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Revista Virtuajus • ISSN 1678-3425

DA RELAÇÃO JURÍDICA MÉDICO-PACIENTE


Dignidade da pessoa humana e autonomia privada

Bruno Torquato de Oliveira Naves


Doutor e mestre em Direito Privado pela PUC Minas,
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na PUC Minas;
Professor do Mestrado em Direito na Escola Superior Dom Helder Câmara;
Membro do CEBID – Centro de Estudos em Biodireito.

Maria de Fátima Freire de Sá


Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na PUC Minas;
Mestra em Direito pela PUC Minas;
Doutora em Direito pela UFMG;
Membro do CEBID – Centro de Estudos em Biodireito.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Vida e sobrevida 3. Direito à vida


digna 3.1. Síntese histórica 3.2. Vida digna e suas características 4.
Relação jurídica médico-paciente 5. Autonomia privada e
consentimento informado 5.1. PSDA - Patient Self-Determination Act
5.2. Requisitos de validade da autonomia privada 5.3. Direitos e
deveres 6. Conclusão 7. Referências Bibliográficas

1. INTRODUÇÃO medicina assumiu a função de prolongar a


vida. A morte era comprovação de derrota.
O século XX trouxe vários Hoje, no entanto, a função médica
complicadores para a já desigual relação assumiu um qualificador que modificou a
médico-paciente. Antes, tinha-se respeito relação existente; procura-se, agora, prolongar
reverencial pelo médico, mas subsistia contato a vida com qualidade. Ressaltou-se a qualidade
humano. Havia a figura do médico de família, de vida em oposição à quantidade. Busca-se
que freqüentava até seu círculo de amizades. vida digna. Mas o que seria vida digna?
O respeito e a humildade do paciente foram, Entendemos que esse conceito se
aos poucos, sofrendo incrementos que constrói na situação concreta, não podendo
distanciaram o médico. A tecnologia inseriu o seu conteúdo ser totalmente pré-determinado.
tecnicismo em detrimento do humanismo. A Então, como definir esse conceito no caso
concreto?

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O primeiro passo é considerar o para garantia do direito à vida, e sua proteção


paciente como partícipe ativo dessa construção era feita de forma reflexa, no sentido de que,
e, para isso, é essencial reconhecermos sua quem a desrespeitasse, atentando contra ela,
autonomia privada. era punido.
Pretendemos, portanto, fazer breve Passo a passo, com a evolução, que
análise da relação jurídica médico-paciente, levou séculos, chega-se aos dias atuais. Cabe
partindo da abordagem dos princípios da aqui afirmar que, embora o Brasil, através de
dignidade da pessoa humana e da autonomia sua legislação penal, atribua pena ao
privada. homicida, isto desde 1830, a garantia do
direito à vida, como expressão constitucional,
2. VIDA E SOBREVIDA somente veio à baila pela Carta da República
de 1988, inserido no caput do artigo 5º.
A vida é um dos valores inerentes à A evolução da medicina e os
pessoa humana. Sua origem permanece constantes progressos biotecnológicos deram
misteriosa: é da natureza. O máximo que se vazão a inúmeras discussões. Certo é que forte
pode dizer é que há uma associação de corrente abandonou a idéia de vida como
elementos que a produzem ou entender simples respirar, isto é, não somente como
determinadas condições em que ela se produz. garantia de sobrevida, ou como garantia da
Certo é que, sem a vida, a pessoa humana não “batida de um coração” ou uma “doce ilusão”.
existe como tal. A discussão, que permeia a garantia do direito
O caráter associativo das pessoas, à vida, versa, não raro, em relação à sua
fazendo com que uns dependam dos outros, qualidade e dignidade, como construção
por necessidades várias, faz da vida um valor diária. Daí a pergunta: pacientes terminais têm
(tanto nas sociedades que se julgam mais direito de morrer em paz e com dignidade? Ou
evoluídas, quanto naquelas mais devem sobreviver, mesmo que
rudimentares). vegetativamente, até a parada respiratória ou a
A partir do momento em que se morte cerebral?
concebeu a vida como valor, passou-se, Uma unidade de terapia intensiva
costumeiramente, a respeitá-la, guardadas as moderna é um lugar inesquecível. Ali
nuances a ela atribuídas pela sociedade, de encontram-se doentes em estado crítico, que só
acordo com as características culturais de cada estão vivos por estarem ali. Vivos, mas
povo. 1 cercados de complexos aparelhos eletrônicos.
Mas, foi somente através dos séculos São fios e tubos que entram e saem de
que o direito à vida passou a ser reconhecido e orifícios, pontos na pele e cavidades do
protegido como valor jurídico. Antes, o que paciente. Respiradores e marca-passos
existia era a origem humana e social deste cardíacos continuamente ligados, com batidas
direito. É que não havia qualquer formalização na mesma cadência. Alguns indivíduos
conscientes e outros inconscientes. Vários
1 “Assim, independentemente de crenças religiosas ou de
convicções filosóficas ou políticas, a vida é um valor ético. possuem lesões cuja seqüela se pode
Na convivência necessária com outros seres humanos cada dimensionar além de quadros clínicos que
pessoa é condicionada por esse valor e pelo dever de
respeitá-lo, tenha ou não consciência do mesmo.” inspiram cuidados diários: um dia os rins não
DALLARI, Dalmo de Abreu. Bioética e direitos humanos.
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p.
funcionam bem, em outro o doente é
231/241(32).

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acometido por inevitáveis infecções curaram ou obtiveram melhora física ou


decorrentes da fragilidade do corpo, e assim mental, mas porque a vida deles, a partir dali,
por diante. será vivida no leito, em companhia de
Há casos de pacientes com lesões enfermeiros vinte e quatro horas por dia,
provenientes de doenças degenerativas, cujas alimentados através de sondas, afinal, não
curas não foram encontradas pela medicina, e mais possuem qualquer consciência.
vêem suas vidas se esvaindo, passo a passo, Pior sorte é a dos que não têm
lentamente, em meio a perdas e retomadas de condições de pagar acompanhantes ou
consciência. Em decorrência dessas mesmas enfermeiros, sem dinheiro para adquirirem
doenças, passam, gradativamente, a depender alimentação industrial, oxigenação e remédios.
da boa vontade de outrem, para que as Há os que não têm família, e por isso são
representem ou as assistam, conforme o caso, deixados em qualquer instituição
sob o ponto de vista jurídico. Há situações que governamental, sem cuidados, até que a morte
nem a assistência ou representação podem ser lhes traga o descanso.
tidas como garantidoras de seus direitos. Pode-se dizer que condições como as
Não se pode olvidar, ainda, do aspecto mencionadas, que não são tão raras, permitem
da dependência física, porque, pessoas assim, o desfrute de uma vida digna? Como se definir
deixam de ter controle sobre suas sensações e vida digna, à luz do direito?
estímulos, voltando ao tempo de criança,
necessitando que alguém lhes faça a higiene 3. DIREITO À VIDA DIGNA
pessoal, as alimentem, e as vistam, ainda que
seja apenas um avental para cobrir o corpo 3.1. Síntese histórica
magro.
Não se está dizendo que pessoas Para se chegar ao paradigma da
“hospedadas” em uma UTI não tenham dignidade da vida, acredita-se interessante
chances de viver bem. Claro que não. Aliás, proceder uma pequena abordagem histórica
hodiernamente, o conceito de UTI é outro. Em sobre o direito do indivíduo ao próprio corpo.
muitos dos casos, ela é o passaporte para a E, é na Lei das XII Tábuas, a qual, diga-se de
vida. A argumentação que ora se faz não diz passagem, tem importância indiscutível,
respeito a estas pessoas que, a título de bastando dizer que foi ela a responsável pelo
exemplo, tiveram enfarto e ali estão, surgimento do Direito Civil e das ações da lei,
monitoradas, no aguardo de recuperação, com que se encontram as disposições mais antigas
grande chance de ocorrer, em que pese o acerca do tratamento dispensado ao ser
quadro inspirador de cuidados, mas àquelas humano.
pessoas que estão na iminência da morte, ou Àquela época, por volta do ano 462 a.
àquelas que vivem apenas porque ligadas a C., o valor do indivíduo era reconhecido pelos
aparelhos, deixando de ser um ser humano créditos que possuía, além do poder de que
autônomo, já que as máquinas fazem parte do dispunha, comprovando-se tal assertiva em
seu corpo. algumas disposições da lei supra-mencionada,
Fala-se em UTI, mas pode-se pensar que permitia a morte e o acorrentamento de
naqueles indivíduos que já receberam a seres humanos como manifestação da justiça,
chamada “alta médica”, não porque se

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nas situações em que devedores não saldassem haveres pago os 10.000 sestércios, a que foste
suas dívidas. condenado a pagar-me, eu lanço a mão sobre
A título de exemplo, vale trazer à ti, em razão dos 10.000 sestércios”, ao mesmo
colação os artigos 4 a 9 da Tábua Terceira, da tempo em que colocava a mão sobre qualquer
Lei das XII Tábuas, que assim prescrevem: “4) parte do corpo do devedor (Gaio, I, 4.21). 2
Aquele que confessa dívida perante o Não obstante, a evolução do Processo
magistrado ou é condenado, terá 30 dias para Civil Romano fez nascer outras leis que,
pagar; 5) esgotados os 30 dias e não tendo paulatinamente, dificultavam a manifestação
pago, que seja agarrado e levado à presença do da força física sobre a pessoa do devedor. Mas
magistrado; 6) Se não paga e ninguém se o marco de transição da responsabilidade
apresenta como fiador, que o devedor seja pessoal para a responsabilidade patrimonial se
levado pelo seu credor e amarrado pelo verificou com o surgimento da Lex Poetelia
pescoço e pés com cadeias com peso até o Papiria, no ano de 326 a. C., que proibiu as
máximo de 15 libras; ou menos, se assim o cadeias e os grilhões, a morte ou venda do
quiser o credor; 7) O devedor preso viverá à devedor como escravo, passando a admitir, em
sua custa, se quiser; se não quiser, o credor substituição à execução pessoal, a execução
que o mantém preso dar-lhe-á por dia uma patrimonial.
libra de pão ou mais, a seu critério; 8) Se não Portanto, com o advento da Lex
há conciliação, que o devedor fique preso por Poetelia, pode-se enumerar várias normas
60 dias, durante os quais será conduzido em 3 atenuadoras do sistema que vigia àquela
dias de feira ao comitium, onde se proclamará, época, quais sejam: a) proibição da morte e
em altas vozes, o valor da dívida; 9) Se são acorrentamento do devedor; b)
muitos os credores, é permitido, depois do institucionalização do que antes era simples
terceiro dia de feira, dividir o corpo do alternativa oferecida ao credor, ou seja, a
devedor em tantos pedaços quantos sejam os satisfação do crédito mediante a prestação de
credores, não importando cortar mais ou trabalhos forçados; c) permissão no sentido de
menos; se os credores preferirem, poderão que o executado se livrasse da manus injectio,
vender o devedor a um estrangeiro, além do repelindo a mão que o prendia (manum sibi
Tibre” (Trans Tiberim, ou, seria hoje, depellere) mediante o juramento de que tinha
Trastevere). bens suficientes para satisfazer o crédito
Situações como as descritas eram (bonam copiam jurare); e, acima de tudo isso, d)
comuns. Procedia-se a execução dos créditos extinção do nexum, 3 passando então o devedor
devidos sobre a pessoa do iudicatus ou
confessus. Destarte, findo o processo de 2 TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de.

cognição e demonstrada a existência de Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1996. p. 68.
créditos em favor do autor, instaurava-se a 3 “La eficacia del nexum era trascendental, mientras el

deudor no pagaba u outro no se ofrecia a pagar por el para


execução através da Legis actio per manus
librarlo com la solemnidad correspondiente de la solutio
iniectionem, que tinha como pressuposto o por aes est libram, al acreedor que habia adquirido derecho
sobre su persona o sobre la persona de un sujeto suyo se le
inadimplemento de obrigação originada de permitia tener encadenado al nexus o sea al obligatus,
sentença ou de confissão. golpearlo com vergas y hacerle trabajar por su propia
cuenta,probablemente, en su origen esta eficacia
Após o ato citatório, na presença do significaba que el deudor era reducido sencillamente a la
condición de esclavo”. BONFANTE, Pedro. Instituciones de
magistrado, o credor afirmava: “visto não me derecho romano. Trad.: Luis Bacci; Andrés Larrosa. 8 ed.
Madrid: Reus, 1929. p. 455.

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a responder por suas obrigações com o um árbitro indicado pelo magistrado recebeu
patrimônio que tivesse, não mais com o dinheiro para julgar a favor de uma das partes
próprio corpo (pecuniae creditae bona debitoris, em prejuízo de outrem, que seja morto; Se
non corpus obnoxium esset). 4 alguém promove em Roma assembléias
Referida lei pareceu aos antigos o noturnas, que seja morto; Se alguém insuflou o
triunfo da liberdade civil. Nas palavras de inimigo contra a sua Pátria ou entregou um
Livio, ne quis, nisi qui noxam meruisset, donec concidadão ao inimigo, que seja morto.
poenam iuberet, in compedibus aut in nervo (artigos 3, 6 e 7 da Tábua Nona).
teneretur: pecunia creditae bona debitoris, non Bem posterior à Lei das XII Tábuas,
corpus obnoxium (= obligatum) esse. 5 ocorreram vários fatos que levam à conclusão
Além da forma específica de execução de que se dava, em diversos ordenamentos
do crédito, a Lei das XII Tábuas trazia jurídicos, preeminência ao “bem comum”,
disposições acerca do pátrio poder, delitos, “função social”, “felicidade de muitos”, sobre
direito público e outras questões. Seu os bens individuais. Na Índia antiga, por
conteúdo era, igualmente, de total desrespeito exemplo, os portadores de doenças
à vida, inexistindo qualquer garantia à contagiosas incuráveis eram conduzidos por
integridade física do homem. seus parentes às margens do Ganges,
A Tábua Quarta traz disposições sobre asfixiados com barro na boca e nariz e
o pátrio poder: 1) É permitido ao pai matar o arrojados ao rio sagrado. Napoleão Bonaparte,
filho que nasce disforme, mediante o ao ser interrogado na Ilha de Elba, sobre sua
julgamento de cinco vizinhos; 2) O pai terá atitude de ordenar que fosse tirada a vida de
sobre os filhos nascidos de casamento legítimo enfermos de peste durante a campanha do
o direito de vida e de morte e o poder de Egito, afirmou que não poderia por em risco a
vendê-los. (É impressionante a perenidade das vida dos demais homens do seu exército e
instituições romanas, dado que, de lege ferenda, determinou que o médico subministrasse aos
o problema 1 acima é atual). doentes fortes doses de ópio.
Sobre os delitos, insta lembrar as Com efeito, o ser humano era objeto e
determinações da Tábua Sétima: 16) Se alguém instrumento da “Razão de Estado”, que
profere um falso testemunho, que seja desconhecia seus valores primários. Mas
precipitado da rocha Tarpéia; 17) Se alguém prefere-se relegar tais situações às épocas de
matou um homem e empregou feitiçaria e civilização superada ou a fases patológicas da
veneno, que seja sacrificado com o último história humana.
suplício; 18) Se alguém matou o pai ou a mãe, Ultrapassadas essas fases, manifestou-
que se lhe envolva a cabeça, e seja colocado em se a prevalência do indivíduo, entrevista desde
um saco costurado e lançado ao rio. a revolução francesa, com o interregno
A Lei das XII Tábuas também punia socialista, de submissão ao interesse comum e
com morte delitos de lesa-pátria, cometidos agora se volta à origem individualista, com
por cidadãos ou seus prepostos: Se um juiz ou enfoque de solidariedade. Embora já não mais
seja permitida a disposição da vida das
4 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 3 ed.. São diversas maneiras como aquelas já
Paulo: Malheiros, 1993. p. 43/44.
5 BONFANTE, Pedro. Op. cit., p. 457. Em tradução livre, demonstradas, no Brasil, somente a Carta da
significa: “Ainda que mereça corrente ou tenha sido
condenado, o devedor não pode ser acorrentado: o crédito
República de 1988 foi expressa, através do
será saldado com bens e não com o próprio corpo”.

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artigo 5º e incisos, no sentido de garantir o pacientes terminais não deve mais encontrar
direito à vida a qualquer pessoa individual, guarida no Estado Democrático de Direito,
tratando da questão em capítulo próprio (Dos simplesmente porque o preço dessa obstinação
Direitos e Garantias Fundamentais). é uma gama indizível de sofrimentos
gratuitos, seja para o enfermo, seja para os
3.2. Vida digna e suas características familiares deste. O ser humano tem outras
dimensões 7 que não apenas a biológica, de
Vida, na Carta da República, “não será forma que aceitar o critério da qualidade de
considerada apenas no seu sentido biológico vida significa estar a serviço não só da vida,
de incessante auto-atividade funcional, mas também da pessoa. O prolongamento da
peculiar à matéria orgânica, mas na sua vida somente pode ser justificado se oferecer
acepção biográfica mais compreensiva. Sua às pessoas algum benefício, ainda assim, se
riqueza significativa é de difícil apreensão esse benefício não ferir a dignidade do viver e
porque é algo dinâmico, que se transforma do morrer.
incessantemente sem perder sua própria A morte não é o fim da vida, é uma
identidade. É mais um processo (processo etapa dela. Um caminho inexorável, pelo qual
vital), que se instaura com a concepção.” 6 todos passaremos. E como tal, não pode ser
As novas premissas que são suscitadas encarada como um fracasso médico, pois,
nesse limiar de século XXI, referentes aos seres como afirmou o Papa João Paulo II, integra a
humanos, são as seguintes: condição humana:
Independentemente de sua qualidade, a vida
humana deve ser sempre preservada? Há que "um não pode impor ao outro o dever de

serem empregados todos os recursos utilizar recursos que mesmo de uso

biotecnológicos para prolongar um pouco corrente possam causar-lhe riscos ou

mais a vida de um paciente terminal? Há que sofrimento. Essa recusa não equivale a

serem utilizados processos terapêuticos cujos


efeitos são mais nocivos do que os efeitos do 7 Alfonso Garcia Rubio descreve a pessoa e suas dimensões
fundamentais e ensina: “O específico da pessoa aparece
mal a curar? É lícito sedar a dor se de tal ato a bem destacado quando se articulam adequadamente os
conseqüência será o encurtamento da vida? O dois aspectos básicos constitutivos do ser pessoal: a
interiorização ou imanência e a abertura ou
que fazer com os nascituros portadores de transcendência.” E continua: “A dimensão de
interiorização ou imanência: A pessoa deve estar centrada
doenças congênitas do sistema nervoso em si própria, orientada para a própria interioridade. Esta
central, cujas vidas, se mantidas dimensão pode ser desdobrada da seguinte maneira:
Autopossessão: a pessoa se autopertence, possui
obstinadamente, significarão a condenação ao autonomia própria no nível ôntico (...). Conseqüência: a
pessoa não é propriedade de outro. Qualquer tipo de
sofrimento permanente ou a estado vegetativo escravidão é um atentado direto contra a dignidade da
de vida? pessoa. Liberdade e responsabilidade: a pessoa é capaz de
escolher determinados valores em si mesma, a partir de si
Não se pode privilegiar apenas a mesma. (...) Conseqüência: repugna à dignidade da pessoa
todo tipo de manipulação. O respeito real à liberdade e
dimensão biológica da vida humana,
responsabilidade concretas de cada pessoa é indispensável
negligenciando a qualidade de vida do para o crescimento da humanização do homem.
Perseidade: a pessoa tem em si mesma a sua própria
indivíduo. A obstinação em prolongar o mais finalidade. No seu agir, a pessoa, acima de tudo, se auto-
possível o funcionamento do organismo de realiza como ser pessoal. Conseqüência: a pessoa não é um
objeto ou um instrumento para ser usado e depois deixado
de lado. Tratar a pessoa como mero instrumento para uma
finalidade exterior à própria pessoa é outro grave atentado
6 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. contra a sua dignidade”. RUBIO, Alfonso García. Unidade
17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 200. na pluralidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 249/250.

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suicídio, pelo contrário, pode ser tida é parte e é todo, confunde-se e se afirma,

como uma aceitação de sua condição alia-se e se isola, invariavelmente duplo." 10

humana e o desejo de não receber um

tratamento desproporcional aos seus Continuando o pensamento de Edgar


resultados." 8 de Godói da Mata-Machado, o homem é
indivíduo e pessoa. "A individualidade tem
A liberdade e a dignidade são valores sua raiz na matéria; a personalidade, na forma,
intrínsecos à vida, erigidos à categoria de a alma do homem, que faz dele homem e não
princípios, de modo que não deve a vida ser outra coisa." 11
considerada bem supremo e absoluto, acima E ainda:
dos dois primeiros valores, sob pena de o
amor natural pela vida se transformar em "O certo é que o direito se refere à pessoa,

idolatria. E a conseqüência do culto idólatra à enquanto é esta que se engaja na sociedade

vida é a luta, a todo custo, contra a morte. (...) O Direito terá, assim, como motivo

determinante, assegurar, numa sociedade

"O ser humano é aquele que possui a de todos, o respeito a essa totalidade, e o

liberdade, que tem a possibilidade de, ao seu fim há de ser o de criar condições

menos teoricamente, determinar seu dentro das quais a pessoa se possa afirmar

'dever-ser'. É essa possibilidade que deve como um todo e possa realizar suas

ser levada em conta, respeitada, aspirações de todo independente e livre. O

considerada. A essência da dignidade do ser Direito será uma técnica de superação do

humano é o respeito mútuo a essa individual no homem, que, por natureza, é

possibilidade de escolha. A especificidade animal político." 12

do ser humano é sua liberdade. A

dignidade a ele inerente consistirá no A vida deve ser encarada no seu


respeito a essa possibilidade de escolha." 9 ocaso, para que lhe seja devolvida a dignidade
perdida. São muitos os doentes que se
A autodeterminação é componente da encontram jogados em hospitais, expostos a
dignidade. O ser autônomo se autoconstrói, uma perspectiva de sofrimento, em terapias
percebendo a si e ao outro. Assim, em vez de intensivas e em emergências. O
isolar, o homem se integra no meio social.

10 NEVES, Lucília de Almeida; DULCI, Otávio Soares;


"Seja qual for o nosso conceito de MENDES, Virgínia dos Santos (orgs.). Edgar de Godói da
Mata-Machado: fé, cultura e liberdade. Belo Horizonte:
integração do homem no meio social (...)
UFMG, 1993. apud AFONSO, Elza Maria Miranda. O
sempre, em face das mais variadas direito fundado na dignidade do homem. Revista da
Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 2, n.º 3 e 4,
circunstâncias, o homem se dá e se reserva, 1º e 2º sem. 1999. p. 44.
11 AFONSO, Elza Maria Miranda. O direito fundado na

dignidade do homem. Revista da Faculdade Mineira de


Direito, Belo Horizonte, v. 2, n.º 3 e 4, 1º e 2º sem. 1999. p.
45.
12 NEVES, Lucília de Almeida; DULCI, Otávio Soares;
MENDES, Virgínia dos Santos (orgs.). Edgar de Godói da
8 Congresso para a doutrina da fé: declaração sobre Mata-Machado: fé, cultura e liberdade. Belo Horizonte:
eutanásia. Origins, 10:154, 1980 apud DINIZ, Maria Helena. UFMG, 1993. apud AFONSO, Elza Maria Miranda. O
O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 321. direito fundado na dignidade do homem. Revista da
9 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 2, n.º 3 e 4,
Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 454. 1º e 2º sem. 1999. p. 46.

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desdobramento disso? Uma parafernália apesar de não serem valores. Sua atuação se dá
tecnológica que os prolonga e os acrescenta. em dois planos: o plano da justificação e o
Inutilmente. plano da aplicação. No primeiro, os princípios
auxiliam a interpretação das regras,
4. Relação jurídica médico-paciente justificando a formação e aplicação destas. São
intermediários que norteiam todo o sistema
Para iniciarmos esse estudo, é jurídico. No plano da aplicação, os princípios
necessário questionarmos qual a natureza assumem seu papel impositivo, sendo
jurídica da relação que se constitui entre aplicados diretamente para a solução de um
médico e paciente. Há grande resistência entre caso 14.
os profissionais de saúde quando se determina A doutrina mais moderna dos
o liame existente entre eles e o paciente como princípios afirma que não há hierarquia entre
uma relação meramente contratual, um eles, sendo um conflito entre dois princípios
contrato de prestação de serviços médicos. No resolvido no caso concreto, no qual se afastará
entanto, é essa a natureza jurídica do vínculo. a aplicação de um, em favor de outro, em
Mas será que tal consideração traz prejuízos à virtude da situação concreta e da
imagem dos médicos? Corre-se o risco de argumentação fornecida pelas partes. Não
patrimonializar demais os serviços médicos? haveria, portanto, a determinação em abstrato
Para responder a essas questões temos da posição dos princípios considerados
que ter em mente como os valores reciprocamente. O caso concreto determina
patrimoniais são considerados frente aos qual será aplicado, sem, todavia, excluí-lo do
valores existenciais no ordenamento jurídico ordenamento, declarando-o inválido, pois, em
brasileiro. outra situação, o princípio ora afastado pode
No âmbito jurídico não é verdadeiro ser o indicado, e o que teve aplicação, poderá
afirmar que a relação contratual é diferente não mais incidir.
das demais relações contratuais porque Há, entretanto, um problema nessa
permeada por valores éticos, extraídos do afirmação de não haver hierarquia entre
Código de Ética Médica e expostos como princípios. A Constituição brasileira determina
metajurícos. Não é só o contrato de prestação que a dignidade da pessoa humana é
de serviços médicos que é permeado por fundamento da República (art. 1º, III). Em
valores éticos, todos os contratos são. razão da amplitude que o conteúdo desse
Entretanto não são quaisquer valores e não são princípio (da dignidade da pessoa humana)
valores metajurícos. A relação contratual em pode alcançar em diferentes casos concretos,
foco, como qualquer outra, é informada pelos ele nunca deverá ser afastado. A hierarquia
princípios da boa-fé contratual, da justiça dos princípios é impossível para os demais,
contratual e da autonomia da vontade 13. mas a dignidade da pessoa humana é superior
Os princípios são normas jurídicas, a todos os outros.
assim como as regras. Eles contêm valores,

14 Para uma análise mais aprofundada da posição dos


13Esse é o tríplice vértice principiológico eleito pelo Prof. princípios no ordenamento jurídico, veja GALUPPO,
Fernando Noronha como fundamental. Desses princípios Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado
decorrem todos os demais. O direito dos contratos e seus Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua
princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé e justiça aplicação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36,
contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. n.143, jul.-set. 1999, p. 191-209.

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Mas voltando à questão: considerar a No campo biológico, o poder de


relação médico-paciente como meramente autodeterminação do paciente pode ser
contratual, não desprivilegia a relação humana sintetizado na expressão consentimento
em favor do patrimônio? informado.
A resposta é, indubitavelmente, Essa expressão, porém, não deve ser
negativa. Pelo exposto, percebe-se que não há utilizada no Direito, que de longa data serve-
prevalência do patrimonial, pois a relação se de outro termo, mais abrangente e próprio,
contratual é regida por valores jurídicos para designar o que aquela se refere – a
integrantes do sistema. Além disso, o aspecto autonomia privada ou autonomia da vontade.
patrimonial submete-se ao princípio maior da Mas há diferença entre as expressões
dignidade da pessoa humana, pelo qual é autonomia privada e autonomia da vontade?
conformado. Assim, a relação médico- Apesar de alguns autores as usarem
paciente, mais do que patrimonial, é uma indistintamente, “a expressão ‘autonomia da
relação que objetiva um valor existencial e vontade’ tem uma conotação subjetiva,
encontra-se submetida e informada pelo psicológica, enquanto a autonomia privada
princípio da dignidade. 15 marca o poder da vontade no direito de um
Por fim, o vínculo contratual modo objetivo, concreto e real.” 16 Ao direito
estabelecido pode ser de obrigações de resta analisar a manifestação concreta da
resultado ou obrigações de meio. Por vontade e não suas causas e características
obrigações de resultado têm-se como exemplo intrínsecas. Não é objeto do direito perquirir
as cirurgias plásticas. O médico obriga-se ao sobre o conteúdo da consciência interna de
resultado, que deverá ser, se não idêntico ao cada ser. Daí decorre nossa preferência pela
avençado, pelo menos, semelhante a ele. Já em expressão autonomia privada.
obrigações de meio, o profissional deve Nos dizeres de Francisco Amaral,
empenhar-se em seu objetivo, utilizando-se de autonomia privada é “o princípio pelo qual o
meios terapêuticos em benefício do paciente, agente tem a possibilidade de praticar um ato
não havendo, contudo, obrigação em obter jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a
êxito. forma e os efeitos.” 17
Mas, muito mais que negócio jurídico, Devemos destacar que se trata de um
a relação médico-paciente apresenta-se como princípio, isto é, uma norma jurídica
base da ciência médica, e tem como objetivo o imperativa que atua como diretriz para outras
comprometimento para com a saúde, o bem- normas (plano de justificação) ou como
estar e a dignidade. solucionadora direta de problemas jurídicos,
com aplicação imediata a um caso concreto,
5. AUTONOMIA PRIVADA E que determinará seu conteúdo (plano de
CONSENTIMENTO INFORMADO aplicação).
Como agentes internos delimitadores
desse conteúdo, apresentam-se a ordem
15 Juridicamente o que nos interessa não são os valores
éticos, mas os valores jurídicos, que foram incorporados pública e os bons costumes. Saliente-se que a
por nosso ordenamento. Conclui-se, portanto, que não há
razão para referirmos à Bioética, mas a Biodireito. Pois os
princípios são normas jurídicas e na solução de problemas
não se aplicam valores, mas princípios e regras que podem 16 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 3ª ed. Rio
conter valores. Até o Código de Ética Médica, apesar da de Janeiro: Renovar, 2000. p. 337-338.
denominação, é norma jurídica e não norma moral. 17 Op. cit., p. 337.

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dignidade da pessoa humana é componente 18 Joaquim Clotet faz uma cronologia dos
da noção de ordem pública. atos que o antecederam:
A autonomia privada, combinada com
esses agentes (ordem pública e bons “O Estado da Califórnia reconheceu, em

costumes), confere ao sujeito a possibilidade 1976, o direito do paciente de recusar o

de determinar conteúdo, forma e/ou efeitos tratamento que o mantinha com vida

do ato jurídico. Podendo, numa situação Natural Death Act. Em 1983, a Comissão

concreta, o sujeito determinar somente Presidencial para o Estudo de Problemas

conteúdo e efeitos, ficando a determinação da Éticos na Medicina publicou o informe

forma como função da lei. Ou esta Deciding to Forego Life Sustaining Treatment,

prescrevendo forma e efeitos, restando ao que expõe as opiniões claras e razoáveis

sujeito o exercício da autonomia privada no da Bioética na forma de recomendações.

referente ao conteúdo. Ou outras combinações Em 1985, a Sociedade Médica de

de conteúdo, forma e efeitos determinados ora Massachusetts aprovou a seguinte

pelo ordenamento, ora pelo sujeito de direitos. resolução, motivada pelo caso Paul

Brophy: ‘A Sociedade Médica de

“A autonomia privada constitui-se, Massachusetts reconhece o direito de

portanto, em uma esfera de atuação do autonomia dos pacientes terminais e dos

sujeito no âmbito do direito privado, mais indivíduos em estado vegetativo que

propriamente um espaço que lhe é tenham manifestado previamente sua

concedido para exercer a sua atividade vontade de recusar o tratamento, incluído

jurídica. Os particulares tornam-se, desse o uso da hidratação parenteral e

modo, e nessas condições, legisladores alimentação enteral por sondas entéricas.

sobre seus próprios interesses.” 19 O cumprimento desta resolução por um

médico não constitui uma prática contrária


Mas como deve se manifestar a à ética, sempre que o médico e a família
autonomia privada do paciente? estejam de comum acordo quanto ao
Observemos, primeiro, a experiência tratamento a ser prestado’. Em 1986, o
estado-unidense com a lei do PSDA. Conselho de Assuntos Éticos e Judiciais da

Associação Médica Americana publicou,


5.1. PSDA – Patient Self-Determination Act entre outras, as seguintes orientações:

‘Ainda no caso em que a morte não seja


Em 1º de dezembro de 1991, entrou em iminente, mas no qual o estado de coma
vigor o texto normativo, aprovado pelo do paciente é, sem dúvida alguma,
Congresso dos Estados Unidos, que trata das irreversível, existindo garantias para
relações médico-paciente – The Patient Self- confirmar a precisão do diagnóstico, e
Determination Act ou Ato de Auto- contato e assessoria daqueles que têm a
Determinação do Paciente. responsabilidade do cuidado do paciente,

não é contrário à ética sustar o tratamento

médico que prolonga a vida’”. 20


18 É também o que afirma Gustavo Tepedino, citando
decisão do Tribunal de Versailles. (Direitos humanos e
relações jurídicas privadas. in: Temas de Direito Civil. Rio de 20CLOTET, Joaquim. Reconhecimento e institucionalização
Janeiro: Renovar, 1999. p. 59.) da autonomia do paciente: um estudo da “the patient self-
19 AMARAL, Francisco. Op. cit., p. 337. determination act”. Revista Bioética, v. 1, n. 2, 1993.

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disposições do “testamento em vida” e do


Assim, a autonomia privada do mandato duradouro.
paciente foi sendo gradativamente O PSDA acompanhou as
reconhecida, culminando com a formulação da transformações ocorridas na relação médica,
PSDA. que redefiniram a posição do paciente,
A PSDA reconheceu a autonomia inserindo-o como partícipe do processo
privada do paciente, inclusive para recusar decisório e atribuindo-lhe direitos. Entretanto,
tratamento médico. Os centros de saúde, a autodeterminação exige certos requisitos de
quando da admissão do paciente, registram validade, que determinam quando e quem
suas opções e objeções a tratamentos em caso pode exercer a autonomia privada. Vejamos
de incapacidade superveniente de exercício da esses requisitos.
própria autonomia – são as advance directives -
previstas nessa lei. 5.2. Requisitos de validade da autonomia
As advance directives permitem que o privada
paciente antecipe suas decisões, caso
posteriormente não possa manifestar sua Além de respeitar a ordem pública e
vontade. Elas se consubstanciam de três os bons costumes, o exercício da autonomia
formas: 1) living will; 2) durable power of attorney privada, como manifestação humana que
for health care; 3) advanced core medical directive. pretende produzir efeitos jurídicos, exige
O living will ou “testamento em vida” requisitos de validade, são eles: informação,
pretende estabelecer os tratamentos médicos discernimento e ausência de condicionadores
indesejados, caso o paciente incorra em estado externos.
de inconsciência ou esteja em estado terminal. No momento em que emitir sua
São mais comuns as disposições sobre recusa decisão, o paciente deve estar esclarecido do
de entubação e de ressuscitação (do not diagnóstico, do tratamento mais adequado a se
ressuscitate orders). implementar e de seus efeitos, positivos e
Pelo durable power of attorney for health negativos. A decisão deve ser revestida do
care (poder duradouro do representante para maior número possível de informações, que
cuidados com a saúde – ou, simplesmente, devem ser passadas de forma clara e
mandato duradouro) estabelece-se um abrangente, avaliando as opções de
representante para decidir e tomar as tratamento, riscos e benefícios.
providências cabíveis pelo paciente. O paciente precisa ter discernimento
A advanced core medical directive para a tomada de decisão. Discernimento
(diretiva do centro médico avançado) diz significa estabelecer diferença; distinguir, fazer
respeito a estado terminal. Por esse apreciação. Exige-se que o paciente seja capaz
instrumento o paciente estabelece os de compreender a situação em que se
procedimentos a que não quer se submeter e encontra. Em direito, a capacidade de fato (ou
nomeia um representante. Trata-se, portanto, capacidade para o exercício) normalmente se
de um documento mais completo, voltado traduz em poder de discernimento, no entanto,
para paciente terminais, que reúne as diante do quadro clínico, o médico deverá
atestar se o nível de consciência do paciente
Disponível em
<http://www.cfm.org.br/revista/bio2v1/reconheci.html
permite que ele tome decisões.
> Capturado em 12/03/01.

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Por fim a autonomia privada requer Eu tenho o direito de conservar o

que não haja condicionadores externos à sentimento de esperança seja qual for a

manifestação externa de vontade, isto é, a variação em sua focalização.

vontade deve ser livre, não podendo Eu tenho o direito de ser cuidado por

comportar quaisquer vícios, sejam sociais ou aqueles que podem manter um sentimento

do consentimento. Os únicos condicionantes de esperança, seja qual for a mudança que

admitidos são os da própria consciência do possa ocorrer.

paciente. Eu tenho o direito de exprimir os meus

5.3. Direitos e deveres sentimentos e emoções a respeito de

minha morte próxima, à minha maneira.

Pautado na autonomia privada do Eu tenho o direito de não ser enganado.

paciente, que como partícipe no processo de Eu tenho o direito de ser ajudado, assim

intervenção médica deve ser ouvido e ter sua como a minha família, a aceitar a morte.

vontade respeitada, exige-se certas condições: Eu tenho o direito de morrer em paz e com

a) O paciente, representante ou dignidade.

responsável precisa ser informado Eu tenho o direito de manter a minha

do diagnóstico, da evolução da personalidade e não ser julgado por

enfermidade, das alternativas de minhas decisões que podem ser contrárias

tratamento, seus riscos, benefícios às crenças dos outros.

e possíveis seqüelas; Eu tenho o direito de participar das

b) A intenção do agente de saúde decisões sobre a minha assistência.

voltar-se-á para uma finalidade Eu tenho o direito de exigir a continuada

positiva, devendo os efeitos assistência médica e de enfermagem,

positivos da intervenção serem mesmo embora as metas de ‘cura’ possam

proporcionalmente superiores aos ser mudadas pelas metas de ‘conforto’.

efeitos negativos; Eu tenho o direito de não morrer sozinho.

c) A técnica interventiva terá de ser Eu tenho o direito de ser libertado da dor.

imprescindível, não podendo ser Eu tenho o direito de ter as minhas

substituída por outra com menos perguntas respondidas honestamente.

efeitos negativos. Eu tenho o direito de discutir e aumentar


Note-se, ainda, que a morte é etapa as minhas experiências religiosas e/ou
inafastável da vida. É dever do médico aceitá- espirituais, independente do que possam
la, não utilizando procedimentos que significar para os outros.
prolonguem a dor e o sofrimento. Nesse Eu tenho o direito de exigir que a
sentido é a Declaração de Direitos da Pessoa inviolabilidade do meu corpo seja
Moribunda. respeitada após a morte.

Eu tenho o direito de ser assistido por


“Declaração de Direitos da Pessoa pessoas carinhosas, sensíveis e com
Moribunda capacidade de sentir prazer em me ajudar
Eu tenho o direito de ser tratado como um em face da morte.”
ser humano até a minha morte.

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Ultrapassada a época em que a têm suas condutas generalizadas a partir de


medicina encontrava-se na fase deísta, o século maus exemplos.
XX trouxe alguns complicadores da relação Todos esses fatores criam
médico-paciente. Pode-se citar, como exemplo, constrangimentos na relação médico-paciente.
a biotecnologia, a crescente especialização, o É preciso competência, maturidade e
papel dos meios de comunicação e também a sensibilidade, principalmente por parte do
interposição institucional. profissional no sentido de redirecionar esta
O que freqüentemente se diz, nos dias relação.
de hoje, é que a tecnologia, com suas Ultrapassadas essas preliminares,
aparelhagens cada vez mais sofisticadas, passa-se a ponto de fundamental importância:
substituiu, e muito, o contato do médico com o Como deve proceder o médico diante de
paciente. O calor humano do profissional diagnóstico de doença grave do paciente?
tornou-se mais distante. Cumpre deixar claro que o tipo de doença que
O desenvolvimento tecno-científico é se pretende abordar aqui refere-se àquela de
necessário, mas deve ser posto à disposição da natureza grave, porquanto diagnósticos leves
saúde e bem-estar do homem, trazendo por não causam grandes repercussões na vida da
conseqüência, melhoria na sua qualidade de pessoa.
vida. O direito à informação é
As crescentes especializações dos constitucionalmente assegurado (CR, art. 5º,
médicos, embora necessárias, causam XIV), e os pacientes têm o direito de saber o
afastamento lógico entre este e o paciente. O que se passa com eles. A verdade é
médico deixou de ser aquele profissional de fundamental, contudo, o médico precisa saber
confiança da família, mas o ‘especialista’, se conduzir, no sentido de não despejar,
indicado por alguém, ou encontrado, por naquele encontro, palavras frias e calculistas, a
coincidência, numa dessas visitas a fim de não alarmar ainda mais a pessoa que já
determinado hospital, ou aquele conveniado se encontra fragilizada. Destarte, o médico
ao plano de saúde do paciente. precisa orientar-se por uma nova ética,
A interposição institucional, seja fundada em princípios sentimentais e
pública ou privada, nos moldes em que se preocupada em entender as dificuldades do
encontra, impõe certo incômodo na relação final da vida humana; uma ética necessária
médico-paciente. O que se vê é o doente sendo para suprir uma tecnologia muitas vezes
tratado pelo nome da doença ou pelo dispensável.
apartamento ou enfermaria em que se Ligado ao direito à informação,
encontra. Não há tempo sequer do paciente encontra-se o direito ao consentimento. Surge,
conhecer seu médico, nem este de saber o daí, a figura do consentimento informado, termo
nome de quem está tratando. aplicado, pela primeira vez, em 1957, por um
Os meios de comunicação trazem a juiz americano: “Um médico viola seu dever
intimidade da vida das pessoas ao para com o paciente e é sujeito de
conhecimento de todos. Muitas vezes veiculam responsabilidades se não proporciona
campanhas contra a classe médica. O resultado qualquer dado que seja necessário para
é a hostilidade para com os profissionais, que fundamentar um consentimento inteligente ao
tratamento proposto. (...) Na discussão dos

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riscos deve-se empregar uma certa dose de deve-se ter em mente que a medicina não é
discrição consistente na completa revelação somente ciência. É arte. É solidariedade. O
dos fatos que é necessária para um médico que pensar de outra forma está fadado
Consentimento Informado.” 21 ao fracasso. Assim, quanto a difícil tarefa de
O consentimento informado é repasse da verdade de determinado
elemento central na relação médico-paciente, diagnóstico ao paciente, o que importa é o
sendo resultado de um processo de diálogo e modus operandi de como ela se realiza. Não
colaboração, visando satisfazer a vontade e os pode ser feita com vistas a desestruturação
valores do paciente. 22 Lembramos novamente emocional da pessoa, atitude que tenderia ao
que, em relação a consentimento informado, o agravamento de suas incertezas. Nesses casos,
termo jurídico de valor semântico semelhante a conversa com a família também é
e mais apropriado é autonomia privada. recomendada. O paciente, ao saber a verdade,
Cumpre trazer à baila os dispositivos precisa de apoio, estímulo e compreensão,
do Código de Ética Médica, especificamente porque a doença humilha e angustia.
seus artigos 46 e 48, inseridos no Capítulo IV Segundo o Dr. Dalgimar Beserra de
(Direitos Humanos) que proíbe o médico de: Menezes, presidente do Conselho Regional de
Medicina do Ceará,
“Art. 46 – Efetuar qualquer procedimento

médico sem o esclarecimento e “Outra dificuldade que se surpreende

consentimento prévio do paciente ou de guarda relação com a mania numérica ou

seu responsável legal, salvo em caso de estatística, de caráter mecanicista e

eminente perigo de vida; oriunda de uma espécie de burrice ou de

Art. 47 – Exercer sua autoridade de compreensão imperfeita e reducionista dos

maneira a limitar o direito do paciente de fenômenos biológicos. O médico é

decidir livremente sobre a sua pessoa ou compelido a dizer que o paciente tem três,

seu bem-estar” seis meses, um ano de vida, ou que suas

chances de cura são 30, 40, 50% etc.

Por outro lado, é corrente a afirmação Assume o papel de juiz que sentencia e

de que muitos pacientes não desejam saber a marca a data da execução, de senhor da

verdade sobre a respectiva doença, quando vida e da morte. Dito de outro jeito,

esta apresenta-se grave, e buscam meios de investe-se de atitude de certeza frente ao

enganar a si próprios. Para essas situações, que é muitas vezes imperdoável. Que

estejam contados os dias do paciente,

como se sabe que freqüentemente sucede,


21 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro. O equilíbrio do pêndulo,
a bioética e a lei. São Paulo: Ícone, 1998. p.97. não se discute. Contudo, as pedras têm de
22 “En este contexto, el consentimiento informado es la

piedra angular de la expresión jurídica. Se define como el ser cantadas com muito cuidado.” 23
derecho a obtener información en relación com todos los
hechos médicamente relevantes, a ser informado y a
responder a dicha información mediante el O médico deve buscar cautela e
consentimiento. Estos derechos y su contexto médico han
sido desarrollados por la literatura general a un nivel muy ponderação. O caso lhe dirá como agir. O
técnico, concretamente en lo relativo a sus implicaciones respeito ao paciente e à sua família– porque há
jurídicas. Pero normas y valores sociales de nuestra
cultura, normas jurídicas, la atención médica y
consideraciones éticas confluyen en esta cuestión.” 23 MENEZES, Dalgimar Beserra. A ética médica e a verdade

BROEKMAN, Jan M.. Bioetica com rasgos juridicos. Madrid: do paciente. Desafios Éticos. Brasília: Conselho Federal de
Dilex, 1998. p.137. Medicina, 1993. p. 217.

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situações em que, devido à evolução da paciente, pois prolonga seu poder além do
doença, não há razão para causar mais ato de vontade, consistindo-se em poder
desconforto ao moribundo, o que implica no normativo e, portanto, fonte jurídica.
conhecimento dos familiares acerca do  Além da ordem pública e dos bons
problema – é fundamental. costumes, a autonomia privada do
O profissional de medicina não pode paciente exige que este tenha
esquecer que muito maior que todos os conhecimento de seu diagnóstico e
avanços biotecnológicos é o ser humano, que prognóstico, que devem, portanto, serem
ri, chora, sofre, tem depressão, medo e expressos de forma clara e inteligível. Para
esperanças. Precisa de carinho, cuidado e emitir sua vontade, o paciente deve, ainda,
atenção. Estas também são obrigações do possuir discernimento, devendo-se avaliar,
médico, afinal, não é por acaso que sua no caso concreto, sua maturidade e nível
profissão é chamada de ciência humanitária. de consciência. Por fim, a manifestação de
vontade não pode sofrer
6. CONCLUSÃO condicionamentos externos, que causariam
defeitos ao ato jurídico praticado,
 A vida deve ser considerada em todos os maculando-o por vícios do consentimento
seus aspectos, não só no aspecto biológico. ou vícios sociais.
Para tanto, cada situação real pede uma
abordagem e o prolongamento da vida 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
não pode identificar-se com
prolongamento de sofrimento. AFONSO, Elza Maria Miranda. O direito
 O princípio da dignidade da pessoa fundado na dignidade do homem. Revista da
humana é fio condutor de todas as Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.
relações jurídicas. É a incorporação de 2, n. 3 e 4, 1º e 2º sem. 1999. p. 39-51.
valores, como liberdade e dignidade, à AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução.
vida e erigidos à categoria de princípio, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
que, como tal, é norma jurídica imperativa. ASSAD, José Eberienos. Relação médico-
Sua utilização pode dirigir outras normas, paciente no final do século XX. Desafios Éticos,
auxiliando na criação, interpretação e Brasília, 1993, p. 104-112.
aplicação destas, ou pode fazer-se de per si, BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA,
diretamente e em caráter principal (e não Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito.
subsidiariamente). São Paulo: Atlas, 2001.
 A autonomia privada compõe a dignidade BONFANTE, Pedro. Instituciones de derecho
da vida humana e permite sua realização. romano. Trad.: Luis Bacci; Andrés Larrosa. 8ª
 A relação jurídica médico-paciente é ed. Madrid: Reus, 1929.
relação contratual, conformada por valores BROEKMAN, Jan M.. Bioetica com rasgos
integrantes do sistema jurídico e juridicos. Madrid: Dilex, 1998.
expressos, principalmente, por princípios. CLOTET, Joaquim. Reconhecimento e
 O termo consentimento informado é, em institucionalização da autonomia do paciente:
Direito, trabalhado como autonomia privada um estudo da “the patient self-determination
e não se restringe à autodeterminação do act”. Revista Bioética. Disponível em:

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GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios
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MENEZES, Dalgimar Beserra. A ética médica e a
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