas gerais sobre o assunto se fazia

presente.

A defesa do Estado de Direito é missão de todo estudioso do Direito, juramento

feito sempre no ato de colação de grau em um bacharelado em ciências jurídicas.

Sendo assim, não poderia me furtar ao tema.

E esse tema parece bastante espinhoso, pois uma parte significativa da população

acaba por concordar com tais práticas, cansados da corrupção galopante que, se

sempre existiu no Brasil, parece que tomou uma proporção nunca antes vista , ou

descoberta, nos últimos 5 anos.

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Após procurar compreender bem o tema, procurou-se interpretar o artigo 260 do

CPP, que trata das conduções coercitivas, à luz da CRFB/88. Assim, além da

constitucionalidade como um todo do dispositivo ser bem questionável, o

descumprimento do rito previsto parece fulminar de morte as decisões admitindo

das conduções.

Com isso, investigados, que nem réus são ainda, muito menos culpados, são

tratados como criminosos, sendo humilhados em rede nacional, com seus nomes e

rostos mostrados nos principais jornais televisivos, nos jornais e agora, nas redes

sociais. Isso quer dizer que um investigado conduzido coercitivamente acabará por

ter seu nome tão fortemente ligado ao delito imputado que, mesmo se provar sua

inocência, sua vida poderá já estar em ruinas.

O princípio ad razoabilidade e proporcionalidade devem sempre andar juntos com o

juiz(a), para que sempre tenham em mente a gravidade do ato que vão praticar.

Assim, se a recpção do artigo 260 do CPP já possui inúmeras dúvidas, o respeito ao

tramite previsto na legislação é o mínimo  a ser exigido às partes e ao Estado como

um tudo.

Com isso, em um primeiro momento será analisado o próprio instituto da condução

coercitiva. Em um segundo momento , o pensamento de Foucault será preciso para

demonstrar que a sociedade e o Estado ainda buscam a humilhação pública do

investigado. Por fim, serão utilizados Kant e depois Streck para fundamentar a

resposta correta sobre as conduções coercitivas, especialmente as que não

obedecem o tramite previsto no artigo 260 do CPP.

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I – A Condução Coercitiva

O instituto da condução coercitiva nasce efetivamente no ordenamento jurídico

brasileiro a partir do artigo 260 do Código de Processo Penal – CPP de 1941, ao

afirmar que “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório,

reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a

autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença

”.

A condução coercitiva era um instituto não muito aplicado, especialmente para

realização de interrogatório de investigado, até o início das grandes operações

contra crimes ligados a corrupção, principalmente na chamada “operação lava à

jato”, e a partir dela, muitas outras.

A primeira questão que não se pode olvidar é que o instituto da condução

coercitiva data de 1941, portanto, deverá obrigatoriamente passar por um filtro

hermenêutico constitucional, ou seja, analisa-lo à luz das atuais normas

constitucionais brasileiras.

De acordo com uma interpretação meramente gramatical do instituto em comento,

percebe-se que a condução coercitiva apenas poderá ocorrer após a devida

intimação do acusado, e por óbvio, desde que ele não compareça. Essa é a ideia

básica e que uma simples leitura é capaz de demonstrar as regras idealizadas pelo

legislador infraconstitucional da época. 

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Atualmente, é discutível a possibilidade de conduções coercitivas de investigados

mesmo que devidamente intimados, sem falar quando há ausência de intimação.

A questão da condução coercitiva para interrogatório ganhou ainda mais destaque

em razão de recente decisão do Ministro Gilmar Mendes que, analisando liminar ad

referendum

em sede das ADPF nºs 444 e 395, de propositura do Conselho Federal

da OAB e do Partido dos Trabalhadores respectivamente, proibiu tal prática até

decisão final do Pleno do STF.

Assim, a condução coercitiva pode ser conceituada como sendo um instituto que,

autorizado por um juiz, faz com que um investigado seja levado de forma coercitiva

para prestar esclarecimentos sobre fatos que estão sendo investigados. Cumpre

mencionar que, apesar de existir expressa previsão legal, os magistrados têm

autorizado a condução coercitiva mesmo inexistindo recusa do investigado em

comparecer ao interrogatório.

Será em item subsequente que as críticas de Foucault continuam bem atuais, onde

o Estado e o grosso da população ainda se regozijam pelas humilhações impingidas

ao condenado. Além disso, os pensamentos de Kant e Streck serão  utiliziados para,

primeiramente denunciar  demonstrar os equívocos das teorias exigência e qual o

caminho seguro a ser seguido.

A condução coercitiva por si só já poderia ser objeto de profunda análise, mas será

aqui, nestas breves linhas, melhor discutida, quando inexiste recusa ao

comparecimento do investigado.

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Em item subsequente será analisado qual o intuito do Estado-juiz em determinar

tal condução, principalmente com informações “vasadas” à imprensa, provocando

não apenas desconforto, mas verdadeira humilhação pública para cidadãos que, por

hora, nem acusados são, mas apenas investigados. 

II – A quem interessa uma condução coercitiva sem prévia intimação?

Os contratualistas como Hobbes, Rousseau, Locke, e outros, apesar de divergirem

em relação a aspectos da própria teoria em si, concordam sobre a importância do

Estado e principalmente, que o Estado, em alguma medida, será necessário para a

evolução do ser humano (1).

Portanto, a visão contratualista, principalmente com o fim o ancient régime, passa

a ver um novo Estado, livre das amarrar do absolutismo monárquico, e pronto para

uma nova realidade, onde após os primeiros momentos de extrema violência

revolucionária, permitiu o desenvolvimento dos direitos fundamentais de 1ª

dimensão. Tais direitos também chamados de direitos negativos, por proteger o

cidadão contra ações do Estado. Com isso, o Estado apenas podia prender, tomar

bens, tomar terras, tributar, etc., se existisse lei autorizando aquela ação, caso 

(1) Interessante observar a visão diametralmente oposta de Nietzsche em relação ao Estado. Para ele, todo e qualquer Estado nasceu com
“sangue nas mãos”, ou seja, fruto da opressão de um grupo pelo outro. Nietzsche vai descortinar a visão romântica que os contratualistas
tinham em relação ao Estado, pois acredita que ele sempre foi uma forma de dominação do homem pelo homem, e nunca teve tem terá
qualquer ideia de uma igualdade ou ao menos de levar o bem estar para todos. A visão de Nietzsche é centrada na ideia de vontade de poder.
Essa vontade é que nos move, é que nos faz sair da cama todos os dias. Aqueles que realmente tem maior tal vontade e buscam elevar-se
enquanto homens, superando ressentimentos e sentimentos considerados por Nietzsche como inferiores e encontrando seus valores éticos
em detrimento dos valores morais (da sociedade, do Estado, da família, da religião, etc.), esse conseguirá dominar outros seres humanos que
não possuem tal vontade, pois nasceram para serem rebanho, para seguir e não para comandar. Isso nãos seria errado ou ruim em si, para
Nietzsche, mas sim essa hipocrisia do Estado objetivar o bem para todos, pois quem está no poder quer realmente é se perpetuar no poder, e
fará de tudo para isso. Essa ideia não é realmente original em Nietzsche, pois séculos antes Maquiavel, em sua obra O Príncipe, já trazia
alguns conceitos muito próximos.

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contrário, se inexistisse e mesmo assim praticasse tais atos, existiriam remédios

legais como Habeas Corpus (que é inclusive muito mais antigo e remonta ao direito

inglês do alto medievo), Mandado de Segurança, dentre outros, para salvaguardar

os direitos do cidadão contra tais violações.

A partir então da modernidade, por volta do final do século XVIII, o Estado

encontrou sérios limites para sua atuação, e os cidadãos ganharam o princípio da

legalidade para uma maior proteção.

Se desde o século XVIII já existia tal proteção contra abusos do Estado, como em

pleno século XXI discutimos sobre a possibilidade de uma medida como a condução

coercitiva fora dos limites e do rito previsto? Tempos sombrios!

Contudo, é missão dos estudiosos do Direito procurarem entender o fenômeno, de

forma crítica, e buscarem soluções para dirimir tal controvérsia hermenêutica.

Conforme mencionado, apesar de existirem sérias dúvidas sobre a recepção do

instituto em si da condução coercitiva de um investigado para depor, será

analisando apenas a questão da desobediência ao rito previsto no CPP, de primeiro

intimar o investigado a comparecer antes da condução coercitiva e si.

O CPP em seu artigo 260 traz previsão expressa da intimação prévia e a

consecutiva ausência do investigado antes da condução coercitiva. Quando

magistrados optam por, deliberadamente ignorarem a disposição legal por

entenderem possuir poderes para tal, o risco de abusos é muito grave.

No caso em tela, qual seria o intuito de tal desrespeito? 

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A questão se agrava em razão de vivermos em uma sociedade de informação, onde

os acontecimentos são transmitidos quase que em tempo real. Assim, uma

condução coercitiva acaba sendo transmitida pelas principais redes televisivas

(abertas e por assinaturas), redes de rádio, internet e redes sociais.

Parece que Foucault estava certo quando em sua obra Vigiar e Punir

(1987), já

denunciava, através do seu método arqueológico, que o Estado usou (e continua

usando) sua força de persecução penal como forma de intimidação e

principalmente de humilhação pública. Parece que o pensamento de Foucault ainda

(infelizmente) se mostra adequado à analise das conduções coercitivas

(especialmente às se intimação prévia). 

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Quando o magistrado opta por tal caminho, não há outra coisa a se pensar a não ser

o intuito de expor o investigado a uma humilhação pública. Vai colocar o

investigado em posição de dominado, cabeça baixa, diante muitas vezes de uma

população com desejo de vingança por vários motivos sociais, e que vê naquele

momento, naquele indivíduo, a oportunidade de colocar suas angústias, decepções

e recalques para fora. Sobre isso Foucault (1987, p. 73) afirmará que 

“na medida em que a punição põe em cena, aos olhos de

todos, o crime em toda a sua severidade, deve assumir

essa atrocidade: deve trazê-la à luz por meio de

confissões, discursos, inscrições que a tornem pública;

deve reproduzi-la em cerimônias que a apliquem ao corpo

do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento. A

atrocidade é essa parte do crime que o castigo torna em

suplício para fazer brilhar em plena luz: figura inerente

ao mecanismo que produz, no próprio coração da punição,

a verdade visível do crime. O suplício faz parte do

procedimento que estabelece a realidade do que é punido”. 

O juiz, vendo pelas redes televisivas o suplício do acusado, lendo pelas redes sociais

o apoio do senso comum, se regozija, pois sente como o bastião da moralidade,

como um enviado de Deus para fazer valer uma justiça divina (não lembra a Santa

Inquisição?). O soberano, o Estado, através da figura do juiz, mostra a mesma

violência contra o acusado. Ele vence e humilha o acusado.

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Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a

violência do desafio

lançado ao soberano: é o que vai provocar da parte

dele uma réplica que tem por função ir mais longe que

essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso

que a anula. A atrocidade que paira sobre o suplício

desempenha portanto um duplo papel: sendo princípio

da comunicação do crime com a pena, ela é por outro

lado a exasperação do castigo em relação ao crime.

Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do

poder; é o ritual do inquérito que termina e da

cerimônia onde (FOUCAULT, 1987, p.73)

Quando a força policial, a mando de um juiz, chega na residência de um

investigado (atualmente o caso parece ser ainda mais grave, pois era muito

comum suplícios contra o condenado ou acusado, e o infeliz ainda é apenas

investigado) para realizar a condução coercitiva, chega com todo o seu aparato.

Inúmeros carros, armas de grosso calibre, tocas ninjas, coletes à prova de bala,

ostentando sua força diante de um acusado que normalmente ainda está usando

pijamas, ao ser acordado em sua residência para a referida condução coercitiva. O

investigado é forçado a pegar qualquer roupa, entrar em um veículo policial e

fazer todo o percurso até uma delegacia com todo o aparato policial mencionado.

Chegando, na maioria das vezes, já se encontram inúmeros repórteres,

cinegrafistas, fotógrafos e cidadãos, estes últimos apenas para acompanhar a

humilhação e o suplício do acusado, pois, como afirma Foucault (1987, p. 76)

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o povo reivindica seu direito de constatar o suplício e

quem é supliciado. Tem direito também de tomar parte.

O condenado, depois de ter andado muito tempo,

exposto, humilhado, várias vezes lembrado do horror de

seu crime, é oferecido aos insultos, às vezes aos ataques

dos espectadores.

O tempo passa, mas a sociedade e o Estado continuam empregando o que há de

mais humilhante em seu tempo. Se antes era passar com o condenado pelo público

para que fosse xingado e humilhado para começar sua expiação da pena, hoje a

humilhação é ainda maior, pois uma simples foto pode chegar a todos os cantos do

globo em questão de segundos. Portanto, mesmo sendo apenas investigado, esse

cidadão já foi condenado pela sociedade, e dificilmente conseguirá se reerguer. 

III – A virada kantiana ainda não chegou ao Brasil

Com o final da 2ª Guerra Mundial, vários jus

filósofos do Direito começaram a

criticar a ideia do modelo positivista jurídico (2)  de excluir o que era meta jurídico

de dentro do objeto de investigação do Direito, especialmente a moralidade.

Assim, Kant (3) voltava ao centro das discussões sobre teoria do Direito,

especialmente seus estudos sobre a relação entre racionalidade e moralidade, que 

(2) Existem vários modelos positivistas jurídicos, e o modelo mais criticado, por ser o de maior importância para o século XX,
especialmente no Brasil, é o modelo positivista jurídico legalista ou normativista de Hans Kelsen.

(3)Pode parecer estranha a opção de usar o pensamento de Immanuel Kant após usar o pensamento de Michel Foucault, tendo
em vista o abismo existente entre esses dois filósofos. Contudo, o presente estudo busca analisar o momento atual, não com um
dever ser extremamente hipotético e idealizado, mas com construções que já existem e que, mesmo estando longe do que poderia
ser o ideal para Foucault e Nietzsche, já seriam muito melhores para o Brasil.

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culminou com toda uma construção teórica dos Direitos Humanos, servindo de

base para própria criação das Nações Unidas. 

Quando Kelsen escreveu sua Teoria Pura do Direito (1999), ele está objetivando,

mesmo que teoricamente, um Estado onde as leis, desde que de acordo com o texto

constitucional, deveriam ser de respeito obrigatório por todos, especialmente pelos

chamados por ele de intérpretes autênticos, que seriam os magistrados. Quando

um magistrado ignora o rito previsto em uma lei ao seu prazer, mostra que ainda

estamos em uma fase pré-positivista.

Quando vemos tal prática, somos forçados a concordar com um magistrado federal

fluminense que afirmou em uma entrevista a um jornal de grande circulação que o

cidadão deve temer a justiça. Voltamos a Maquiavel!

Entre ser amado ou temido pelos seus súditos, o soberano deve sempre optar por

ser temido, pois o amor é volúvel, mas o medo permanece! Essas são ensinamentos

que parecem perdurar até os dias de Hoje. Quando Maquiavel (2006) escreve O

Príncipe, talvez não pudesse imaginar que em pelo século XXI, seus ensinamentos

continuariam sendo aplicados.

Por óbvio que tais ensinamentos não se coadunam com o pensamento kantiano, e

por conseguinte com os da virada kantiana. A aposta de Kant (e dos adeptos da

virada kantiana) é na racionalidade, ou seja, que a razão é a única capaz de nos

levar a uma existência pacífica e feliz, tanto em termos pessoais quanto coletivo. 

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E claro, a racionalidade não é um ato isolado de um indivíduo, a racionalidade é

universal. Logo, quando um juiz se arvora em decidir conforme sua consciência, de

forma absurdamente solipsista, está na verdade agindo como se um tirano fosse.

Por óbvio que tais ensinamentos não se coadunam com o pensamento kantiano, e

por conseguinte com os da virada kantiana. A aposta de Kant (e dos adeptos da

virada kantiana) é na racionalidade, ou seja, que a razão é a única capaz de nos

levar a uma existência pacífica e feliz, tanto em termos pessoais quanto coletivo. E

claro, a racionalidade não é um ato isolado de um indivíduo, a racionalidade é

universal. Logo, quando um juiz se arvora em decidir conforme sua consciência, de

forma absurdamente solipsista, está na verdade agindo como se um tirano fosse.

Mesmo partindo do pressuposto que esse juiz esteja agindo de boa fé, está

praticando um ato seríssimo contra o Estado de Direito. Montesquieu (1996, p.199)

já afirmava que seria melhor ser julgado e condenado em um dia dentro de um

Estado com as melhores leis do que viver como um Paxá na Turquia, pois esse

condenado seria mais livre. E claro que Montesquieu está pensando que tais leis

serão cumpridas e não descumpridas por qualquer magistrado.

Quando os membros da virada kantiana reintroduziram a moralidade no Direito, e

procuraram, dentro de uma razoabilidade, aplicar Kant, o Direito avançou,

principalmente na Europa e Estados Unidos. Apesar da teoria kantiana não resolver

todos os problemas como ele supunha, aplicando sua teoria dos imperativos

hipotético e categórico nas questões das conduções coercitivas, mostrariam que

universalizar tal prática nunca nos levaria à resposta correta.

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Nesse ponto, Lenio Streck demonstra que a resposta correta está dentro do texto

da constituição.

Logo, é um direito fundamental do cidadão ter os seus direitos constitucionais de

presunção da inocência, da não incriminação, dentre outros, violados pela

condução coercitiva. Defender o respeito ao Direito Positivo não pode nunca ser

confundido como defesa do positivismo jurídico, seja qual vertente for.

Portanto, com facilidade verifica-se que o Ministro Gilmar Mendes acertou ao

conceder a liminar em sede da ADPF pois tais conduções coercitivas para

interrogatórios de investigados estavam violando não apenas o CPP mas

principalmente a CRFB/88.

Por isso Kant (2003, p. 160) asseverava que

A felicidade de um Estado consiste na sua união. Pela

felicidade do Estado não se deve entender o bem estar de

seus cidadãos e a felicidade destes, pois a felicidade

talvez os atinja mais facilmente e, como o apreciariam,

num estado de natureza (como assevera Rousseau) ou

mesmo num governo despótico. Por felicidade do Estado

entende-se, em lugar disso, a condição na qual sua

constituição se conforma o mais plenamente aos

princípios do direito; é por esta condição que a razão,

mediante um imperativo categórico, nos obriga a lutar.

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Com isso, as críticas de Streck (2017) são corretas ao afirmar que, quando o Poder

Judiciário não respeita a Constituição nem a legislação vigente, decidindo de forma

solipsista, devemos temer a “Justiça”, pois o grau de imprevisibilidade das decisões

judiciais será altíssimo. E o cidadão, acaba por ficar refém desse novo Leviatã, que

se um dia foi o Executivo por força do ancient régime, hoje se mostra através do

pseudo ativismo judicial, que nada mais é do que a usurpação das funções dos

outros Poder estatais. O Poder Judiciário está se tornando um novo Poder

Moderador.

Considerações finais

O presente estudo teve início a partir de algumas inquietações relacionadas ao

momento atual, onde o ativismo judicial vem ultrapassando quaisquer limites

dentro do razoável, onde juízes optam deliberadamente em ignorar o texto

constitucional e legal, fazendo um direito próprio. Como se isso já não bastasse,

vemos magistrados concedendo entrevistas (o que não é proibido, mas estranho

pois normalmente um juiz não deve ter assuntos tão interessantes para jornalistas)

e nestas, afirmando, sem o menos constrangimento, que o Poder Judiciário deve ser

temido.

Muito provavelmente o que quis dizer o magistrado em comento é que os supostos

criminosos devem temer o Poder Judiciário, querendo passar uma ideia de que não

há mais espaço para impunidade.

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Entretanto, tal afirmação foi ruim, muito ruim, pois mesmo para supostos

criminosos, o Judiciário não pode ser algo para ser temido, no máximo respeitado.

Mas esse respeito deriva da sua correção em observar os preceitos constitucionais

e legais, aplicando de forma correta a lei, punindo quem deve ser punido, mas

sempre dentro dos estreitos limites de atuação do Estado delimitados pelo

princípio da legalidade.

Para deixar o momento atual ainda mais conturbado, alguns juízes passaram a ter

uma interpretação muito própria do artigo 260 do CPP, determinando conduções

coercitivas (de recepção pela CRFB/88 duvidosa), e ainda por cima, desrespeitando

o tramite previsto, ou seja, o respeito à intimação prévia do investigado.

Em razão disso, foram propostas as ADPF nºs 444 e 395, de relatoria do Ministro do

STF Gilmar Mendes, objetivando a decisão pelo tribunal da não recepção do artigo

260 do CPP, e consequentemente o fim das conduções coercitivas, principalmente

de investigados, no mérito. Além disso, foi requerido a concessão de liminar, que foi

concedida ad referendum, para que todos os juízes brasileiros se abstenham de

determinar as conduções coercitivas inobservando o trâmite previsto no artigo 260

do CPP, até que o pleno do tribunal analise a liminar, podendo referenda-la ou

cassa-la, até o julgamento do mérito das ADPFs.

Procurou-se demonstrar que, ao que parece, o único objetivo de tais conduções

seria o de humilhar os investigados, nos moldes já denunciados por Michel Foucault

em seu Vigiar e Punir. 

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Tal atitude por óbvio não se coaduna com princípios basilares da CRFB/88, como o

que veda a autoincriminação, da ampla defesa, e até da dignidade da pessoa

humana.

O pensamento de Immanuel Kant foi utilizado para demonstrar que desde o final da

2ª Guerra Mundial a moralidade começou a voltar a fazer parte do objeto de

investigação da ciência do Direito, e portanto, a prática da condução coercitiva

deixa de tratar o ser humano com a dignidade que ele merece, violando os

imperativos kantianos, pois alguns juízes vem demonstrando um tratamento

diferenciado de acordo com o réu, o que violaria os preceitos de universalização de

Kant, e até os do positivismo jurídico legalista de Kelsen.

Por fim, foi utilizado o pensamento de Lenio Streck para demonstrar que a resposta

ao presente caso é simplesmente o respeito ao texto constitucional e ao texto legal.

Não há espaço hermenêutico de criação para o juiz, e mesmo que existisse, tal

espaço não pode ser entendido para que o juiz diga qualquer coisa sobre qualquer

coisa. Há um compromisso com os princípios constitucionais, pois estes deverão

sempre nortear toda e qualquer hermenêutica constitucional.

Por fim, foi afirmado a correção na decisão do ministro relator das ADPFs ao

conceder as liminares, restringindo o uso até então indiscriminado de conduções

coercitivas, obedecendo os ditames constitucionais que tem, no ser humano e na

sua dignidade, o único caminho possível a ser trilhado dentro de uma Estado

Democrático de Direito, onde a separação dos Poder (ou das atribuições) é

respeitada. Não há mais espaço para um novo Leviatã, agora chamado de Poder

Judiciário.

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BIBLIOGRAFIA

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_____________. Política. Brasília: Editora UNB Editora, 1985.

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INFORMAÇÕES

“3 Decisões do STF analisadas filosoficamente: como a filosofia pode auxiliar na

tomada de decisão jurídica” foi elaborado por Thiago Rodrigues Pereira, é

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