Você está na página 1de 7

1

DISPOSITIVO GRUPAL ACIONANDO RESISTÊNCIA AOS MODOS DE


ASSUJEITAMENTO DA SUBJETIVIDADE

Dr. Soraia Georgina F. Paiva Cruz, Rener B. de Martini, Priscilla G. da Silva, André
Elias M. Ribeiro, Antônio Gomes, Eduardo K. F. Honji, Juliana P. Perez, Luiz B. S.
Machado Junior, Marcos Cesário, Dejane C. R. Gonçalves; Wiliam M. Pereira, Sônia
Romeiro Costa, Tiago Fabiano Dela Rosa, Luciana Mendonça, Michelle de Souza
Prado, João Paulo de O. Carmo, Cláudia dos Santos Geraldo, Meire Helen Godoi de
Moraes, Danilo Dellu Siqueira, Vinícus Reis - UNESP FCL Assis.1

Resumo: A presente pesquisa-intervenção faz uso do referencial institucionalista. Para


tanto, utiliza as ferramentas de Michel Foucault, Gregório Baremblitt e Regina
Benevides Barros que compreendem o sujeito como derivado dos saberes, das redes de
poderes e da ética. Nesse sentido, apontamos neste trabalho uma prática que busca fugir
dos paradigmas que falam de sujeitos universais e dos que focalizam o psicológico em
processos privados e íntimos. O referido trabalho é desenvolvido num estabelecimento
de atendimento à infância e adolescência consideradas de risco pessoal e social. Esse
estabelecimento foi criado na década de 70 em plena ditadura militar; sua criação é
efeito das forças históricas, políticas e sociais num momento em que se afirma a virtual
periculosidade de crianças e adolescentes nas ruas. A demanda para nossa intervenção
era de que essa população tinha problemas psicológicos e de aprendizagem. Nos
dispusemos, então, a promover assembléias com os funcionários e educadores e pensar
no uso dos grupos com adolescentes e crianças como dispositivo em ação. O conceito
de grupo-dispositivo nos permite acompanhar as linhas de enunciação, de visibilidade,
de força, de subjetividade e as de resistência e fuga. Fomos gradativamente
desconstruindo processos de psicologização e desnaturalizando processos de associação
entre pobreza e criminalidade, processos estes que produzem o mito da população pobre
como perigosa. Indagamos ainda sobre os processos de administração das virtualidades
das composições humanas, a tutela, o controle social e a caridade como tecnologia de
controle da população pobre, processos que ganharam visibilidade em nossa
intervenção. Percebemos ainda territórios cristalizados e subjetividades assujeitadas que
não se permitiam inovações e criações. As homogeneidades nos modos de pensar
circulavam pelo estabelecimento, principalmente aquelas relacionadas às crianças e
adolescentes que, por sua condição de existência, eram vistos e tratados como
virtualmente perigosos.Tornando esses processos evidentes, provocamos
problematizações, inquietações e propagamos o desassossego numa tentativa de instituir
nesse lugar novas formas de pensamento, novas formas de inscrição social, abrindo
perspectivas, bifurcando sentidos novos. Disponibilizamos livros, textos, filmes,
músicas, grafite, teatro e multiplicação dramática, análise de propagandas,
aprendizagem de línguas, contos fantásticos, matemágica, cinema brasileiro e
colocamos vários dispositivos com objetivo de dar passagem aos devires artísticos,
poéticos culturais e outros. As transformações podem ser observadas através do
interesse pela literatura, análises de filmes, composição de rap e de peças teatrais,
grafites que denotam expressões artísticas, análises de propagandas e muitas outras que
ainda não puderam ser cartografadas.

1
E-mail: kenji_psico@yahoo.com.br
2

A presente pesquisa-intervenção é realizada num estabelecimento de

assistência à infância considerada de risco pessoal e social. Esta entidade possui caráter

filantrópico, assistencialista e caritativo com cunho religioso, sem fins lucrativos, sendo,

hoje, mantida por parcerias estatais e com a comunidade local.

O estabelecimento nasceu no bojo da Ditadura e do AI n.º 5. Nesse período,

dá-se forma ao “menor infrator” e à infância virtualmente perigosa para si e para a

sociedade. Podemos perceber que quando esse estabelecimento foi criado, ele surgiu

não apenas por motivos filantrópicos, mas também como efeito do momento político,

econômico e social que se configurava na realidade brasileira.

Assim, surgiu o estabelecimento em questão com o intuito de oferecer para

essas crianças e jovens cursos pré-profissionalizantes, educação e lazer a fim de evitar

que essa população ficasse vagando pelas ruas, pois este lugar era visto como uma

“escola do mal”. Como alternativa, surge esse estabelecimento como uma forma de

administrar essas possibilidades dentro do cenário social.

Essa alternativa persiste até hoje, (re)produzindo no estabelecimento práticas

pedagógicas de autoritarismo e higienismo, tutelando e administrando as virtualidades

do comportamento humano.

Segundo um relatório do estabelecimento de 1999, as crianças e adolescentes

assistidos “apresentavam-se em situação de risco pessoal e social, ainda que não em

nível extremo, mas muito provavelmente poderiam atingi-lo, uma vez que estavam

inseridos em um contexto familiar e social cuja realidade englobava a drogadição, o

alcoolismo, a prostituição e a criminalidade conforme as estatísticas mostravam”. A

análise de algumas entrevistas com a população revelam que estes são mitos nos quais o

estabelecimento se agarra para se manter e se reproduzir. Podemos, ainda, perceber no


3

discurso uma associação entre a pobreza e a criminalidade, apontando as crianças e

adolescentes como estando em risco por serem empobrecidos socialmente.

Consideramos que esta concepção reafirma lugares de marginais, de

delinqüentes, drogaditos perigosos para si e para a sociedade. Observamos que estas

concepções/práticas são responsáveis pela manutenção de uma política de atendimento

que não propicia a esta população experimentar outros lugares e possibilidades que não

as da exclusão social, do preconceito, da vitimização e dos processos de estigmatização.

Para problematizar esses processos, vimos há 4 anos desenvolvendo no

referido estabelecimento uma Análise Institucional a fim de darmos visibilidade aos

jogos de forças institucionalizadas, evidenciando práticas discursivas e não-discursivas

enunciadas pelos funcionários, pais, crianças e adolescentes.

Hoje, a instituição propõe-se a atender crianças e adolescentes com idade

entre 7 e 17 anos. Um dos critérios para sua seleção é uma análise da situação familiar,

dando-se preferência às mais pobres, e ainda há uma exigência de que elas estejam

devidamente matriculadas em escolas públicas. Durante o tempo em que estão na

instituição, elas têm atividades recreativas, atendimento psicopedagógico e assistencial,

aprendizado de informática, marcenaria e bordado em panos de prato. Na década de 90,

criamos uma modalidade de atenção aos adolescentes denominada “Oficinas de

Cidadania e Direitos Humanos”, visando desconstruir uma prática psicologizante

instituída nesse estabelecimento. Em 2005, criamos um projeto intitulado “A arte de

Ensinar” em parceria com os cursos de Letras e História e ainda com uma faculdade

privada da cidade de Assis. Assim, disponibilizamos para os adolescentes cursos de

História do Brasil, História do Cinema Brasileiro, Contos Fantásticos, Teatro e Textos

Literários, Matemágica, Gramática da Língua Portuguesa, aulas das línguas inglesa,


4

francesa, espanhola, alemã e italiana e ainda oficinas de Grafite, Teatro e Multiplicação

Dramática, Propaganda e Marketing e Direitos Humanos e Cidadania.

Para conduzirmos nossas intervenções, utilizamos dois conceitos/postulados

básicos da Análise Institucional propostos por G. Baremblitt (1994;17), quais sejam:

auto-análise e autogestão. Entendemos por auto-análise “um processo, por parte dos

coletivos, no qual eles produzem e se apoderam de suas potências, criam um saber

acerca de si mesmos, de suas necessidades, desejos, demandas, problemas, buscando

soluções por si próprios, sem recorrer a especialistas”. Ainda segundo esse autor,

“esse saber se acha, em geral, apagado, desqualificado e subordinado pelos saberes

científicos, que não só estão em boa medida a serviço das entidades dominantes, como

também operam com critérios de verdade. A auto-análise possibilita aos coletivos o

conhecimento e a enunciação das causas de sua alienação. A autogestão é, ao mesmo

tempo, o processo e o resultado da organização independente que os coletivos se dão

para gerenciar suas vidas”.

A Análise Institucional indica uma prática política que, através de um

dispositivo analítico de enunciação, dá visibilidade às várias forças em jogo no campo

social. Dessa forma, enquanto método, permitiu-nos dar visibilidade às práticas de

controle e tutela, gestão e disciplinarização dos corpos, bem como às práticas

educacionais, psicopedagógicas e psicológicas que se conectam no sentido de produzir a

homogeneização das subjetividades. No entanto, apontamos que existem movimentos

virtuais de rupturas com o processo de subjetivação derivada dessas formas de

assujeitamento. Nesse sentido, investimos no campo grupal para que ele se tornasse um

dispositivo de afirmação das rupturas, existências e linhas de fuga.

Devemos ressaltar que a Análise Institucional é uma corrente de pensamento

transdisciplinar e transversalizada por uma multiplicidade de teorias. Portanto, é


5

também um método de explicitações das relações instituídas e instituintes que não são

dicotômicas, mas imanentes.

Com o intuito de desenvolver as nossas oficinas, cartografamos as diferentes

teorias de grupo e percebemos que, embora comportem divergências, elas mantêm

constante alguns pressupostos que, segundo Barros,(1997;184) são: grupo como

intermediário entre sujeito e sociedade; grupo como objeto de investigação a ser

conhecido; uma abstração que o antecede aos indivíduos que o compõe, grupo como

totalidade-estrutura e unidade e ainda numa dicotomia singular/coletivo. Segundo esse

enfoque sobre a grupalidade, um modo específico de subjetivação é privilegiado, qual

seja, aquele que prioriza o indivíduo.

Para nós, esses pressupostos não se aplicam. Grupos são, aos nossos olhos,

acontecimentos que criam outros modos de experimentação da vida e desmontam

territórios cristalizados. São ainda dispositivos, máquinas abertas a conexões e

multiplicidades.

Apostamos nos eixos transversais, de modo que as conexões são

permanentes e não sucessivas umas às outras, de forma que os engendramentos são

possíveis, ou seja, o grupo é tomado como rizoma, de maneira que não se sabe onde

começa ou termina, porém as conexões que vão se formando são visíveis e criam novos

territórios dando passagem aos devires.

Pensando grupos como dispositivos, apontamos uma proposta ética-estética-

política, colocando em questão os modos de produção de subjetividade não direcionados

para um indivíduo, para um modelo privado e intimista, mas sim direcionados para

modos-grupos-múltiplos-coletivos. A questão ética que se coloca é a busca da afirmação

dos devires que tentam ganhar expressão. A perspectiva estética garante modos de
6

criação e invenção permanentes e a política implica uma conexão com o múltiplo-

coletivo no qual as diferenças não param de se ramificar.

Pensando dessa forma, estaremos indagando, a todo o momento, como o

grupo funciona: se através de inquietações, rachaduras, produzindo devires, ou se

funciona de um modo intimista, territorializado, acoplado às subjetividades produzidas

pela ordem dos equipamentos coletivos que gestam modos de pensar e ser.

Nossa intervenção propõe-se a desconstruir a demanda por psicologização e

normatização. Para tanto, utilizamos alguns analisadores históricos que são, segundo

Rodrigues;(1992;42), acontecimentos ou movimentos sociais que condensam uma série

de forças até então dispersas. Alguns deles: a caridade como tecnologia de controle; a

visão do adolescente como problemático, rebelde e indisciplinado. Assim, podemos

dizer que os analisadores históricos deram visibilidade à real função do estabelecimento

e aos paradigmas que engendram as maneiras de se trabalhar com a sua clientela. No

grupo de adolescentes, observamos o analisador histórico sexualidade (ficar, namorar,

amor romântico idealizado e dessexualizado) e ainda alguns analisadores construídos:

movimento hip-hop, a arte como forma de expressão de pensamentos e afetos, cidadania

e direitos humanos, e passeios enquanto dispositivo de inscrição social.

Nesse sentido, pensamos poder elucidar as transversalizações políticas,

históricas e dos fluxos desejantes que atravessam as instituições desse estabelecimento,

desconstruindo, durante os processos grupais, os mitos de infância e adolescência

pobres e perigosas para si e para a sociedade.

Dentro do estabelecimento, procuramos também desnaturalizar a caridade e

mostrá-la como tecnologia de controle da população pobre, população esta que a todo

momento sofre investidas de técnicas de normatização e normalização social.


7

Por fim, durante os processos de implicação com o estabelecimento e suas

instituições, a todo momento estamos problematizando: como estas máquinas estão

funcionando? Para que e para quem elas funcionam?

VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAREMBLITT, G. Compêndio de Análise Institucional e Outras Correntes. Rio de


Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994

BARROS, R. D. B. Grupo e produção in: BAREMBLITT, G. Saúde e loucura. São


Paulo:
Hucitec, n. 4, 145-154, s/d

BARROS,R.D.B- Dispositivo em ação: o grupo in SILVA,ANDRÈ: SaúdeLoucura.São


Paulo, Hucitec, ,n 6,183-191;1997.

CAPONI, S. Da compaixão à solidariedade: uma genealogia da assistência médica. Rio


de Janeiro: Fiocruz, 2000

CRUZ, S. G. F. P. A produção de subjetividade em grupos de crianças em situação de


risco pessoal e social e adolescente em conflito com a lei. Tese de doutorado.
Faculdade de Filosofia e Ciências. Unesp, 2001

______ e outros. Estratégias de controle social. São Paulo: Ed. Arte & Ciência, 2004

RABINOW, P & DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica do


estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995

RAGO, M. Do cabaré ao lar: a utopia da sociedade disciplinar. São Paulo: Paz e Terra,
1985

Relatório do Estabelecimento. Cândido Mota, 1999

RODRIGUES, H. B. C.; LEITÃO, M. B. S.; BARROS, R. B. D. Grupos e instituições


em Análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992

Você também pode gostar