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Neurose de angústia
e transtorno de pânico
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Resumo
Partindo da afirmativa lacaniana “a angustia é o que não engana” até a perplexidade do sujeito
diante da pergunta “Como você quer que eu me posicione?”, este texto faz um levantamento histó-
rico dos primeiros estudos sobre as crises de angústia e os ataques de pânico. Retoma o estudo
sobre a Neurose de Angústia feito por Freud, cuja descrição nosográfica foi a usada pelas classi-
ficações psiquiátricas até 1980. Neste percurso, podemos acompanhar como a expressão Síndro-
me de Pânico veio em substituição à nomenclatura anterior, chegando a Transtorno de Pânico.
É abordada ainda a evolução do conceito de angústia e sua apresentação clínica nos indivíduos
submetidos ao real que os invade. As posições de sujeito e objeto são evidenciadas, revelando a
falência do funcionamento psíquico diante de um desamparo radical, levando ao desvanecimen-
to do sujeito. As questões clínicas referentes ao tratamento psicanalítico e psiquiátrico desses
pacientes são trazidas à discussão através do relato de uma sintomatologia exuberante e de uma
pesquisa das fantasias inconscientes que compõem todo o quadro.
Palavras-chave
Angústia, Neurose de Angústia, Síndrome de Pânico, Transtorno de Pânico, Sintomatologia,
Libido, Falta, Posição de Sujeito e Objeto, Real, Simbólico, Imaginário, Objeto a, Desamparo
radical, Gozo, Desejo.
1. LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.131.
bre o homem. A Igreja, por exemplo, con- duzido para o português. Um pouco mais
siderava esse estado afetivo uma decorrên- tarde, na França, H. Legrand Du Saulle
cia do desejo do homem pelo amor de (1876) também privilegia o transtorno do
Deus. Também as sociedades primitivas medo diante de espaços, mas retira o en-
depositavam nos deuses ou na Natureza a foque de serem públicos. Ele destaca a
responsabilidade de seus afetos. amplidão e o vazio dos espaços, não im-
A filosofia, por sua vez, não conside- portando se públicos ou privados. Já Emil
rava essa dimensão cindida do ser dentro Kraepelin (1878), psiquiatra alemão, re-
dele próprio. Era impossível pensar o ho- feriu-se aos ataques de angústia como neu-
mem fora de uma consciência de si mes- rose de terror (Schreckneurose) atribuindo
mo. A angústia seria a expressão do te- à angústia um valor etiológico. Depois
mor de consequências que, porventura, a foram descritos, também na França, os
ira de seres superiores poderia ter sobre o “terrores mórbidos” por E. Doyen (1885)
homem. Este ainda não era visto como enfatizando que apesar da percepção, pelo
portador de uma vida pulsional que se paciente, de uma irracionalidade do afe-
movimenta no seu interior e deixa em to, isso não impedia a ocorrência das cri-
evidência sua divisão. ses, e a “ansiedade paroxística” de Bris-
Mais tarde, a filosofia introduziu a saud (1890) que ressaltava a ausência de
ideia da angústia diante do Nada, com S. fatores físicos na vivência de forte senti-
Kierkegaard. Os pensadores se seguiram, mento de morte iminente. S. Freud em
aprofundando essa concepção do homem 1894 apresenta a classificação de “neuro-
angustiado pela sua própria existência, se de angústia”. Já no século XX, surge na
chegando à psiquiatria, com sua concei- França a “grande ansiedade” de Henri Ey
tuação biológica, e à psicanálise, inovan- (1950), que enfatiza o caráter paralisante
do com a revelação de uma divisão estru- do medo. No Brasil temos Iracy Doyle,
tural do homem e o seu desamparo psí- psiquiatra e psicanalista, que em 1955, em
quico. seu Nosologia Psiquiátrica, afirma ser a an-
Os primeiros estudos reconheciam gústia, apresentada nesses quadros, um
clinicamente as crises de angústia e as fo- sintoma neurótico, de motivações múlti-
bias. Essas últimas, sendo uma tentativa plas e raízes muito precoces. Foi uma das
de barrar a angústia e usando de desloca- pioneiras no Brasil a preconizar o encami-
mento e objetos substitutivos, foram se nhamento desses pacientes para o psica-
classificando nosograficamente, de acor- nalista, dizendo que “só ele seria capaz de
do com o objeto fóbico escolhido. Então, lidar com a complexidade de tais situações”2.
temos: agorafobia, claustrofobia, acrofo- Em 1979, A. Nobre de Melo, psiquiatra
bia, hidrofobia, fobia de animais, fobia so- brasileiro, considera o pânico uma emo-
cial, etc. ção primária observável desde o nascimen-
Antes da psicanálise, esses quadros to e ligada à vida afetiva. Outros psiquia-
eram descritos pela psiquiatria e para fa- tras também concorreram com novas des-
lar da angústia, citando apenas alguns au- crições para os transtornos psíquicos de-
tores, começamos, em 1872, com o termo sencadeados pela angústia, chegando aos
agorafobia que foi introduzido pelo psiqui- nossos dias como Transtorno de Pânico.
atra alemão Karl Frederic Westphal refe- Para a medicina, sempre vigorou o
rindo-se às crises de angústia em lugares, enfoque organicista, mas alguns psiquia-
não só abertos, mas públicos, apontando
uma questão social nos ataques. Nessa 2. DOYLE, Iracy. Nosologia psiquiátrica. Impresso no
época publicou o texto “A agorafobia, uma Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Fari-
doença neuropática”, que se encontra tra- as: Rio de Janeiro, 1961, p.74.
tras se afastaram desta concepção e apon- gústia à Neurose de Angústia descrita por
taram uma dimensão mais subjetiva para Freud, passando, nesse intervalo, pelas
esse transtorno. Assim, Ludwig Binswan- fobias, neurose de terror, ansiedade paro-
ger, psiquiatra suíço, na década de 1920, xística, síndrome do pânico, chegando aos
correlaciona a angústia à dimensão exis- compêndios psiquiátricos atuais como
tencial fundamental da “derrelição”, ter- Transtorno de Pânico, terminologia hoje
mo tomado do filósofo Martin Heidegger. consagrada.
“É uma existência confrontada com uma si- Neurose de Angústia e Transtorno de
tuação de desamparo total, encontrando-se, Pânico, a princípio, parecem ser duas en-
de repente, abandonada e desprovida de qual- tidades clínicas distintas, tratadas por ci-
quer ajuda, seja humana ou divina”3. ências também distintas. A primeira seria
Donald F. Klein, no início da década do domínio da psicanálise e a segunda da
de 1960, considerou em muitos casos a psiquiatria? Parece que assim se estabele-
participação de alguns aspectos emocio- ceram a partir do momento em que a clas-
nais, entre eles, a angústia de separação. sificação nosográfica do Distúrbio de Pâ-
Esta, quando vivenciada pelas crianças, se nico foi oficialmente usada pelo DSM-III,
transformaria na vida adulta nos ataques em 1980, que o descreve como “o apareci-
de pânico. Avançando nos seus estudos, mento súbito de uma apreensão intensa, medo
ele relacionou esses ataques a descargas ou terror, associados frequentemente com sen-
descoordenadas de neurônios que seriam timentos de catástrofe iminente”4. Apresen-
os responsáveis pelas respostas da criança ta uma lista de acometimentos físicos e
às situações de separação da mãe. Assim, termina dizendo que os ataques duram,
associava os ataques de angústia também geralmente, minutos; mas podem chegar
a transtornos no funcionamento bioquí- a horas. A subjetividade envolvida nas
mico, enquanto outros pesquisadores de- crises não era considerada, e abordagens
fendiam a ideia de um distúrbio metabóli- psicológicas só seriam aceitas com o su-
co. porte medicamentoso. Em 1995, foi edi-
A indústria farmacêutica, baseada nas tado o DSM-IV, em que a expressão Sín-
causas orgânicas estabelecidas para esses drome do Pânico não aparece mais.
transtornos, muito se desenvolveu e avan- Alguns anos depois, esta entidade foi
çou na eficácia de produtos para a con- incorporada à Classificação Internacional
tenção das crises. Tem se esmerado na pro- de Doenças da OMS – CID, hoje, a CID-
dução de medicamentos, direcionando-os, 10, onde no Capítulo V: Classificação de
cada vez mais, para sintomas específicos. Transtornos Mentais e de Comportamen-
Porém, esta terapêutica ainda não pode to (1993), encontramos Transtorno de
ser considerada totalmente eficaz, pois não pânico ou Ansiedade paroxística episódi-
garante a evitação da eclosão da angústia, ca, F41.0. Está descrito como a ocorrên-
e não consegue impedir que os pacientes cia de “ataques recorrentes de ansiedade gra-
se sintam ameaçados pelo seu retorno. ve (pânico), os quais não são restritos a qual-
Por ser a angústia um afeto devasta- quer situação ou conjunto de circunstâncias
dor e multissintomático, sua descrição clí- em particular e que são, portanto, imprevisí-
nica deu muitas voltas levando a modifi- veis. (...) os sintomas dominantes variam de
cações na nomenclatura, de crises de an- uma pessoa para outra, porém, início súbito
9. FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias 10. SOLER, Colette. Discurso e trauma. In: Retorno do
sobre psicanálise (1932). Conferência XXXII – An- Exílio – o corpo entre a psicanálise e a ciência. Org.
gústia e vida pulsional. ESB. Rio de Janeiro: Imago, Sonia Alberti e Maria Anita Carneiro Ribeiro. Rio de
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ANXIETY NEUROSIS
AND PANIC DISORDER Bibliografia:
Abstract BESSET, Vera Lopes. Angústia. São Paulo: Escuta,
Starting from the Lacanian statement anguish 2002. 216 p.
is something that never misleads” to the BICALHO, Clovis Figueiredo Sette. A angústia e
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n.21, 1998. 118 p. Publicação do Círculo Brasilei-
“What do you want from me?”, this text ro de Psicanálise. Belo Horizonte, Minas Gerais.
makes a historical survey of the first studies
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ta Estudos de Psicanálise, n.20, 1997, p.113. Publi-
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Neurosis done by Freud, whose nosographic Horizonte, Minas Gerais.
description was used by Psychiatric CID-10, Classificação de transtornos mentais e de
Classifications till 1980. In this way, we can comportamento da OMS de Genebra. Porto Alegre:
see how the term Syndrome of Panic came to Artes Médicas, 1993. 351 p.
replace the previous classification, coming to DOYLE, Iracy. Nosologia psiquiátrica. Impresso no
the name of Panic Disorder. It also discusses Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de
the evolution of the concept of anguish and Farias, Rio de Janeiro, 1961. 617 p.
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evidence, revealing the failure of the psychic
functioning before a radical helplessness, FREUD, Sigmund. Extratos dos documentos diri-
gidos a Fliess. Rascunho A (1892). ESB. Rio de
leading to the fading of the subject. The Janeiro: Imago, 1976, v.I, p.245.
clinical issues related to psychiatric and
psychoanalytic treatment of these patients are FREUD, Sigmund. Extratos dos documentos diri-
gidos a Fliess. Rascunho B (1893). ESB. Rio de
brought to discussion through the description Janeiro: Imago, 1976, v.I, p.247.
of an exuberant symptomatology and the
FREUD, Sigmund. Extratos dos documentos diri-
search of the unconscious fantasies that make gidos a Fliess. Rascunho E (1894). ESB. Rio de
up the whole picture. Janeiro: Imago, 1976, v. I, p.261.
FREUD, Sigmund. Sobre os critérios para desta-
Keywords car da neurastenia uma síndrome particular inti-
Anguish, Anxiety Neurosis, Syndrome of tulada ‘neurose de angústia’ (1894). ESB. Rio de
Panic, Panic Disorder, Symptomatology, Janeiro: Imago, 1976, v.III, p.107.
Drive, Fault, Positions of Subject and Object, FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma in-
Real, Symbolic, Imaginary, Object a, Radical trodução (1914). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976,
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helplessness, Enjoyment, Desire.
FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias so-
bre psicanálise (1916/17). Conferência XXV- An-
gústia. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XVI,
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FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise
do eu (1921). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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(1926). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XX,
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