Você está na página 1de 3

Data ___/___/2018 Semestre 2018.

1 Turma ____

Entre o martelo e a cortesia


1
(Renato Janine Ribeiro )

N ietzsche falava em filosofar com o martelo. Queria dizer : para


filosofar, é necessária uma certa dose de destruição, de violência
mesmo. Não se filosofa na base de zumbaias e rapapés. O ataque a
agressão, “agon” que ele tanto prezava - e que significa luta, estando
presente em nossa palavra “antagonista”- são essenciais , se quisermos pensar
para valer. Pensar é, portanto, um ato de batalha, se não de guerra. Isso é
bem diferente do que dissemos no artigo do mês passado. Insistimos então
na necessidade de que um debate seja educado. Isso, antes de mais nada,
porque ninguém pode ter a certeza de estar certo.

Portanto, se respeitarmos um ao outro poderemos trabalhar em conjunto


para chegar a algo melhor. É essa a lição da democracia. Pode ser que o
conhecimento construído em conjunto, tenha um forte elemento
democrático no seu modo de fazer. Mas, mesmo assim, marteladas podem
ser importantes para pensar.

Por quê? Porque há um forte risco, quando dialogamos, de nos enredarmos


ou de sermos enredados.

1
Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo ( USP)
Data ___/___/2018 Semestre 2018.1 Turma ____

Melhor explicando: um diálogo nunca é completamente inocente. Ou


melhor ainda, o poder está com quem formula as perguntas. Se eu dialogar
com você sobre qualquer assunto, e um de nós dois fizer as perguntas, elas já
vão condicionar um tanto as respostas. Um exemplo simples: se eu colocar a
questão de quem vai pagar o déficit da Grécia, eu já assumo que ele pode e
deve ser pago. A resposta vai set sobre os meios, não sobre o problema em
si. Já se eu perguntar se vale a pena a Grécia se arruinar, enquanto a Islândia
simplesmente se negou a pagar a enorme dívida que contraíram em seu
nome, abrirei espaço para outra resposta.

Por isso, mesmo que parece mais democrático, mais inocente, mais
igualitário, que é o diálogo, celebrado desde Sócrates ate Habermas, pode
ter –escondido- um truque. Há um momento notável na Filosofia Antiga,
que é quando um interlocutor diz ao grande filósofo: “Como és autoritário,
Sócrates!” Ou seja, por trás de suas perguntas inocentes, conduzes
insensivelmente a conversa para a conclusão que preferes.

Essa, a contribuição de Nietzsche para a Filosofia: desconfiar do diálogo.


Isso não quer dizer retornar ao monólogo. Ao contrário, é tentar ir além
dele. É tentar ver se, quando conversamos, estamos falando da mesma coisa
(geralmente não estamos). É notar melhor a divergência de posturas face ao
mundo – e a lição democrática aqui, consistirá em aceitar que não haja uma
“única” questão, nem mesmo “a grande questão”, “a questão oportuna”. As
questões interessantes mesmo são as que importunam.

Mas este Nietzsche não será bonzinho demais, um Nietzsche democrata,


quando ele condenava o socialismo e mesmo a democracia? Fique claro que
não estou falando, aqui, do seu pensamento- mas de como certas ideias dele
podem ajudar-nos a pensar. Porque, no fundo, o que importa nos grandes
Data ___/___/2018 Semestre 2018.1 Turma ____

filósofos- ou nos pequenos, até nos medíocres- é como nos auxiliam a


pensar a aventura humana. Para isso, é bom lê-los com atenção, claro, mas
também vale apropriar-se ideias deles que nos sirvam. Nietsche, pelo menos,
nos torna desconfiados.

Para pensar livremente, ou simplesmente para pensar, esta é uma condição


essencial. Daí que martelar não seja agredir o outro. É simplesmente,
reconhecer que a ação de pensar é, a seu modo, uma produção, como diria
um marxista, ou uma guerra, como poderia dizer Nietzsche.

Referência:

RIBEIRO, R. J. Entre o martelo e a cortesia. Filosofia: ciência&vida. São Paulo, n. 66,


p.82, jan.2012.

Você também pode gostar