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Jacqueline Hermann PDF
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Jacqueline Hermann
Universidade Federal do Rio de Janeiro
“[...]e diziao que aquella sociedade era mandada estar alli por Deos, pois
que El Rey Dom Sebastiao havia alli aparecer, e he que era o verdadeiro Rey, e
toda aquela sociedade estava pronta para o deffender, que todos os que alli
estavam seriao muito felizes, e que elles se compadeciao da infelicidade, dos que
não estavam naquella sociedade [...]” 1.
Com estas poucas frases um dos espias enviados ao arraial surgido na Serra do Rodeador
resumia os objetivos de um estranho grupo que se reunira em torno de uma pedra considerada
encantada, no interior da capitania de Pernambuco. Localizado no município de Bonito, distante
cerca de 230 km da capital Recife, e liderado por dois ex-milicianos do 12º. Batalhão, o
movimento da Serra do Rodeador foi objeto de violenta operação militar na madrugada de 26 de
outubro de 1820, na qual foram mortos e presos crianças, mulheres e alguns de seus integrantes.
Os dois dirigentes do grupo, Silbestre José dos Santos e Manuel Gomes das Virgens lograram
escapar ou se tornaram invisíveis para as tropas legais, conforme pregavam a seus aderentes.
Na noite do massacre havia entre 200 e 400 adeptos no arraial, embora não saibamos
exatamente quantos moradores viviam na cidadela batizada de Cidade do Paraíso Terrestre, e na
qual aguardavam a volta de D. Sebastião e seu exército para a fundação de um reino de fartura e
imortalidade. O certo é que na noite do ataque o lugar contava com mais gente do que o habitual,
pois se disseminara a notícia de que a santa iria falar, razão provável para escolha dessa
madrugada para a investida das tropas legais contra o agrupamento 2.
O principal líder, Silvestre José dos Santos iniciara sua peregrinação messiânica em outra
localidade do nordeste do país, provavelmente depois de abandonar as tropas reais, mas não
demorou a ser impedido de propagar suas idéias, em face do conteúdo profético e demasiado
heterodoxo de suas pregações. Passou então a vagar pelo interior de Pernambuco, até finalmente
∗
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.
1
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Seção de Documentos, fl. 37, “Devassa acerca dos acontecimentos da Serra do
Rodeador”, Governadores de Pernambuco, Correspondência com o Ministro do Reino 1820-21. Doravante referida como
Devassa.
2
O movimento da Serra do Rodeador recebeu poucos estudos até ao momento, a maioria deles realizados por
antropólogos e cientistas sociais, tais como René RIBEIRO, «Episódio da Serra do Rodeador (1817-1820): um movimento
milenar e sebastianista», Revista de Antropologia, vol. 8, n.º 2, São Paulo, 1960; Câmara CASCUDO, Dicionário do
Folclore Brasileiro (1954), 4.ª ed., São Paulo, Ediouro, s/d; J. HERMANN, «Sebastianismo e sedição: os rebeldes do
Rodeador na ‘Cidade do Paraíso Terrestre, Pernambuco, 1817-1820», Tempo, Rio de Janeiro, vol. 6, n.º 11, pp. 131-
142, 2001 e «Um paraíso à parte. O movimento sebastianista do Rodeador e a conjuntura politica pernambucana às
vésperas da Independência (1818-1820)», in Maria Fernanda BICALHO e Vera Lucia Amaral FERLINI (orgs.), Modos de
governar. Idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI a XIX, São Paulo, Alameda, 2005.
Comunicações
se instalar, por volta de fins de 1817 ou início do ano seguinte, em localidade próxima à serra do
Rodeador. Silvestre não demorou a conquistar a confiança de um número razoável de seguidores,
e com a ajuda de proprietários locais, fundou a Cidade do Paraíso Terrestre, junto a uma laje
considerada “encantada”, e através da qual os dois líderes acreditavam se comunicar com uma
santa. Esta lhes enviava mensagens sobre a volta do rei português desaparecido no Norte da
África, mais de dois séculos antes: sairia de dentro da pedra, “do lugar onde está uma Cruz, El-
Rei D. Sebastião com seu exército”, assim que a comunidade reunisse mil integrantes. A partir de
então, seus dois líderes se transformariam em Príncipes; os pobres em ricos e a cidade se
tornaria centro do Paraíso Terrestre 3.
É ao mesmo tempo espantosa e desafiadora a sobrevivência da crença sebástica no
agreste pernambucano séculos depois da morte do rei português D. Sebastião na trágica batalha
de Alcácer Quibir, em agosto de 1578. Mais que sobreviver, o sebastianismo revivido no arraial do
Rodeador apresenta características peculiares e em inúmeros aspectos absolutamente distintas
de outras formas de expressão da crença sebástica já conhecidas. Tecida a partir da falta de
notícias sobre o desfecho do combate no Norte da África, a expectativa sobre a volta de parentes,
filhos e maridos certamente colaborou para o surgimento de crença difusa e razoavelmente
generalizada no reino português de que o rei D. Sebastião estava vivo e voltaria para restabelecer
a ordem e a glória da dinastia de Avis. Bisneto de D. Manuel, D. Sebastião esteve à frente de um
dos mais controvertidos reinados portugueses e sua derrota foi creditada tanto à imprudência e
falta de preparo como a fraquezas e defeitos pessoais 4. Do ponto de vista político, a
consequência mais grave da derrota católica para os filhos de Maomé foi a perda da
independência em 1580 e a anexação do reino a Espanha, com o que se iniciou a chamada União
Ibérica, só superada em 1640. Ao longo desse período a crença sebástica só fez aumentar, com
adeptos tanto entre homens da igreja e da nobreza como em meio aos populares 5, e se espalhou
pelos espaços coloniais ibéricos, reapropriado e reinventado de diferentes maneiras como bem
demonstra o caso do Rodeador.
Não é possível estabelecer, evidentemente, uma relação direta entre os primeiros
momentos de surgimento da crença sebástica em Portugal — sem dúvida presos aos
acontecimentos mais imediatos –– e o sentido do movimento da Serra do Rodeador, quase três
séculos depois. Se é certo que o essencial da espera messiânica régia manteve-se intacto, suas
motivações e o cenário da reincidência foram certamente outros, para não falar das próprias
características da espera e dos elementos rituais presentes na Cidade do Paraíso Terrestre. Mas
em que pesem todos esses cuidados, o movimento da Serra do Rodeador foi, pelo menos ao que
sabe até o momento, a primeira manifestação coletiva e explicitamente sebastianista do Brasil
colonial. Outros indícios de disseminação da crença sebástica no Brasil apontam para o que
poderíamos chamar de “chegada do sebastianismo ao Brasil” desde fins do século XVI 6, e para
citar dois exemplos mais conhecidos do século XVIII pode-se lembrar o caso de Rosa Egpicíaca
da Vera Cruz, que de escrava e prostituta tornou-se beata e sonhava casar-se com D. Sebastião e
fundar um Império, no qual seria a imperatriz; e Pedro de Rattes Henequim, português que viveu
3
Devassa, fl. 57.
4
Sobre D. Sebastião ver Vítor Amaral de OLIVEIRA, Bibliografia geral sobre D. Sebastião, Coimbra, Biblioteca Geral
da Universidade, 2002.
5
Há vasta bibliografia sobre o sebastianismo português, dentre a qual destaco João Lúcio de AZEVEDO, A evolução
do sebastianismo, (1918), 3.ª ed., Lisboa, Edidorial Presença, 1984; António Machado PIRES, D. Sebastião e o
Encoberto. Estudo e Antologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982 e José van den BESSELAAR, O
sebastianismo. História sumária. Lisboa, Instituto de Cultura da Língua Portuguesa/ Ministério de Educação e Cultura,
1987. Para uma interpretação sobre o surgimento do sebastianismo em Portugal e suas manifestações entre letrados e
populares nos séculos XVI e XVII, ver Jacqueline HERMANN, No Reino do Desejado. A construção do sebastianismo em
Portugal, séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, caps. 4 e 5.
6
Ver a respeito «O sebastianismo atravessa o Atlântico» in Jacqueline HERMANN, 1580-1600. O sonho da salvação,
Coleção Virando Séculos, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, vol. 3.
2 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades
vinte anos no Brasil e elaborou suas “101 Teses”, nas quais defendia ser o Brasil o lugar da
fundação do Quinto Império do Mundo, fórmula mais sofisticada para designar o Paraíso Terreal
retomado pelos sertanejos do Rodeador 7.
O aspecto coletivo e insurgente dos habitantes da Cidade do Paraíso Terrestre nos remetem
ainda a outras considerações. Segundo Jean Delumeuau 8 pode-se distinguir duas formas de
interpretação dos textos proféticos, surgidas entre fins do século XV e início do século XVI: uma que
acreditava na promessa de mil anos de felicidade e outra que insistia no Juízo Final. Na primeira
corrente encontraríamos ainda métodos diferentes para lidar com a espera de um milênio de fartura e
prosperidade –– um conjunto de manifestações milenaristas dispensava o uso da força para a
chegada do novo tempo; outro apostava na necessidade de apressar a chegada do milênio, para o
que dever-se-ia usar todos os meios disponíveis para acelerar sua consumação.
O sebastianismo português estruturou-se, pelo conjunto de manifestações já conhecidas, a
partir da concepção pacífica da espera, inspirada na doutrina das três idades do monge calabrês do
século XIII, Gioacchino de Fiore, ou Joaquim de Flora, segundo a qual à Idade do Pai, era do Antigo
Testamento, seguir-se-ia a Idade do Filho, tempo do Novo Testamento e, finalmente chegaria a Idade
do Espírito Santo, era de uma nova ordem espiritual, momento de concretização do reino de Cristo
sobre uma terra regenerada. Na outra vertente, adepta do uso da força, estariam os seguidores de
Thomas Münstzer, em 1525, na Alemanha, e os anabatistas e diggers ingleses, só para citar os
exemplos mais conhecidos 9.
Quanto ao Rodeador, parece não haver dúvida de que este se enquadra no conjunto
milenarismos insurgentes, novidade importante do sebastianismo surgido no nordeste do Brasil. Não
sabemos se havia algum projeto de ataque deliberado por parte dos homens liderados por
Silvestre José e Manuel das Virgens, ou se foram as murmurações sobre os espias do governador
e a potencial ação repressiva que engendraram a reação do Roadeador. De toda forma, o uso da
força foi uma opção clara, senão para a apressar a chegada do Encoberto, certamente para
garantir seu direito de verdadeiro e único soberano.
O depoimento cunhado de Silvestre, Antônio Pereira, ex-alferes preso depois do ataque, é
claro nesse sentido. Declarou que antes de entrar para o Rodeador o “Profeta” lhe perguntara se
“tinha animo de se ver entre chuva de pólvora e bala” para “conquistar a Casa Santa de Jerusalém e
o Paraíso Terreal e a destruir a todos aqueles que se opposessem a tão sagrado fim pugnando pela
Ley de Deos para o que se devião reunir bem armados, e que elle avista de tantas venturas
acceitou”. Depois disso, seu “cunhado lhe mandou ensinar hum grande numero de orações (que elle
recitou e que por serem cheias de superstições nos não transcrevemos), e depois continuou a
trabalhar com elle a bem do santo fim a que se tinham proposto”. Antônio Pereira disse não saber ao
certo quantas pessoas viviam na “Cidade”, mas acreditava que havia mais de 200, sendo muitas
mulheres e crianças, e afirmou não ter participado das cerimônias religiosas que se realizavam todas
as noites 10.
Apoiado em depoimentos como esse, o governador Luis do Rego Barretto, comandante do
ataque, procurava comprovar a periculosidade do grupo, e sua iniciativa de investigar os objetivos
do movimento depois do desbarate parece atender mais às pressões políticas que sofria na
capitania do que, de fato, à intenção de apurar o ocorrido, O fato é que devemos à devassa
instaurada em fins de outubro de 1820 a possibilidade de conhecer alguns fragmentos da história
do Rodeador. O documento oficial produzido por ordem do então Governador e Capitão General
7
Para uma análise cuidadosa dos 2 casos ver Luiz MOTT, Rosa Egipcíaca – uma santa africana no Brasil. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil, 1993 e Plínio Freire GOMES, Um herege vai ao paraíso – Cosmologia de um ex-colono
condenado pela Inquisição (1680-1744), São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
8
Jean DELUMEAU, História do Medo no Ocidente (1300-1800), São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 207-209.
9
Ver, dentre outros Christopher HILL, O mundo de ponta-cabeça, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e Norman
COHN, Na senda do milénio, Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos na Idade Média. Lisboa, Presença,
1981.
10
Devassa, fl. 24.
11
Sobre Luís do Rego Barretto ver, dentre outros, José Accursio das NEVES, História Geral da Invasão dos
Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, s/d e Francisco
Pacífico do AMARAL, Escavações: fatos e histórias de Pernambuco. Recife, Typographia do Jornal do Recife, 1884,
edição fac-similar, Recife, Arquivo Público Estadual, 1974. Oliveira LIMA, em D. João VI no Brasil, refere-se a Rego
Barretto como “um militar bravo e leal, sem qualidades de administrador, porém geralmente estimado pelas suas
excelentes qualidades”, cf. D. João VI… cit.,. 3ª edição, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 51.
12
Carlos Guilherme MOTA, Nordeste: 1817. Estruturas e Argumentos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.
13
Idem, Ibidem, p. 2.
14
O grupo liderado José de Barros aterrorizava Pernambuco e outras capitanias vizinhas, assaltando fazendas e
cometendo atrocidades. Era investigado antes mesmo do caso do Rodeador. Por associar este último aos bandoleiros
do Buique – localidade do sertão onde se teria originado— parte das averiguações sobre os bandoleiros foi anexada à
devassa do Rodeador.
15
Devassa, fl. 28.
4 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades
16
Cf. Evaldo Cabral de MELLO, «Cartas Pernambucanas de Luís do Rego Barretto», in Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. LII, Recife, 1979. Doravante referidas como Cartas, 28 de
outubro de 1819.
17
Cartas, 16 de outubro de 1819.
18
Cartas, 14 de novembro de 1818.
19
Cartas, 16 de fevereiro de 1819.
20
Cartas, 27 de maio de 1819.
21
Cf. Fernando Dores COSTA, «Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as questões da
construção do Estado e da Nação», in Análise Social, Lisboa, vol. XXX (130), 1995 (1ª), pp. 121-155.
22
Devassa, fl. 28.
23
Apud Dores COSTA, «Os problemas do recrutamento militar…», cit, p. 128.
24
Apud István JANSÓ, «A sedução da liberdade», in Laura de Mello e SOUZA (org.), História da vida privada no
Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, vol.1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa, p. 394-395.
25
Para um estudo do caso baiano ver István JANSÓ, Na Bahia contra o Império. História do ensaio de sedição de
1798, São Paulo, Hucitec, 1996.
26
Devassa, fl. 39v.
6 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades
muitas vezes, como reclamava o próprio Rego Barretto, mal armados e pessimamente
preparados.
A essa insatisfação concreta de descaso com as milícias, identificada tanto pelas
autoridades como pelos soldados, sem dúvida por interesses e problemas distintos, podemos
agregar algumas considerações sobre o impacto da “interiorização da Coroa”, para essas
populações periféricas, alijadas tanto do centro geográfico como político das decisões e
transformações desencadeadas com a vinda família real para o Brasil. Não passou despercebido
a Maria Odila da Silva Dias, autora de texto clássico da historiografia brasileira sobre a
interiorização da metrópole, a forte impressão causada pela presença do Príncipe Regente e da
corte entre os populares “presos ao condicionamento paternalista do meio em que surgiram,
revoltavam-se contra os monopolizadores (...) porém fascinava-os a Corte e o poder real, com um
verdadeira atração messiânica; era a esperança de socorro de um bom pai que vem curar as
feridas dos filhos” 27.
Esse deslumbramento e submissão reaparece com toda força no Rodeador, marcado
sobretudo pela expectativa de que um verdadeiro rei deveria exercer sua missão primordial: a
administração da justiça. Esta era o centro da racionalidade sagrada com que os homens e
mulheres do arraial percebiam o mundo e segundo a qual organizaram a espera e a resistência
aos opositores de D. Sebastião. O caso do Rodeador indica, por outro lado, que a obediência ao
monarca não era cega ou incondicional, mas dependia do cumprimento adequado dos papéis
esperados de um rei, a demonstrar, por outros caminhos, o desgaste da imagem senão da
monarquia, seguramente do soberano que a comandava àquela altura.
D. João chegara ao Brasil ainda como regente de uma rainha mentalmente debilitada,
falecida no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1816. Não é fácil compreender as razões que
adiaram por praticamente dois anos o reconhecimento oficial de D. João como monarca, primeiro
rei aclamado na América. As indicações mais plausíveis para esse atraso estão indicadas por
Oliveira Lima, apoiado em documento de maio de 1816, segundo o qual “a aclamação não se faz
ainda, sem chegarem as deputações dos reinos de Portugal e Algarves, em razão de não haver
Junta dos Três Estados...”. A questão era evitar futuros problemas “por não ser feita a aclamação
na sede da monarquia” 28. Esta teria sido a origem do adiamento para o ano seguinte, mas os
acontecimentos pernambucanos de 1817 protelaram uma vez mais a cerimônia, finalmente
realizada em 6 de fevereiro de 1818. É digno de nota o fato de um movimento de frontal
contestação à ordem ter sido capaz de provocar o adiamento da aclamação e não sua
precipitação.
As consequências desse interregno, que mantinha em suspenso a situação jurídica de um
herdeiro legítimo da Coroa, e a personalidade introspectiva de D. João VI, devem ter pesado na
construção de uma imagem distante e impopular do rei. É difícil saber como se combinaram
exatamente o impacto da presença da corte, a representação de D. João e as notícias sobre a
aclamação para um grupo de desertores das tropas legais que se instalaram na fazenda cedida
por outro militar no mesmo ano de 1818, data aventada como início provável do ajuntamento no
Rodeador. É possível supor que a instalação da família real no Brasil tenha contribuído para o
ressurgimento de um messianismo régio entre os populares, na medida em que a proximidade da
monarquia parecia tornar mais concreta a relação entre os súditos e o rei, situação que gerou,
assim como entre os homens bons, maiores expectativas sobre os mais variados anseios e
necessidades.
Assim, ao considerarmos as palavras de Maria Odila sobre o fascínio despertado pela
imagem real, a recusa do rei em exercício pelos líderes do Rodeador torna o movimento ainda
mais interessante para a análise das múltiplas interpretações acerca da relação com o monarca,
27
Maria Odila da Silva DIAS, «A interiorização da metrópole», in Carlos Guilherme Mota, 1822. Dimensões, São
Paulo, Perspectiva, 1986, p. 177.
28
Oliveira LIMA, D. João VI no Brasil, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 583.
pois revela que se este apego e deslumbramento de fato existiu, não se deu de forma unívoca, e o
caso do Rodeador demonstra que houve maneiras distintas de lidar com o rei presente. A certa
altura dos depoimentos, um dos presos no arraial, José Fernandes Coitinho, ferreiro, serralheiro e
coronheiro, convidado com o pai a viver na comunidade, declarou que, segundo Silvestre e
Manuel, haveria uma lei nova com o aparecimento de D. Sebastião José e tão logo o prodígio se
realizasse “se daria parte a el Rey Nosso Senhor D. João VI para ver se este senhor queria seguir
a Ley de D. Sebastião José, e querendo o Nosso Soberano seguilla estava tudo acabado, e não
querendo seguilla elles deviaão defender a Ley de El Rey Dom Sebastião, com todas as suas
forças...” 29. Declaração semelhante aparece em outros depoimentos, demonstrando não só
reverência a D. João VI, mas clareza quanto à escolha daquele que acreditavam capaz de exercer
a justiça esperada de um verdadeiro monarca.
A concepção sagrada da realeza e a relação estreita estabelecida entre luta armada e
motivação religiosa foi uma das características estruturantes do Rodeador. À preparação militar
anterior recebida pelos homens que inventaram e aderiram à Cidade do Paraíso Terrestrel,
mesmo que precária, combinou-se à disciplina igualmente rígida para vivenciar uma modalidade
de crença particular. Devoção religiosa à causa da guerra pela vitória do verdadeiro rei: “havia de
haver partidos de parte a parte para cada um seguir os seus direitos e querendo El Rey Dom João
VI havia ser bem premiado por Dom Sebastião, haveria guerra para cada hum seguir seus
direitos” 30. Informado pelos espias que introduziu no arraial, Rego Barreto informava a D. João
sobre a gravidade do movimento: “Reconhecendo hum Rey imaginário, e auctoridades
extravagantes, com uniformes e divisas militares a seu modo (...) inventando milagres, e
practicando horrendas superstições, haviam aberrado dos princípios da verdadeira Religião” 31.
Mas ao que parece, os rituais não interferiam ou impediam a continuação da vida fora do arraial,
embora para frequentá-los fosse necessário autorização expressa de Silvestre José e Manuel das
Virgens. Uma vez aceito, o novo integrante deveria “limpar-se” com um número determinado de
orações e, se possível, pagar 2 patacas quando solteiro, e 4 se casado 32, para receber “Carta da
Irmandade”. Havia ainda uma gradação dos integrantes homens, congratulados com fitas de cores
variadas, a indicar clara hierarquia entre seus membros, e separação rigorosa de homens e
mulheres, representados por “procuradores de homens e mulheres”. Para completar esse breve
quadro, é possível perceber através dos depoimentos uma rede de clientela que favorecia os
familiares de Silvestre José, irmãos e cunhados sobretudo.
Este conjunto de elementos pinçados da devassa demonstram impressionante adesão,
guardadas as devidas proporções, a um certo conceito de Estado e de burocracia que uma vez
mais parece inviabilizar uma interpretação simplista dos objetivos, pelo menos, de seus líderes, a
lembrar os falsos D. Sebastião que se coroaram, nomearam validos e criaram selos reais 33. A
aceitação das hierarquias do Antigo Regime é confirmada em diversos aspectos da organização
da comunidade e, claro, pela defesa explícita da monarquia e da autoridade de um rei capaz de
cumprir seu papel de mediador da ordem e da justiça.
Pelo que os depoimentos nos permitem conhecer sobre as prováveis concepções políticas
dos integrantes do Rodeador, a adesão ao projeto sebastianista e messiânico se fez pela
conjugação específica da sobrevivência do mito do rei encoberto, reapropriada pelos desertores
das tropas, e de um rei que não correspondia às funções dele esperadas. O rompimento do pacto
29
Devassa, fls. 91, 91v e 92. Não foi possível ainda compreender porque ora o nome de D. Sebastião aparece
composto (Sebastião José), ora não.
30
Devassa, fl. 92.
31
Devassa, fl. 27.
32
1 pataca era uma moeda de 320 réis e equivalia ao preço de 3 esteiras.
33
Caso do falso de Ericeira, Mateus Álvares: em 1585 criou verdadeira “corte”, com títulos de nobreza, selos reais e
“coroação” de uma rainha com diadema retirado da imagem da Virgem. Cf. Jacqueline HERMANN, No Reino do
Desejado... cit., cap.5.
8 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades
34
Memória Justificativa sobre a conduta do Marechal de campo Luiz do durante o tempo em que foi Governador de
Pernambuco, e presidente da Junta Constitucional da mesma província. Oferecida à nação portugueza, Lisboa,
Tipographia de Desiderio Marques Leão, 1822.
35
Tal como o caso do Rodeador, são poucos os estudos sobre o Reino da Pedra, a exemplo de T. de ARARIPE Jr., O
Reino Encantado, Rio de Janeiro, Typ. da Gazeta de Notícias, 1878; Antônio Attico de Souza LEITE, Fanatismo
Religioso. Memória sobre o Reino Encantado na Comarca de Villa Bella (1875), 2.ª ed., Juiz de fora, Typ.Mattoso;
Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), 4.ª ed., São Paulo, Ediouro, s/d; além do romance de Ariano
SUASSUNA, Romance d’a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1972. Os dois
movimentos são lembrados por Maria Isaura Pereira de QUEIROZ em O Messianismo no Brasil e no mundo (1963), 2.ª
ed., São Paulo, Alfa-Omega, 1976.