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ABSTRACT The article analyzes the Brazilian welfare model according to elements central to
the emergence and to the development of social protection systems. It is intended to discuss to
what extent the absence or incompleteness of those elements weaken the model built in the 1988
Constitution. The general precepts of social protection are initially presented to characterize and
discuss those issues as for the Brazilian case. It is argued that the pattern inaugurated in the 1988
Constitution timidly altered structural elements of the dynamics of social welfare states, such as
de-commodification of social relations and values concerning social protection, making it fragile
in face of retrenchment measures.
1 Universidade Federal
Fluminense (UFF),
Programa de Estudos
Pós-Graduados em Política
Social - Niterói (RJ), Brasil.
lenauralobato@uol.com.br
DOI: 10.1590/0103-11042016S08 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016
88 LOBATO, L. V. C.
o século passado, ela não conseguiu alterar E daí resultaria o padrão incompleto e insu-
a situação de exclusão de amplos setores ficiente de nosso estado de bem-estar social.
sociais e nem tampouco a enorme concentra- Nos quase 30 anos de Constituição,
ção de renda que sempre caracterizou o País. pode-se afirmar que as políticas sociais avan-
O lento período de transição democrática, çaram em aspectos cruciais, como o aparato
que se inicia ainda em meados da década de político-organizacional e a concepção da
1970 e se acelera durante toda a década de questão social. Do ponto de vista do aparato
1980 em uma conjuntura de profunda crise e político-organizacional, destacam-se a cons-
estagnação econômica, trouxe de volta a voz trução de sistemas nacionais tais como os
da sociedade. A democratização teve como de saúde e assistência social, a expansão de
ápice institucional a Constituição de 1988. burocracias públicas descentralizadas e uni-
A noção de cidadania foi a base de constru- ficadas, a participação inédita dos três níveis
ção desse novo modelo expresso no texto de governo e a construção dos mecanismos
Constitucional. de participação e controle social. E do ponto
A Constituição de 1988 institui um capí- de vista da concepção da questão social,
tulo específico para a ordem social e reco- destacam-se os elementos de ‘constituciona-
nhece como direitos sociais o acesso à saúde, lização’ – incorporação da noção de direito
previdência, assistência, educação e moradia (COUTO, 2008; FLEURY, 2006), de ‘abrangência’ –,
– além de segurança, lazer, trabalho. A se- de publicização e incorporação, na agenda
guridade social institucionaliza um modelo pública, de novos temas sociais, e de ‘amplia-
ampliado de proteção social, nos moldes dos ção’ – reconhecimento da produção social
estados de bem-estar social, com universa- e da inter-relação dos problemas sociais
lização do acesso, responsabilidade estatal, (LOBATO, 2009).
orçamento próprio e exclusivo e dinâmica Esses avanços conviveram com restri-
política inovadora baseada na integração fe- ções significativas, fartamente analisadas
derativa e na participação da sociedade. pela literatura da área. Contudo, nenhum
A Constituição representou uma ruptura prognóstico previu a inflexão que atinge as
legal baseada em noções pouco sólidas políticas sociais na conjuntura atual. Essa
na estrutura social brasileira, como cida- inflexão tem representação na proposta
dania, democracia e solidariedade social. de Emenda Constitucional 55, em discus-
Constitucionaliza-se ali um novo pacto são no Congresso Nacional, embora seja
social, mas suas bases foram frágeis. A ordem mais ampla, já que se contrapõe ao pacto
social prevista impunha uma nova forma Constitucional de 1988 tanto no que toca aos
de Estado em uma sociedade com baixos direitos sociais como ao papel do Estado na
níveis de organização social, antidemocrá- sua garantia.
tica em suas instituições estatais e sociais e Até aqui as restrições aos direitos sociais
profundamente desigual. Do ponto de vista se deram, por um lado, por meio de cons-
organizacional, a política social apresentava trangimentos à expansão do investimen-
uma potente estrutura de oferta e garan- to nas áreas sociais, criados ou mantidos
tia de bens sociais, mas de baixa cobertura, pelos sucessivos governos, como é o caso
restrita às parcelas médias e ao mercado da reedição sistemática da Desvinculação
formal, burocratizada, permeada por par- dos Recursos da União ou o impedimen-
ticularismos e com alto grau de corrupção. to à exclusão das áreas sociais da Lei de
O modelo constitucional teria que conviver Responsabilidade Fiscal ou a disputa acir-
com o passado das políticas sociais, com os rada pela definição de mínimos de gastos
projetos governamentais que lhe sucederam para os entes federados. Por outro lado, por
e com os valores da sociedade que o adotou. disputas intergovernamentais, por meio
avaliação médica para as pessoas com de- onde há exigência de qualificação (MONTALI;
ficiência. Esse rigor foi amainado recente- LESSA, 2016).
mente com a inclusão da avaliação social, A dinâmica em si do trabalho permanece
que considera impedimentos sociais e não insegura, haja vista o crescimento expressi-
só biomédicos para a concessão do benefício vo do benefício do auxílio doença previden-
(LOBATO; BURLANDY; PEREIRA, 2016). O impacto dessa ciário, que, de cerca de 30% das concessões
medida ainda não é totalmente conhecido. do Regime Geral em 2000, passou a 55,6%
Entretanto, quando combinada com a renda em 2006 (estabilizando-se em torno de
e com as regras para a análise da composição 45% nos anos seguintes) (FREITAS, 2013). Vários
familiar, não parece que o acesso das pessoas fatores contribuíram para esse aumento, que
com deficiência ao benefício poderá ser es- recentemente gerou medidas de controle
tendido de forma significativa. por parte da Previdência Social, e dentre eles
O BPC atinge cobertura significativa estão as restrições para o reconhecimento
para os idosos em extrema pobreza, mas dos acidentes de trabalho que geram o auxí-
não parece que vá ampliar sua cobertura ao lio-doença acidentário.
amplo contingente de pessoas com defici- Analisando a mobilidade de renda em
ência, muitas das quais crianças e pessoas regiões brasileiras, Montali e Lessa (2016)
com transtornos mentais, cujas deficiências confirmam que o aumento da renda registra-
tornam pouco provável a inserção de muitas do entre 2001 e 2012 ‘não foi acompanhado
delas no mercado de trabalho. A insuficiência por melhorias substanciais em outros indi-
de serviços correlatos de saúde, de assistên- cadores, tais como qualidade do emprego
cia e de educação para inclusão nas escolas e educação’, apesar das diversas políticas
de crianças e jovens com deficiência, com- e ações nesse sentido. Acrescentam que,
promete a inclusão social e o futuro destes, apesar do progresso registrado no acesso aos
assim como aumenta o comprometimento serviços públicos urbanos entre 2001 e 2012,
familiar com o cuidado domiciliar, restrin- ainda há distância significativa entre setores
gindo o acesso ao trabalho de membros da de renda.
família, principalmente das mulheres, que Precariedade do emprego, baixo nível edu-
permanecem dependentes de atividades cacional, insegurança em relação ao acesso a
pouco qualificadas e irregulares. benefícios quando em situação de risco e in-
O crescimento do emprego nos anos do suficiência dos serviços universais mostram
governo do presidente Lula da Silva foi a fragilidade do processo de desmercantiliza-
expressivo, com a criação de 22 milhões ção do nosso estado de bem-estar. Também,
de novos empregos, 90% deles empregos precisam ser considerados os efeitos da
formais. Mas foram empregos de baixa qua- globalização sobre os estados de bem-estar,
lificação, principalmente no setor de ser- ainda são pouco conhecidos no Brasil, prin-
viços, onde 95% dos empregados percebia cipalmente a abertura do mercado nacional
até dois salários mínimos (POCHMANN, 2014). O sobre os setores relacionados aos serviços
crescimento do emprego no setor de servi- sociais (CORTEZ, 2008). Essa nova configura-
ços está relacionado ao intenso processo de ção influencia também a conformação e os
desindustrialização registrado a partir da interesses dos atores. Exemplos na área de
década de 1990 e, embora a formalização saúde seriam novos atores e principalmente
reduza a precariedade do trabalho, já que arranjos de interesses advindos das mudan-
permite o acesso a diretos tais como o seguro ças no mercado hospitalar privado no Brasil,
desemprego, envolve funções de baixa quali- nas empresas de planos de saúde ou o cres-
ficação não ocupadas pelas camadas médias, cimento das empresas de serviços médicos,
permanecendo, portanto, ‘gargalos’ em áreas como as Organizações Sociais.
muda a lógica de relacionamento com enti- marginais aos projetos econômicos, os siste-
dades voluntárias de prestação de serviços, mas de proteção públicos cumpriram papel
e da Lei nº 1.2435/2011, que regulamenta o político para os distintos governos, fosse
Suas e cria a estrutura de proteção básica e como parte do projeto de ‘modernização’ do
especial, rompendo com a lógica de atenção Estado – como no caso do governo do presi-
por segmentos, o sistema é ainda marginal na dente Fernando Henrique Cardoso – ou como
configuração da proteção social. parte de um projeto ‘neodesenvolvimentista’
Dois mecanismos presentes no Bolsa – como nos governos do presidente Lula da
Família, que é a vitrine da proteção aos Silva e parte do governo da presidente Dilma
pobres, comprometem a desmercantiliza- Roussef. A capacidade reformadora da po-
ção; são eles a contrapartida exigida para o lítica pública, contudo, mostrou seu limite
benefício e a ideia de porta de saída. Noções frente às fragilidades estruturais de baixa
comuns na concepção contemporânea do inserção na política econômica, baixo grau
workfare, esses mecanismos tratam o recurso de desmercantilização, ausência de valores
à assistência como risco eventual. A con- igualitários e baixo apoio político-partidário.
trapartida, mesmo que seja do tipo soft, ou A prioridade à institucionalização por
seja, evite penalizar o beneficiário que não meio de políticas públicas foi extremamente
cumpre as exigências de vacinação e frequ- positiva do ponto de vista legal e da constru-
ência escolar – ao menos era assim até agora ção dos sistemas nacionais, mas não atingiu,
–, reforça a noção clássica liberal de contro- da mesma forma, as esferas subnacionais.
le sobre os pobres. Já a porta de saída, ou a Um dos preceitos mais inovadores das polí-
criação de oportunidades para reinserção ticas sociais pós 1988 foi a descentralização
dos beneficiários no mercado de trabalho, é como mecanismo de fortalecimento da de-
mais perversa, já que trata processos de am- mocracia contra a tradição centralizadora,
plitude diversas – a situação de pobreza ou embora pareça ter sido um dos problemas da
pobreza extrema – no mesmo nível da recep- expansão dos sistemas nacionais. As instân-
ção de uma dada qualificação e consequente cias de pactuação como mecanismos inova-
entrada no mercado de trabalho. Se essa con- dores de negociação nas políticas sociais não
cepção de porta de saída não tem mostrado têm sido capazes de enfrentar os conflitos
efeitos significativos em países com maior federativos e o modelo de competição parti-
escolaridade e melhores condições de traba- dária nos estados e municípios.
lho, quiçá aqui.
O modelo constitucional também careceu
de uma coalizão político-partidária de apoio. Conclusão
Estados de bem-estar podem ser menos de-
pendentes dos partidos, sindicatos e movi- A ordem social instituída na Constituição
mentos sociais quando estão consolidados, de 1988 inaugurou um modelo avançado de
passando a contar com o apoio de usuários e estado de bem-estar, exercendo importante
profissionais dos serviços. No caso brasileiro, impacto nas condições de vida da popula-
as coalizões foram setoriais, como na saúde e ção até aqui. Mas elementos estruturais à
na assistência, formadas principalmente de sustentação de tal modelo não puderam
profissionais e servidores, e, pouco, de par- ser alterados ou o fizeram de forma tímida.
tidos. Essas coalizões centraram esforços na Dados os sucessivos contextos desfavorá-
construção dos sistemas por meio da forma- veis à consolidação do modelo, seu desen-
ção de políticas públicas. volvimento priorizou a dinâmica estatal,
Tal estratégia foi bem sucedida, porque, principalmente em nível federal, por meio
mesmo sem apoio partidário forte e sendo de políticas setoriais, serviços e benefícios,
o que não lhe dá solidez para enfrentar con- história brasileira é um bom exemplo. Mas
junturas de retração. o esforço empreendido nos últimos 30 anos
A prioridade à dinâmica estatal foi de relacioná-las autorizava a suposição de
também um tipo de ‘estratégia de barricada’ que algumas etapas haviam sido vencidas
de defesa das políticas sociais frente à sua e não seriam alteradas, apesar dos embates
dissociação dos modelos econômicos suces- constantes nas áreas de financiamento e
sivamente adotados, em especial na saúde. gestão das políticas e nas dificuldades de
Mesmo o chamado neodesenvolvimentismo superar as formas tradicionais de interme-
não encontrou lugar para a expansão da uni- diação de interesses, muito presentes na
versalização na área social, sendo mais ativo dinâmica real das políticas sociais, que é
no incentivo ao consumo e aos mercados e aquela vivida pela população. Como recriar
na prioridade aos programas de transferên- o sentido democrático dos direitos sociais
cia de renda. Nem nesse momento propício, e da cidadania social? Qual democracia é
a saúde, apesar de sua importância como capaz de dar o sentido pleno às políticas
setor industrial, recebeu lugar de destaque, sociais? Que políticas sociais adensam efe-
ao contrário, aprofundou sua dependência tivamente a democracia? O Brasil e os casos
do mercado externo. Esse também foi o caso latino-americanos desafiam a literatura
em outros países latino-americanos, onde o sobre estado de bem estar social a respon-
modelo progressista não conseguiu romper a der a essas perguntas.
herança das políticas econômicas do período O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
liberal que o precedeu. Apesar dos avanços (Cebes) tem indicado a necessidade de apro-
desse modelo, há que se debitar também fundamento da democracia deliberativa; de
à antinomia entre expansão ampliada do inserção do bem-estar como mecanismo de
bem-estar e políticas macroeconômicas os desenvolvimento econômico; de valoriza-
entraves vividos hoje. ção das manifestações sociais ainda pouco
A relação positiva e bem sucedida entre visíveis, como os movimentos de moradia
expansão de políticas sociais e democracia e terra, de cultura, de favelas, mulheres,
no Brasil, expressa na transição democrá- negros, homossexuais, onde a política social
tica, na Constituição de 1988 e posterior- é menos institucional e mais identitária,
mente no desenho das políticas sociais, se onde o acesso a serviços é resultado de di-
tomada frente ao retrocesso que se avizinha, reitos substantivos e não o contrário. As res-
parece ter se esgotado e há que ser recriada. postas estão por vir, mas, nos seus 40 anos,
Sabe-se que democracia e políticas sociais o Cebes mostra juventude para começar de
não andam necessariamente juntas, e a novo, se preciso for. s
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