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Ineficiência da política habitacional de Belo Horizonte:


Esclarecimento a partir de NOTA DA PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, veiculada
por reportagem do Jornal Estado de Minas: "BRIGA POR CASA – SEM-TETO
ACAMPAM NA PORTA DA PBH – Prefeitura de Belo Horizonte, MG." (Matéria na capa e
pp. 25 e 26, 30/09/2010.)

Frei Gilvander Luís Moreira1

“A verdade liberta”, diz o evangelho. Logo, se faz necessário esclarecer algumas


inverdades noticiadas na Reportagem, em epígrafe.

1º) Diz a reportagem: “O executivo municipal de Belo Horizonte tem um conjunto de


políticas habitacionais bem sucedido, mas não dará conta de resolver nem 20% da
demanda até 2012.”
Não é verdade que em Belo Horizonte há uma política habitacional bem sucedida. A fila
para a moradia popular da prefeitura não anda. Trata-se de uma demanda reprimida há 15 anos.
É sabido de todos que o déficit habitacional em Belo Horizonte está acima de 55 mil unidades,
segundo dados da própria prefeitura; na região metropolitana, o déficit habitacional está acima
de 173 mil casas e no estado em Minas está em torno de 800 mil casas. Pior: O Programa Minha
Casa Minha Vida ainda não construiu na capital mineira nenhuma casa para famílias que estão
na faixa de 0 a 3 salários mínimos.
Quando a prefeitura de Belo Horizonte não dialoga com Movimentos autênticos como as
Brigadas Populares e com as Ocupações de sem-casa, na prática, a prefeitura está tentando jogar
movimentos populares contra movimentos populares.
O Programa “Vila-Viva”, carro chefe da propaganda político-partidária belorizontina, é
uma política perversa do ponto de vista dos trabalhadores e das trabalhadoras que vivem nas
favelas afetadas, pelos seguintes motivos:
a) Por que as áreas mais distantes da cidade, que apresentam índice de vulnerabilidade
social igual ou, muitas vezes, superior aos das vilas pré-definidas, não foram contempladas no
programa? Não há que se pensar na melhoria da qualidade de vida dos moradores e moradoras
das favelas localizadas no Jatobá, Capitão Eduardo, Ribeiro de Abreu, Jaqueline, Mantiqueira?
A verdade é que o esgotamento das áreas edificáveis nas regiões mais valorizadas da cidade
chamou a atenção do capital imobiliário para as vilas e favelas, tidas, até então, como capital
morto.
b) A mega-intervenção geralmente inclui a construção de uma grande avenida que divide a
vila atingida ao meio, acelerando direta e indiretamente o processo de expulsão das famílias
pobres das áreas afetadas. Apenas no Aglomerado da Serra serão afetadas mais de 50 mil
pessoas. Já na Vila São José, regional Noroeste, serão removidas 8600 pessoas. Essa vila
simplesmente deixará de existir. Das 5.113 famílias que moram no Aglomerado do Morro das
Pedras, aproximadamente um terço, será removida. Assim, é modificado não apenas o sistema
viário das vilas afetadas, mas a própria dinâmica social e a vida da comunidade. Mais apropriado
seria nomear o programa de Vila-Morta...
c) Uma das piores conseqüências das obras para a vida dos moradores e moradoras,
removidos ou não, é a quebra dos laços de sociabilidade, acompanhada do forte abalo
psicológico familiar.
d) Como a maioria dos moradores e moradoras das vilas atingidas não possui título de
propriedade de seus imóveis, geralmente fruto de ocupação, o cálculo das indenizações por
desapropriação não leva em consideração o preço do lote, mas apenas as benfeitorias realizadas
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Padre Carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica e assessor da CPT, CEBI, SAB e VIA
CAMPESINA; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis
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no imóvel. Assim, as indenizações sempre ficam aquém do valor real, o que não permite à
família indenizada comprar uma nova moradia na região.
e) As famílias que são removidas para os “predinhos”, de um dia para o outro, passam a
responder pela conta de água, energia elétrica e, para gravar a situação, taxa de condomínio. A
renda familiar, por sua vez, permanece a mesma. Muito provavelmente, aquela família não terá
condições de arcar com o forte incremento nos gastos mensais que seu novo padrão de moradia
exige. Isso aumenta os conflitos condominiais e, em pouco tempo, essa família será obrigada a
vender o imóvel e se transferir para alguma periferia longínqua, onde seus recursos sejam
suficientes para adquirir um lote ou pagar o aluguel.
f) Ao contrário do discurso amplamente vendido, programas de intervenção em vilas e
favelas desta natureza não integram as favelas às cidades, simplesmente as fazem
desaparecer do mapa, junto com seus habitantes que se vêem rechaçados pela cidade que
um dia lhes abriu as portas.

2º) Diz a reportagem: “Invasões cercam BH.”


Com a professora Delze dos Santos Laureano, no artigo “Invasão ou ocupação de terras?
Quem é o vilão nesta história” ponderamos: Toda grande propriedade no Brasil é injusta.
Desafiamos alguém que consiga nos provar que qualquer latifúndio ou grande propriedade
urbana existente no Brasil tenha sido comprado com dinheiro ganho honestamente. Todas as
grandes propriedades, rurais e urbanas, resultaram de vantagens obtidas junto ao poder do
Estado, com a grilagem de terras ou é fruto de herança, algo que perpetua a desigualdade entre as
pessoas.
A especulação imobiliária urbana é conhecida de norte a sul, de leste a oeste do Brasil.
Todos sabem que terra não tem um valor intrínseco, senão as obras e o trabalho realizados sobre
a sua superfície ou o serviço que pode ser vendido em razão do seu direito de uso. Muitos
proprietários urbanos ganham dinheiro beneficiando-se dos melhoramentos públicos realizados
na região. Assim, detêm uma área de terra, não porque precisam ou porque efetivamente podem
dar uma função social ao imóvel, mas esperando a sua valorização. Só que essa valorização
ocorre em razão da aplicação dos recursos de toda a sociedade e que, portanto, deveriam ser
revertidos em benefício de toda a sociedade. Mecanismo para isso existe na lei, como, por
exemplo, a cobrança do IPTU progressivo, expressamente previsto na Constituição federal, ou a
contribuição de melhoria em razão de obra que supervalorize o imóvel. Porém, como
infelizmente a propriedade é vista como direito absoluto, intocável, ela é sempre protegida pelos
titulares do poder, ainda que contra a dignidade da pessoa humana e em desrespeito à
Constituição federal. Basta ver a quantidade de pessoas que reivindicam um pedaço de chão para
morar ou para trabalhar, enquanto são mantidos os privilégios de uma minoria proprietária que
descumpre o preceito fundamento da função social do imóvel. Por tudo isso, só resta indagar:
será que é defensável em um país com área de 850 milhões de hectares de terra existirem pessoas
sem lugar para morar?
Juridicamente, o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando
em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face
de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto,
para este sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non
para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade.
Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que
é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém
tem a sua posse, como consequência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no
registro, dar as garantias da ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante
ao detentor do título de domínio, o direito à indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da
Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão do imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é
o invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade.
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Mesmo tendo dito o óbvio, acredito que valha a pena, de vez em quando, refrescar a
memória dos mais desinformados acerca da legitimidade das ações dos que lutam de forma
organizada pelo direito à moradia, pelas reformas agrária e urbana, pelo direito de ter trabalho e
renda. Enfim, por uma cidade e sociedade onde caibam todos e tudo. Todos os direitos sociais
são tão protegidos pelas leis brasileiras quanto o direito à propriedade. Ressalvado apenas que o
direito à propriedade sofre a restrição fundamental da exigência do cumprimento da função
social, conforme explicado acima. Melhor pensar como os anarquistas: “Toda propriedade
privada é um roubo!” Toda especulação imobiliária deve ser considerada um roubo e não merece
proteção jurídica.
Para concluir, entendemos que os direitos individuais, como o direito de propriedade, que
são os direitos de liberdade, só podem ser invocados se considerarmos na mesma medida o
direito de igualdade. Nesta esteira é que propomos: antes de defendermos os direitos dos
proprietários temos o dever de defender os direitos da maioria da população que vive condenada
a uma desigualdade gritante. Um processo de exclusão mesmo, em um país tão rico como o
Brasil. Se depender da boa vontade dos políticos de plantão nada será feito senão as migalhas
assistencialistas. As mudanças estruturais só vão ocorrer com a luta do povo organizado. Essa a
nossa bandeira ao apoiar os movimentos sociais populares que contribuem na construção da via
democrática popular no Brasil.

3º) Diz a reportagem: “As Brigadas Populares, ONG – Organização não Governamental
- ...” Atenção! Brigadas Populares não é ONG, é um autêntico e idôneo movimento popular
urbano que, ao lado dos sem-casa e marginalizados pela sociedade capitalista, ajuda na
organização dos pobres para lutar pelos seus legítimos direitos. As Brigadas Populares não
podem ser criminalizadas, são firmes na defesa dos direitos dos pobres, mas estão sempre abertas
ao diálogo. Quem não quer dialogar é quem trata problema social-político como se fosse
problema de polícia.

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