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Segurando com a dez: A classe trabalhadora e o desenvolvimento brasileiro

Ludmila Costhek Abílio1

Introdução

Fruto de pesquisa de pós doutorado intitulada “A ‘nova classe média’ vai ao


paraíso?”, este paper tem como eixo estruturante as atuais transformações na
estratificação social brasileira e sua relação com o desenvolvimento brasileiro. A análise
é pautada pela definição e reconhecimento das classes sociais. Mais especificamente,
parte-se do ponto de vista de que a classe trabalhadora brasileira vem passando por
mudanças significativas, que, entretanto, se assentam em permanências fundamentais,
quais sejam, a da desigualdade social e da intensa exploração do trabalho. Também
costura a análise a invisibilização e banalização da exploração do trabalho tanto nos
discursos oficiais sobre o desenvolvimento quanto em interpretações acadêmicas sobre o
desenvolvimentismo.

Desta forma, a análise centra-se nas discussões em torno da exploração do


trabalho, e de sua profunda relação com o desenvolvimento brasileiro2. As atuais
transformações na sociedade brasileira precisam ainda ser abarcadas em análises que
deem conta de atualizar estas relações. Juntamo-nos às escassas abordagens que se
debruçam empiricamente sobre as relações de trabalho no campo e na cidade, que
refletem sobre a relação entre o lulismo e as transformações na vida e experiência dos
trabalhadores. Esta pesquisa junta-se então às análises que recusam e criticam a definição
de “nova classe média”, chamando a abordagem para as reconfigurações e permanências
da classe trabalhadora brasileira e sua relação com o desenvolvimento brasileiro.

O discurso oficial e mercadológico sobre a nova classe média brasileira

A análise das publicações de governo e da mídia confirmaram as hipóteses


definidas inicialmente para a pesquisa3: a “nova classe média” segue sendo definida por

1
Pos doutoranda – FEA-USP. Docente – PUC-Campinas. Email: l.c.abilio@gmail.com.
2
Neste artigo enfoco a consolidação do discurso sobre a “nova classe média” e apresento uma análise
aprofundada do trabalho dos motoboys. Para uma discussão centrada na relação entre desenvolvimentismo,
desenvolvimento e exploração do trabalho cf. Abílio, 2014.
3
Este paper é fruto de pesquisa de pós doutorado “A nova classe média vai ao paraíso?”, em andamento,
sediada na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e
financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo.
1
critérios de rendimento e consumo, os quais estão longe de corresponder a padrões de
vida de classe média. Entretanto, o aspecto mais interessante talvez seja que as
campanhas de governo não só não se distanciam do trabalho como o utilizam como meio
de representação da “nova classe média”. As publicações anuais da Secretaria de
Assuntos Estratégicos (SAE), intituladas Vozes da nova classe média são ilustradas com
fotos de trabalhadores da construção civil, operários na linha de produção, trabalhadores
fazendo a semeadura no campo, montadores da indústria automobilística.

Poderíamos realizar uma longa análise das publicações da SAE, mas em realidade
há uma linha muito bem definida e de fácil reconhecimento. Elevação dos níveis de
consumo, aumento do trabalho formal, redução do desemprego, maior acesso ao crédito e
aumento do salário mínimo são os elementos recorrentemente utilizados para embasar a
formação desta “nova classe média”. O que se lê nas entrelinhas – e às vezes
explicitamente – é que esta definição não se propõe a afirmar de fato que este estrato
social que hoje forma a maioria de população tenha a qualidade de vida tradicionalmente
associada à classe média. O que se propõe é celebrar e por em evidência uma suposta
nova mobilidade social brasileira, que em realidade se refere à redução dos níveis de
pobreza do país.

O economista Marcelo Neri pode ser considerado um dos principais ideólogos da


“nova classe média”. Enquanto pesquisador da FGV-RJ em 2008 coordenou a publicação
de “A nova classe média”, e em 2010 de “A nova classe média: o lado brilhante dos
pobres”. Na primeira, fornece o embasamento teórico, em realidade, explicita o rebolado
estatístico que fundamenta a definição: “A nossa classe C aufere em média a renda
média anual da sociedade, ou seja, é classe média no sentido estatístico” (Neri, 2008 :
5). A dança estatística se mantém nas publicações do governo:

‘Se estivermos falando da renda, estaremos falando do ponto em que 50% das
pessoas terão uma renda menor e 50% terão uma renda maior. No Brasil, a renda
correspondente ao ponto do meio é de R$ 440 familiar per capita. Isso significa que 50%
dos brasileiros possuem renda familiar per capita inferior a R$ 440 e 50% possuem renda
superior a R$ 440 familiar per capita. (Site SAE, http://www.sae.gov.br/site/wp-
content/uploads/Perguntas-e-Respostas-sobre-a-Definição-da-Classe-Média.pdf)

2
Ou seja, qualquer país é um país de classe média, basta precisar o rendimento
médio da população, e denominar este rendimento como correspondente à classe média.
A mágica está feita, a maioria da população pertence à “nova classe média”. Atualmente,
o economista Marcelo Neri é presidente do Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) e
ministro chefe interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos, antecedido pelo ex-
governador do Rio de Janeiro e ex-deputado federal Moreira Franco, também ex-
presidente dos Fundos de Governo e Loterias da Caixa Econômica Federal e participante
do comitê gestor do FGTS.4

Os usos políticos da definição de classe média têm de ser compreendidos em um


contexto mundial. O termo formaliza uma ideologia relacionada aos países emergentes,
ou seja, o que está em questão é a construção de um novo discurso sobre o
desenvolvimento, pautado fortemente pelos níveis de consumo. No relatório de 2013 do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a classe média “inclui as
pessoas que auferem ou despendem entre 10 e 100 doláres por dia”; haveria então um
movimento mundial de concentração desta faixa da população nos “países do Sul”:

Nos países do Sul, o rendimento, a dimensão e as expectativas da classe média


aumentam rapidamente. Entre 1990 e 2010, a quota-parte do Sul na classe média mundial
cresceu de 26% para 58%. Segundo as projeções, até 2030, mais de 80% da classe média
mundial viverá no Sul e será responsável por 70% de todas as despesas de consumo
(PNUD, 2013)

Esta é uma dimensão importante, a ser explorada em pesquisa futura. Está em


jogo a consolidação de um novo discurso sobre o desenvolvimento: países
“subdesenvolvidos” se tornam “emergentes”, ficando obscurecidas as questões sociais
em detrimento do desenvolvimento econômico. Se os países do Sul eram responsáveis
pela concentração da pobreza, agora serão pela da “classe média”. Entretanto a questão é
mais complexa do que um simples obscurecimento dos índices de pobreza. As alterações

4
Relembrando a previsão de Oliveira em O ornitorrinco, Moreira Franco compõe – esta sim uma nova
classe –‘’ a classe dos gestores dos fundos públicos. Ministro da SAE entre 2011 e 2013, a figura deste
ministro simboliza as relações entre mudanças na estratificação social brasileira, mercado financeiro,
mercado consumidor e relações de trabalho. Como afirma no site da Wikipedia: “Durante sua gestão, nos
últimos dois anos e meio, a arrecadação das loterias oficiais foi recorde e o FGTS permanece
superavitário. Neste período, a Caixa também criou mecanismos de modernização das formas de
aplicação do Fundo, como o Fundo de Investimento do FGTS, que, em breve, permitirá que os
trabalhadores apliquem parte dos seus saldos em papéis vinculados ao mercado imobiliário”.
3
relacionadas aos níveis de consumo, o acesso a determinados serviços, a ampliação do
crédito trazem mudanças naquilo que determina hoje os estilos de vida, a formação
educacional, as condições de habitação historicamente associados à pobreza.

Em publicação da Secretaria de Assuntos Estratégicos de setembro de 2013, a


classe média foi definida pelo intervalo da renda familiar per capita entre R$291 e
R$1091. Este intervalo ainda é subdividido em três: “a baixa classe média, composta por
pessoas com renda familiar per capita entre R$ 291 e R$ 441, a média classe média, com
renda compreendida entre R$ 441 e R$ 641 e a alta classe média, com renda superior a
R$ 641 e inferior a R$ 1.019”
(Fonte: http://www.sae.gov.br/site/?p=17351#ixzz2wGSCzh1W). De saída está claro que
a definição do governo está extremamente distante de qualquer critério que esteja hoje
associado a um padrão de vida de classe média, seja em termos de rendimento, seja em
termos do acesso a bens culturais e da qualidade do acesso à saúde, educação e moradia,
seja em termos das categorias profissionais comumente associadas a essa classe
(funcionários públicos, profissionais liberais etc.). Tornou-se o cerne da pesquisa menos
o debate sobre o que caracterizaria a classe média e mais a reflexão sobre o
obscurecimento dos referenciais que nos possibilitem pensar na classe trabalhadora
brasileira em termos de classe social. Ou seja, buscamos uma abordagem que não se
atenha aos rendimentos e níveis de consumo, ou que se estenda exclusivamente ao acesso
a educação, saúde e moradia. Mais do que isto, baseamo-nos em uma definição que
pense na classe social por uma perspectiva relacional, ou seja, nas relações de
dominação, de subordinação e exploração que possibilitam o reconhecimento da classe
trabalhadora, assim como nas suas formas de resistência – individuais e coletivamente
constituídas. Por esta perspectiva, tratar da exploração do trabalho demanda ultrapassar
referenciais tradicionais que giram em torno da carteira assinada, para reconhecer formas
atuais de degradação do trabalho e de sua conexão com a acumulação capitalista. Assim
como a análise de relações de dominação e subordinação expressa-se – para além das
próprias relações de trabalho – não só nos acessos negados a bens e direitos sociais, mas
também em outras formas de violência simbólica (muitas com suas dimensões concretas
e corporais) que se reproduzem cotidianamente na vida destes trabalhadores.

4
De nossa perspectiva, em relação ao Brasil, trata-se de transformações assentadas
na permanência da desigualdade social. É preciso uma redefinição do que caracteriza a
mobilidade social. O acesso a educação e bens de consumo não consegue hoje dar
visibilidade à complexidade das reconfigurações sociais em jogo. Acesso ao ensino
superior, casa própria, viagens aéreas, entre outros marcadores historicamente associados
à classe média e elites, já não são ausências que caracterizam a pobreza. Mas sua
presença também não quer dizer necessariamente mobilidade social. O próprio uso dos
termos indica nossa perda de referenciais: Classes baixas? Pobres? Classes populares?
Classe trabalhadora? A perda do trabalho como referência central para tratar das classes
nos leva de volta à “dança frenética das aparências” (Oliveira, 2000), ou seja, as teorias
se descolam dos movimentos reais da relação entre capital e trabalho, (e de suas
dimensões em termos de capital cultural e simbólico).

Se a teoria patina, o mercado é preciso. As pesquisas de mercado há alguns anos


miram na classe C e desvendam seus novos e velhos hábitos de consumo. Renato
Meirelles, comunicólogo, é um dos fundadores do Instituto Data Favela:

“Acreditando que a grande revolução brasileira será o avanço da economia nas


favelas, o Data Favela tem como principal missão colocar as comunidades brasileiras na
ordem do dia, apontando mudanças significativas na matriz econômica e apresentando
um estudo inédito sobre o atual retrato da classe C nas favelas do Brasil. (site Data
Favela)

Longe das definições das teorias da marginalidade, este profissional divide a


presidência do instituto com Celso Athayde, hoje também presidente da Favela Holding,
que tem como missão “gerar oportunidades de negócios para a favela e seus
moradores”. Formando um discurso que combina cidadania, empreendedorismo e
investimento econômico, a Favela Holding cria programas em parceria com empresas
como Tim e Procter & Gamble, visando desenvolver o comércio local de uma nova
forma. Um de seus projetos é o Favela Shopping, a ser instalado no pacificado Morro do
Alemão, combinando o empreendedorismo local com a atuação das gigantes de mercado:
“O objetivo do complexo de lojas é revitalizar o comércio e atrair negócios nas favelas,
com a geração de 100% de emprego formal para moradores de comunidades e 60% da
franquia para empreendedores comunitários” (site Favela Holding).

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Renato Meirelles também integrou a comissão de estudos da Secretaria de
Assuntos Estratégicos. Na publicação do terceiro caderno de “Vozes da nova classe
média”, assina o artigo Empreendedorismo, otimismo e a classe média brasileira. O
crescimento da renda que “alavancou 40 milhões de brasileiros para a classe média”
teria um “efeito colateral”, qual seja, “o aumento do otimismo”(SAE, 2013). Otimismo
que se traduz em maior disposição para o empreendedorismo. Fazendo uma relação
desconhecida à sociologia do trabalho, Meirelles afirma que o aumento do trabalho
formal torna-se um veículo para o empreendedorismo. Estabilidade e possibilidade de
juntar dinheiro propiciam aos “brasileiros sonhar mais alto”. Não se trata apenas de
otimismo, mas também de todos os facilitadores jurídicos que hoje possibilitam que a
classe batalhadora, como definiu Souza, seja empreendedora (Souza, 2010). Cabe ao
Estado então “colocar efetivamente a máquina pública como parceira do
empreendedor”. A “taxa de mortalidade” dos micro empreendimentos teria se reduzido
em 30% para os primeiros dois anos de vida, ou seja, “o trabalhador que arriscou
montar uma vendinha na garagem de casa e se deu bem”, ainda, aquela “mulher que
trabalhava como manicure para ganhar um dinheiro extra, especializou-se e acabou
montando um pequeno salão em um cômodo da residência, assim como na revendedora
de cosméticos que abandonou o emprego e vive apenas deste ofício, e por aí vai. (SAE,
2013: 97).

O que se conclui neste item de pesquisa é que à construção ideológica sobre a


“nova classe média” corresponde uma rede bem estruturada, a qual conecta órgãos
governamentais que hoje publicizam dados sobre as políticas de governo como o IPEA,
com a elaboração das políticas e projetos voltados para esta consolidação, via Secretaria
de Assuntos Estratégicos com a publicização midiática, e ainda, com a ligação de atores
que hoje se tornam porta vozes do discurso mercadológico sobre as potencialidades
econômicas da Classe C. As fronteiras entre discurso de governo e discurso
mercadológico são extremamente tênues. A celebração do empreendedorismo e do
aumento dos potenciais de consumo está no cerne desse discurso. Em outro momento
discuti a banalização da exploração do trabalho (Abílio, 2011). O sofrimento que
perpassa as relações de trabalho das empregadas domésticas, motoboys, costureiras,
operários da construção civil, entre tantos outros trabalhadores da “nova classe média”, é

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evidente, assim como é explícita sua relação com a desigualdade social. Entretanto, tal
sofrimento – iluminado pela definição dos batalhadores de Souza (2010) – é
invisibilizado na celebração de uma ascensão social que, ao mesmo tempo, mostra
permanentemente que as injustiças sociais permanecem no mesmo lugar. A “nova classe
média” segue habitando as favelas: a possibilidade da construção deste discurso, fundada
numa contradição evidente, explicita o poder desta invisibilização social.

Entre o mamão e a roça: o trabalho dos motoboys na cidade de São Paulo

A pesquisa de campo realizou-se através de três entrevistas abertas com


motoboys, uma entrevista com um ex-funcionário do Banco do Brasil, responsável pela
coordenação dos financiamentos específicos para motoboys em uma agência da capital e
a aplicação de 35 questionários com trabalhadores do motofrete em São Paulo. Os
questionários foram aplicados: diretamente nas empresas de serviços de motoboys, na
Zona Oeste de São Paulo; nas pizzarias da região Oeste de São Paulo; nas ruas do centro
da cidade de São Paulo, mais especificamente nos bolsões para estacionamento das
motos nas proximidades da Praça da República, e com trabalhadores moradores de um
bairro da periferia da Zona Sul de São Paulo. O questionário mensurou a remuneração
destes trabalhadores, renda familiar e renda familiar per capita, jornada de trabalho, idade
e escolaridade; verificou os tipos de vínculos trabalhistas, a ocorrência e gravidade de
acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, assim como a percepção dos trabalhadores
sobre mudanças em suas condições sociais nos últimos anos.

Uma primeira constatação que contrariou uma hipótese da pesquisa foi a faixa
etária dos profissionais (também verificado em Godoi, 2012). Usualmente associa-se o
trabalho dos motoboys com os jovens, certamente por uma associação entre velocidade,
riscos e precariedade, que parece aderir mais à imagem e impetuosidade de uma
juventude de baixa renda que não teria muito a perder ao arriscar sua vida cotidianamente
no trânsito das cidades. Entretanto, neste pequeno universo da pesquisa – que, contudo,
estabeleceu a amostra de forma bastante aleatória – o que se constata é que 65% dos
trabalhadores têm mais de 30 anos, chegando inclusive aos 60 anos de idade:

Gráfico 1:

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Quanto à jornada de trabalho, dentre os 35 respondentes dos questionários, 95%
trabalham mais do que oito horas por dia, 50% ultrapassam as dez horas e 21 %
trabalham usualmente entre 13 e 16 horas por dia como motoboys:

Gráfico 2:

Saltou aos olhos a heterogeneidade da remuneração dos motoboys, a qual não está
necessariamente associada com as diferenças no tempo de trabalho diário, nem com o
tipo de entregas que realizam. A maior parte dos entrevistados realiza o mesmo tipo de
trabalho – majoritariamente a entrega de documentos, dentre outras encomendas, que
podem variar de “fezes de cachorro para exame” a “levar uma TV para o conserto” –
entretanto, sua remuneração varia de R$500 a R$4500 da seguinte forma: 28% têm

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remuneração entre R$ 500 e R$ 1.500; 37% têm remuneração entre R$1300 e 2000, 23%
entre R$ 2500 e 3000, e 12% acima de R$3000.

Gráfico 3:

Entretanto, quando olhamos a renda per capita familiar, os altos ganhos deixam
de ser possíveis indicadores de uma ampla gama de condições sócio-econômicas:

Gráfico 4:

Vê-se que 60% dos motoboys têm renda familiar per capita inferior a R$ 1.000,
sendo que 39% têm rendimento inferior a R$ 800; 80% destes trabalhadores têm
rendimento familiar per capita inferior a R$1.500.

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Em relação à escolaridade, 35% têm ensino fundamental completo ou incompleto,
47% têm ensino médio completo. Nenhum dos entrevistados concluiu o ensino superior,
e dois deles estavam cursando faculdade privada:

Gráfico 5:

Retomando os critérios que definem as classes para o governo, 40% dos


motoboys não seriam sequer de classe média, mas sim de classe alta. Quanto aos 60%
supostamente pertencentes à classe média, 12% estariam em seus estratos mais baixos,
enquanto os outros 48% estariam entre a média e a alta classe média. Não é preciso muito
esforço teórico para evidenciar o absurdo de tal classificação.

Entrevistamos dois motoboys que exercem esta profissão há mais de vinte anos, e
um ex-motoboy que exerceu esta ocupação por um ano, até que se acidentou, ficou meses
imobilizado e desempregado, a impossibilidade de cumprir a dívida assumida do
financiamento da moto resultou na perda da mesma.

Afrânio, hoje com 51 anos, é motoboy há 32. Há alguns anos cruzou a linha tênue
a que se refere Souza (2010), entre ser trabalhador e ser microempreendedor. Tornou-se
proprietário de uma pequenina empresa de motoboys. Mas ainda permanece nas ruas,
fazendo entregas quando necessário, o que é recorrente. Quatro profissionais prestam
serviços para ele.

Nestas três décadas, este trabalhador vivenciou as transformações que sua


profissão passa desde então. Por um lado as inovações tecnológicas, por outro as

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desregulações e as transferências de custos e riscos para o trabalhador. Quando
começou, nos anos 1980, nem o termo motoboy existia. Existam sim os office boys, os
mensageiros dos escritórios que se deslocavam pela cidade a pé e de ônibus. Afrânio na
época era um “mensageiro motorizado”, assim era o seu registro em carteira. Naquela
época ainda não havia entrado no mercado o veículo da terceirização destes
trabalhadores: as empresas de motoboys. Como nos conta o entrevistado, a Disk boy,
uma das primeiras empresas do ramo passou a atuar em São Paulo apenas nos anos 90.

Atualmente, o motoboy pode ser contratado diretamente por uma empresa: por
exemplo, ser empregado de uma corretora de imóveis. Pode ser contratado terceirizado,
ou seja, é contratado por uma empresa de motoboys, a qual presta serviço para aquela
corretora, fornecendo o trabalho de um de seus motoboys. Nestes casos, geralmente tem
um salário fixo, o que eles chamam de trabalhar com contrato. Mas há também o
trabalho chamado de esporádico. Neste, o trabalhador pode não ter nenhum vínculo
empregatício ou ter registro em carteira, mas como horista. Os esporádicos recebem pelas
entregas que fazem, a remuneração é baseada na distância percorrida, calculada por
pontos, os que têm registro em carteira contam com um fixo mais as remuneração por
pontos.

A profissão foi regulamentada pelo Presidente Lula, e hoje tem estabelecido um


piso salarial de R$ 1.065, mais R$ 12 diários de ticket alimentação. Está em disputa a
aprovação de um adicional de periculosidade ao piso dos trabalhadores do motofrete.
Assim, as relações empregatícias seriam: com registro em carteira, o motoboy pode ter
um salário fixo trabalhando para estas empresas que terceirizam seu trabalho; ter um
contrato diretamente com uma empresa qualquer; ou receber por entregas sendo
registrado como horista. Ou ainda, pode não ter contrato algum, e prestar serviços a
empresas sem nenhum vínculo formalizado. Em todos estes casos, o instrumento de
trabalho – ou seja, a moto – é de propriedade do motoboy, Ele arca com os custos de
manutenção e com o combustível. Dependendo do tipo de contrato, recebe um valor
também regulamentado pelo aluguel da moto, ou seja, um valor fixo por dia de trabalho.

Voltando aos anos 1980 de Afrânio, naquela época não tinha esse negócio do
cara trabalhar com moto própria, ou seja, a empresa fornecia a motocicleta e o
combustível. Diz que o valor da hora de trabalho do motoboy não mudou tanto em
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relação ao seu custo de vida, atualmente está em torno de R$10. Nas empresas
terceirizadas, uma entrega, que para o cliente custa em média R$30, reverterá em torno
de R$11 a R$15 para o motoboy. Para o entrevistado, a partir dos anos 90, abriu-se uma
brecha para o cara trabalhar autônomo. Quando a gente trabalhava com moto da firma,
você chegava as 8h da manhã, e saía às 19, mas a moto ficava na empresa. Você
levantava cedo, pegava a condução, deixava a moto na empresa, voltava pra casa de
ônibus. A entrada das empresas terceirizadas muda as relações de trabalho. Então as
empresas resolveram terceirizar a mão de obra, grande parte delas venderam as
próprias motos para os motoboys, e eles passaram a trabalhar com a sua moto. As
motos ainda eram poucas na cidade, hoje a frota cresce em um ritmo muito maior do que
a frota automobilística.

Os acidentes com motos tornaram-se questão de saúde pública. Como afirma o


colunista Rogério Gentile em artigo da Folha de São Paulo, há um “corredor da morte”
no Brasil (Gentile, 2014). Enquanto o número de acidentes com óbitos diminui para
automóveis e pedestres, os envolvendo motos seguem aumentando. Segundo dados da
CET, em 2000, as motos totalizavam 25% dos veículos envolvidos em acidentes fatais, e
os automóveis 49%. Em 2007, a proporção se inverte, são 40% de motos e 33% de
automóveis (Barbosa, 2009 : 119). A participação das motos na frota paulistana aumenta
velozmente. Relatório produzido para a CET constata: “Até o início da década de 1990,
a presença das motos era praticamente irrelevante – elas somavam apenas 3,5% da frota
de veículos da cidade. Em 2000, a participação já havia dobrado, atingindo 6,5% e, em
2008 representaria mais de 10% da frota paulistana” (Biavati & Martins, 2009 : 05).
Entre 2005 e 2011, a frota de motocicletas cresceu 89,2% em São Paulo, em 2012
totalizavam 16% (962.239) da frota do município, enquanto os automóveis eram 79%
(6.092.273) (CET, 2012). Estes dados são mensurados a partir do licenciamento dos
veículos, ou seja, não abrangem os veículos em situação irregular – algo recorrente entre
estes profissionais, segundo nossos entrevistados.

Não é só a frota e o número de motoboys que cresce. Este trabalho está também
relacionado ao crescimento do setor de serviços e ao caos do trânsito. Diversificam-se as
entregas do motoboy. Como diz Afrânio, o trabalho era específico para os documentos.
Não havia transporte de água, gás, tudo isso foi surgindo na medida em que houve a

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necessidade dos transportes. Porque o trânsito de São Paulo foi se afunilando cada vez
mais. Saskia Sassen (1998) já evidenciava na definição de cidades mundiais que o
desenvolvimento do mercado imobiliário e financeiro globalizados conta também com os
trabalhadores de baixa qualificação do setor de serviços, os terceirizados dos serviços de
limpeza, por exemplo – assim como os que garantam a circulação dos bens, valores e
documentos em um tráfego cada vez mais denso. Mas então não serão somente os
documentos, a cidade passa a contar com os entregadores de pizza, remédios, exames,
livros, entre tantos outros. Enquanto conversávamos, Afrânio garantia que o vidrinho de
esmalte requerido para a filmagem de um comercial fosse transportado rapidamente dos
Jardins para um condomínio na Rodovia Raposo Tavares. Como nos explica o
entrevistado, hoje o motoboy tornou-se indispensável, na cidade onde tempo é dinheiro,
as motos cumprem o papel de vencer o espaço, isto é, São Paulo sem a motocicleta é
completamente inviável.

A gama de entregas do motoboy se ampliou, assim como os riscos e custos da


profissão. As inovações tecnológicas transformaram o ritmo e as possibilidades de
trabalho desta categoria. Na época não tinha celular, não tinha bip. Você tava em um
lugar, tinha que ir até a base para pegar o outro serviço. Eles te davam uma cartela de
ficha de orelhão, andava com o bolso cheio, parecendo um saco de papai Noel de tanta
ficha. Com o bip, já era possível mandar mensagens, com o celular – e sua popularização
–, a logística do trabalho se transforma. É possível para a central se comunicar com os
motoboys na rua, organizar a distribuição de acordo com sua localização, diminuem os
poros de não-trabalho ao longo de sua jornada. Para o motoboy esporádico, isto se traduz
em possibilidade de fazer mais entregas em menos tempo, ou seja, uma aceleração do seu
ritmo de trabalho.

Não há dados precisos sobre o trabalho dos motoboys no Brasil. Uma pesquisa
realizada por uma empresa de logística em São Paulo estima que tenham ultrapassado os
900 mil no país, no Estado de São Paulo seriam em torno de 500 mil, e no município
aproximadamente 200 mil (Site Transporta Brasil). Segundo o livro Canal do motoboy,
em meados de 2000 seriam 50 mil em São Paulo, e hoje ultrapassariam os 300 mil,
podendo ultrapassar os 500 mil na região metropolitana (Coletivo Canal do Motoboy,
2009 : 42).

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O crescimento acelerado do número de motoboys, para além de sua absoluta
necessidade numa região conturbada como a grande São Paulo, onde seu trabalho se
mostra indispensável para a manutenção do ritmo da acumulação, é explicado também
pela facilidade de acesso a esta ocupação, como diz um entrevistado, para ser motoboy
não precisa de qualificação, tem de ter coragem”, afirmação que relativizaremos
posteriormente. A moto de 1250 ou 1500 cilindradas, a usualmente utilizada pelos
motoboys, e também a mais frequente nos acidentes (CET, 2012), no modelo 2014 custa
em torno de 6 mil reais, facilitada pelos financiamentos em longas prestações. De fato,
para abraçar esta “profissão” não são necessárias, a priori, qualificações como
experiência de trabalho ou alta escolaridade. Recorrentemente ouvimos ao longo da
pesquisa, por exemplo, que a ocupação dos motoboys também se torna um campo de
trabalho para ex-presidiários, pois muitas empresas fazem contratações sem exigir a
comprovação de antecedentes criminais. A maioria dos entrevistados afirma, ainda, que a
remuneração como motoboy é bem mais alta do que a de outras ocupações que já
tiveram.

Crescimento da frota de motocicletas, novos segmentos de entrega,


desenvolvimento tecnológico. Ainda com Sassen, (1998), o desenvolvimento urbano que
se traduz na consolidação da cidade como centro brasileiro do mercado financeiro e
imobiliário (cf. Fix, 2001 e 2007), também é a ampliação de uma ampla gama de
serviços, associados ao trabalho precário. Crescem os setores satélites destes mercados,
segmentos como da publicidade e da pesquisa de mercado, das consultorias jurídicas e
financeiras, dos shoppings, das redes hoteleiras, da contabilidade, entre muitos outros.
Também as ocupações de baixa remuneração e ausência quase completa de proteções
sociais, como os setores de limpeza, alimentação, telemarketing, construção civil. Este
desenvolvimento econômico da cidade é também o movimento de desapropriação de
favelas, valorização imobiliária e gentrificação, de novas materializações da desigualdade
social no espaço urbano. É também o aumento do transporte privado, frente ao transporte
público que não acompanha o ritmo das transformações da cidade. Documentos e bens
dos mais diversos circulam na garupa destes trabalhadores, os quais arriscam suas
clavículas, fêmures e até mesmo a vida, garantindo que o tempo do mercado não seja

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abalado pelo caos social da metrópole – que não deixa de ser organizado pelas lógicas da
acumulação.

Por esta perspectiva, permanece a tese de Oliveira dos anos 70: a urbanização e a
modernização do país fundam-se na super exploração do trabalho. Ocupações como a dos
motoboys não são a margem do desenvolvimento brasileiro, não são o atraso a ser
superado, são veículos – neste caso literalmente – de um desenvolvimento ele mesmo
síntese das relações entre desigualdade social, exploração do trabalho, injustiças sociais e
a acumulação brasileira.

Para o Governo brasileiro, a combinação entre flexibilização do trabalho e acesso


aos créditos é parte da política social. A gestão de Dilma aprovou o contrato por hora na
carteira de trabalho, legalizando o que Oliveira (2000) denominou de os trabalhadores
just in time. Em outras palavras, a CLT agora combina-se com um uso flexível da força
de trabalho, o que facilita também o crescimento das estatísticas sobre o trabalho
formalizado. É o caso de grande parte dos motoboys. A categoria esporádico transita
hoje entre a total ausência de vínculos e este tipo de registro em carteira, o qual vem
crescendo, fruto da regulamentação da profissão. Este registro também garante que o
motoboy tenha acesso a um financiamento oferecido pelo governo exclusivamente para
esta categoria profissional. Como parte dos programas de geração de emprego e renda
(PROGER), o Ministério do trabalho oferece uma linha de crédito – proveniente do
Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – para o financiamento da aquisição de
motocicletas “a serem utilizadas como instrumento para a realização de trabalhos de
transporte de mercadorias e documentos”. Estão habilitados ao financiamento aqueles
que apresentaram registro no INSS de autônomos ou que tiverem vínculos empregatícios
com o código que hoje regulamente a profissão – o de “motociclista no transporte de
documentos e pequenos valores”. São financiáveis até R$ 8,5 mil, com taxa de juros
entre 6,0 e 12% ao ano (Site do Ministério do Trabalho)

Conversamos com um ex-funcionário do Banco do Brasil, responsável pelo


gerenciamento da linha de financiamento dos motoboys. O acesso ao crédito estava
vinculado à abertura de conta neste banco. Na agência em que nosso entrevistado
trabalhava, essa linha resultou na abertura de 4 a 5 mil contas. Esta é uma dentre as
muitas linhas de financiamento disponíveis no mercado. As próprias empresas de
15
serviços de motoboys estabelecem linhas de financiamento, descontando as parcelas do
financiamento da remuneração mensal do trabalhador. Há ainda um mercado de compra e
venda de motos usadas e também em situação irregular.

Já o mercado dos seguros não é para os motoboys. Dada a alta periculosidade do


trabalho, as companhias recusam-se a fazer apólices, tanto para a moto como de vida
para estes trabalhadores. Mas os motoboys – que tenham a moto em situação regular –
são contribuintes do DPVAT, seguro obrigatório embutido no licenciamento veicular. Os
condutores de motos, vans e microonibus – o que abarca então grande parte do
proletariado que tem o veículo como instrumento de trabalho – podem parcelar o
pagamento do seguro. O DPVAT é administrado por um consórcio de empresas de
seguros privadas, e suas indenizações variam de R$ 2.700 com custos hospitalares a R$
13.500 em caso de óbito. Os recursos são públicos, mas geridos por estes consórcios de
seguradoras privadas. Em 2011, o Ministério Público do Mato Grosso solicitou à
seguradora Líder – responsável jurídica pela administração dos recursos – o
levantamento de todos os pagamentos efetuados naquele ano. Havia suspeita de fraudes,
envolvendo pagamentos superiores aos definidos oficialmente, que poderiam se estender
por todo o país. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) reconheceu a ausência de
controle sobre os usos deste gigantesco fundo público. Em Acórdão publicado em 2010,
o Tribunal registrava a “total obscuridade ‘dos aspectos contábeis, financeiros,
orçamentários e operacionais relacionados à arrecadação e ao emprego dos recursos do
DPVAT”, como afirmou o procurador responsável pela ação, “ou seja, pelo que disse o
próprio TCU, o que temos é uma verdadeira caixa-preta, onde não se sabe o quanto é
arrecadado, nem como são gastos esses recursos. É preciso por um fim a essa sangria de
dinheiro público”. (Estado de Minas). Em 2012, a frota brasileira era formada por
aproximadamente 76 milhões de veículos (dentre eles, 19,9 milhões de motos)
(Observatório das metrópoles, disponível em
http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/auto_motos2013.pdf). As motos
hoje são as que pagam o valor mais alto do DPVAT – R$ 260 por ano, e também as que
mais recebem indenizações. Enquanto as motos correspondem a 26% da frota nacional,
perfizeram 70%, das indenizações por acidentes em 2012 (Seguradora Líder -
http://www.seguradoralider.com.br/SitePages/boletim-estatistico.aspx).

16
A ocupação dos motoboys tem de ser analisada, portanto, não só pelas relações de
trabalho especificamente, mas também pelas relações entre: mercado financeiro – que
envolve as atividades que se estabelecem na cidade, assim como as linhas de crédito para
aquisição das motos, fundos públicos e as gestões das seguradoras em torno deste
montante gigantesco chamado DPVAT, que cresce junto com a frota veicular; políticas
de governo – das (des)regulamentações do trabalho e dos incentivos ao crescimento desta
ocupação; e o crescimento do setor de serviços – em suas diversas ramificações. Ainda, o
pano de fundo que estrutura toda a análise é como o trabalho arriscado, precário, de baixa
remuneração e alta discriminação é hoje central para a realização – e aceleração – de
fluxos financeiros e materiais em uma região metropolitana que tem seu espaço viário
colapsado.

Nossa análise sobre o trabalho é fortemente orientada pela inversão que Paulani
faz em relação à definição de Chesnais, da dominância da valorização financeira. Para
Chesnais, neste regime, as finanças pautam o desenvolvimento econômico, o que
também significa que se tornam determinantes do desenvolvimento (ou
desmantelamento) social. Trata-se do “caráter insaciável” das finanças, ou seja, “a
propensão do capital portador de juros para demandar da economia ‘ mais do que ela
pode dar’.” (Chesnais, 2005 : 61). Já a dominância financeira da valorização
possibilita-nos pensar nas pressões e conexões entre finanças e exploração do trabalho
(Paulani, 2004), evidenciando que a valorização financeira não só assume uma
prevalência como passa a pautar a produção: esferas produtiva e financeira estão
plenamente imbricadas, e as violências e intensificações da exploração do trabalho têm
de ser compreendidas neste contexto. Está em jogo a busca de uma valorização real –
que, portanto, passa necessariamente pela esfera produtiva; esta, por sua vez, está longe
de acompanhar o passo da valorização financeira – que se autonomizou, o que possibilita
que se dê ficticiamente.

Os motoboys têm uma ocupação que deixa evidente algumas destas conexões por
meio das relações entre modernização da cidade e precariedade do trabalho, entre
consolidação da cidade como espaço de valorização financeira e a necessidade material
do exército de trabalhadores que garantam a circulação de documentos e muitos outros
bens (relações já bem delineadas em Godoi, 2012; Barbosa, 2009 e Castro, 2010).

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Segundo pesquisa do IBOPE realizada em 2002, apresentada na dissertação de mestrado
de Ricardo Barbosa (2009), 56% dos motoboys faziam predominantemente entrega de
documentos, 23% alimentos, 13% pequenas cargas, 8% outros tipos de mercadorias. O
instituto concluía então “que o maior tomador de serviços de motofrete na cidade de São
Paulo é ‘o mercado financeiro, seguidos dos setores do comércio e alimentação’”
(IBOPE 2006 apud Barbosa, 2009: 63). A valorização financeira tem seus espaços de
materialidade, além de exercer pressões sobre os mais diversos tipos de trabalho. O
motoboy pode estar na ponta da cadeia de produção publicitária, garantindo o tempo de
realização de determinado comercial, pode garantir o fluxo monetário e de documentos
das mais diversas ordens, além de também garantir a redução de tempo ocioso, ou a
economia de tempo de não trabalho para outros trabalhadores – pela entrega de refeições,
por exemplo. Em outras palavras, o cálculo do tempo-espaço, que é o cerne do trabalho
do motoboy, não diz respeito apenas ao seu próprio trabalho, mas se traduz na redução do
tempo despendido na esfera da produção e da circulação, assim como na redução de
custos de deslocamentos para outras relações de trabalho e cadeias produtivas, incluindo-
se aí a própria esfera da circulação.

O trabalho do motoboy poderia ser resumido em recolher uma entrega e deixá-la


em outro local no menor tempo possível. Entretanto, o saber fazer da profissão envolve
muito mais do que isto. Em 2008, a profissão foi finalmente regulamentada. Na
classificação Brasileira de Ocupações, a categoria “motociclistas e ciclistas de entregas
rápidas” é descrita assim:

Coletam e entregam documentos, valores, mercadorias e encomendas.


Transportam pessoas. Realizam serviços de pagamento e cobrança, roteirizam entregas e
coletas. Localizam e conferem destinatários e endereços, emitem e coletam recibos do
material transportado. Preenchem protocolos, conduzem e consertam veículos (CBO
2014, Site Ministério do Trabalho e Emprego).

As áreas de competência dos motoboys são:

A - EXECUTAR ENTREGAS E COLETAS DE DOCUMENTOS, OBJETOS E


ENCOMENDAS

A.1 - Entregar talões de cheques e cartões de crédito


A.2 - Executar cobrança de valores de terceiros
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A.3 - Transportar valores de terceiros
A.4 - Coletar contratos para terceiros
A.5 - Entregar remédios
A.6 - Transportar refeições
A.7 - Entregar botijões de gás
A.8 - Entregar brindes, encomendas, convites, jornais e revistas
A.9 - Retirar encomendas no aeroporto
A.10 - Coletar equipamentos em poder de usuários
A.11 - Entregar convites
A.12 - Colher assinaturas em documentos
A.13 - Transportar flores
A.14 - Entregar resultados de exames médicos
A.15 - Entregar galões de água
A.16 - Coletar materiais para exames de laboratório
A.17 - Retirar passagens aéreas

B - ROTEIRIZAR COLETAS E ENTREGAS DE DOCUMENTOS, OBJETOS E


ENCOMENDAS

B.1 - Analisar entregas e coletas


B.2 - Separar pedidos de entregas e de coletas por áreas
B.3 - Consultar guia de endereço para roteirização das entregas
B.4 - Levantar referências do local da entrega
B.5 - Ordenar entregas priorizando cargas perecíveis
B.6 - Adequar roteiro aos pedidos de urgência
B.7 - Conferir especificações de entrega
B.8 - Conferir destinatário
B.9 - Calcular necessidade de combustível

C - EFETUAR PROCEDIMENTOS DE COLETAS E ENTREGAS

C.1 - Preencher formulário de protocolo


C.2 - Verificar estado do lacre do malote ou embalagem
C.3 - Identificar número do lacre do malote transportado
C.4 - Identificar-se ao cliente
C.5 - Registrar ocorrência de destinatário não localizado ou ausente
C.6 - Colher assinatura e identificação do destinatário no ato da entrega
C.7 - Consultar empresa em caso de não localização do destinatário
C.8 - Receber valor do serviço prestado no ato da entrega
C.9 - Emitir recibo da coleta
C.10 - Subsidiar empresa na atualização do cadastro de clientes
C.11 - Colher assinatura do destinatário no ato da entrega

D - REALIZAR SERVIÇOS BANCÁRIOS E DE CARTÓRIOS

D.1 - Descontar cheques


D.2 - Pagar títulos
D.3 - Realizar transferências de valores entre bancos
D.4 - Realizar depósitos
D.5 - Retirar cheques devolvidos
D.6 - Retirar talões de cheque
D.7 - Autenticar cópias e documentos
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D.8 - Executar câmbio de moedas
D.9 - Reconhecer firmas em documentos

E - CONDUZIR VEÍCULOS COM SEGURANÇA

E.1 - Respeitar limite e carga do veículo


E.2 - Respeitar legislação de trânsito
E.3 - Utilizar traseiros e dianteiros conjuntamente
E.4 - Utilizar marcha própria de acordo com a via
E.5 - Dirigir defensivamente
E.6 - Manter giro da bibicleta
E.7 - Utilizar equipamento de proteção individual
E.8 - Reduzir velocidade em condições adversas

F - CONSERVAR VEÍCULO
F.1 - Verificar nível de óleo e combustível
F.2 - Regular freios
F.3 - Regular relação (corrente, coroa e pinhão)
F.4 - Verificar estado e pressão dos pneus
F.5 - Verificar parte elétrica
F.6 - Trocar óleo
F.7 - Lavar veículo
F.8 - Providenciar reparo do veículo
F.9 - Lubrificar rolamentos
F.10 - Providenciar manutenção preventiva do veículo
F.11 - Trocar pneus
F.12 - Manter documentação do veículo em ordem

Z - DEMONSTRAR COMPETÊNCIAS PESSOAIS

Z.1 - Utilizar uniformes de acordo com o trabalho e ou local


Z.2 - Utilizar vestimenta adequada ao ciclista
Z.3 - Demonstrar sociabilidade
Z.4 - Manter bom relacionamento interpessoal
Z.5 - Manter asseio pessoal
Z.6 - Dar provas de auto-estima
Z.7 - Zelar pelo bom estado das encomendas transportadas
Z.8 - Demonstrar solidariedade
Z.9 - Demonstrar acuidade visual
Z.10 - Dar provas de reflexo
Z.11 - Demonstrar aptidão mecânica
Z.12 - Agir com responsabilidade
Z.13 - Evidenciar ética profissional
Z.14 - Demonstrar flexibilidade
Z.15 - Dar provas de força física
Z.16 - Demonstrar conhecimento de noções de mecânica de veículos
Z.17 - Reduzir velocidade em dias chuvosos
Fonte: Classificação Brasileira das Ocupações, disponível em
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/downloads.jsf

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Além de ser responsável pela manutenção de sua moto e ter de saber conduzir
“aniquilando o espaço pelo tempo” (Harvey, 1992), cabe ao motoboy uma série de
saberes, que envolvem tarefas burocráticas, como a autenticação de documentos em
cartórios, coleta de assinaturas de documentos; monetárias, como o pagamento de contas,
retirada de talões de cheque, transporte de valores; entrega de bens pessoais, como livros,
exames médicos; transporte e entrega de produtos delicados, como flores e alimentos;
não só transportar com a moto mas carregar com as próprias mãos objetos pesados, como
galões de água.
Os motoboys contratados fixos se especializam em determinadas tarefas. Um dos
entrevistados tinha dois empregos de motoboy, no primeiro trabalhava cinco horas por
dia entregando laudos de exames médicos de um dos laboratórios mais caro da cidade de
São Paulo – recebendo R$ 0,15 por envelope entregue. Segundo Fernando, outro
entrevistado, algumas empresas de motoboys monopolizam a prestação de serviços para
cartórios. Elas têm então trabalhadores que se especializam na realização dos trâmites
burocráticos, que envolvem, por exemplo, saber acessar determinado documento em um
fórum de justiça.
Os entregadores de pizza geralmente fazem jornada dupla de trabalho, a entrega
de refeições pode então ser considerada para uns como um bico, um complemento de
renda – tanto que alguns entrevistados diferenciam ser motoboy de ser entregador de
pizza. O entregador de alimentos trabalha em uma área mais restrita, e com apenas um
tipo de entrega. Mas é responsável, além do tempo de entrega, pela conservação do
alimento. Recorrentemente, as redes de fast-food lançam a seguinte promoção: “receba
sua refeição em x tempo ou não pague nada por ela”. Traduzindo: motoboy chegue em
tal destino em tanto tempo ou arque com o custo da refeição do cliente. Em algumas
empresas de fato o entregador tem de arcar com o “atraso”, em outras não. De qualquer
forma, a promoção se realiza como uma enorme pressão sobre a realização de seu
trabalho, ou seja, é de seu desempenho que depende a promoção da empresa.
Afrânio, o motoboy de que já falamos anteriormente, sofreu diversos acidentes,
teve motos quebradas, roubadas. É motoboy há mais de 30 anos. Hoje se especializou em
um ramo específico de entregas, trabalha quase que exclusivamente para produtoras de
cinema e publicidade. O motoboy que carregava o saco de fichas telefônicas e que

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construiu por conta própria um sistema de rádio amador na sua primeira tentativa de ter o
próprio negócio de entregas, hoje é dono de uma micro empresa, em realidade uma sala
alugada em um antigo sobrado da Vila Mariana, que conta com a prestação de serviços
de quatro motoboys. Afrânio traz para o cenário uma questão importante, a da confiança.
Um amigo há mais de dez anos o chamou para trabalhar com entregas para o cinema.
Desde então estabeleceu uma rede de clientes cativos, transportando de esmaltes para
comerciais a dinheiro. O sucesso de seu negócio depende de algo que ele acumulou com
o tempo, o saber fazer da logística. De sua salinha coordena os trajetos, planeja a
distribuição das entregas, calcula o tempo estimado para cada cliente. Afirma hoje saber
contentar gregos e troianos, efetuar a entrega o mais rápido possível e ao mesmo tempo
calcular a relação de custo benefício para os seus “prestadores de serviço” – não há
vínculos empregatícios em sua empresa.
A logística é uma questão fundamental, tanto para as empresas como para os
motoboys, os quais vivem entre o mamão e a roça. Mamão é a entrega fácil de fazer, que
não demandará muito tempo de deslocamento, que tem o caminho já conhecido. A roça
envolve uma maior distância, ou um serviço mais complicado de realizar. É a logística
que determina em certa medida o que é mamão e o que é roça, determinando a eficiência
do serviço em termos de tempo e de deslocamento para a realização da entrega – como
diz Afrânio, quem pede o serviço de motoboy é porque tem urgência, sempre urgência.
Para a empresa, é preciso saber fazer bem a relação entre a localização dos motoboys na
cidade e os locais de retirada e entrega. Para o motoboy que recebe por entrega, a
logística garante uma remuneração maior, ou seja, fazer mais entregas no menor tempo.
Para os que trabalham em empresas com muitos motoboys, seu fluxo de entregas também
depende do número de trabalhadores em ação. Quando volta para a base, o trabalhador
entra na fila de motoboys a espera da próxima entrega. O trabalhador esporádico – o que
recebe por entregas – está mais comumente associado à figura do cachorro loko.
Submetido a uma espécie de remuneração por peça (Marx, 1982), intensifica seu trabalho
assim como estende as horas trabalhadas em busca de maior remuneração. O esporádico
pode então ganhar mais do que o trabalhador com contrato, e também correr mais riscos.
Alguns entrevistados quando respondiam os questionários diziam, já trabalhei como
esporádico, mas ai casei, tive filhos, achei melhor parar.

22
O cachorro loko então é aquele profissional que tem a aniquilação do espaço
pelo tempo (Harvey, 1992) como definidora do valor de sua remuneração. Ao definir a
acumulação flexível, ao analisar a relação entre capitalismo e espaço, o geógrafo inglês
David Harvey tem sua perspectiva fortemente orientada pela questão do tempo de giro do
capital, ou seja, uma análise do espaço permeada pelas questões do capitalismo que
envolvem não só o tempo da produção, mas o da realização da mais valia na esfera da
circulação. Para o autor, a experiência social da relação tempo-espaço no capitalismo é
inteiramente permeada por uma reprodução social orientada pela “aniquilação do espaço
pelo tempo”: a produção e a realização da mais valia dependem da relação tempo-espaço,
e de sua compressão permanente. Como explicitava Braverman: “‘Economize dez passos
por dia de cada 12.000 empregados’, dizia Henry Ford de seu sistema de manter painéis
de ferramentas e materiais ao lado do trabalhador em vez de deixá-lo mover-se para
apanhá-los livremente, e terá poupado cinqüenta milhas de movimento desperdiçado e
energia dissipada.” (Braverman, 1987: 263). O trabalho dos motoboys é a materialização
da compressão tempo-espaço em ato. Dirigir imprudentemente, costurar no trânsito,
cortar caminhão são práticas esperadas na profissão, especialmente dos cachorros lokos.
Na página do Facebook, está definido com os dizeres: “Nosso Cachorro Loko de ser .só
corredozin da lombada, quebrando retroviso, vivendo a 110 km no corredo, dando um
grau e sempre na loucura do dia dia”. A priori, o cachorro loko é aquele que trabalha
como se não tivesse a vida a perder. Ou, que dá a vida pelo trabalho. Entretanto, o
entrevistado Fernando nós dá uma outra perspectiva, o cachorro loko não é o mané, ele é
o que tem o savoir-faire da profissão.
Ser cachorro loko é ter uma moto sem licenciamento e saber escapar das blitz da
polícia. É conhecer os melhores caminhos da cidade. É saber fazer os trâmites em um
fórum, cartório, banco. É dar a garantia para a(s) empresa(s) de que o serviço será
realizado literalmente sem contratempos. Comumente associada a loucura, violência e
imprudência, essa definição de cachorro loko é, assim, invertida por Fernando. Talvez
outros motoboys não concordem com ele, mas o que ele nos relata são os conhecimentos
e práticas que constituem esta profissão, e o que seria, nos apropriando da definição de
Dejours (1999), o trabalho bem feito do motoboy. O zelo desta profissão se traduz no
equilíbrio permanente em quanto arriscar a própria vida, como realizar trâmites
burocráticos, o conhecimento sobre a cidade, e enfrentar as tensões sociais cotidianas que
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se materializam no trânsito. Os que desempenham melhor este equilíbrio também
ganham melhor. Como nos explica Fernando, virar motoboy é fácil, mas a remuneração
dependerá da habilidade do trabalhador e da confiança e reconhecimento que conquiste
das empresas e clientes. Este talvez seja um caminho para compreendermos as
discrepâncias nas remunerações auferidas nos questionários. O motoboy de 19 anos
afirma trabalhar 14 horas por dia, e receber menos de R$ 1.000, enquanto que outro com
experiência de 15 anos trabalha o mesmo tempo e recebe R$ 4.500. Ou seja, obscurecidas
pela aparente (e real) loucura da profissão, estão as relações de confiança, competências
pessoais e os saberes deste trabalho.
Não ter patrão e andar de moto foram as respostas mais recorrentes sobre o que os
trabalhadores mais gostavam em seu trabalho. O sol e a chuva (em dias de chuva o
número de acidentes em São Paulo dobra, (CET, 2011)) estão entre as maiores
dificuldades. Quanto às percepções sobre sua condição de vida, a maioria afirma ter
vivenciado uma melhora. Construção da casa própria e aumento do rendimento são
respostas recorrentes. Para Fernando, os anos do governo Lula trouxeram mudanças
significativas. Antes o pobre só andava de ônibus, hoje faz manifestação em aeroporto.
Antes o pobre só ia para a Praia Grande, hoje está desfilando com seu carro no
Guarujá, tudo bem que ai vem a segunda feira e começa tudo de novo. Relata ter se
endividado, mas hoje aprendeu a lidar com os carnês e cartões de crédito. Fernando veio
do Nordeste para São Paulo quando adolescente. Antes trabalhou com a cana de açúcar.
Depois de anos trabalhando em comércio em São Paulo, conseguiu passar em um
concurso do Banco do Brasil, mas na reestruturação produtiva dos anos 90 “optou” pela
demissão voluntária. Naquela época já fazia entregas, trabalhava seis horas no banco e o
resto do dia para uma empresa de motoboys. Por razões que não ficaram claras para nós,
tornou-se “coordenador de bolsões de estacionamento” no bairro do Brooklin. Ou seja,
hoje é “flanelinha”, cuida de um estacionamento para motos – regularizado pela
prefeitura – em troca de gorjetas. Alterna este trabalho com as entregas, trabalha por
conta própria, atendendo clientes que se tornaram cativos. Eliminou a mediação das
empresas de motoboys, ou como diz, as Furasóio Express, fazendo menos entregas, mas
recebendo integralmente por elas. Motoboy há mais de 20 anos, já trabalhou com
contrato e como esporádico, até se tornar autônomo.

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Assim como nos evidenciou o saber fazer da profissão, é ele também que nos
mostra um possível avesso da formalização e regulamentação do trabalho dos motoboys.
Para ele, o estabelecimento de um piso salarial irá se traduzir a longo prazo na redução da
remuneração do trabalho daqueles que ganham mais por ter mais experiência. As
empresas de São Paulo têm nomes associados a entrega e rapidez, delivery Express,
agility Express, rápido motoboy. Fernando prevê que as furasóio Express formarão
cartéis de serviços de motoboys – via regulamentações do município que podem até
envolver convênios e parcerias. Alega que já existem algumas empresas que dominam
determinados setores de entregas e serviços de motoboys. Para ele, a regulamentação, tal
como está sendo feita na cidade, será mais um meio de redução salarial e precarização do
trabalho.
A regulamentação também está fortemente ligada à questão da atuação sindical, a
qual não chegou a ser pesquisada, ficando em aberto para uma próxima etapa. Com o
registro em carteira, o trabalhador paga R$ 14 para a contribuição sindical, ou seja, a
formalização crescente se traduz para o sindicato em um montante significativo, se
consideramos que apenas São Paulo tem no mínimo 200 mil trabalhadores. Entretanto, a
maioria dos entrevistados critica o sindicato, afirmando que este está muito distante das
demandas dos motoboys. A regulamentação impõe alguns deveres para os motoboys:
curso de especialização de 30 horas, ao menos um ano de experiência como condutor de
moto, moto branca e licenciada, com menos de cinco anos de uso, uso de baú e coletes,
uso de itens de segurança como protetor de pernas e antena a corta linhas com cerol, e a
proibição de transporte de pessoas na garupa da moto. Estima-se que os itens de
segurança mais o curso tem um custo médio para o motoboy de R$ 680.
Estes deveres foram fonte de protestos que pararam o trânsito da cidade em
diversos pontos ao longo dos últimos anos. Na véspera da implementação da fiscalização,
os motoboys realizaram protestos pela cidade que pararam completamente vias como as
da Av. Paulista e Marginal de Pinheiros, tendo sido nesta última fortemente reprimidos.
A disputa segue em ato, pois a lei já está em vigor, mas a fiscalização segue sendo
adiada. O instrumento de trabalho dos motoboys pode se transformar em uma arma
política poderosa, já que estes trabalhadores podem hoje, sem necessidade de muita
organização prévia, parar a cidade. Entretanto, todos os nossos entrevistados e os que

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responderam aos questionários mantêm uma relação de desconfiança com o sindicato, e
apenas dois deles estiveram presentes em alguma das manifestações. Sendo que um deles
envolveu-se por acidente, por estar no local e não ter para onde ir. Para eles, um dos
maiores exemplos de desinteresse do sindicato seria a eliminação da faixa de
motociclistas da Av. Sumaré, vários citam esta como o lugar de maior segurança para o
tráfego das motocicletas. Quanto às manifestações de junho de 2013, nenhum dos
entrevistados participou, a maioria afirma que não têm tempo nem possibilidade de
participar devido às demandas do trabalho.
Quanto às regulamentações, a proibição de andar com alguém na garupa da moto
não parece ter explicação para além da segurança. A figura do motoboy hoje é fortemente
associada com o banditismo. Já está implementada em São Paulo a lei que proíbe a
entrada em qualquer estabelecimento, como postos de gasolina, com o uso do capacete.
Mas não se trata apenas da insegurança na metrópole, que tem na moto um de seus
símbolos e também veículos. Os relatos das entrevistas trazem à tona uma discriminação
cotidiana, a qual permeia as relações de trabalho. Nos diz Afrânio, você pega um cara,
põe uma mochila nas costas dele, uma jaqueta Califórnia Racing que é dessas que a
gente usa, é padrão do motoqueiro. Ele é recebido de uma maneira. Pega esse mesmo
cara, um sapato, uma jaqueta de couro, uma bolsa de couro de lado, e você vai ver a
diferença que é quando ele chega com uma roupa e com outra.
Afrânio relata situações que nos remetem às empregadas domésticas e suas
barreiras espaciais nos conjuntos residenciais. Parece se tratar de uma atualização que se
estende para o setor de serviços, da discriminação que historicamente associa pobreza a
sujeira, tendo sobre o(a)s empregado(a)s doméstico(a)s sua força mais explícita. No caso
do motoboy, a discriminação também está associada à ilegalidade. Eu sou um cara que
bate de frente. Se eu estiver no meu direito, eu não admito que ninguém passe por cima
de mim. Já aconteceu na Paulista, o centro nobre de São Paulo. Eu fui defendido por
médicos que estavam dentro do elevador. Eu fui impedido de descer no elevador com
pessoas. O porteiro, o próprio ascensorista. Tava de capa de chuva no 18 andar, ele
subia e descia e não me pegava. Eu tomei uma atitude e entrei dentro do elevador. Se
você não me descer, eu não vou sair daqui, porque estou há mais ou menos 15 minutos
tentando descer. Não vou esperar mais. E todos estavam de branco, eram médicos,

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falaram pra ele deixar eu descer. Quando eu cheguei embaixo, tinha 3 seguranças para
me pressionar. Como eu trabalhava e ainda trabalho pra uma pessoa lá... Ela valorizava
muito meu trabalho, me defendia sempre que estava certo. Tive que peitar 3 armários, se
colocar a mão em mim vou distribuir capacetada para todo mundo. Não põe a mão em
mim, fala com educação. E ela por sua vez ligou para a pessoa, explicou o que
aconteceu, no dia seguinte eu voltei numa chuva torrencial, e fui atendido como um ser
humano. Pegou um elevador especifico, me colocou no elevador, subi e desci sozinho. Se
vão colocar alguém comigo ou não, é opção deles. O elevador me esperou, e fiz meu
trabalho e desci. A tensão com o elevador é cotidiana, tem prédio ai que você é obrigado
a descer com lixo. Transporte de carga, eu não sou carga, mas sou obrigado a usar o
elevador. Vai lá na Berrini e vê como você é transportado dentro de um elevador. Já nos
prédios residenciais cabe ao motoboy ficar do lado de fora, possível suspeito não tem
permissão para entrar. Nos prédios mais modernos a entrega se dará por um vão do
portão já projetado especificamente para isto.
As discriminações também ocorrem entre trabalhadores muitas vezes da mesma
origem social. A diferenciação de quem está dentro do prédio frente a quem está na rua
parece ser uma linha definidora das violências simbólicas. No caso do motoboy, a
humilhação social pode ser exercida em torno do tempo, deixar um motoboy esperando
pode se materializar como uma profunda violência. Existem recepções em que você
chega e você é extremamente bem tratado, a recepcionista se preocupa, porque ela sabe
que você está trabalhando. Tem outra que diz, aguarda um pouquinho. E te deixa lá
esperando. 30 minutos, 40 minutos, uma hora. E você tá com o baú lotado de coisa. 10
minutos pra gente é tempo pra caramba, em 10 minutos eu saio daqui e vou até a
Paulista. Mas tem gente que não se preocupa com isso. Tem seguranças, porque ele está
com gravatinha, com walktalk, ele chega escrachando, te humilhando. E tem gente que
aceita, eu não aceito, nunca aceitei, e não vou aceitar. Se eu tiver no meu direito, eu vou
lutar pelo meu direito e pelo do próximo que tá do meu lado. Eu já vi gente ser
maltratada do meu lado, eu falo, ô parceiro trata o cara direito, nem cachorro você trata
dessa forma. Não é porque você é responsável por uma área, que você pode se julgar
dono do prédio. Você chega às vezes para entregar na residência de alguém, o porteiro
do prédio te trata mal – ‘quer falar com queeem?’. ‘Bom dia amigão’, eu sou meio
irônico, sabe. ‘Como vai, tudo bem. Amigão você pode tocar?’ ‘Tem que esperar’. Eu
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digo ‘não, se não eu vou embora, e a responsabilidade é sua. Quem precisa do
documento é ela, eu sou simplesmente o transportador’. Se pediu é porque tem urgência.
Portanto, as tensões sociais vão muito além dos chutes nos retrovisores, brigas, e
disputas ferozes pelo espaço no tráfego urbano. Entretanto, o trânsito de São Paulo hoje
dá materialidade à desigualdade social. Ao lado dos ônibus lotados, no qual o trabalhador
passará horas em pé para chegar ao trabalho e voltar para a casa, estão os carros, e os
SUVs – veículos familiares também conhecidos como “jipinhos”, mais robustos, mais
altos e largos que os veículos de outras categorias, os quais colocam seus passageiros em
um estatuto diferenciado em meio ao trânsito que se popularizou. A “nova classe média”
também está motorizada, estabelecem-se novas formas de distinção das classes sociais,
expressas na altura e tamanho dos carros, (este é um fenômeno mundial, para Mike
Davis, os “jipinhos” estão mais próximos de pequenos tanques de guerra da família
americana, em Davis, 2013). No Brasil, a compra de SUVs cresce em ritmo maior que
dos outros carros. Afrânio sintetiza as tensões que expressam a desigualdade social no
trânsito: Você tá com uma Brasília, o cara passa com a SUV e acha que você não é nada.
O motoqueiro que tá com uma 300 ele vê o motoqueiro com uma 125 e não é nada. A
tensão também se dá entre as motos, “o cara se puder passa por cima de você no
corredor. Tem 50 motos lá, ele vem atrás de você te empurrando, quando ela acha uma
brecha, entra na sua frente”. “Você bater com o carro é uma coisa, com uma moto é
muito pior. Você pode bater na lataria de um carro, o máximo que pode te acontecer, é
você quebrar um braço, deslocar um braço. Moto com moto, a tendência é você se
arrebentar todo, é ferro com ferro”. Desaparecem as relações de produção, aparece a
desigualdade social; por meio dos objetos em circulação, os conflitos sociais tomam uma
forma fetichizada e crua, sentida no corpo de qualquer cidadão paulistano. Entre carros,
carrões, ônibus e caminhões, estão os corredores informais e mortais das motocicletas.
As motos usadas, de baixa cilindrada, que competem com as motos de alto custo que
também se tornam opção para os trabalhadores de maior rendimento.
Trafegar entre os carros era uma infração de trânsito até os anos 90. O governo
FHC vetou o parágrafo 56 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual proibia a formação
dos corredores de moto. O governo Lula regulamentou a profissão dos motoboys, até
agora ao que parece instituindo mais deveres do que direitos, e manteve a legalidade dos

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corredores. Os acidentes com motos seguem aumentando, sendo as Marginais de
Pinheiros e do Tietê os locais mais perigosos da cidade para os motociclistas (CET,
2012). Trafegar entre carros e caminhões é parte das competências da profissão.
Enquanto o motociclista voa, o motorista não anda. A tensão do trânsito aumenta pela
tensão entre motos e carros. Mas não é apenas loucura, é tempo de trabalho; para o
motoboy, é produtividade do trabalho.
Se no dia a dia do tráfego paulistano, o motoboy pode ser o pesadelo do
motorista, é ele que também no cotidiano garante a velocidade das inúmeras transações e
serviços. Mas esta realização vem carregada da discriminação e do não reconhecimento
do trabalhador, que apesar de estar evidentemente ligado às mais diversas esferas da
produção e da acumulação também vivencia uma experiência de trabalho que mais o
aproxima de um serviçal. Torna-se parte das competências do trabalho do motoboy
enfrentar as humilhações sociais cotidianas, lidar com a urgência dos clientes, como nos
diz Afrânio, “o mesmo cara que reclama que eu não posso correr no corredor é o cara
que reclama quando a pizza chega fria”. “Se soubesse que você ia demorar tanto eu
tinha ido buscar minha chave de ônibus”, reclama o cliente impaciente, Afrânio pensa --
mas nem sempre diz -- “amigo, hoje é sexta feira, o trânsito não anda, está chovendo, e
minha vida vale mais do que sua chave”.
Para Afrânio, a solidariedade entre motoqueiros, e também entre motoboys já não
existe mais. Como um caminhoneiro na estrada, quando você passava na Av. Paulista,
moto com moto, você buzinava. Hoje em dia o cara nem olha na sua cara. Isso se
explicaria por uma banalização da profissão: “Na nossa época, quando começamos a
trabalhar, você tinha que ter pelo menos um ano de habilitação e você tinha que saber
pelo menos ler um guia. A profissão do motoboy acabou se banalizando”. Para ele, esta
banalização teria se iniciado com o desemprego nos anos 90, “porque houve uma
necessidade já do cara que perdia o seu emprego e não tinha o que fazer. Então o que
acontecia, o porteiro, o pedreiro, o Office boy, ele comprava uma moto e ele ia trabalhar
numa empresa de motoboy”. Quando foi trabalhar na primeira empresa de motoboys,
Afrânio conta que “fui fazer entrevista, fiz um teste – antigamente tinha um teste, te
davam uma moto com baú enorme, saia um instrutor na frente, você tinha que seguir o
cara. Ele queria ver o seu desempenho no corredor de veículos. E via seu conhecimento

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de São Paulo, me acha a rua tal no guia”, “hoje tem motoboy que está em Pinheiros e
não sabe chegar na Av. Paulista”. Podemos pensar em um sentido mais amplo da
banalização, que nos remete à abordagem de C. Dejours (1999). Afrânio explicita esta
banalização na sua vida cotidiana, dizendo, em relação não só ao trabalho dos motoboys
que o ser humano deixou de ser humano. Bati a moto no ano passado, o cara fez uma
conversão completamente errada, bati, quebrei a clavícula. Eu no chão e o cara
querendo me agredir. Ele foi embora. Fui dar queixa, o cara da policia diz ‘nem adianta
nada não’. Fiquei com o prejuízo da moto, fiquei um mês e meio com a clavícula
quebrada, e trabalhando. O cara podia pelo menos prestar socorro. Aquele que hoje em
dia chega em casa, consegue tomar um banho, jantar e deitar na cama, ele é um
sobrevivente. Ele não é um ser vivente. Tanto pelo fato da condução, da violência. Nós
somos sobreviventes. Reza quando sair e agradece muito quando voltar.
As injustiças sociais e os riscos – mortais – da profissão estão evidentes, mas
socialmente invisíveis, e o que aparece é o motoboy como um instrumento informal,
precário e extremamente eficiente na compressão do tempo da distribuição e da
circulação. Novamente, nosso “atraso” brasileiro, expresso no trabalho precário deste
exército em veloz crescimento em realidade é extremamente eficaz em prover redução de
custos da distribuição e do transporte, em garantir a velocidade da informação quando
esta tem de se materializar, e ainda, seguindo com a perspectiva de David Harvey, em
comprimir o tempo de giro do capital, “aniquilando o espaço pelo tempo”, o que, para o
motoboy significa o risco permanente de sua própria aniquilação.

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