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D. Sebastião no Brasil.

Um estudo sobre o movimento sebastianista da


Serra do Rodeador Pernambuco, 1820 ∗

Jacqueline Hermann
Universidade Federal do Rio de Janeiro

“[...]e diziao que aquella sociedade era mandada estar alli por Deos, pois
que El Rey Dom Sebastiao havia alli aparecer, e he que era o verdadeiro Rey, e
toda aquela sociedade estava pronta para o deffender, que todos os que alli
estavam seriao muito felizes, e que elles se compadeciao da infelicidade, dos que
não estavam naquella sociedade [...]” 1.

Com estas poucas frases um dos espias enviados ao arraial surgido na Serra do Rodeador
resumia os objetivos de um estranho grupo que se reunira em torno de uma pedra considerada
encantada, no interior da capitania de Pernambuco. Localizado no município de Bonito, distante
cerca de 230 km da capital Recife, e liderado por dois ex-milicianos do 12º. Batalhão, o
movimento da Serra do Rodeador foi objeto de violenta operação militar na madrugada de 26 de
outubro de 1820, na qual foram mortos e presos crianças, mulheres e alguns de seus integrantes.
Os dois dirigentes do grupo, Silbestre José dos Santos e Manuel Gomes das Virgens lograram
escapar ou se tornaram invisíveis para as tropas legais, conforme pregavam a seus aderentes.
Na noite do massacre havia entre 200 e 400 adeptos no arraial, embora não saibamos
exatamente quantos moradores viviam na cidadela batizada de Cidade do Paraíso Terrestre, e na
qual aguardavam a volta de D. Sebastião e seu exército para a fundação de um reino de fartura e
imortalidade. O certo é que na noite do ataque o lugar contava com mais gente do que o habitual,
pois se disseminara a notícia de que a santa iria falar, razão provável para escolha dessa
madrugada para a investida das tropas legais contra o agrupamento 2.
O principal líder, Silvestre José dos Santos iniciara sua peregrinação messiânica em outra
localidade do nordeste do país, provavelmente depois de abandonar as tropas reais, mas não
demorou a ser impedido de propagar suas idéias, em face do conteúdo profético e demasiado
heterodoxo de suas pregações. Passou então a vagar pelo interior de Pernambuco, até finalmente


Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.
1
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Seção de Documentos, fl. 37, “Devassa acerca dos acontecimentos da Serra do
Rodeador”, Governadores de Pernambuco, Correspondência com o Ministro do Reino 1820-21. Doravante referida como
Devassa.
2
O movimento da Serra do Rodeador recebeu poucos estudos até ao momento, a maioria deles realizados por
antropólogos e cientistas sociais, tais como René RIBEIRO, «Episódio da Serra do Rodeador (1817-1820): um movimento
milenar e sebastianista», Revista de Antropologia, vol. 8, n.º 2, São Paulo, 1960; Câmara CASCUDO, Dicionário do
Folclore Brasileiro (1954), 4.ª ed., São Paulo, Ediouro, s/d; J. HERMANN, «Sebastianismo e sedição: os rebeldes do
Rodeador na ‘Cidade do Paraíso Terrestre, Pernambuco, 1817-1820», Tempo, Rio de Janeiro, vol. 6, n.º 11, pp. 131-
142, 2001 e «Um paraíso à parte. O movimento sebastianista do Rodeador e a conjuntura politica pernambucana às
vésperas da Independência (1818-1820)», in Maria Fernanda BICALHO e Vera Lucia Amaral FERLINI (orgs.), Modos de
governar. Idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI a XIX, São Paulo, Alameda, 2005.
Comunicações

se instalar, por volta de fins de 1817 ou início do ano seguinte, em localidade próxima à serra do
Rodeador. Silvestre não demorou a conquistar a confiança de um número razoável de seguidores,
e com a ajuda de proprietários locais, fundou a Cidade do Paraíso Terrestre, junto a uma laje
considerada “encantada”, e através da qual os dois líderes acreditavam se comunicar com uma
santa. Esta lhes enviava mensagens sobre a volta do rei português desaparecido no Norte da
África, mais de dois séculos antes: sairia de dentro da pedra, “do lugar onde está uma Cruz, El-
Rei D. Sebastião com seu exército”, assim que a comunidade reunisse mil integrantes. A partir de
então, seus dois líderes se transformariam em Príncipes; os pobres em ricos e a cidade se
tornaria centro do Paraíso Terrestre 3.
É ao mesmo tempo espantosa e desafiadora a sobrevivência da crença sebástica no
agreste pernambucano séculos depois da morte do rei português D. Sebastião na trágica batalha
de Alcácer Quibir, em agosto de 1578. Mais que sobreviver, o sebastianismo revivido no arraial do
Rodeador apresenta características peculiares e em inúmeros aspectos absolutamente distintas
de outras formas de expressão da crença sebástica já conhecidas. Tecida a partir da falta de
notícias sobre o desfecho do combate no Norte da África, a expectativa sobre a volta de parentes,
filhos e maridos certamente colaborou para o surgimento de crença difusa e razoavelmente
generalizada no reino português de que o rei D. Sebastião estava vivo e voltaria para restabelecer
a ordem e a glória da dinastia de Avis. Bisneto de D. Manuel, D. Sebastião esteve à frente de um
dos mais controvertidos reinados portugueses e sua derrota foi creditada tanto à imprudência e
falta de preparo como a fraquezas e defeitos pessoais 4. Do ponto de vista político, a
consequência mais grave da derrota católica para os filhos de Maomé foi a perda da
independência em 1580 e a anexação do reino a Espanha, com o que se iniciou a chamada União
Ibérica, só superada em 1640. Ao longo desse período a crença sebástica só fez aumentar, com
adeptos tanto entre homens da igreja e da nobreza como em meio aos populares 5, e se espalhou
pelos espaços coloniais ibéricos, reapropriado e reinventado de diferentes maneiras como bem
demonstra o caso do Rodeador.
Não é possível estabelecer, evidentemente, uma relação direta entre os primeiros
momentos de surgimento da crença sebástica em Portugal — sem dúvida presos aos
acontecimentos mais imediatos –– e o sentido do movimento da Serra do Rodeador, quase três
séculos depois. Se é certo que o essencial da espera messiânica régia manteve-se intacto, suas
motivações e o cenário da reincidência foram certamente outros, para não falar das próprias
características da espera e dos elementos rituais presentes na Cidade do Paraíso Terrestre. Mas
em que pesem todos esses cuidados, o movimento da Serra do Rodeador foi, pelo menos ao que
sabe até o momento, a primeira manifestação coletiva e explicitamente sebastianista do Brasil
colonial. Outros indícios de disseminação da crença sebástica no Brasil apontam para o que
poderíamos chamar de “chegada do sebastianismo ao Brasil” desde fins do século XVI 6, e para
citar dois exemplos mais conhecidos do século XVIII pode-se lembrar o caso de Rosa Egpicíaca
da Vera Cruz, que de escrava e prostituta tornou-se beata e sonhava casar-se com D. Sebastião e
fundar um Império, no qual seria a imperatriz; e Pedro de Rattes Henequim, português que viveu

3
Devassa, fl. 57.
4
Sobre D. Sebastião ver Vítor Amaral de OLIVEIRA, Bibliografia geral sobre D. Sebastião, Coimbra, Biblioteca Geral
da Universidade, 2002.
5
Há vasta bibliografia sobre o sebastianismo português, dentre a qual destaco João Lúcio de AZEVEDO, A evolução
do sebastianismo, (1918), 3.ª ed., Lisboa, Edidorial Presença, 1984; António Machado PIRES, D. Sebastião e o
Encoberto. Estudo e Antologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982 e José van den BESSELAAR, O
sebastianismo. História sumária. Lisboa, Instituto de Cultura da Língua Portuguesa/ Ministério de Educação e Cultura,
1987. Para uma interpretação sobre o surgimento do sebastianismo em Portugal e suas manifestações entre letrados e
populares nos séculos XVI e XVII, ver Jacqueline HERMANN, No Reino do Desejado. A construção do sebastianismo em
Portugal, séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, caps. 4 e 5.
6
Ver a respeito «O sebastianismo atravessa o Atlântico» in Jacqueline HERMANN, 1580-1600. O sonho da salvação,
Coleção Virando Séculos, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, vol. 3.

2 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

vinte anos no Brasil e elaborou suas “101 Teses”, nas quais defendia ser o Brasil o lugar da
fundação do Quinto Império do Mundo, fórmula mais sofisticada para designar o Paraíso Terreal
retomado pelos sertanejos do Rodeador 7.
O aspecto coletivo e insurgente dos habitantes da Cidade do Paraíso Terrestre nos remetem
ainda a outras considerações. Segundo Jean Delumeuau 8 pode-se distinguir duas formas de
interpretação dos textos proféticos, surgidas entre fins do século XV e início do século XVI: uma que
acreditava na promessa de mil anos de felicidade e outra que insistia no Juízo Final. Na primeira
corrente encontraríamos ainda métodos diferentes para lidar com a espera de um milênio de fartura e
prosperidade –– um conjunto de manifestações milenaristas dispensava o uso da força para a
chegada do novo tempo; outro apostava na necessidade de apressar a chegada do milênio, para o
que dever-se-ia usar todos os meios disponíveis para acelerar sua consumação.
O sebastianismo português estruturou-se, pelo conjunto de manifestações já conhecidas, a
partir da concepção pacífica da espera, inspirada na doutrina das três idades do monge calabrês do
século XIII, Gioacchino de Fiore, ou Joaquim de Flora, segundo a qual à Idade do Pai, era do Antigo
Testamento, seguir-se-ia a Idade do Filho, tempo do Novo Testamento e, finalmente chegaria a Idade
do Espírito Santo, era de uma nova ordem espiritual, momento de concretização do reino de Cristo
sobre uma terra regenerada. Na outra vertente, adepta do uso da força, estariam os seguidores de
Thomas Münstzer, em 1525, na Alemanha, e os anabatistas e diggers ingleses, só para citar os
exemplos mais conhecidos 9.
Quanto ao Rodeador, parece não haver dúvida de que este se enquadra no conjunto
milenarismos insurgentes, novidade importante do sebastianismo surgido no nordeste do Brasil. Não
sabemos se havia algum projeto de ataque deliberado por parte dos homens liderados por
Silvestre José e Manuel das Virgens, ou se foram as murmurações sobre os espias do governador
e a potencial ação repressiva que engendraram a reação do Roadeador. De toda forma, o uso da
força foi uma opção clara, senão para a apressar a chegada do Encoberto, certamente para
garantir seu direito de verdadeiro e único soberano.
O depoimento cunhado de Silvestre, Antônio Pereira, ex-alferes preso depois do ataque, é
claro nesse sentido. Declarou que antes de entrar para o Rodeador o “Profeta” lhe perguntara se
“tinha animo de se ver entre chuva de pólvora e bala” para “conquistar a Casa Santa de Jerusalém e
o Paraíso Terreal e a destruir a todos aqueles que se opposessem a tão sagrado fim pugnando pela
Ley de Deos para o que se devião reunir bem armados, e que elle avista de tantas venturas
acceitou”. Depois disso, seu “cunhado lhe mandou ensinar hum grande numero de orações (que elle
recitou e que por serem cheias de superstições nos não transcrevemos), e depois continuou a
trabalhar com elle a bem do santo fim a que se tinham proposto”. Antônio Pereira disse não saber ao
certo quantas pessoas viviam na “Cidade”, mas acreditava que havia mais de 200, sendo muitas
mulheres e crianças, e afirmou não ter participado das cerimônias religiosas que se realizavam todas
as noites 10.
Apoiado em depoimentos como esse, o governador Luis do Rego Barretto, comandante do
ataque, procurava comprovar a periculosidade do grupo, e sua iniciativa de investigar os objetivos
do movimento depois do desbarate parece atender mais às pressões políticas que sofria na
capitania do que, de fato, à intenção de apurar o ocorrido, O fato é que devemos à devassa
instaurada em fins de outubro de 1820 a possibilidade de conhecer alguns fragmentos da história
do Rodeador. O documento oficial produzido por ordem do então Governador e Capitão General
7
Para uma análise cuidadosa dos 2 casos ver Luiz MOTT, Rosa Egipcíaca – uma santa africana no Brasil. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil, 1993 e Plínio Freire GOMES, Um herege vai ao paraíso – Cosmologia de um ex-colono
condenado pela Inquisição (1680-1744), São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
8
Jean DELUMEAU, História do Medo no Ocidente (1300-1800), São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 207-209.
9
Ver, dentre outros Christopher HILL, O mundo de ponta-cabeça, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e Norman
COHN, Na senda do milénio, Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos na Idade Média. Lisboa, Presença,
1981.
10
Devassa, fl. 24.

Um estudo sobre o movimento sebastianista da Serra do Rodeador Pernambuco, 1820 3


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da Província de Pernambuco é rico na descrição não só dos métodos de investigação utilizados,


como dos rituais e práticas que uniram de forma muito particular luta armada e preceitos
religiosos.
Toda a trajetória de em Pernambuco foi tensa e difícil. O general assumiu a governança de
Pernambuco em maio de 1817, em substituição ao Almirante Rodrigo Lobo, chefe das forças
legais que retomaram Recife dos insurgentes, depois de mais de dois meses de sítio, entre 6 de
março a 19 de maio. Militar considerado fidelíssimo a D. João VI, tinha vasta e conhecida folha de
serviços prestados à Coroa, era fidalgo-cavaleiro da Casa Real de Sua Majestade Fidelíssima,
Comendador da Ordem de Cristo11 e foi convocado pelo rei para impor a tranquilidade na agitada
província. Sua nomeação, no entanto, atiçou ainda mais o já turbulento quadro político
pernambucano.
A insurreição ou revolução pernambucana, termos que procuraram definir o sentido do
episódio, e sobre o qual há muito não se conhece novos estudos, tem no trabalho de Carlos
Guilherme Mota 12 uma referência obrigatória. Para Mota, “na história do mundo luso-brasileiro, o
movimento de 1817 representa o primeiro traço realmente significativo de descolonização
acelerada e radical” 13, com a exacerbação de comportamentos nativistas anticolonialistas e
lusófobos, embora não claramente anti-monárquico ou explicitamente republicano. A
complexidade da “revolução pernambucana”, como acabou conhecida, e a especificidade do
sentido da “revolução” para os que integraram o movimento, não podem estar desligadas do
contexto europeu do início do século XIX, dividido entre os esforços do Congresso de Viena para
“apagar” os resultados da Revolução Francesa e as novas manifestações de cunho liberal que
surgiriam em diversos outros países, a exemplo de Portugal, que em 1820 viveria uma revolução
de caráter liberal.
No caso do Rodeador, e certamente em face dos acontecimentos de 1817, a linha de
investigação adotada por procurava enquadrá-lo como consequência ou continuidade de 1817,
caminho que se mostrou infrutífero com o avanço da averiguação. Na falta de explicação para que
um grupo de desertores pegasse em armas para defender um rei morto e desafiar ao monarca
que vivia no Rio de Janeiro desde 1808, o levou a buscar associá-lo a um grupo de desordeiros
que assustava as cercanias, liderado por um tal João de Barros, também conhecido como o Club
do Buique 14. Mais de 300 fólios depois e cerca de 60 depoimentos coligidos, nenhuma ligação foi
estabelecida com qualquer outro movimento já conhecido, o que tornou a situação política da
capitania ainda mais tensa. Rego Barretto granjeara muitos inimigos nos três anos e meio que
governara Pernambuco. É o próprio governador quem identifica seus opositores políticos na
capitania, “nada menos que os Ouvidores de Recife e Olinda”, denunciava no relatório em que
dava conta das providências tomadas para debelar o movimento do Rodeador, depois de seis
horas de ataque: “a mortandade de huma e outra parte são espantosas”, [mesmo assim] havia
quem “appellidasse o ajuntamento do Rodeador huma povoação de gente pacífica e laboriosa, do
estabelecimento da qual muito bom resultaria de S. Magde. ao Estado e a Nação” 15.

11
Sobre Luís do Rego Barretto ver, dentre outros, José Accursio das NEVES, História Geral da Invasão dos
Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, s/d e Francisco
Pacífico do AMARAL, Escavações: fatos e histórias de Pernambuco. Recife, Typographia do Jornal do Recife, 1884,
edição fac-similar, Recife, Arquivo Público Estadual, 1974. Oliveira LIMA, em D. João VI no Brasil, refere-se a Rego
Barretto como “um militar bravo e leal, sem qualidades de administrador, porém geralmente estimado pelas suas
excelentes qualidades”, cf. D. João VI… cit.,. 3ª edição, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 51.
12
Carlos Guilherme MOTA, Nordeste: 1817. Estruturas e Argumentos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.
13
Idem, Ibidem, p. 2.
14
O grupo liderado José de Barros aterrorizava Pernambuco e outras capitanias vizinhas, assaltando fazendas e
cometendo atrocidades. Era investigado antes mesmo do caso do Rodeador. Por associar este último aos bandoleiros
do Buique – localidade do sertão onde se teria originado— parte das averiguações sobre os bandoleiros foi anexada à
devassa do Rodeador.
15
Devassa, fl. 28.

4 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Um ano antes da devassa Rego Barretto já aludia à incompatibilidade com o Ouvidor e


Corregedor Geral de Recife, Antero José da Maia e Silva, em carta dirigida a Tomás Antônio Vila
Nova Portugal, valido de D. João VI, na qual advertia “que as coisas não acabarão muito bem se
ou eu ou ele não sairmos desta Capitania, ou se o seu orgulho não for abatido de modo que não
haja segunda colisão” 16. Neste mesmo conjunto epistolar de 1819, Rego Barreto, empossado
governador em 1 de julho de 1817, apontava as queixas de seus opositores políticos na capitania,
e perguntava “Qual é o dano ou violência, qual o despotismo que tenho feito? Qual é o homem
que tem perseguido em masmorras o meu arbítrio? E por uma vez, qual das minhas ações é
oposta à Lei ou ao Serviço de Sua Majestade, que são as únicas marcas que me podem constituir
digno de nota” 17.
O general chegara a Pernambuco seguro de que poderia reorganizar o corpo de tropas da
capitania, de modo a impedir que casos como e de 1817 se repetissem. O governador via a
“constituição militar do Brasil de um ponto de vista, que ninguém tinha atendido”, procurando
reestruturar as forças d’el Rei em Pernambuco, tarefa ingrata, pois encontrara tropa reduzida e
carente de tudo. Desde 1818 queixava-se da falta de armamento, “não tenho um só fuzil para dar
às três brigadas de milícias que se estão acabando de organizar”, o que tornava “inútil todo o
trabalho que tenho tido [para] dar ensino e disciplina a um soldado sem fuzil” 18. O general
lamentava ainda o mal estado da infantaria miliciana e dos esquadrões de cavalaria da mesma
linha, que assim como a tropa de voluntários “leais a d’el Rei, até hoje [ainda] não recebeu um par
de sapatos por conta do Estado” 19. Três meses depois voltou ao assunto: “A tropa que vem sendo
vestida de donativos até o presente, já vai sofrendo alguma nudez; e por esta causa muito se
precisa da decisão sobre o vencimento dos fardamentos” 20 .
A precária situação das milícias, tema muito amplo e complexo que aqui abordamos
apenas pela relação que se pode estabelecer entre as ações de Rego Barretto na capitania e a
reação dos ex-milicianos reunidos no Rodeador, não era um problema só colonial no início do
século XIX. Esta questão era candente também em Portugal, situação que se explicitou de forma
inequívoca com a reforma militar do conde de Lippe, de 1796, quando a tarefa de recrutar as
tropas portuguesas foi entregue ao intendente geral de polícia, confirmando a falência do
recrutamento baseado na rede de ordenanças criada ainda no tempo de D. Sebastião. O sistema
de ordenanças padeceu sempre da “tradução” local das ordens régias, como disse Fernando
Dores Costa, o que, combinado à hierarquizada sociedade do Antigo Regime, tornou quase
impossível o devido exercício disciplinar no interior das tropas, sempre sujeita às redes
clientelares capazes de “flexibilizar” as demandas e os controles, fazendo pesar apenas sobre os
não “tutelados” os rigores da lei. António Manuel Hespanha resume e sintetiza teoricamente essa
relação ao compreender o funcionamento da Coroa como um sistema que deixava
“permanecerem em funcionamento todas as estruturas políticas periféricas, assegurando através
delas a realização de seus objetivos políticos globais”, referindo-se ao que G. Spittler chamou de
“Estado camponês”. Através desta engenharia particular, estabelecia-se uma relação de
compromisso entre a Coroa e a “comunidade”, tanto no que se referia à tributação fiscal quanto ao
recrutamento militar 21.
A administração que Rego Barretto procurou impor a Pernambuco desrespeitava essa
engrenagem – provável razão para que D. João VI tenha designado uma pessoa de fora e sem

16
Cf. Evaldo Cabral de MELLO, «Cartas Pernambucanas de Luís do Rego Barretto», in Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. LII, Recife, 1979. Doravante referidas como Cartas, 28 de
outubro de 1819.
17
Cartas, 16 de outubro de 1819.
18
Cartas, 14 de novembro de 1818.
19
Cartas, 16 de fevereiro de 1819.
20
Cartas, 27 de maio de 1819.
21
Cf. Fernando Dores COSTA, «Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as questões da
construção do Estado e da Nação», in Análise Social, Lisboa, vol. XXX (130), 1995 (1ª), pp. 121-155.

Um estudo sobre o movimento sebastianista da Serra do Rodeador Pernambuco, 1820 5


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compromissos com os grupos de poder da capitania – e foi acusada de prejudicar as


necessidades locais, sobretudo da agricultura, com seu projeto de organizar de forma arbitrária as
tropas monárquicas em Pernambuco. Esta foi, aliás, polêmica que atravessou as discussões
legislativas dos primeiros anos do Brasil independente — estabelecer o quantum ideal para as
tropas do novo Estado, de modo a não desestruturar a economia com a drenagem excessiva de
braços da lavoura para as armas. Falando uma vez mais de seus opositores, o governador
registrou na devassa sua reação ao Ouvidor de Olinda, “[que] me desacredita como homem, que
chama a si gente do mato, e se lhe faz graves sermões contra o meu systema de milícias, que
appelida o túmulo da agricultura e da prosperidade do paiz” 22. Se esta era questão que
incomodava mais os proprietários de terras, a falta de fardas, alimentos e soldos atingia
diretamente a base mais vulnerável da frágil estrutura militar das tropas coloniais.
A fuga e a deserção foram alternativas frequentes para o recrutamento forçado e o
péssimo tratamento recebido pelas milícias, as quais reuniam muitas vezes vadios, bandoleiros e
salteadores, razão que conduziu, na falta de razões políticas mais claras, à rápida associação
entre o grupo do Rodeador e o bando do Buique. A relação entre deserção e banditismo foi objeto
de muitas investigações semelhantes ao Rodeador no início do século XIX português, embora se
deva considerar esse desdobramento ou associação — deserção/banditismo — resultado mais de
uma interpretação das autoridades da época e, mesmo observada em diversos casos, não foi a
única alternativa para a fuga das fileiras militares. Dores Costa analisa o horror provocado pelo
recrutamento, tanto junto aos recrutados, como por aqueles atingidos indiretamente, ao “verem
prezos os Seos criados; os Pays, os filhos, as classes (ou seja os mercadores), os que tinhma
mais de hum Caixeiro; os Gremios (os ofícios), os que tinham mais de hum aprendiz; as Cazas,
Sem excepção, os agragados que tinhão”. Só a fuga restava para os que não tinham como
“recorrer à fuga ‘legal’ através dos privilégios” 23.
Na América portuguesa desde pelo menos fins do século XVIII existem registros sobre a
resistência, desinteresse ou mesmo falta de aptidão dos recrutados para a disciplina da caserna,
além de queixas sobre a remuneração e a farda. István Jancsó cita o caso do soldado do
Regimento dos Granadeiros da Bahia, Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, que desertou três
vezes entre 1786 e 1791. Caso provavelmente especial, pois Luís conhecia as normas que
regulavam a vida de soldado, e deixou registro escrito sobre o assunto: “achando-se o Regimento
mal pago e mal fardado, sejam responsáveis o chefe: ainda mais severamente castigada será sua
conduta, se descobrir alguma circunstância que faça mais agravante a sua culpa”. O soldado
esteve envolvido na sedição baiana de 179824, comparada em muitos aspectos ao caso de 1817
pernambucano, mas agravada pela participação popular expressiva e incomum a essa altura 25.
Este exemplo não demonstra, claro, a relação direta entre o descontentamento das milícias
e a reação de insubordinação que se seguiu nos casos da Bahia e do Rodeador, mas indica um
dos aspectos que deve ser considerado para a compreensão do ressurgimento de expectativas
messiânicas em um mundo que parecia condenado ao arbítrio e à injustiça. Dentre as realizações
esperadas com a chegada de D. Sebastião estava a de que “não haveriao mais milicianos, nem
soldados de Primeira Linha, e que tudo se havia acabar em elles sahindo daquele sítio” 26, as
tropas nada poderiam contra eles pois tornar-se-iam invisíveis, condição só alcançada pelos
integrantes da comunidade. O desejo de imortalidade, embora presente em outras manifestações
milenaristas, não pode, aqui, se dissociado da, provável, altíssima mortalidade dos milicianos,

22
Devassa, fl. 28.
23
Apud Dores COSTA, «Os problemas do recrutamento militar…», cit, p. 128.
24
Apud István JANSÓ, «A sedução da liberdade», in Laura de Mello e SOUZA (org.), História da vida privada no
Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, vol.1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa, p. 394-395.
25
Para um estudo do caso baiano ver István JANSÓ, Na Bahia contra o Império. História do ensaio de sedição de
1798, São Paulo, Hucitec, 1996.
26
Devassa, fl. 39v.

6 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

muitas vezes, como reclamava o próprio Rego Barretto, mal armados e pessimamente
preparados.
A essa insatisfação concreta de descaso com as milícias, identificada tanto pelas
autoridades como pelos soldados, sem dúvida por interesses e problemas distintos, podemos
agregar algumas considerações sobre o impacto da “interiorização da Coroa”, para essas
populações periféricas, alijadas tanto do centro geográfico como político das decisões e
transformações desencadeadas com a vinda família real para o Brasil. Não passou despercebido
a Maria Odila da Silva Dias, autora de texto clássico da historiografia brasileira sobre a
interiorização da metrópole, a forte impressão causada pela presença do Príncipe Regente e da
corte entre os populares “presos ao condicionamento paternalista do meio em que surgiram,
revoltavam-se contra os monopolizadores (...) porém fascinava-os a Corte e o poder real, com um
verdadeira atração messiânica; era a esperança de socorro de um bom pai que vem curar as
feridas dos filhos” 27.
Esse deslumbramento e submissão reaparece com toda força no Rodeador, marcado
sobretudo pela expectativa de que um verdadeiro rei deveria exercer sua missão primordial: a
administração da justiça. Esta era o centro da racionalidade sagrada com que os homens e
mulheres do arraial percebiam o mundo e segundo a qual organizaram a espera e a resistência
aos opositores de D. Sebastião. O caso do Rodeador indica, por outro lado, que a obediência ao
monarca não era cega ou incondicional, mas dependia do cumprimento adequado dos papéis
esperados de um rei, a demonstrar, por outros caminhos, o desgaste da imagem senão da
monarquia, seguramente do soberano que a comandava àquela altura.
D. João chegara ao Brasil ainda como regente de uma rainha mentalmente debilitada,
falecida no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1816. Não é fácil compreender as razões que
adiaram por praticamente dois anos o reconhecimento oficial de D. João como monarca, primeiro
rei aclamado na América. As indicações mais plausíveis para esse atraso estão indicadas por
Oliveira Lima, apoiado em documento de maio de 1816, segundo o qual “a aclamação não se faz
ainda, sem chegarem as deputações dos reinos de Portugal e Algarves, em razão de não haver
Junta dos Três Estados...”. A questão era evitar futuros problemas “por não ser feita a aclamação
na sede da monarquia” 28. Esta teria sido a origem do adiamento para o ano seguinte, mas os
acontecimentos pernambucanos de 1817 protelaram uma vez mais a cerimônia, finalmente
realizada em 6 de fevereiro de 1818. É digno de nota o fato de um movimento de frontal
contestação à ordem ter sido capaz de provocar o adiamento da aclamação e não sua
precipitação.
As consequências desse interregno, que mantinha em suspenso a situação jurídica de um
herdeiro legítimo da Coroa, e a personalidade introspectiva de D. João VI, devem ter pesado na
construção de uma imagem distante e impopular do rei. É difícil saber como se combinaram
exatamente o impacto da presença da corte, a representação de D. João e as notícias sobre a
aclamação para um grupo de desertores das tropas legais que se instalaram na fazenda cedida
por outro militar no mesmo ano de 1818, data aventada como início provável do ajuntamento no
Rodeador. É possível supor que a instalação da família real no Brasil tenha contribuído para o
ressurgimento de um messianismo régio entre os populares, na medida em que a proximidade da
monarquia parecia tornar mais concreta a relação entre os súditos e o rei, situação que gerou,
assim como entre os homens bons, maiores expectativas sobre os mais variados anseios e
necessidades.
Assim, ao considerarmos as palavras de Maria Odila sobre o fascínio despertado pela
imagem real, a recusa do rei em exercício pelos líderes do Rodeador torna o movimento ainda
mais interessante para a análise das múltiplas interpretações acerca da relação com o monarca,

27
Maria Odila da Silva DIAS, «A interiorização da metrópole», in Carlos Guilherme Mota, 1822. Dimensões, São
Paulo, Perspectiva, 1986, p. 177.
28
Oliveira LIMA, D. João VI no Brasil, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 583.

Um estudo sobre o movimento sebastianista da Serra do Rodeador Pernambuco, 1820 7


Comunicações

pois revela que se este apego e deslumbramento de fato existiu, não se deu de forma unívoca, e o
caso do Rodeador demonstra que houve maneiras distintas de lidar com o rei presente. A certa
altura dos depoimentos, um dos presos no arraial, José Fernandes Coitinho, ferreiro, serralheiro e
coronheiro, convidado com o pai a viver na comunidade, declarou que, segundo Silvestre e
Manuel, haveria uma lei nova com o aparecimento de D. Sebastião José e tão logo o prodígio se
realizasse “se daria parte a el Rey Nosso Senhor D. João VI para ver se este senhor queria seguir
a Ley de D. Sebastião José, e querendo o Nosso Soberano seguilla estava tudo acabado, e não
querendo seguilla elles deviaão defender a Ley de El Rey Dom Sebastião, com todas as suas
forças...” 29. Declaração semelhante aparece em outros depoimentos, demonstrando não só
reverência a D. João VI, mas clareza quanto à escolha daquele que acreditavam capaz de exercer
a justiça esperada de um verdadeiro monarca.
A concepção sagrada da realeza e a relação estreita estabelecida entre luta armada e
motivação religiosa foi uma das características estruturantes do Rodeador. À preparação militar
anterior recebida pelos homens que inventaram e aderiram à Cidade do Paraíso Terrestrel,
mesmo que precária, combinou-se à disciplina igualmente rígida para vivenciar uma modalidade
de crença particular. Devoção religiosa à causa da guerra pela vitória do verdadeiro rei: “havia de
haver partidos de parte a parte para cada um seguir os seus direitos e querendo El Rey Dom João
VI havia ser bem premiado por Dom Sebastião, haveria guerra para cada hum seguir seus
direitos” 30. Informado pelos espias que introduziu no arraial, Rego Barreto informava a D. João
sobre a gravidade do movimento: “Reconhecendo hum Rey imaginário, e auctoridades
extravagantes, com uniformes e divisas militares a seu modo (...) inventando milagres, e
practicando horrendas superstições, haviam aberrado dos princípios da verdadeira Religião” 31.
Mas ao que parece, os rituais não interferiam ou impediam a continuação da vida fora do arraial,
embora para frequentá-los fosse necessário autorização expressa de Silvestre José e Manuel das
Virgens. Uma vez aceito, o novo integrante deveria “limpar-se” com um número determinado de
orações e, se possível, pagar 2 patacas quando solteiro, e 4 se casado 32, para receber “Carta da
Irmandade”. Havia ainda uma gradação dos integrantes homens, congratulados com fitas de cores
variadas, a indicar clara hierarquia entre seus membros, e separação rigorosa de homens e
mulheres, representados por “procuradores de homens e mulheres”. Para completar esse breve
quadro, é possível perceber através dos depoimentos uma rede de clientela que favorecia os
familiares de Silvestre José, irmãos e cunhados sobretudo.
Este conjunto de elementos pinçados da devassa demonstram impressionante adesão,
guardadas as devidas proporções, a um certo conceito de Estado e de burocracia que uma vez
mais parece inviabilizar uma interpretação simplista dos objetivos, pelo menos, de seus líderes, a
lembrar os falsos D. Sebastião que se coroaram, nomearam validos e criaram selos reais 33. A
aceitação das hierarquias do Antigo Regime é confirmada em diversos aspectos da organização
da comunidade e, claro, pela defesa explícita da monarquia e da autoridade de um rei capaz de
cumprir seu papel de mediador da ordem e da justiça.
Pelo que os depoimentos nos permitem conhecer sobre as prováveis concepções políticas
dos integrantes do Rodeador, a adesão ao projeto sebastianista e messiânico se fez pela
conjugação específica da sobrevivência do mito do rei encoberto, reapropriada pelos desertores
das tropas, e de um rei que não correspondia às funções dele esperadas. O rompimento do pacto

29
Devassa, fls. 91, 91v e 92. Não foi possível ainda compreender porque ora o nome de D. Sebastião aparece
composto (Sebastião José), ora não.
30
Devassa, fl. 92.
31
Devassa, fl. 27.
32
1 pataca era uma moeda de 320 réis e equivalia ao preço de 3 esteiras.
33
Caso do falso de Ericeira, Mateus Álvares: em 1585 criou verdadeira “corte”, com títulos de nobreza, selos reais e
“coroação” de uma rainha com diadema retirado da imagem da Virgem. Cf. Jacqueline HERMANN, No Reino do
Desejado... cit., cap.5.

8 Jacqueline Hermann
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

político por um dos lados, e muito provavelmente o clima de insatisfação generalizado na


capitania, autorizou a inconfidência e a sublevação, não em nome da luta contra a miséria ou da
exploração econômica, mas da necessidade de reatualizar e rever as regras de um compromisso
que se rompera ou não era adequadamente cumprido pelo monarca em exercício.
Nessa perspectiva, o estudo do caso do Rodeador nos permite abrir um leque de questões
políticas, sociais e culturais vivenciadas na colônia e no reino nas primeiras décadas do século
XIX. Do macro cenário político que se explicita a partir da crise desencadeada com o avanço das
tropas napoleônicas na península e da transmigração da família real para o Brasil, para o
microcosmo da capitania de Pernambuco, alterada pelos acontecimentos de 1817, pelos
deslocamentos políticos provocados pela supremacia do Rio de Janeiro em relação às demais
regiões coloniais, pelas desavenças entre poderosos locais e as condições do recrutamento
forçado. Todos estes ingredientes devem ser considerados para explicar ou para que possamos
melhor compreender a ressurgência da espera sebastianista no interior do Brasil, sem que
entremos nos significados atribuídos aos rituais e cerimônias que preparavam a chegada o
Encoberto.
O fim do projeto do Rodeador foi trágico, e o de seu algoz principal melancólico. Rego
Barreto viu-se abandonado em Pernambuco, enfrentando pressões de todo lado, até solicitar
reiteradas vezes que D. João o liberasse de tão pesado encargo. Mas o cenário havia mudado
muito. Com a Revolução do Porto, em 1820, Juntas Governativas foram organizadas em diversas
capitanias, com o objetivo de jurar fidelidade à Constituição portuguesa. Em Pernambuco, a Junta
de Goiana reuniu, em 1821, vários inimigos de Rego Barreto, que ainda tentou comandar outra
Junta, mas sem apoio político foi destituído do cargo e voltou a Lisboa neste mesmo ano. Em
1822, publicou uma Memória Justificativa 34 sobre o seu conturbado governo. Nesta procurava
explicar as razões de sua atuação tão violenta contra o Rodeador, usado, uma vez mais, para fins
que nada se relacionaram aos prováveis projetos e objetivos dos que ansiaram a volta de D.
Sebastião ou depositaram nessa esperança muitas de suas necessidades. Impedido de sair de
sua pedra encantada, o Desejado continuaria a aguardar melhor momento para seu
desencantamento. Cerca de quinze anos depois, outro movimento surgiria na mesma região. O
movimento do Reino da Pedra, como ficou conhecido, reiventaria novamente a espera do
Desejado, criaria outros rituais de espera e de consumação de um paraíso terreal, mantendo viva
a crença sebástica no além mar35.

34
Memória Justificativa sobre a conduta do Marechal de campo Luiz do durante o tempo em que foi Governador de
Pernambuco, e presidente da Junta Constitucional da mesma província. Oferecida à nação portugueza, Lisboa,
Tipographia de Desiderio Marques Leão, 1822.
35
Tal como o caso do Rodeador, são poucos os estudos sobre o Reino da Pedra, a exemplo de T. de ARARIPE Jr., O
Reino Encantado, Rio de Janeiro, Typ. da Gazeta de Notícias, 1878; Antônio Attico de Souza LEITE, Fanatismo
Religioso. Memória sobre o Reino Encantado na Comarca de Villa Bella (1875), 2.ª ed., Juiz de fora, Typ.Mattoso;
Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), 4.ª ed., São Paulo, Ediouro, s/d; além do romance de Ariano
SUASSUNA, Romance d’a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1972. Os dois
movimentos são lembrados por Maria Isaura Pereira de QUEIROZ em O Messianismo no Brasil e no mundo (1963), 2.ª
ed., São Paulo, Alfa-Omega, 1976.

Um estudo sobre o movimento sebastianista da Serra do Rodeador Pernambuco, 1820 9

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