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o

EOUTRAS PO(TICAS POÚliCAS 5


~~~~~~ ~

AUGUSTO BOAL

11
CIVILIZAÇÃO BF ASILURA
TEATRO DO OPRIMIDO
E OUTRAS POtTICAS
POUTICAS

Augusto Boa! - sabem-no to-


dos - é personalidade marcante
como autor e diretor teatral, ten-
do se empenhado, ao longo de
sua carreira, na renovação da cena
brasileira, buscando reformular-
-lhe o conteúdo e transformar o
espetáculo num ato <i;e comunhão
popular. Teatro para ele sempre 4 .

esteve vinculado ao povo.


Teatro do oprimido e outras
poéticas políticas é. livro em qué
Augusto Boal expõe, com entu-
siasmo criativo . e· lucidez exegéti-
ca, o seu ideário de teatrólogo e
metteur en scene.
Mas no livro o autor não se
limita a debater teorias - o que
faz rom raro brilho e eficácia -
ou a expor criticamente as trans-
formações fundamentais por que
'
o teatro passou no decorrer dos
tempos, ou seja, do sistema trági-
co coercitivo de Aristóteles e da
poética da virtu, de Maquiavel,
até chegar às colocações propos-
tas pelas coordenadas hegelianas
e brechtianas. Boal avança até o
q?e chania poética do oprimido,
onde mostra "alguns dos caminhos
pelos quais o povo reassume sua
função protagônica no teatro e
na sociedade."
Coleção Augusto Boal
TEATRO HOJE

Volume 27

Teatro do Oprimido
e Outras Poéticas Políticas

2~ EDIÇÃO

..,;.

civilização
brasileira
Desenho de capa:
DOUN~ Para meu filho FABIAN

Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX

Direitos desta edição reservados à


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 91 / 93
RlO DE JANEIRO - RJ

19 8 o
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
O Autor manifesta o seu profundo agradecimento
a l:.nio Silveira que, através da edição deste livro,
concretizou o seu retorno ao País, depois de
tantos anos.

I,

f
I
Sumário

Explicação 1

1 . O Sistema Trágico Coercitivo de A ristóteles 3


Introdução 5
A arte imita a natureza 7
--
Pequeno dicionário· de palavras simples 36
Como funciona o sistema trágico coercitivo de
Aristóteles 38
Distintos tipos de conflito: harmatia x ethos social 42
Conclusão 50
-; Notas 53

2. Maquiavel e a Poética da Virtu 51


I - A abstração medieval 59
II - A concreção burguesa 66
111 - Maquiavel e A Mandrágora 14
IV ..:_ Modernas reduções da virtu 82
3. Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou
Personagem-Objeto? 91

4. Poética do Oprimido 121


- A - Uma experiência de teatro popular no Peru 124
Conclusão: "espectador", que palavra feia! 168 Explicação
- B - O sistema coringa 173
l - Etapas do Teatro de Arena de
São Paulo 173
li - A necessidade do coringa 186
IH - As metas do coringa 193
IV - As estruturas do coringa 201
V - Tiradentes: questões preliminares 209
VI - Quixotes e heróis 218

STE LIVRO(*) procura mostrar que todo teatro é neces-


Esariamente político, porque políticas são todas as ativida- 6

des do homem~ e o teatro é uma <leias. ·


Os que pretendem separar o teatro da política, pretendem
conduzir-nos ao erro - e esta é uma atitude política. Neste
livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o
teatro é uma arma. Uma artna muito eficiente. Por isso, é ne-
I cessário lutar por ele. Por isso, as classes dominantes pewa- 4
nentemente tentam apropriar-se ãõtêãtro e- utilizá-lo como
instr umento de dominação. Ao fazê-lo, modifiéãmo própriõ
conceitoaõ que- sêja o "'teatro". Mas o teatro pode igualmente
ser uma arma de liberação. Para isso ·é necessário criar as for-
mas tea~ais correspondentej . :É neceSSário t rãilsformar. -

• Este livro reúne ensaios que foram escritos com düerentes pro-
pósitos, desde 1962 em São Paulo, até fins de 1973 em Buenos Aires,
relatando experiências realizadas no Brasil, na Argentina, no Peru, na
Venezuela e em vários outros países latino-americanos. Alguns foram
originalmente escritos em português, outros em espanhoL Creio que
isto explica a diferença de estilos, bem como possíveis reiterações de
. certas idéias e temas.

1
Este livro mostra algumas destas transformações
mentais. "Teatro" era o povo cantando livremente funda-
o povo erã o cnãa or- e o destinatário do espet ao ar livre:
áculo teatiãl,
que se podia entã<? c'blma,C'canto ditirâmbico".
Era ·uma festa
em que podiam todos livremente participar. ~io
e estabeleceu divisões: algumas pessoas iriam a aristocracia
ao palco e só
elas poderiam representàr enquanto que todas
as outras per- 1
maneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes
espectadõrês, ã massa; o povo. E para que o espet seriam · os
áculo pudes-
se refletir eficientemente a ideologia dominante,
a
estabeleceu uma nova divisão: alguns atores seria aristocracia
O Sistema Trágico Coercitivo de Aristótele-s
m_ os_proJa-
gonistas (aristocratas) e os demais seriam o
coro, de uma
forma..ou de outra simbolizando a massa. "O Siste
fÕerCitivà) de -Aristóteles" nos ensi naõ funcionamma Trágico
ento deste
tipo- c:têÍeatro. .
Veio depois a burguesia e transformou estes prota
deixaram de ser objetos de valores morais, super gonistas: "A tragédia é a criação mais característica da
e passaram a ser sujeitos multidimensionais, indiv estruturais, democracia ateniense; em nenhuma outra form
cionais, igualmen!e afastados do povo, como novoíduos. excep- artística os conflitos interiores da estrutura sociaa
s anstocra-
las - esta é a '-Poética da Virtu" de Maquiavel
. estão mais clara e diretamente apresentados . ...Os.l
' Bertolt Breclít responde a estas Poéticas e conv aspectos exteriores do espetáculo teatral para
erte o
personagem teorizado por Hegel de sujeito-absolut
o outra vez massas eram sem dúvida, democráticos. Mas as
em objeto, mas agora se trata de objeto de
força conteúdo era' ati_stocrático. Exaltava-se o indivíduoo
não mais dos valores das superestruturas. O "ser s sociais, excepcional, diferente de todos. os demais ~orta
termina o pensamento" e não vice-versa. - - social de- is:
- · isto é o aristocrata. O único progresso feito pela
Para completar o ciclo, faltava o que está atual deíiio~racia ateniense foi o de substituir gradu
ocorrendo em tantos países da América Latina: ment e al-
i'ileiitea aristocracia de sangue pela aristocracia
a destruição do
das barreiras criadas pelas classes dominantes. Prim dinheiro. Atenas era uma democracia imperialis
trói a barreira entre atores e espectadores: todos eiro se des- e. as suas guerras traziam benefícios apenas para ta
devem re- parte dominante da sociedade. A própria separa~ãoa
presentar, todos devem protagonizar as necessária
mações da sociedade. :e o que conta "Um a Expe transfor-s do protagonis ta do resto do coro demonstra a ID_l·
riência de popularidade temática do teatro grego. A_tragéq
Teatro Popular no Peru". Depois, destrói-se a
os protagonistas e o Coro: todos devem ser, ao
barreira entre grega é franca!!lente tendencio~a. Q Estado_ e ta
mesm os
coro e protagonistas - é o "Sistema Coringa". o tempo, homem ricos p-ªgav~m as p!Q_duções e naturalme_
nte
Assim tem -nãõ permitiam a encenação de peças. de conte
que ser a "Poética do Oprimido": a conquista udo
dos meios de contrário ao regime vigente".
produção teatral.
Buenos Aires, Junho 1974 Anold Hauser, História Social da Literatura e
Augusto Boal da Arte.

.2
v

Introdução

DiscussÃo sobre as relações entre o teatro e a política


A é tão velha como o teatro . . . ou como a política. Desde
e desde muito antes, já se colocavam os mesmos
Aristóteles
temas e argumentos que ainda hoje se discutem. ~ um lado
se afirma que a arte é pura contemplação e de outro que, pe~
contrá?io, a arte apresenta 's"emp~ uma visão J!o_mundo em
tranSfõmiãção e, portanto, é inevitavelmente política, ao apre-
sentar os meios de realizar essa transformação, ou 'de demó-
rá-la. Deve a arte educar, l.nformnr, organizar, influenciar~
incitar, atuar, ou deve ser simplesmente objeto -de prazer e
gozo? O~ cômico Aristófanes pensava que "o comedió-
grãfõ .u~o só ofe~~ pJazer como_j_eve também ser um pro-
fessor qe moral e um conselheiro político", Erast6stenes pen-
sava o contrário,- afirmando que "a função do poeta é encan-
tar os espíritos dos seus ouvintes, nunca instruí-los". STRABO
argumentava: "A poesia é a primeira lição que o Estado deve
ensinar , à crianÇa; a poesia é superior à filosofia porque esta
se dirige ·a uma minoria enquanto que aquéla se dirige às
~ãssa'S:"" Platão, pelo contrário, pensava qiDL_os poetas de-
VIam ser expulsos de uma República perfeita, porque, "a poe;

5
sia só tem sentido quando exalta as figuras e os f~tos que
devem servir de exemPJQ; o teatro i.niita as coisas do mundo;
mas o mundo não é mais <iüe uma Siiiipiês' imitação das idéias
~ ...::. assim7Põfs; o-t~o vem a ser uma imitação~uma4mi-
_}açãõ."
Como se vê, cada um tem a sua opinião. Mas será isto
possível? A relação da arte com o espectador é algo suscetí-
vel de ser diversamente interpretado, ou, pelo contrário, obe- A arte imita a natureza
dece rigorosamente a certas leis que fazem da arte un,. fe-
nômeno puramenty.-contemplat:ivo- ou4lm-fenômeno ~e.stranha­
velmente P2,lítico?J a suficiente que o poeta declare suas iiitêii::J
\~es para que sua realização siga o curso previsto por ele? /
Vejamos o caso de Aristóteíes, por exemplo, para quem
poesia e política são disciplinas completamente distintas, que
devem ser estudadas à parte porque possuem leis particulares,
porque servem a distintos propósitos e têm diferentes objeti-
vos. Para chegar a estas conclusões, Aristóteles utiliza em
sua Poética certos conceitos que são melhor explicados
em suas outras obras~ Palavras que conhecemos por suas
conotações mais usuais mudam completamente o sentido se PRIMEIRA dificuldade .que se nos apresenta para que pos-
são entendidas através da Ética a Nicômaco ou da Grande A samos compreender corretamente o funcionamento da
Moral. tragédia segun~o Aristóteles consiste na própria definição que
·-Aristóteles p.ropõe a independência da poesia (lírica, épi- esse filósofo oferece da arte. Que é a arte, qualquer art~?
ca e dramática) em relação à política; o que me proponho a Para ele, é uma imitação da natureza.
fazer neste trabalho é mostrar que, não obstante suas afirma- Para nós, a. palavra "imitar" significa fazer uma cópia
ções, Aristóteles constrói o primeiro sistema poderosíssimo mais ou menos perfeita de um modelo original. Sendo asstm.
poético-político de intimidação do espectador, de eliminação a arte seria então uma cópia da· natureza. E "natureza" sig-
das "más" tendências ou tendências "ilegais" do público espec- nifica, para nós, o conjunto .das coisas criadaS. A arte seria
tador. Este sistema é amplamente utilizado até o dia de hoje, pois um cópia das coisas criadas.
não somente no teatro convencional como também nos dra- Aristóteles/ contudo, quis dizer uma coisa completamen-
malhões em série da TV e nos filmes de· /ar west: cinema, te diferente. Para ele, imitar ( mimesis) não tem nada que
atro e TV, aristotelicamente unidos para reprimir o · povo. ver com a cópia de um modelo exteribr. A melhor tradução
Felizmente, o teatro aristotélico não é a única maneira da palavra mimesis seria "recriação". E "natureza" não é o
e se fazer teatro. conjunto das coisas criadas e sim o próprio princípio criador
de todas as coisas. Portanto, quando Aristóteles diz que ' a
arte imita a natureza, devemos entender que esta afirmação,
que pode ser encontrada em qualquer tradução moderna da
PoétiCa, é uma má tradução, originada talvez em uma inter-
pretação isolada do texto. "A arte imita a natureza" na verda-
6
7
criando assim as coisas. O "apeiron" era divino, por ser imor-
de que dizer: 'A arte recria o princípio criador das coisas tal e indestrutível.
criadas":-
Para que fique um pouco mais claro como se processa Outro dos filósofos chamados da Escola de Mileto,
essa "recriação" e qual é esse "princípio", devemos, amda que ANAXÍMENES ( 450 a.C.), sem variar grandemente as concep-
supedicialmente, recordar alguns filósofos que elaboraram ções anterióres, afirmava que o ar era o elemento mais pró-
suas teorias antes de Aristóteles. ximo à imaterialidade e era portanto o princípio universal
que dava origem a todas as coisas.
EscoLA DE MILETO - Entre os anos 640 e 548 a:C., viv.eu
na cidade grega de Mileto um comerciant~ de a~e1te, mmto Existe algo comum a esses três filósofos: a busca de uma
religioso que era também rtavegante. Acredttava ptamente em matéria ou substância única, cujas transformações originam
todos 0 ; deuses mas, ao mesmo tempo, tinha que transportar todas as coisas conhecidas; além disso, os três afirmam -
sua mercadoria por via marítima. Por isso, ocupava uma boa cada um à sua maneira - a existência de uma força trans-
parte do seu tempo em elevar ao~.. céus suas orações, para formadora, imanente à substância, seja esta o ar, a água ou
que fizesse bom tempo e mar tranqmlo, e nos seus momentos o "apeiron". Ou quatro elementos, como queria EMPÉDOCLES
livres se dedicava a estudar as estrelas, os ventos, o mar e as (ar, água, terra e fogo), ou o número, como queria PITÁGORAS.
relações entre as figuras geométricas. Tale~ - assim se cha- De tudo que e&creveram, no entanto, muito poucos textos che-
mava esse grego - foi o · primeiro cientista a prever um garam até os nossos dias. Já de HERÁCLITO, o primeiro dia-
eclipse solar. Também a ele se atribui um tratado de astro- lético, temos farta documentação.
nomia náutica. Como se vê, Tales acreditava nos deuses, mas
não descuidava o estudo das ciências. Chegou à conclusão de HERÁCLITO E CRÁTILO- Para Heráclito, o mundo e todas as
que o mundo das aparências, caótico, multifac~tico, na rea- coisas do mundo estão em permanente transformação. E essa
lidade m:.da mais era do que o resultado de dtversas trans- transformação permanente é a única coisa imutável. A apa-
formações de uma só substância: a água. Para ele, a água rência de estabilidade é uma simples ilusão dos sentidos e deve
se podia transformar em todas as coisas e todas as coisas se ser corrigida pela razão.
podiam igualmente transforr~wr em água. Ess~s transfor~a­ E como ocorre essa transformação? Bem: todas as coisas
ções, segundo Tales, ocornam porque as cotsas possmam se transformam em fogo e o fogo se transforma em todas as
"alma". Às vezes, essa "alma" podia se tomar sensível e seus coisas, da mesma maneira pela qual o ouro se transforma em
efeitos eram imediatamente visíveis: o ímã atrai. o ferro - jóias que podem por sua vez ser transformadas em ouro.
esta atração é a alma. Portanto, segundo ele, a alma das coisas Mas, como na verdade o ouro não se transforma e sim é
consiste no movimento ql!e_ as próprias coisas possuem, que transformado, existe alguém (o joalheiro), estranho à maté-
áStransforma em água que, por sua vez, se transforma em ria Ouro, que faz possível essa transformação. Porém, para
todas as coisas. Heráclito, o elemento transformadór residia dentro da coisa
mesma, como uma· oposição: "a guerra é a mãe de todas as
ANAXIMANDRO, que viveu pouco depois (610-546 a.C.), ~cr~­ coisas; a oposição unifica, pois o que está separado cria a
ditava mais ou menos no mesmo, mas para ele a substancta mais bela harmonia; tudo que acontece, acontece tão-somentí!
fundamental não era a água e sim algo indefinível, sem pre- porque existe luta". Isto é, cada coisa traz dentro de si mesma
dicados, chamado "apeiron", que se condensava ou rarefazia,
9
8
um antagonismo que faz com que se mova do que é para
o que não é.
"
3 . o Ser é infinito (e aqui Parmênides conieteu um pe-
queno erro lógico: depois de afirmar que o Ser é, infini-
Para mostrar o caráter de permanente transformação de to - pois do contrário, depois de sua finitude, viria o
todas as coisas, Heráclito dava um exemplo concreto: ninguém não-Ser - . afirmou também que era esférico·' ora' pois ,
\ pode entrar duas vezes no mesmo rio. Por que? Porque na se é esfénco, tem uma folina, e se a tem, terá igualmente·
:segunda vez em que entre já não serão as mesmas águas as seus limites, além dos quais necessariamente estaria outra
' que estarão correndo, nem será exatamente a mesma pessoa, ve_z o ~ão-Ser. Não é este porém o lugar para exami_nar
!que será mais velha, ainda que seja de tão-somente alguns se- tais sutilezas. Possivelmente "esférica" seja uma má tra-
gundos. .dução e talvez ParmênideS. tivesse querido dizer "infinito
Crátilo, seu aluno, ainda mais radical, dizia aó mestre em todas as direções" ou coisa que o valha) ;
que ninguém pode entrar no rio nem sequer uma só vez, pois, 4 . o Ser é imutável, porque toda transformação signi-
ao entrar, já as águas do rio se estarão movendo (e em que ficaria que o Ser deixaria de ser o que é para começar a
águas entrará?) e já estará envelhecendo a pessoa que tenta ser o que ainda não é: entre um e outro estado necessa-
entrar no rio (e quem estará entrando, a mais velha ou a .
namente ' não é,
estaria instalado o não-Ser, e como este
mais jovem?). Só o movimento das águas é eterno, dizia Crá- não e~ste possibilidade alguma, segundo esta lógica, de
tilo; só o envelhecimento é eterno; só o movimento existe: tudo que exista qualquer transformação;
o mais são aparências vãs.
5 . o Ser é imóvel: o movimento é uma ilusão, porque
significaria que o ser se moveria de um lugar onde está
PARMtNIDES E ZENÃO -No extremo oposto a esses dois de- para um lugar onde não está, signüicando isso que entre
fensores do movimento, da transformação, da luta interna que
promove essa transformação, estava Parmênides, que partia, os dois lugares estaria o não-Ser· e, uma vez mais, isto
para a criação de sua filosofia, de uma pre~!ssa fundamental, -seria uma ~mpossibilidade lógica.
lógica: "O Ser é e o não-Ser não é". Efetivamente seria ab-
surdo pensar o contrário e, como dizia Parmênides, "os pen- Destas afirmações, Parmênides termina por concluir que,
samentos absurdos não são reais". Existe portanto uma identi- como elas estão em desacordo com os nossos sentidos, com o
dade entre o "ser" e o "pensar" segundo o filósofo. Se acei- que podemos ver, ouvir e sentir, isto significa que existem dois
tamos esta premissa inicial, dela estaremos obrigados a extrair mundos perfeitamente definíveis: o mundo inteligível, racio-
uma quantidade de conseqüências: nal, e. o ~modo das aparências. O movimento, se~ndo ele, é
uma Ilusao, porque podemos demonstrar que não existe; o
mesmo em relação à multiplicidade das coisas reais existentes
1 . o Ser é único, porque, se assim não fosse, haveria que são, em sua lógica, um único Ser, infinito eterno intrans~
entre um Ser e outro Ser o "não-Ser", que estaria entre fonnável, imóvel. ' '
os dois; mas já aceitamos que o "não-Ser" não é, e por-
tanto teremos que aceitar que o Ser é único, apesar da Também Parmênides, como era hábito, tinha seu discí-
aparência enganosa que nos diz o contrário; pulo radical, chamado Zenão. Este tinha o costume de contar
I •

2. o Ser é eterno, porque, se assim não fosse, depois duas histórias para provar a inexistência do movimento. Duas
histórias célebres, mas que vale a pena recordar. A primeira
do Ser viria necessariamente o "não-Ser" que, como já contava que em uma corrida entre Aquiles (o mais rápido
vimos, não é; corredor grego) e uma tartaruga, aquele jamais conseguiria
10 11
cessa em um lugar ou em outro, e sim de um lugar PARA o
alcançar esta, se à tartaruga fos~e ,c~ncedida u.ma ~equena outro: o movimento é justamente a passagem de um lugar
vantagem inicial. Assim era seu rac10c~mo: p~r ~a~s ráp1do que a outro e não uma seqüência de atos em distintos lugares.
corra Aquiles terá que vencer primetro a d1stanc1a que o se-
parava da tartaruga no momento em que se iniciou a corrida. LoGos E PLATÃo - f: importante compreender que não pre-
Mas, por mais lenta que seja a tartaruga, durante esse breve tendo aqui escrever a história da filosofia, mas apenas tentar
momento ela já se terá movido, ainda que seja tão-somente explicar o mais claramente possível o conceito aristotélico de
alguns poucos centímetros. Quando Aquiles se proponha outra que a arte imita a natureza, e de esclarecer de que natureza
vez a alcançá-la, terá, sem dúvida, que vencer esta segun?a se trata, de que tipo de imitação, e de que tipo de arte. Por
distância. Durante este lapso de tempo, por menor que seJa, isso, passamos tão superficialmente por cima de tantos pen-
uma vez mais a tartaruga terá avançado um pouco mais e, sadores e, de Sócrates, queremos deixar estabelecido tão-so-
para sobrepassá-la, Aquiles terá uma vez mais que vencer a mente o seu conceito de logos. Para ele, o mundo real ne-
distância cada vez menor, que continuamente o estará sepa- cessitava ser conceituado à maneira dos geômetras. Na natu-
rando da tartaruga, que, muito lentamente, jamais se deixará reza existem infinidades de formas que se assemelham a uma
vencer. forma geralmente designada como triângulo: assim se estabe-
A segunda história consistia em afirmar que se um arquei- lece o conceito, o logos do triângulo: é a figura geométrica
ro dispara uma flecha em direção a uma pessoa, esta pessoa que possui três lados e três ângulos. Uma infinidade de obje-
não tem nenhuma razão para sair da frente, porque a flecha tos reais podem ser assim conceituados. Existe uma infinida-
jamais a alcançará. Da mesma forma, se cai uma ped~a na de de formas de objetos que se parecem ao quadrado, à esfe-
cabeça de alguém, esse alguém não tem a menor ne~ess1dade ra, ao . poliedro; portanto, se estabelecem os conceitos (logos)
de fugir, porque a pedra jamais lhe quebrará. a cabeça. Por do poliedro, da esfera e do quadrado. Deve-se fazer o mesmo,
quê? Muito simplesmente, segundo Zenão (obviamente um ho- dizia Sócrates, com os logos de valores morais e conceituar o
mem de extrema direita!), porque uma flecha ou uma pedra, que é a coragem, o bem, o amor, a tolerância, etc.
para mover-se, como qualquer objeto ou qualquer pes~oa, de~e Platão utiliza a idéia socrática de logos, e vai mais longe:
mover-se ou no lugar onde está ou no lugar onde amda nao
está. Não se pode mover no lugar onde está, porque, se está 1 . a "idéia" é a visão intuitiva que temos e, justamen-
aí, isso significa que não se moveu·.. Tampouco ~e pode mover te por ser intuitiva, é pura: não existe na realidade ne-
no lugar onde não está, porque é evtdente que nao e.stá lá para nhum triângulo perfeito, mas a idéia que temos do triân-
fazer esse movimento. Conta-se que quando lhe atiravam pe- gulo é perfeita. Não se trata deste ou daquele triângulo
dras pela rua por causa de raciocínios como este, Zenão, ape- que podemos ver na realidade, mas sim do triângulo "em
sar de sua lógica, fugia . . . ~
geral". Quando as pessoas se amam, quando realizam o
Claro que a lógica de Zenão padece de uma falh_a fu~­ ato do amor, realizam-no imperfeitamente. Mas a "idéia"
damental: o movimento de Aquiles e da tartaruga oao sao de amor, essa idéia é perfeita. Todas as "idéias" são per-
interdependentes, nem descontínuos. Aquiles nã~ . vence pri- feitas e são imperfeitas todas as ·coisas concretas da rea-
meiro uma parte da distância, para vencer depo1s a segunda lidade.
etapa. Ao contrário, corre toda a distância sem se ~elacionar 2 . as "idéias" são as essências das coisas existentes no
com a velocidade da tartaruga, ou com a de um btcho pre- mundo sensível. As idéias são indestrutíveis, imóveis, imu-
guiça que pode estar por sua livre iniciat~va parti~pando da táveis, intemporais e eternas.
mesma corrida. No segundo caso, o mov1mento nao se pro-
13
12
Aristóteles, a realidade não é a cópia das idéias mas, aq con-
3. o "conhecimento" consiste em que .nos elevemos, trário, tende à perfeição expressa por essas idéias; contém, em
através da dialética - isto é, do debate das idéias postas si mesma, o motor que a levará a essa perfeição.
e contrapostas, das idéias e das negações dessas mesmas
idéias, que são por sua vez outras "idéias" - desde o O homem tem a tendência a ser saudável, a ter a pro-
mundo da realidade sensível até o mundo das idéias eter- porÇão corporal perfeita, etc; os homens, em conjunto, ten-
nas. Esta ascese é o conhecimento. dem à família perfeita, ao Estado. As ~rvores tendem à per-
feição da Arvore, isto é, à idéia platônica da árvore perfeita.
O amor tende ao Amor platônico, perfeito.
PORTANTO, QUAL É O SIGNIFICADO DE IMITAR?
A "matéria", para Aristóteles, era pura potência e a
"fo~uro ato. E o movimento das coisas em busca da
perfeição eõ- qile' ele chamava atoalização da potênCia, isto é,
Aqui estamos quando entra ARISTÓTELES (384-322 a.C.) o trânsito da pura potência à pura forma.
e refuta Platão:
Para nossos propósitos, neste momento, interessa insis-
tir neste ponto: para Aristóteles, as coisas tendiam à perfei-
1. Platão unicamente multiplicou os seres que para ção por virtudes próprias, por sua própria "forma", ou motor,
Parm.ênides eram um só Ser; para ele são infinitos, por- ou atoalização de sua potência; Não existem dois mundos e
que infinitas são a~ idéias. portanto não existe metaxis. O mundo da perfeição não é nada
2. a metaxis, ·isto é, a participação de um mundo. em mais .que um anelo, um movimento que desenvolve a matéria
outro, é incompreensível; na verdade, que tem a ver o em direção à sua forma final. ;/
mundo das idéias perfeitas com o mundo imperfeito das Portanto, que quer dizer "imitar" para Aristóteles? Quer
coisas reais? Existe o trânsito? Como se processa esse dizer: ~!_esse __ moviment.o_ Í)ltemo das coisas Q.'!Je se diri-
trân~ito? gem à perfeição. "Natureza" era esse movimento e não o
- conjunto de coisas já feitas, acabadas, visíveis. "Imitar", pot-
Refuta mas ao mesmo tempo támbém o utiliza. Intro- tanto, não tem nada a ver com "realismo':, "cópia" ou "im-
duz alguns 'novos conceitos: "substância" é a unidade indis- provisação". E é por isso que Aristóteles podia dizer que o
solúvel de "matéria" e "forma". "Matéria'', por sua vez, é artista deve "imitar" os homens como deviam ser e não como
o que constitui a "substância": a matéria de uma tragédia são. Isto é, imitar um modelo que não existe.
são as palavras que a constituem; a matéria de uma estátua
é o mármere ou a pedra. "Forma" é a soma de todos os pre-
dicados que podemos atribuir a uma coisa, é tudo o que po- PARA QUE SERVEM ENTÃO A ARTE E A CI~NCIA?
demos dizer dessa coisa. Cada coisa vem a ser o que é (uma
estátua, um livro, uma casa, uma árvore)' porque a sua ma- Se as coisas por si mesmas tendem à perfeição, se a per-
- téria recebe uma forma que lhe dá sentido e finalidade. Esta feição é imanente a todas as coisas e não transcendente, para
conceituação confere ao pensamento platônico a caracterís- que servem' entâo a arte e a ciência?
tica dinâmica que lhe faltava. O mundo das idéias não co- A 'Natureza, segundo Aristóteles, tende à perfeição, mas
-existe lado a lado com o mundo das realidades, mas, ao isso não quer dizer que a alcance. O corpo humano tende à
contrário, as ·"idéias" (aqui chamadas "~") são o pró- saúde, mas pode enfermar-se. Os homens tendem gregaria-
prio princípio dinâmico da matéria. Em última análise: para
15
14
mente ao Estado perfeito e à vida comunitária, mas podem Outro exemplo: a arte de preparar ·tintas, a arte de
ocorrer guerras. Diríamos melhor portanto que a Natureza fabricar pincéis, a arte de tecer o tecido apropriado, a arte
tem certos fins em vista, perfeitos, e a eles tende, mas às da combinação de cores, etc., formam em conjunto a arte da
vezes fracassa. Para isso serve a arte e serve a ciência: para, pintura.
~> "recriando o princípio criador" das coisas criadas, corrigir a E se assim é, se existem artes maiores e artes menores,
natureza naquilo em que haja fracassado. estando estas contidas naquelas, deverá necessariamente exis-
Alguns exemplos: o corpo humano tenderia a resistir à tir uma arte soberana, que conterá todas as demais artes e
chuva, ao vento e ao sol, mas tal não se dá, e a pele não ciências, cujo campo de ação e interesses incluirá necessaria-
é suficientemente resistente para isso. Entra, pois, em açã<> mente o campo de ação e os interesses de todas as demais artes
a arte da tecelagem, que permite a fabricação de tecidos para e de todas as demais ciências.
a proteção da pele. A arte da arquitetura constrói edifícios Esta Arte Soberana, evidentemente, será aquela cujas leis
e pontes para a habitação do homem e para que cruze os regem as relações de todos os homens, em sua absoluta tota-
rios. A medicina prepara os medicamento~ necessários para lidade, e que inclua absolutamente todas as atividades huma-
quando determinado órgão deixe de funcionar como deve. E nas. E esta arte só pode ser a Política.
a política serve igualmente para corrigir as falhas que os ho- Nada é alheio à política, porque nada é alheio à ,;ute
me'fis possam cometer, ainda que tendam todos à vida comu- superior que rege todas as relações de todos os homens. A
nitária perfeita. medicina, a guerra, a arquitetura, etc., todas as artes menores
Esta é a função da arte e da ciência: corrigir as falhas e todas as artes maiores, todas, sem exceção, integram essa
.. da natureza, utilizando para isso · as próprias sugestões da na-
tureza.
I'
arte soberana, estão sujeitas a essa arte soberana.
Até este momento, já temos estabelecido que a Nature-
za tende à perfeição, que as artes e as ciências corrigem a
J
ARTES MAioRES E ARTES MENORES natureza em todas as suas falhas, e que, ao mesmo tempo, se

As artes e as ciências não existem isoladamente, sem que


I inter-relacionam sob o domínio da Arte Soberana, que trata
de todos os homens, de tudo que os homens fazem e de tudo
nada as relacione, mas, ao contrário, estão todas inter-rela- que para eles se faz: . a Política.
cionadas segundo a atividade própria de cada uma. Estão de
certa forma hierarquizadas segundo a maior ou menor mag-
nitude do seu campo de ação. As artes maiores se subdividem E A TRAGÉDIA? QuE IMITA?
em artes menores e cada uma destas trata dos elementos espe-
cíficos que compõem aquelas. _b. Tragédia imita ações humanas. Ações, e não mera-
Criar cavalos é uma arte; também o é a arte do ferrei- mente atividades humanas.
ro; estas duas artes, conjuntamente com a do homem que
prepara artefatos de couro, e outras mais, constituem a ar~e p ; ; Aristóteles, a alma do homem se compunha de uma
maior da equitação. Esta arte, por sua vez, em companh1a parte racional e de outra irracional. A alma irracional podia
ae outras como a arte da topografia, a arte da estratégia, produzir certas atividades como , comer, andar, mover-se, sem
que esses atos físicos tivessem maior significado. A Tragédia,
etc., constituem a arte. da guerra. E assim sucessivamente:
porém, devia imitar tão-somente as ações determinadas pela "
sempre um conjunto de artes afins se constitui em uma arte
maior, mais ampla e mais complexa. alma racional do homem.

16
17
A alma racional podia-se dividir em três partes:
artes e nas diversas ciências que tratam de fins particulares.\
a - faculdades Cada ação humana tem, portanto, uma finalidade limitada a
b - paixões essa ação, enquanto que todas as ações em seu conjunto têm
como finalidade o bem supremo do homem. E qual é o bem 1
c - hábitos supremo do homem? Diz Aristóteles: é a felicidade.
Até agora podemos afirmar que a "tragédia imita as ações
Uma "faculdade" é tudo aquilo que o homem é capaz do homem, da sua alma racional, dirigidas à obtenção do seu
de fazer, ainda que não o faça. O homem, ainda que não fim supremo, que é a felicidade!" Porém, para entender quais )
ame, é capaz de amar. Ainda que seja covarde, é capaz de são essas ações, teremos que saber o que é a felicidade. . . /
mostrar coragem. A faculdade é pura potência e é imanente
à alma racional.
Embora a alma racional possua todas as faculdades, ape- 0 QUE É A FELICIDADE?
nas algumas chegam a se realizar: estas são as paixões. Uma
"Paixão" não é meramente uma possibilidade, mas sim um Segundo Aristóteles, existem três tipos de felicidade: a
fato concreto. O ·amor é uma paixão desde que seja exercido dos prazeres materiais, a da glória e a da virtude.
como tal. Enquanto seja simples possibilidade, será simples
"faculdade" e não "paixão". Uma paixão é uma faculdade Para a gente comum, a felicidade consiste em possuir
atoalizada, uma faculdade que se transforma em ato con- bens materiais e em desfrutá-los. Riquezas, honrarias, praze-
creto. res sexuais e gastronômicos, etc. Essa é a felicidade! Para o
Nem todas as paixões servem de matéria para a tragé- filósofo grego, neste nivel, a felicidade humana se diferencia
muito pouco da felicidade que podem experimentar também
dia. Se um homem, em determinado momento, exerce casual-
os animais. Esta felicidade, portanto, não merece ser estudada
mente uma paixão, esta não será uma ação digna de uma pela Tragédia.
tragédia. :e necessário que essa paixão seja constante nesse
homem. Isto é: por sua incidência deve ter-se convertido em No segundo nível, a felicidade é a glória. Neste caso,
um hábito. Por isso, podemos afirmar que, para Aristóteles, o homem age segundo a sua própria virtude, porém a sua
o
a tragédia devia imitar as ações do homem, mas tão-somente felicidade consiste em que a sua ação seja reconhecida pelos
aquelas produzidas pelos hábitos de sua alma racional. Fica demais. Este homem, para ser feliz; necessita da aprovação dos
excluída portanto a atividade puramente animal e também as demais.
faculdades e paixões que não se hajam convert~do em hábitos. Finalmente, o homem alcança o nível superior da
Isto é, os acidentes. felicidade quando age virtuosamente, e isso lhe basta. Sua
Com que fim se exerce uma paixão, um hábito? Qual é felicidade consiste em agir virtuosamente, e não lhe importa
a finalidade do homem? Cada parte do homem tem uma fi- que os demais o reconheçam ou não. Este é o grau supremo
nalidade própria: a mão agarra, a boca come, a perna anda, da felicidade: o exercício virtuoso da alma racional.
o cérebro pensa, etc., mas o homem em sua totalidade, que Agora sabemos que a Tragédia "imita as ações da alma
J finalidade tem? Responde Aristóteles: "o bem é o fim de to-
racional, paixões transformadas em hábitos, do homem que
das as ações do homem". Não se trata da idéia abstrata do
busca a felicidade, isto é, o comportamento virtuoso". Muito
bem, mas sim de um bem concreto, diversificado nas diversas
bem. Mas ainda nos falta saber o que é a virtude . ..

19
E A VIRTUDE, O QUE É?
Aristóteles vai mais longe e afirma que os hábitos devem
ser contraídos desde a infância e que o jovem não pode fazer
A virtude é o comportamento mais distante dos extrem?s política porque necessita antes "aprender todos os hábitos vir-
de comportamento possíveis em uma situação dada. A vir- tuosos que lhes ensinam os mais velhos, os legisladores que
tude não. pode ser encontrada nos extremos: . t!nto o homem preparam os cidadãos para· o exercício dos hábitos virtuo-
\ que voluntariamente não come como o comtlao. causam da- sos ... ,
nos a sua saúde. Nenhum dos dois se comporta v1rtuos~mente. Sabemos agora que o vício é o comportamento extremo
1 Comer com moderação sim, é um comportament~ .vtrtuoso.
e que a virtude é o comportamento em que não se verifica
Tanto a ausência do exercício físico como o exerctCIO dema- excesso nem carência. Mas, para que se possa dizer que de-
siado violento arruínam o corpo: o exercício físico mode~a­ terminado comportamento é virtuoso ou vicioso é necessário
do é o comportamento virtuoso. Ocorre o mesmo com as vir- que se cumpram quatro condições indispensáveis: voluntarie-
tudes morais: Creonte pensa apenas no bem do Es:ado, en-
\ quanto que Antígona pensa apenas ~o !;>e~ da famíha, e. por
dade, liberdade, conhecimento e constância. Já explicaremos
o significado destas expressões, mas queremos antes deixar
\ isso ·deseja enterrar o corpo de seu· trmao mvasor. Os dots se
comportam de uma forma não virtuo~a: seus comportament~s
são extremos. A virtude estaria em alguma parte d-? meiO
bem claro que a · "Tragédia imita as ações da alma racional
do homem (paixões habituais), em busca de uma felicidade
que consiste no comportamento virtuoso". Pouco a pouco,
1
J
- termo. Seria necessário respeitar os interesses da famílta, mas
nossa definição, segundo Aristóteles, vai-se tornando cada vez
-também os do Estadq~ O homem que sê entrega a todos os mais complexa.
r· prazeres é um libertmo, mas o que foge de todos. os p;aze-
res é um insensível. O que foge de todos os pengos e um
covarde mas o que enfrenta todos os perigos é um temerário.
CARACTERÍSTICAS NECESSÁRIAS À VIRTUDE
A virtude não está geometricamente no meio, não. é equ~­
distante: a coragem (virtude) de um soldado e~tá mUlto m~1s
perto da temeridade do que da covardia. A vtrtude tambem O homem pode se comportar de uma maneira totalmen-
te virtuosa e nem por isso ser considerado virtuoso, ou de
não existe em nós "naturalmente": é neées~_ário aprendê-la.
~ ~s coisas -_da -nature zanã.o .podem a.dquirir hábitos: o ho~em uma maneira viciosa e nem por isso ser considerado vicioso.

1 sim. A pedra não pode cau para cima, n.em o, f?go queimar
, para baixo. Nós, os homens,. podemos cna~ h~b1tos que ~os
permitam o comportamento VIrtuoso. Os .ammai.s .podem cnar
São necessárias quatro condições para que o comportamento
seja considerado vício ou virtude:

l hábitos, mas jamais serão capazes de senhr a felicidade no seu


nível superior.
A Natureza, sempre segundo Aristóteles, nos dá .f~cul­
dades e nós temos o poder de transformá-las em atos (paixoes)
e em hábitos. Torna-se sábio aquele que exerce a sabedo-
PRIMEIRA CONDIÇÃO; VOLUNTARIEDADE - A voluntariedade
exclui o acidente. Isto é: o homem atua porque decide vo-
luntariamente atuar.
Um dia um pedreiro pôs uma pedra em cima de um
muro de tal maneira que um forte vento jogou-a abaixo. Por
casualidade caiu em cima da cabeça de um transeunte que ia
passando. Ê ele morreu. Sua viúva pr~cessou o ~dreir~ e
ria, e se torna justo aquele que exerce a ju~tiça, enqua~to
que o arquiteto adquire sua virtude como arqmteto c?n.strum-
este se defendeu afirmando que não tinha cometido cnme
do edifícios. Hábitos, e não simples faculdades! Habitos, e a
intenção de matar a vítima.
não apenas· paixões passageiras! algum porque não tinha tido
Não haveria, pois, o comportame nto vicioso porque se tra-
20
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Em relação a esta terceira condição do comportamento
tava nitidamente de um acidente. Mas o juiz não aceitou esta virtuoso, em geral se contrapõem os casos de Otelo e de Bdipo.
d~fesa .e . condenou . o pedreiro, baseando-se no fato de que Nos dois casos se discute a existência de conhecimento (que
nao e~tsba voluntanedade em relação à morte do transeunte, confere características de virtude ou de vício ao comporta-
mas stm em colocar uma pedra em tal posição que podia cair mento), ou não. Na minha opinião, é certo que Otelo des-
e causar uma morte. Neste aspecto, existiu voluntariedade. conhece a verdade: lago mente sobre a infidelidade de Des-
dêmona, sua esposa, e Otelo, cego de ciúmes, mata-a.
Se a ação de um homem é determinada por sua v~ntade.
aí exis~e virtude ou vício. Se, ao contrário, sua ação não está A tragédia de Otelo, contudo, reside em algo muito além
detenrunada por sua vontade, aí não existirá uma coisa nem do simples assassinato. Sua falha trágica (e logo discutire-
outra. Quem pratica o bem sem perceber o que está fazendo mos o conceito de harmatia, falha trágica) não é ter dado
não é uma boa pessoa. Nem será má aquela que causar u~ morte à sua esposa. Este não era um acontecimento "habi-
dano involuntário. tual". Ao contrário, . o seu constante orgulho· e a sua teme-
ridade irrefletida, esses sim, eram hábitos. Em vários momen-
SEGUNDA CONDlÇÃO: LIBERDADE - Neste caso se exclui a tos da peça, Otelo conta como arremetia contra seus inimigos
violência exterior. Se um homem faz alguma coisa má, obri- sem medir as conseqüências da sua ação. Sua soberba foi a
gado por outro que lhe aponta um revólver na cabeça, não causa da sua desgraça, e sobre isto Otelo tinha perfeita cons-
se pode, ~este caso, falar em vício. A virtude é o compor- ciência, perfeito conhecimento.
( tamento hvre, sem pressões exteriores de nenhuma índole. Também no caso de :I;:dipo é necessário considerar qual
Uma mulher, abandonada por seu amante, decidiu matá- a sua verdadeira falha trágica (harmatia). Sua tragédia não
-lo antes de perdê-lo. Levada aos tribunais, declarou, para de- consiste em haver assassinado seu pai e casado com sua mãe.
fender-se, que não havia agido livremente: havia sido levada E lógico que estes não eram atos "habituais", e como já vimos
o hábito é uma das quatro características do comportamento
ao crime por sua paixão irracional. Mas também neste caso
o Juiz pensou diferentemente: a paixão é parte integrante da virtuoso ou vicioso. Se lemos com atenção a peça de Sófo-
cles veremos que &lipo, em todos os momentos importantes
pess~a, é parte da s_ua "~lma". Não existe liberdade quando
de sua vida, revela seu extraordinário orgulho, sua soberba,
A

alguem sofre uma VIOiencta exterior, e este era um impulso


interior. E a mulher foi condenada. sua autovalorização, que faz com que ele se acredite superior
aos próprios deuses. Não é a Moira (o Destino) que faz com 0
que ele caminhe para o seu fim trágico; ele mesmo, por de-
TERCEIRA CONDIÇÃO: CoNHECIMENTO - };: O contrário da cisão própria, caminha para a sua desgraça. :I;: sua intolerân-
ignorância. A pessoa que age tem diante de si uma opção cujos cia que o leva a matar um velho (que descobre, posteriormen-
termos essa pessoa conhece. Em um tribunal um criminoso te, ser seu pai), porque este não o tratou com o devido res-
bêbedo afirmou que havia cometido o crim; em estado de peito, numa encruzilhada. E, quando decifrou o enigma da
embriaguez, e portanto não tinha consciência do que fazia, no Esfinge, foi uma vez mais por orgulho que aceitou o trono
momento em que matou outro homem. Também neste caso de Tebas, e a mão da Rainha, uma senhora com idade sufi-
o .bêbedo f~i ~ndenado: antes de começar a beber tinha per- ciente para ser sua mãe. Para infelicidade sua, era! Caramba;
feita consc1enc1a de que o álcool podia levá-lo ao estado de uma pessoa a quem os oráculos (espécie de macumbeiros ou
inconsciência. Era, portanto, culpado de ter-se permitido che- videntes da época) haviam dito que ia se casar com sua pró-
gar a um estado em que já não teria mais conhecimento do pria mãe e matar seu próprio pai deveria ter um pouco mais
que fazia.
23
22
de cuidado e abster-se de matar velhos com idade de ser seu médico em restituir a saúde ao doente; a do legislador, em
pai, e de casar-se com velhas com idade de ser sua mãe. Por fazer a~ leis perfeitas que tragam a felicidade aos cidadãos.
que não o fez? Por orgulho, por soberba, por intolerância, por Vemos assim que cada arte e cada ciência possui a sua
acreditar-se adversário digno dos próprios deuses. Estas são as
própria virtude, mas também é v~rdade que_ to~as as artes e
o suas falhas, estes são os . seus vícios. Conhecer ou não a iden-
todas as ciências então inter-relaciOnadas, sao mterdepende~­
tidade de Jocasta, e de Laio, era inteiramente secundário. O
tes, e que umas são superiores às outras quand? sao mats
próprio &iipo, quando reconhece seus erros, reconhece estes
complexas que as outras, e quando estudem ou mcluam .~e­
fatos. tores maiores da atividade humana. De todas as artes e cten-
Concluímos então que a terceira condição para que o cias a ciência e a arte soberana é a Política, porque nada
comportamento seja virtuoso consiste em que o agente saiba, lhe 'é estranho. A Política tem como objeto de estudo a tota-
conheça, os verdadeiros termos da sua opção. Quem quer lidade das relações da totalidade dos homens. Portanto, o mai~r
que aja por ignorância não pratica vício nem virtude. bem, cuja obtenção significará a maior virtude, é o bem poh-

QUARTA CONDIÇÃO: CONSTÂNCIA - Como as virtudes e OS


tico.
A Tragédia imita as ações do home~, Ct_Ijo fi~ é. o bem;
l
vicias são hábitos e não apenas paixões, é necessário que o
comportamento virtuoso ou vicioso seja também constante.
Todos os heróis da tragédia grega agem consistentemente da
mas a Tragédia não imita as .ações CUJOS ~ms. s~o fms ~e­
nores, de importância secundána. A ,'~ragédta tmtta as açoes
cujo fim é o fim superior, o Bem Poht~co. E qual será ~.Bem
J
)j. .

mesma maneira. Quando a falha trágica de um personagem Político? Não há dúvida: o bem super10r é o Bem Pohtico e
consiste precisamente na sua incoerência, esse personagem o Bem Político é a Justiça!
deve ser apresentado como "coerentemente incoerente". Mesmo
neste caso, nem o acidente nem a casualidade caracterizam o
vício ou a virtude. · MAs, o QUE É A JusTIÇA?
Assim, pois, os homens que a tragédia imita são os ho-
mens virtuosos que, ao atuar, mostram voluntariedade, liber- Na Etica a Nicômaco, Aristóteles propõe (e nós aceita-
dade, conhecimento c constância. O homem busca a felici- • mos) que "justo é o igual e injusto o desigual". Em qual-
dade através da virtude, e estas são as quatro condições neces- quer divisão, as pessoas que sejam iguais devem. re~eber ~ar­
sárias ao exercício da virtude. Mas, existirá uma só virtude, tes iguais, e as pessoas que, por. qu~quer, c~téno, seJam
ou existirão virtudes de diferentes graus? desiguais, devem receber partes destguats. Ate at estamos d.e
acordo. Mas é necessário definir quais são os critérios de desi-
gualdade porque ninguém vai desejar ser desigual "para men-
C3 GRAUS DA VIRTUDE
nos", e todos desejarão ser desiguais "para mais".
O próprio Aristóteles era contra.~ lei de Talião (olho
Cada arte, cada ciência, possui a sua propna virtude, por olho, dente por dente), por'!ue ~tZla. que, se as pessoas
não fossem iguais, tampouco senam tguats os seus dentes e
porque possui o seu próprio fim, o seu próprio bem. A vir· os seus olhos. Por isso, tinha cabimento perguntar: olho
tude do cavaleiro consiste em andar bem - a 'Câvalo; a de quem por olho de quem? No caso de se tratar de um
virtude do ferreiro em fabricar bem instrumento de ferro; olho de senhor por um olho de escravo, Aristóteles se opunha
a virtude do artista em criar sua obra perfeita; a do porque, para ele, esses olhos não se equivaliam. Se se tratasse de
24 25
pre os mesmos, variando quando se trate de uma democracia,
um dente de homem por um dente de mulher, para Aristóteles uma oligarquia, uma república, uma ditadura, etc.
tampouco havia equivalência. E como se estabelecem os critérios de desigualdade para
Neste ponto, para determinar os critérios de desigualdade que todos os conheçam? Através das leis! E quem fabrica
e para que ninguém possa protestar, o nosso filósofo utiliza essas leis? Se as leis fossem feitas pelos seres humanos de ca-
um argumento aparentemente honesto. Pergunta: "de que de- tegorias inferiores, como as mulheres, os escravos, os pobres,
vemos partir, dos princípios ideais abstratos e descer até a etc., evidentemente seriam leis inferiores como seus autores.
realidade, ou, pelo contrário, da realidade concreta e subir Para que se façam leis superiores é necessário que sejam fei-
até os princípios?" Abandonando qualquer romantismo, ele tas por seres superiores: os homens livres, os ricos, etc. Eu
mesmo responde: "devemos partir evidentemente da realida- quero deixar bem claro que quem faz essas afirmações é Aris-
de concreta; empiricamente temos que descobrir quais são as tóteles, eu não tenho nada que ver com isso ...
desigualdades reais existentes e sobre elas basear os nossos cri- A Constituição sistematiza o conjunto de leis de uma
térios de desigualdade".
cidade ou país. A Constituição, portanto, é a expressão do bem
Este raciocínio falaz nos leva a aceitar como justas as político, é a expressão máxima da Justiça.
desigualdades já existentes. Quer dizer, a justiça já estaria
contida na realidade tal qual é. Aristóteles não considera a Agora, finalmente, com a ajuda da Etica a Nicôma~a,
possibilidade de transformação das desigualdades já existentes: podemos c.hegar a uma conclusão clara do que é, para Ans-
ele as aceita como justas, . porque são empiricamente consta- tóteles, a Tragédia. Sua definição mais ampla e mais comple-
táveis. E só por isso. ta seria a seguinte:
Em seguida determina que, existindo na realidade empí- "A Tragédia imita as ações da alma racional do homem,
rica homens livres e homens escravos (e não importam os suas . paixões tornadas hábitos, em busca da felicidade, que
princípios abstratos, não importa saber se essa realidade pode consiste no comportamento virtuoso, que é aquele que se
ser transformada) , esse será o primeiro critério de desigual- afasta dos extremos possíveis em cada situação dada concre-
dade. Ser homem é mais do que ser mulher - quem o diz é ta, cujo bem supremo é a Justiça, cuja expressão máxima é
Aristóteles que assim crê interpretar a realidade · real e con- a Constituição!"
creta. Se aceitamos estas desigualdades, os homens livres esta-
riam em primeiro lugar, viriam depois as mulheres livres, em Ufa!
seguida os homens escravos e fechando a fila as pobres mu- Em última instância, a felicidade consiste eín obedecer às
lheres escravas. leis! Ora veja! Aristóteles não diz nem mais nem menos do
Assim era a "democracia" ateniense, que se baseava no que isso, e o declara co~~~odas as letras!
valor supremo da "liberdade". Mas nem todas as sociedades Para as pessoas que fazem as leis, parece que isto lhes
se baseiam nesse mesmo valor: para as oligarquias, por exem- vai muito bem. Mas, e os outros? Estes, compreensivelmente
plo, o valor supremo é a riqueza. Nelas, os homens que mais se rebelam e não desejam aceitar os critérios de desigualdade
têm são considerados superiores aos que menos possuem. Sem- que a realidade atual, vigente, - mas não necessariamente
pre ·partindo da realidade tal qual é ... eterna, - propõe. Esses critérios são modificáveis, como mo-
Chegamos assim à conclusão de que a Justiça não é a dificável é a própria realidade. Por que não modi~icá-la? Nes-
igualdade e sim a proporcionalidade. E os critérios de desi- tes casos, adverte severamente o filósofo, "às vezes a guerra
gualdade estão dados pelo sistema político vigente em cada é necessária ... " Quer dizer, quando não são aceitos por bem,
cidade, ou em cada país. A Justiça será sempre a proporcio- os critérios são impostos na marra!
nalidade, mas os critérios que determinam esta não serão sem-
27
26
EM QUE SENTIDO O TEATRO PODE FUNCIONAR COMO UM des. . . que as Estéticas antigas formulavam invariavelmente
INSTRUMENTO PURIFICADOR E JNTIMIDATÓRIO? como as regles d'Aristote, la sceine doctrine, embora ele fale
( tão-somente da unidade da ação, e apenas de passagem, da uni-
Já vimos que a população de uma cidade ou país não dade de tempo, sem mencionar nunca a terceira unidade, ou
seja, a de lugar." (pág. 239).
está "uniformemente" coritente com as desigualdades reais
existentes. Por isso é necessário fazer com que todos fiquem, se A desproporcionada importância q~e se dá a esta lei é
não uniformemente contentes, pelo menos uniformemente pas- incompreensível, já que sua validez é tão nula como seria a
sivos, diante das desigualdades e seus critérios. Como conse- afirmação de que são aristotélicas apenas as peças que apre-
gui-lo? Através das muitas formas de repressão: política, bu- sentem um prólogo, cinco episódios e cantos corais e um
rocracia, polícia, hábitos, costumes, tragédia grega, etc. êxodo. A essência do pensamento aristotélico não pod~ residir
\ ( Esta afirmação pode pare.cer um tanto arriscada, mas nada em aspectos estruturais como estes. Quando se magnificam
mais é do que a verdade. Na verdade, o sistema apresentado esses aspectos menores, isso equivale a comparar o filósofo
por Aristóteles em sua Poética, o sistema de funcionamento grego com os modernos e abundantes professores de drama-
1da tragédia (e de todas as outras formas de teatro que até hoje turgia, especialmente norte-americanos, que nada mais são _do
seguem os · seus mecanismos gerais), não são apenas um sis- que cozinheiros de menus teatrais. Eles estudam as reaçoes
• tema de repressão: é claro que outros fatores mais "estéticos" típicas de determinados públicos e daí extraem c:onclusõ~s e
também intervêm, e devem igualmente ser considerados. Neste regras sobre como se deve escrever a peça perfeita, conside-
ensaio, porém, pretendo analisar fundamentalmente este aspec- rando-se perfeição o êxito de bilheteria ...
to, a meu ver, central: a função repressiva do sistema pro- Aristóteles ao contrário, escreveu uma Poética completa-
posto por ~ristóteles. mente orgânica: que é o reflexo, no campo da tragédia e da
E por que a função repressiva é o aspecto fundamental da poesia, de toda a sua contribuição filosófica; é a aplicação
tragédia grega e do sistema trágico ari~totélico? Simplesmen- prática e concreta dessa filosofia ao campo específico e res-
te porque, segundo Aristóteles, a finalidade suprema da Tra- trito da poesia e da tragédia.
gédia é a de provocar a "catarse". -- Por essa .razão, sempre que nos encontremos com afirma-
\ ções ·imprecisas ou fragmentárias, devemos imediatamente r:-
correr aos demais textos escritos pelo autor. Foi o que preci-
FINALIDADE ÚLTIMA DA TRAGÉDIA samente fez S. H. Butcher no seu livro Aristotle's Theory o/
Poetry and Fine Art, procurando entender a Poética desde a
O caráter fragmentário do que nos restou da Poética fez perspecth:a da Metafísica, da Política, da Retórica e sobretu-
desaparecer a sólida conexão existente entre as suas partes, do das três Eticas. A ele devemos fundamentalmente o escla-
como também a hierarquização de cada uma destas dentro do recimento do conceito de "catarse".
todo. Só esse fato explica que observações marginais, de escas- A natureza tem certos fins em vista; quando fracassa e
sa ou nenhuma importância, tenham sido consideradas con- não consegue atingir seus objetivos, intervêm a arte e a ciên-
ceitos centrais do pensamento aristotélico. Quando se trata, cia. O homem, como parte da natureza, tem certos fins em
por exemplo, de Shakespeare ou do teatro medieval, é muito vista: a saúde,' a vida gregária no Estado, a felicidade, a vir-
comum dizer-se que tal ou qual peça não é aristotélica por- tude, a justiça, etc. Quando falha na consecução desses obje-
que não obedece à chamada "lei das três unidades". . . Hegel, tivos, intervém a arte da Tragédia. Esta correção das açoes
na sua Hist6ria da Filosofia, contesta: ". . . as três unida- do homem, do cidadão, chama-se "catarse".

28 29
A Tragédia, em todas as suas partes quantitativas e quali- como odiosa, o erro como abominável. ~ necessário, ao con-
tativas, existe em função do efeito que persegue: a "catarse". trário, mostrá-los como aceitáveis, para destruí-los depois, atra-
Sobre este conceito se estruturam todas as unidades da Tra- vés dos processos poético-teatrais que vamos analisar.
gédia, todas as suas partes. ~ o centro, a essência, a fin~li­ Os maus dramaturgos de todas as épocas não compreen-
dade do sistema trágico. Infelizmente, é também o conceito dem a enorme importância das transformações ocorridas dian-
mais controvertido. Catarse é correção; que corrige? Catarse te do espectador: teatro é transformação, movimento, e não
• é purificação; que purifica? simples apresentação do que existe. B tornar-se e não ser.
S. H. Butcher nos ajuda com um desfile de opiniões de
gente ilustre como Racine, Milton e J acob Bamays. JACOB BERNAYS - Em 1857, Bernays propôs uma inte-
ligente teoria: a palavra "catarse" se~ia uma ,m~táfora mé-
RACINE - Na Tragédia "mostram-se as paixões para que se dica, uma purgação que denota o ef~Ito patologtco sobre a
possam ver todas as desordens de que são causadoras; o vício alma análogo ao efeito de u~ ~emédto sobre .o ,corpo.• ~e~­
é pintado sempre com cores que fazem conhecer e odiar a de- oays toma a definição de Tragedta dada por Anstoteles ( uru-
formidade; era isto o que tinham em vista os poetas trágicos, tação de ações humanas que excitem a piedade e o terror') ;
antes de qualquer outra coisa: seu teatro era uma escola onde justamente porque essas emoções se encontram nos coraçoes
as virtudes eram tão bem ensinadas como nas escolas dos de todos os homens o ato de excitá-las oferece, depois, um
filósofos. Por essa razão, Aristóteles quis impor regras à cons- agradável relaxamento. Esta hipótese seria confirmada por
trução dos poemas dramáticos. Seria de desejar que as nossas Aristóteles mesmo que ·declara que nós sentimos "pieda~e pe~o
peças fossem assim, tão cheias de instruções úteis como as destino não merecido do herói, e terror porque esse mfortu- q
daqueles poetas". nio acontece com alguém que se parece com nós mesmos".
Como se vê, Racine enfatiza o aspecto doutrinário e mo-_ Já veremos o que significa a palavra "empatia", que se baseia
r~l da Tragédia, e 'isso está muito certo, mas. llá u~~no justamente nessas duas emoções. . _
reparo a fazer: Aristóteles não aconselhava o poeta tragtco Os sentimentos estimulados pelo espetáculo trágtco nao
a apresentar personagens viciosos. Q herói trágico deveria so- são removidos de maneira permanente e definitiva, acrescenta
frer uma transformação radical no seu destino, da felicidade Bernays embora nos tranqüilize durante algum tempo. Assim,
à adversidade, mas isto deveria ocorrer "não com9 conseqü~n­ o teatro' oferece uma descarga inofensiva e agradável, para os
cia de um vício, mas sim de algum erro ou debilidade" (Cap. instintos que exigem satisfação e que podem '.'na ficç~o do
XIII). Já veremos o que é a Harmatia. teatro ser tolerados muito melhor do que na vida real .
:e necessário compreender igualmente que a apresenta- Bemays, portanto, permite que se suponha que a purga-
ção do vício ou do "erro ou debilidade" não era feita de tal ção não se refira somente às emoções de piedade ~ terror, com?
maneira a provocar nos espectadores repugnância ou ódio. também a certos instintos "não sociáveis" ou socialmente prOI-
Pelo contrário, Aristóteles sugeria que ·se tratasse o erro ou bidos. O próprio Butcher, tentando explicar qual é o objeto
debilidade com certa .compreensão. Quase sempre o estado de da purgação (isto é: de que se purga?) "acrescenta por conta
felicidade em que se encontra ·o herói ao iniciar-se a tragédia própria que se trata da "piedade e do terror que temos em nós
é devido precisamente a essa falh~, e não às suas virtudes. mesmos na nossa vida real ou, pelo menos, aqueles elemen-
Édipo é Rei de Tebas justamente pela debilidade do seu ca- tos que, neles, são inquietantes" . .
ráter, isto é, por seu orgulho. Justamente aqui reside a maior Assim nos parece mais claro: talvez o que seja purgado,
eficácia de um processo que teria o seu poder enormemente isto é, o objeto da purgação, não sejam precisamente as emo-
diminuído se, desde o começo, a falha já fosse apresentada ções de piedade e terror, mas sim alguma coisa que está con-
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tida nessas emoções, ou misturado com elas. S necessário de- nós culpados, é o desmedido orgulho, que talvez seja um
terminar com precisão qual poderá ser este corpo estranho dos nossos próprios pecados. Creonte defende o direito do
que é eliminado pelo processo catártico. Neste caso, piedade Estado e nos causa piedade ver que te.m que suportar a morte
e terror seriam apenas parte do mecanismo de expulsão, e de sua esposa e de seu filho porque, ao lado de tantas vir-
não o seu objeto. E precisamente aqui reside a significação tudes que demonstra possuir, possui também a falha trágica
política da Tragédia. de que talvez sejamos igualmente culpados, que é a parciali-
No seu Capítulo XIX diz a Poética : "No conceito de pen- dade em ver apenas o bem do Estado e não o da família.
samento (já veremos o significado da palavra dianóia") 3e E essa possibilidade nos causa terror.
incluem todos os efeitos que devem ser produzidos pelo dis- Convém aqui mostrar uma vez mais a relação entre as
curso. . . a excitação de sentimentos tais como a piedade e o virtudes e a felicidade do personagem, seguida pela desgraça:
terror, e outros semelhantes." Perguntamos: por que razão a por orgulho, Edipo se converte em um grande rei; por des-
purgação não se poderia dar em relação às emoções seme- prezar a deusa do amor, Hipólito amava intensamente todos
lhantes, como por exemplo o ódio, a inveja, a 'Parcialidade na os demais deuses; por cuidar em demasia dos bens do Estado,
adoração dos deuses, a desobediência às leis, a soberba, etc.? Creonte era um grande chefe. Todos iniciam sua trajetória,
Por que Aristóteles explica somente a presença obrigatória nas tragédias, no mais alto de sua glória.
destas duas emoções? Concluímos portanto que piedade e terror são a forma
Se analisamos alguns personagens trágicos; veremos que específica mínima pela qual se ligam espectador e persona-
eles poderão ser culpados de muitos erros éticos, mas dificil- gem - mas de nenhuma maneira estas emoções são purifica-
mente poderemos dizer de qualquer deles que possuía em das de si mesmas. Isto é, elas se purificam de algo que, no
excesso piedade ou terror. Não é nunca aí que fracassa sua fi.m da tragédia, deixa de existir. De algo que o processo trá-
giCO expulsa.
virtude. Nem tampouco são impuras, neles, estas emoções.
Nem sequer são elas uma característica comum a todos os
personagens trágicos. MILTON - "A Tragédia purga a mente de piedade medo ter-
Por isso podemos afirmar que não é nos personagens ror e paixões afins, reduzindo-as a uma justa medida s~por­
trágicos que se manifesta a piedade e o terror, e sim nos !á~el, a~~avés do P.raze~ de ver essas mesmas emoções bem
espectadores. Os espectadores se ligam aos seus heróis basi- ~J?tta?as. . Até aqut, M1~ton ~crescenta muito pouco ao que
camente atr_avés da piedade e do terror, porque, como diz Aris- Ja fo1 dtto, mas em seguida d1z coisa melhor: "Em medicina
tóteles, algo imerecido acontece a um personagem que se pa- coisas de uma qualidade melancólica são usadas contra ~
rece a nós mesmos. melancolia, o amargo serve para curar o amargo, e o sal para
Dou um exemplo: Hipólito ama a todos os deuses inten- r~mover humores. salgados". Em última análise, seria uma espé-
samente, e isso é bom, mas não ama a deusa~ do amor e isso Cie de. ~omeopatia: determinadas paixões ou emoções, curan- t
é mau. Sentimos piedade porque Hipólito é destruído apesar do patxoes e emoções análogas, mas não idênticas.
" de todas as suas qualidades e terror porque talvez nós mes-
mos sejamos criticáveis pela mesma razão de não amar a Além das contribuições específicas de Racine J acob Ber-
todos os deuses, como ordenam as leis. Edipo é um grande n~ys e Milton.• Butcher vai buscar na própria Polí;ica de Aris-
Rei, o povo o ama, seu governo é perfeito e por isso sentimos toteles a expltcação da palavra "catarse", que não se encontra
piedade ao ver a destruição de uma criatura assim tão mara- na Poética. Aí se utiliza "catarse" para denominar o efeito
vilhosa; e sentimos terror ao perceber que a causa de tão causado por certo tipo de música sobre certos pacientes possuí-
tremendo castigo é a soberba, da qual talvez sejamos também dos por certo tipo de fervor religioso. O tratamento consistia

32 33
em usar "o movimento para curar o movimento e suavizar a
o indivíduo no seu equilíbrio, e que portanto ameaça a socie-
perturbação interior da mente, através da< música selvagem". dade. Algo que não é uma virtude, que não é a maior virtude,
Segundo Aristóteles, os pacientes submetidos a esse tratamen- a Justiça, e tudo que é injusto está previsto nas leis. A impu-
to voltavam ao seu estado normal, como se tivessem sofri- reza que o processo trágico vai destruir é pois algo que aten-
do um tratamento médico ou purgativo. Quer dizer: ·catártico! ta contra as leis.
Neste exemplo verificamos que, por meios ··homeopáticos Se voltamos um pouco atrás, poderemos compreender
(música selvagem para curar ritmos interiores selvagens), o melhor agora o funcionamento da Tragédia. Nossa última de-
fervor religioso era curado por meio de um efeito exterior finição foi: "A Tragédia imita as ações da alma racional do
análogo. A cura se processava através desse estímulo. Vejam homem, suas paixões tomadas hábitos, em busca da felici-
bem: como na Tragédia, a falha do personagem é inicialmen- dade, que consiste no comportamento virtuoso, cujo bem su-
te apresentada como causa principal da sua felicidade, essa premo é a Justiça, cuja expressão máxima é a Constituição."
falha é logicamente estimulada. · Vimos também que a natureza tem certos fins em vista
Butcher agrega que, segundo Hipócrates, catarse signi- e que, quando falha, a arte e a ciência intervêm para corrigir a
ficaria a remoção de um elemento doloroso ou perturbador do natureza.
organismo,- purificando assim o que permanece, finalmente li- Podemos agora concluir que, quando o homem falha nas
vre da matéria estranha eliminada. Conclui Butcher que, apli- suas ações, no seu comportamento virtuoso em busca da fe-
cando-se essa mesma definição à Tragédia, devemos chegar licidade, através da virtude máxima que é a obediência às
à conclusão de que a "piedade e o terror" na vida real con- leis, a arte da Tragédia intervém para corrigir essa falha. Como?
têm um elemento mórbido ou perturbador. Durante o proces- Através da purificação, da catarse, da purgação do elemento
so de excitação trágica, este elemento, seja qual for, é elimi- estranho, indesejável, que faz com que o person~gem não
nado. "Enquanto avança a ação trágica, o tumulto da mente, alcance os seus objetivos. Este elemento estranho é contrá-
inicialmente estimulado, começa a ceder, e as formas mais bai- rio à lei, é uma falha social, uma carência política.
xas de emoção se transformam gradualmente nas mais altas Finalmente estamos preparados para entender o funcio-
e refinadas." namento do esquema trágico. Mas ainda nos faz falta um pe-
Este raciocínio é correto e podemos aceitá-lo quase que queno dicionário que simplifique certas palavras, esclarecendo
inteiramente, menos na sua insistência em querer atribuir im- claramente quais são os elementos que vamos agora juntar,
purezas às emoções de piedade ou terror. A impureza existe, para mostrar como funciona este sistema trágico de coerção.
Pão há dúvida, e será ela precisamente o objeto da purgação
catártica na mente do espectador, ~u, como diria Aristóteles,
na sua alma. Mas Aristóteles não afirma a existência de pie-
dade pura ou impura, de terror puro ou impuro. A impureza
é necessaria111~nte algo distinto das emoções que vão perma-
necer. Esse corpo estranho será portanto outra emoção ou
paixão, e não a mesma. Piedade ou terror jama~s foram ví-
cios ou debilidade ou erros, e portanto jamais necessitaram
ser eliminados ou purgados. Ao contrário, na ~tica, Aristóte-
les nos indica quantidades de vícios, erros e debilidades que
merecem ser destruídos. A impureza que será purgada deve
necessariamente estar entre esses. Deve ser algo que ameaça

34
35
dian6ia a justificação dessa ação, o discurso. O ethos seria o
próprio ato e a dian6ia o pensamento que determina o ato.
Convém esclarecer que o discurso é, em si mesmo, ação, e
que, por outro lado, não pode existir ação por mais física e res-
trita que seja, que não suponha uma razão.
Podemos igualmente definir o ethos como o conjunto de
Pequeno dicionário de palavras simples faculdades, paixões e hábitos.
No ethos do herói trágico, todas as tendências devem ser
boas, menos uma! Todas as paixões, todos os hábitos do he-
rói trágico devem ser bons, menos um! Bons ou maus segundo
que critérios? Segt~ndo os critérios constitucionais, que são os
que sistematizam as leis, isto é, segundo os ·critérios políticos,
pois a política é a arte soberana. Apenas uma tendência de-
verá ser má, ·reprovável, condenável. Somente uma paixão,
um hábito, poderá estar contra a lei. Esta característica má
chama-se harmatia.

HARMATIA - f:: também conhecida como falha trágica. f: a

0 ERÓI TRÁGICO - Como explica Arnold Hauser, no come- única impureza que existe no personagem. A harmatia é, por-
o 0 teatro era 0 Coro, a massa, o povo. Esse era o ve~da­ tanto, a única coisa que pode e deve ser destruída, para que
deiro protagonista. Quando Thespis inventou o prot~g?msta, a totalidade do ethos do personagem se conforme com a tota-
imediatamente aristocratizou o ~eatro, _que ant~s eXIstta . em lidade do ethos da sociedade. Nesta confrontação de tendên-
) suas formas populares de manifestaçoes massrvas, desfiles, cias, de ethos (social e indiviâual) a harmatia é a causadora
< festas, etc. o diálogo Protagonista-Coro er~ cla~amente o re-
flexo do diálogo Aristocrata-Povo. O beró~ trágtco, que pas-
do conflito. f:: a única tendência que não se hanp.oiliza com
a sociedade, com o que quer a sociedade.
I sou depois a dialogar não só com o Coro .mas também com
EMPATIA - Quando o espetáculo começa se estabelece uma
seus semelhantes ( deuteragonista e tritago~tsta), era ~presen-
relação entre o personagem (especialmente o protagonista)
l t:'do sempre como um exemplo que devia ser. segu~do em
certas características, mas não em outras. ~ó1 trágt~o sur-
i!e auando o Estado ~ começa ~ !l_,tiliz~:_ ~o ~ms
e o espectador. Esta relação tem características bem defini-
das: o espectador assume uma atitude passiva e delega o po-
~~0 povo. Não nos poaemos esquecer po- de
der de ação ao personagem. Como o personagem se parece a
. ~tãílleilte ou através de m~ena s, pagava as nós mesmos, como indica Aristóteles, nós vivemos, vicaria-
mente, tudo o que vive o personagem. Sem agir, sentimos que
oduções. . estamos agindo; sem viver, sentimos que estamos vivendo.
ETHOS _ o personagem atu~ e a sua .atuação ap_resen ta dois Amamos e odiamos quando odeia e ama o personagem.
aspectos: ethos e dian6ia. J~ntos, c,on~tituem a açao de~envo.~ A empatia não ocorre apenas em relação aos heróis trá-
vida pelo personagem. São mseparave1s. Porém, P.ara ~ns di gicos: basta observar uma sessão matinê de far west, ou os
dáticos, poderíamos dizer que o ethos é a própna açao e a espectadores infantis de uma série bang-bang . pela televisão,

36 37

L
ou os olhares e.ntemecidos dos espectadores mais adu~tos quan- Subitamente, acontece algo que tudo modifica. ~dipo, por
do 0 casal se beija antes do happy-end. Tra~a-se at de pura exemplo, é informado por Tirésias de que o assassino que ele
empatia. A empatia nos faz sentir como se estivesse se passan- procura é ele mesmo. O personagem que com sua harmatia
do com nós mesmos o que no palco ou na tela_está se pas- havia subiçlo tão alto, corre o risco de cair dessas alturas.
. sando com os personagens. Toma nossos, emoçoes e pensa- Isto é o que a Poética qualifica de PERIPÉCIA: uma modifica-
ção radical no destino do personagem. O espectador que até
mentos alheios. então teve a sua própria harmatia estimulada, começa a sen-
A empatia é uma relação emocional en:tr~ person.agem e
espectador. Uma relação que pode ser constltUlda, bastcamen- tir crescer seu terror. O personagem inicia seu caminho para
te, de piedade e terror, como sugere ·Aristóteles, mas que po~e a desgraça. Creonte é informado da morte do seu filho e de
igualmente incluir outras emoções, como sugere o p~opno sua mulher; Hipólito não consegue convencer seu pai de sua
Aristóteles, e que poderão ser o amor, a tem~ra, o d~eJO se- inocência, e este o impulsa, sem querer, à morte.
xual (como no caso de muitos e muitas artistas de cme em A peripécia é importante porque faz com que seja mais
relação aos seus respectivos fã-clubes) , etc. _ longo o caminho da felicidade à desgraça. Quanto mais alto o
A empatia opera fundamentalmente em relaça? a~ que coqueiro maior é a queda, diz a canção popular. Mais impac-
0 personagem faz, à sua ação, ao seu ethos. ~as .extste tgual- to se cria por esta via.
mente umá relação empática diano-ética: dzanóza (persona- A peripécia que sofre o personagem se reproduz igual-
gem) -razão (espectador ), que .equivale à rel~ção ethos-e:;w- mente no espectador. Porém poderá também ocorrer que o
ção. o ethos estimula a emoção, a dianóia esttm~Ia a raz~o. espectador acompanhe o personagem empaticamente ·até a
Para a seqüência do nosso racio~ínio é p~ectso que ftque peripécia e que se desligue do mesmo a partir daí. Para evi-
claro que as emoções empáticas bástcas de ptedade e ~e~or tar que isso aconteça, o personagem trágico deve passar igual-
se estabelecem a partir de um ethos que revela. tendenctas mente pelo que Aristóteles chama de ANAGNORISIS, isto é, pela
boas (piedade pela sua destruição) e uma ten?êncta má, uma explicação, através do discurso, de sua falha e do reconheci-
harmatia (terror, porque também nós a possutmos). . mento dessa falha como tal. O herói aceita seu próprio erro,
Estamos agora prontos para compree~der o f~ncton~­ confessa seu erro, esperando que, empaticamente, o espec-
mento do esquema trágico, e a sua enorme tmportâneta polt- tador também aceite como má sua própria harmatia. Mas o
tica. espectador tem a grande vantagem de que cometeu o erro
somente de forma vicária: não tem que pagar por ele.
Finalmente, para que o espectador tenha presente as ter-
CoMO FUNCIONA O SISTEMA TRÁGICO COERCITIVO DE
ríveis conseqüências de cometer o erro, não apenas vicária mas
ARISTÓTELES realmente, Aristóteles exige que a tragédia tenha um final ter-
rível, ao que chama CATÁSTROFE. Não se permitem happy-
Começa 0 espetáculo. Apresenta-se o herói. trágico. O -endings, embora não seja necessária a destruição física do
público estabelece com ele uma forma de empatta. . personagem portador da harmatia. Alguns morrem, enquanto
Começa a ação trágica. Surpreendentemente, o. herót r~ que outros vêem morrer seus seres queridos. De qualquer for-
vela uma falha no seu comportamento, uma ~armatla e, mrus
ma se trata sempre de uma catástrofe em que não morrer é
surpreendentemente ainda, revela-se que em vtrtude dessa har-
pior do que morrer (veja-se o caso de ~ipo). Estes três ele-
matia 0 herói alcança a felicidade que agora ostenta.
Através da empatia, a mesma harmatia que o espectador mentos interdependentes têm por finalidade última provocar
possui é estimulada, desenvolvida, ativada. no espectador (tanto ou mais do que no personagem) a "ca-

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tarse". Quer dizer: a purificação da harmatia, através de três Atribui-se a Aristóteles a seguinte frase: Amicus Plato,
etapas bem determinadas e claras: Sed Magis Amicus Veritas ("Sou amigo de Platão, mas mais
amigo da ·verdade"). Nisto estamos totalmente de acordo com
PRIMEIRA ETAPA- Estímulo da harmatia; o personagem se- Aristóteles: somos seus amigos, mas muito mais amigos da
gue 0 caminho ascendente para a felicidade, acompanhado verdade. Ele nos diz que a poesia, a tragédia, o teatro, não
empaticamente pelo espectador. têm nada que ver com a Política. Mas a realidade nos diz outra
Surge um ponto de r~versão: o per~o~agem e o espec- coisa. Sua própria Poética nos diz outra coisa. Temos que ser
tador iniciam o caminho mverso da fehc1dade à desgraça. muito mais amigos da verdade: todas as atividades do homem,
Queda do herói. incluindo-se evidentemente todas as artes, especialmente o
SEGUNDA ETAPA- O personagem reconhece seu erro: ANAG- teatro, são políticas. E o teatro é a forma artística mais per-
feita de coerção. Que o diga Aristóteles.
NORISIS. Através da relação empática dian_ói~-razão, o. espec-
tador reconhece seu próprio erro, sua propna harmatza, sua
própri'a 1· falha anticonstitucional.
TERCEIRA ETAPA - CATÁSTROFE: 0 personagem sofre as
conseqüências do seu erro, de forma violenta, com sua pró-
pria morte ou com a morte de seres que lhe são queridos.
CATARSE - o espectador, aterrorizado pelo espetáculo
da catástrofe, se purifica de sua harmatia.
O sistema coercitivo aristoté~co pode ser mostrado gra-
ficamente assim:
t.• ETAPA 2~ ETAPA
PERIP~CIA ANAGNÓRISIS

DIANÓI.t.

HARMATIA

ETHOS
DA
EMPATIA SOCIEDADE
I
BOAS 1
TEND~NCIAS .----.1 _,.--..........,:...._ __
TERROR
PIEDADE

~~cr·~' \ ""M ~ 1~ ETAPA


PER IP~CI...
2~ ETAPA
RECEBE A
MENSAGEM
3~ ETAPA
CATARSE
lpurifí.-)
MORAl

RAZÃO - -

40 41

L
Esta é a essência do Siste_!l!.a....'l.'rágico Coercitivo. No tea-
tro grego o sistema funcionà como se, demonstra no gráfico.
Mas, em sua essência, o sistema continua sendo usado até
os .nossos dias, com modificações detemiiqadas pelas novas
SOCiedades. Analisemos algumas destas mo({ificações:

Distintos tipos de conflito: PRIMEIRO TIPO: HARMATIA X ETHOS SoCIAL PERFEITO


(tipo clássico)
harmonia x ethos social
~ o caso mais clássico estudado por Aristóteles. Vejamos
o exemplo de ~dipo. O perfeito Ethos Social é apresentado
a~ravés do Coro e de Tirésias no seu longo discvrso. À coli-
sao é frontal. Mesmo depois que Tirésias o infotma de que
o criminoso buscado é o próprio Édipo, este não o aéeita e
segue por si .mesmo com a investigação. ~dipo, o homem per-
feito, o filho obediente, marido amantíssimo, pai exemplar,
estadista sem igual, inteligente, belo e sensível, ppssui, não
obstante, uma falha trágica: seu desmedido orgulho, sua so-
berba. Por isso, sobe ao cimo da glória, e por isso é des-
o MO VEMOS, no Sistema Trágico Coercitivo de Aristóte- -
truído. O equilíbrio se restabelece com a catástrofe com a
. .aterradora de sua mãe-esposa enforcada e de seus
VlSao . ' pró-
C les é fundamental que: prios olhos vasados.
a - exista úm conflito entre o Ethos do personagem e o
Ethos da sociedade na qual vive o personagem (isto é:
alguma coisa que não funciona, que não se harmoniza, SEGUNDO TIPO: HARMATIA X ETHOS SoCIAL
que cria atritos.) ; PERFEITO X HARMATIA
b - exista uma relação chamada empatia que consiste em
permitir ao espectador que o personagem o conduza A Tragédia apresenta dois personagens que se encontram
através de suas experiências - o espectador sente como dois heróis trá~icos, cada um com sua falha, que se destroe~
se estivesse atuando ele mesmo, goza os prazeres e so- mutuamente, diante de uma sociedade eticamente perfeita. É
fre as dores do personagem, ao extremo de pensar seus o caso típico de Antígona e Creonte.: ambos excelentes pes-
pensamentos; soas, em tudo e por tudo, menos nas suas respectivas falhas.
Nestes casos, o espectador deve necessariamente empatizar com
c - o espectador sofre três acidentes de natureza violenta: ambos ~s . personagens,. ~ não com apenas um, já que o pro-
PERIPÉCIA, ANAGNORISIS e CATARSE. Sofre um golpe em cesso tragtco deve punflcá-lo de ambas harmatias. Um espec-
seu destino (a ação da peça). Reconhece o erro, vi- tador que empatize apenas com Antígona poderá ser levado
cariamente cometido, e se purifica da característica a pensar que Creonte possui a verdade, ou vice-versa. O espec-
anti-social que reconhece possuir.
43
42 •
tador deve purificar-se do "excesso" seja qual for a sua di- ações passadas; desfilam diante deles todos os personagens que
ac~sam a Todomundo e revelam os pecados que ele havia
reção: excesso de amor ao bem do Estado em detrimento da
família ou excesso de amor à fanu1ia em detrimento do bem cometido; os Bens Materiais, os Prazeres, etc. são esses per-
do Estado. sonagens. Todomundo finalmente compreende todos os peca-
dos que cometeu, admite a ausência absoluta de qualquer vir-
Muitas vezes, quando a anagnotisis não é suficiente para tude em todas as suas ações, mas ao mesmo tempo confia no
convencer o espectador, o autor trágico · utiliza diretamente perdão divino. Esta confiança é a sua única virtude. Esta
o raciocínio do Coro, que é o possuidor do "sentido comum", confiança e o seu arrependimento o salvam para maior gló-
da moderação, e de outras qualidades. ria de Deus ...
També~ neste caso a catástrofe é necessária para produzir, A anagnorisis (reconhecimento de todos os seus pecados)
através do terror, a catarse, a purificação do mal. é praticamente acompanhada pelo nascimento de . um novo
personagem e este se salva. ~_Iragédiª, g~s dos perso-
nagens _podem ser perdoad~s, ~esôe q).le ele se Oeeida a mu-
TERCEIRO TIPO: liARMATIA NEGATIVA X ETHOS dar completamente de vida e transformar-se em um novo per-
SociAL PERFEITO sorfa-gem.
~ A idéia de uma nova vida (e esta sim é a vida perdoá-
Este tipo é completamente diferente dos outros dois já vel, já que o personagem pecador deixa de sê-lo) pode ser
vistos. Aqui o Ethos do personagem se apresenta em forma vista com muita nitidez no CONDENADO POR DESCONFIADO de
negativa, quer dizer, tem todas as tendências defeituosas e_ Tirso de ·Molina. O herói, Henrique, é tudo que se pode dizer
apenas uma virtude, e não, como preconizava Aristóteles, to- de ruim de uma pessoa·: bêbedo, assassino, ladrão, rufião, etc.
das as virtudes e apenas um defeito ou 'falha, ou erro de Nenhuma falha, nenhum defeito, neQhum vício, lhe é estranho.
julgamento. Justamente por possuir essa pequena . e solitária Pior que ele, nem o Diabo. Tem o ethos mais pervertido que
virtude, o herói se salva e não se produz a catástrofe, ocor- inventou a dramaturgia universal. Ao seu lado, Paulo, o puro,
rendo, ao contrário, o happy-end. incapaz de cometer o pecadilho mais perdoável, alma branca,
insípida, ingrávida, a perfeição absoluta!
:S importante notar que Aristóteles se pronunciava cla-
ramente contra o happy-end, mas devemos notar igualmente Mas, algo estranho acontece com esta dupla, que fará
que o caráter coercitivo de todo o sistema é a verdadeira essên- com que seus destinos sejam exatamente o oposto do que se
cia de sua poética política; portanto, modificando-se uma ca- poderia pensar. Henrique, o mau, sabe que é mau e 'pecador,
J"acterística tão importante como a composição do ethos do e em nenhum momento duvida que a Justiça Divina o fará
personagem, é inevitável que se modifique ig_!Jalmente o me- arder nas chamas do lugar mais profundo. e escuro do Infer-
canismo estrutural do final da peça, para que o efeito pur- no. Aceita a Sabedoria Divina e sua Justiça. Paulo, ao C()n-
gativo (que é o que importa) se mantenha inalterável. trário, peca por querer manter-se puro. A cada momento se
pergunta se Deus verdadeiramente prestará atenção à sua
Este tipo de catarse produzido por harmatia negativa x vida de sacrifícios e carências. DeseJa ardentemente morrer
ethos social perfeito foi muito utilizado especialmente na Idade e imediatamente transladar-se ao Céu para começar aí uma
Média. Talvez o mais conhecido drama medieval seja TOJ)(}- vida mais prazerosa. ·
MUNDO (Everyman). Çonta a história de um personagem cha- Os dois morrem, e para surpresa de muitos o Ditado
mado Todomundo que na hora da sua morte procura salvar- Divino é o seguinte: Henrique, apesar de todos os crimes,
-se. Dialoga com a Morte e com ela analisa todas as suas
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roubos, bebedeiras, traições, etc., vai para o Céu, porque sua
vel, sua casa freqüentada pelos melhores homens da socieda-
absoluta certeza em seu castigo honrava e glorificava a Deus,
em quem confiava; Paulo, ao contrário, não acreditava ver- d.e, considerando-.se ~ue se trata de uma sociedade cujo prin-
dadeiramente em Deus, pois que duvidava da sua salvação; Cipal valor é o dinherro. Sua casa é freqüentada por financis-
portanto, vai para o Inferno com todas as suas virtudes ... tas. . . A vida de Margarida está cheia de felicidades! Mas,
pobre!, todas suas falhas são aceitáveis, mas não sua única
Em linhas gerais assim é a peça. Observada desde o virtude! Margarida se apaixona. Isto é: ama verdadeiramente.
ponto de vista de Henrique, trata-se nitidamente de um Etho:r Ah, isso nunca, isso a sociedade não pode permitir! :e uma
totalmente mau, possuidor de uma só virtude. O efeito exem- falha trágica! Isso tem que ser castigado!
plar se obtém através do happy-end e não através da catás-
trofe. Observada a ação desde o ponto de vista de Paulo, se . Aqui!A do ponto de vista étic~, se estabelece uma espé-
Cie de tnangulo. Até agora analisamos conflitos éticos nos
trata do esquema aristotélico convencional, clássico. Nele,
quais a ética social era a mesma para os personagens e para
tudo eram virtudes, menos sua falha trágica - duvidar de
os espectadores; agora se apresenta uma dicotomia. O autor
Deus! Para ele sim, existe catástrofe.
deseja mostrar uma ética social aceita por seus integrantes,
mas ele me~mo, o autor, não participa desta ética e propõe
outra. O umverso da peça é um, e o nosso universo, ou ao
QuARTO TIPO: HARMATIA NEGATIVA X ETHOS menos nossa posição momentânea durante o espetáculo, é
SoCIAL NEGATIVO outra. Alexandre Dumas diz: esta sociedade é assim e é má·
mas nós não somos assim, ou não o somos no mais íntim~
A palavra "negativo'~ é aqui util~ada no sentido de que do nosso ser. Portanto, Margarida tem todas as virtudes que
se trata de um modelo exatamente oposto ao modelo origi- a sociedade crê que são virtudes; uma prostituta deve exer-
nal, dito "positivo" - não se refere a nenhuma qualidade cer com dignidade e eficiência sua profissão de prostituta.
moral. Como, por exemplo, numa fotografia negativa tudo o Mas Margarida tem uma falha que a impede de exercer bem
que é branco aparece negro e vice-versa. a sua profissão: se apaixona. Pergunta: como pode uma mu-
Este tipo de conflito ético é a essência do "drama ro- lher apaixonada por um homem servir com igual fidelidade
mântico", e tem na "Dama das Camélias" o seu melhor exem- e eficiência a todos os homens? (Todos os que possam pagar).
plo. A harmatia do personagem protagônico, como no caso Não é possível. Portanto, amar é, em uma prostituta, não
anterior, apresenta uma coleção impressionante de qualida- uma virtude mas ao contrário um vício.
des negativas: pecador, erros, etc. O ethos social (isto é, as Nós, porém, espectadores, que não pertencemos ao uni-
tendências morais, a ética) da sociedade, ao contrário do verso da obra, podemos dizer exatamente o contrário: a so-
exemplo anterior (terceiro tipo), é aqui inteirámente de acor- ciedade que permite e estimula a prostituição é uma socie-
do com o personagem. Quer dizer: todos os seus vícios são dade que deve ser transformada, uma sociedade cheia de ví-
totalmente aceitos e o personagem nada sofreria por pos- cios. Assim se estabelece o triângulo: para nós, amar é uma
suí-los. virtude, mas para o universo da obra é um vício. E Marga-
Vejamos a "Dama das Camélias": em uma sociedade rida Gauthier é destruída precisamente por esse vício (vir-
corrompida que aceita a prostituição, Margarida Gauthier é tude!)
a melhor prostituta; o vício individual é defendido e exaltado Também neste gênero de drama romântico, a catástrofe
pela sociedade viciosa. Sua profissão é perfeitamente aceitá- é inevitável. E o autor romântico espera que o espectador seja

46 47
purificado não da falha trágica do herói, mas sim de todo o os valores que afirma possuir. Em minha peça José do Parto
ethos da sociedade. à Sepultura, o personagem José da Silva encarna todos os va-
Outro drama romântico, muito mais moderno, apresenta !ores que a burguesiaA diz .serem os seus, e sua desgraÇa advém
o mesmo esquema aristotélico modificado: "Um Inimigo do JUStamente porque cre nesses valores e por reger sua vida por
Povo", de Ibsen. Também aí o Dr. Stockmann apresenta um eles~ o self-made-man, o trabalhar mais do que se tem a obri-
ethos perfeitamente idêntico à sociedade na qual vive, socie- gaçao de trabalhar, a dedicação aos patrões, não criar proble-
dade baseada no luéro, no dinheiro; mas apresenta igualmen- ( mas de tipo trabalhista, etc., etc. Em resumo: um persona-
te uma falha: é honesto! Isto a sociedade não pode suportar, " gem que se comporta em obediência às Leis do Triunfo de
nem pode tolerar! O tremendo impacto que esta peça costu- Napoleon Hill ou A Arte de Fazer Amigos e Influenciar as
ma ter baseia-se justamente no fato de que Ibsen demonstra Pessoas de Dale Carnegiel Essa é a sua tragédia! E que tra-
gédia! . ..
(desejando-o ou não) a impossibilidade em que se encontra
a sociedade baseada no lucro em apregoar uma "moral ele-
vada".· O capitalismo é essencialmente imoral porque a busca
do lucro, que é sua essência, é incompatível com a moral
que apregoa de valores superiores, de justiça, etc.
O Dr. Stockman é destnúdo (isto é, perde seus postos
na sociedade e o mesmo ocorre com sua filha Petra que per-
de sua integração numa sociedade competitiva), justamente
por sua virtude fundamental que é, aqui, considerada vício,
erro, ou falha trágica.

QUINTO npo: ETHOS INDIVIDUAL ANACRÔNICO X ETHOS


SoCIAL CONTEMPORÂNEO

S o caso típico de Don Quixote: seu ethos social está


perfeitamente sincronizado com o ethos de uma sociedade que
já não existe. . . Esta sociedade passada, já inexistente, entra
em confrontação com a sociedade contemporânea e todos os
conflitos são inevitáveis. O ethos anacrônico de Don Quixo-
te, cavaleiro andante, fidalgo espanhol, senhorial, não pode
viver pacificamente em uma época em que se desenvolve a
burguesia, que modifica todos os valores; a burguesia, para
quem todas as coisas se transformam em dinheiro e o dinhei-
ro se transforma em todas as coisas.
Uma variante de "ethos anacr6nico" é a do "ethos dia-
cr6nico": o personagem vive em um mundo moral, apregoa-
do por uma sociedade que, não obstante, não aceita na prática

48 49
dizer que o Sistema, enquanto estrutura certos elementos
que produzem um determinado efeito, pode ser utilizado por
qualquer sociedade sempre e quando possua um ethos social
definido. Para o seu funcionamento, tecnicamente não impor-
l ta que a sociedade seja feudal, capitalista ou socialista. Impor-
ta que tenha um universo de valores definidos e aceitos.
Conclusão Por outro lado, costuma acontecer que muitas vezes se
torna difícil compreender o funcionamento do sistema, devido
a. que se .adota uma perspectiva falsa. Por exemplo: as histó-
nas de cme do gênero far-west são perfeitamente aristotéli-
cas, pelo I?enos todas as que já vi . . . Mas, para analisá-las,
é necessáno colocar-se na perspectiva do bandido e não na
do mocinho; do mau, e não na do bom.
Vejamos: uma história de far-west começa com a apre-
sentação de um bandido (vilão, ladrão de cavalos assassino
. '
o~ o que seJa) que, justamente por seu vício, ou falha trá-'
gica, por sua harmatia, é o chefe incontestado, o homem mais
rico, ou o mais temível do bairro ou da cidade. Faz todo o
SISTEMA TRÁGICO Coercitivo de Aristóteles sobrevive até mal que pode e nós, na platéia, empatizamos com ele e vica-
O hoje graças à sua imensa eficácia. .E: efetivamente um riamente, fazemos o mesmo mal: matamos, roubamos ' cava-
los e galinhas, violamos jovens heroínas, etc. Até que, depois
poderoso sistema intimidatório. A estrutura do sistema pode
variar de mil formas, fazendo coro que seja às vezes difícil de estimulada nossa própria harmatia, vem a PERIPÉCIA: o
de descobrir todos os elementos de sua estrutura, mas o sis- herói toma a dianteira na luta corporal ou através de inter-
tema estará aí, realizando sua tarefa básica: .!_~!@_ÇãQ de mináveis tiroteios restabelece a ordem ( ethos social), a moral
todo_~ os elementos anti-sociais. Justamente por essa razão, o e as relações comerciais honestas, depois de destruir (CATÁS-
Sistema não pode ser utifizado por grupos revolucionários TROFE) o mau cidadão. Aqui, o que se deixa de lado é a
durante os períodos revolucionários. Quer dizer: enquanto o ANAGNORISIS e ao vilão se permite morrer sem necessariamen-
ethos social não está claramente definido, não se poae úsàr o te arrepender-se: afinal, matam-no a tiros e o enterram com
esq~a trágico pela simples razão de que o ethos do perso- grandes festas folclóricas de square dance . ..
n~gem não encontrará um ethos social claro a?~ qual enfren-
Nós nos recordamos sempre - não é verdade? - de
tar-se.
....... quantas vezes nossa simpatia (EMPATIA, de certa forma) esta-
O Sistema Trágico Coercitivo pode ser usado antes ou va mais com o baçdido que com o mocinho. O far-west,
depois da Revolução: mas não durante ... c~ os jogos infantis, serve aristotelicamente para purgar
Na verdade, só sociedades mais ou menos estáveis, todas as ~endências agressivas do espectador.
eticamente definidas, podem apresentar uma tábua de valores
que torne possível o funcionamento do sistema. Durante uma . Este Siste~~ciona para diminuir, aplacar, satisfazer
Revolução Cultural, em que todos os valores estão sendo ques- ~ eh~<!o ~~ssa r~mper o equilíbrio social; tudo,
tionados ou formados, o sistema não pode ser aplicado. Vale · ~us1v~ ~s ~pl}ls-Q_s · r~uctoEários, transformadores.

50 51
Que não reste nenhuma dúvida: Aristóteles formulou um
poderosíssimo~istema purgatório, cujãfiiíãlidade é eliminar
tudo que não_s~ente aceito, legalmenté aceito, inclu-
sive a revolução, antes de que aconteça. . . O seu Sistema
aparece dissimulado na TV, no cine, nos circos e nos teatros.
Aparece em formas .e meios múltiplos e variados. Mas a sua
essência não se modifica. Trata-se de frear o indivíduo, de Notas
adaptá-lo ao que pré-existe. Se é isto o que queremos, este
sistema serve melhor que nenhum outro. Se, pelo contrário,
queremos estimular o espectador a que transforme sua socie-
dade, se queremos estimulá-lo a fazer a revolução, nesse caso
teremos que buscar outra Poética. ·

1 . As características do personagem se relacionam com o


desenlace. Um personagem totalmente bom que termina em
um final feliz não inspira nem terror nem piedade, não cria
uma dinâmica: o espectador o observa e o seu destino é ilus-
trado pelas suas ações, mas não se· cria nenhuma teatrali-
dade.
. Um personagem totalmente mau que termina em catás-
trofe tampouco inspira piedade, que é parte necessária ao me-
canismo da empatia.
Um personagem totalmente bom que termina em catás-
trofe tampouco é exemplar, e, pelo c~ntrário, viola o sentido de
justiça. ~ o caso de Don Quixote que, do ponto de vista da éti-
ca da Cavalaria, é totalmente bom e, não obstante, sofre uma
catástrofe que funciona 'exemplarmente'. . . Pode-se dizer que
ele é totalmente bom, mas que possui uma moral anacrônica
que é, em si mesma, uma falha trágica. Esta é a sua harmatia.
Um personagem totalmente mau, que termina em final
feliz, seria justamente o oposto do que persegue a tragédia
grega, e estimularia o mau, e não o seu aperfeiçoamento.

52 53
Portanto, teremos que concluir que as únicas possibili-
dades são: 4. DEVIR E NÃo-SER - O pensamento fundamental de Aris-
tóteles era o DE VIR e não o Ser (DEVJR = TORNAR-SE.) Para
1) personagem com uma falha terminando em catás- ele, devir significava não a aparição e a desaparição fortuita,
trofe; mas sim o desenvolvimento daquilo qu~ já está em gérmen.
A coisa individual, completa, não é uma aparência, mas sim
2) personagem com uma virtude, terminando em final uma realidade própria, embrionária, existente.
feliz;
3) personagem com uma virtude, insuficiente, terminan- 5 . Para Aristóteles, o prazer estético era dado pela unidade
do em catástrofe. da matéria com uma forma que, no mundo real, lhe era estra~
nha. Esta unidade dematéria com uma forma (estranha) pro-
2. Para Platão, a realidade é como se um homem estivesse duz o prazer estético. Por exemplo: expressar alegria não
preso em uma cela com uma única janela, Já no alto: esse como na vida real mas em redondilha. :E: assim que surge o
homem poderia distinguir apenas sombras da verdadeira rea- prazer estético. Aristóteles insiste igualmente em que ~as belas
lidade. Por isso, Platão estava contra os artistas: estes seriam artes imitam os homens em ação. O conceito é amplo e inclui
como prisioneiros que em suas celas pintariam as sombras que tudo o que constitui a atividade interior e essencial, tudo o
eles confundiriam com a realidade. Cópias de cópias, dupla que expressa a vida mental, ou que revela a personalidade da
corrupção. alma. O _mundo exterior pode igualmente ser incluído, mas
tão-somente na medida em que sirva para expressar a ação
3. A ANAGNORISIS é um elemento fundamental e importan- interior.
~

tíssimo do sistema. Pode ser o reconhecimento feito pelo pró- Pode-se ser feliz enquanto se vive? Para Aristóteles sim,
prio personagem que assim, empaticamente, se transfere ao já que ser feliz é viver virtuosamente. Um homem virtuoso
espectador. Mas se não o faz o personagem com o qual existe pode ser um desgraçado, mas nunca . um infeliz. ~ristótel~s
uma ligação empática, deve ser feita por qualquer outro, pelo acrescenta igualmente que para ser feliz é, necessáno um mt-
Coro inclusive. :E: arriscado não fazer anagnorisis, ou fazê-la nimo de condições objetivas, já que a felicidade não é uma
mal, ou insuficientemente. :e: necessário recordar que o espec- disposição moral, e ao contrário se baseia em fatos e atos efe-
tador tem inicialmente estimulada sua própria falha e, ao não tivamente praticados.
produzir-se a compreensão de que se trata de uma falha, isto Nisso, estamos de acordo ...
aumentará o seu poder destruidor.
Pode acontecer igualmente que o espectador siga empati-
camente o personagem até que comece a PERIPÉCIA e que o Buenos Aires, junho de 1973
abandone a partir de então. Aí está o perigo e aí o sistema
pode funcionar ao contrário!
Igualmente, a não destruição da harmatia (final feliz)
pode estimular o espectador à prática do vício: se o perso-
nagem fez o que fez e não teve maiores conseqüências, "a
mim tampouco me acontecerá nada". Isto também o liberará
e o estimulará a praticar o mal.

54
55
2

Maquiavel e a Poética. da Virtu

Este ensaio foi escrito em 1962. Destinava-se


a apresentar o espetáculo de A Mandrágora, comé-
dia de Maquiavel, montada pelo Teatro de Arena
de São Paulo, em 1962-63, e dirigida por mim.
Para este livro, pensei inicialmente em supri-
mir o Capítulo IH, que trata mais especificamente
da peça e de seus personagens. Pareceu-me, no
entanto, que ·essa supressão 'faria perder-se o fio
da meada. Pretendi também acrescentar alguns ca-
pítulos novos, especialmente sobre as Metamorfo-
ses do Diabo, mas temi a hipertrofia de alguns
....:~pectos sobre o esquema · geral, como um todo.
Devo esclarecer que este ensaio não pretende estu-
dar exaustivamente as profundas transformações
por que passou o teatro sob o comando burguês.
Pretende apenas tentar a esquematização dessas
transformações. Todo esquema é insuficiente -
conheci esse perigo antes e depois de empreender
a tarefa.

São Paulo, março de 1966.


I - A abstração medieval

EGUNDO Aristóteles, Hegel ou Marx, a arte, em qualquer das


S suas modalidads, gêneros ou estilos, constitui-se sempre
numa forma sensorial de transmitir detenninados conhecimen-
tos, subjetivos ou objetivos, individuais ou sociais, particula-
res ou gerais, abstratos ou concretos, super ou infra-estrutu-
rais. Esses conhecimentos, acrescenta Marx, são revelados de
acordo cem a perspectiva do artista e do setor social ao
qual está radicado, e que o patrocina, paga e consome a sua
obra. Sobretudo, daquele setor da sociedade que detém o po-
der econômico , e com ele controla os demais poderes, esta-
belecendo as diretrizes de toda criação, seja artística, científi-
ca, filosófica, ou outra. A este setor, evidentemente, interessa
transmitir aquele conhecimento que o ajude a manter o poder,
se é que já o detém de forma absoluta, ou que o ajude a con-
quistá-lo, caso contrário. Isso não impede, porém, que outros
setores ou classes patrocinem também a sua própria arte, que
venha a traduzir os conhecimentos que lhe são necessários e
que ao fazê-lo utilize a sua própria perspectiva. A arte domi-
nante, no entanto, será sempre a da classe dominante, eis que·

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esta é a única possuidora dos meios de difundi-la preponde- Na Idade Média, o controle sobre a produção teatral
rantemente exercido pelo clero e pela nobreza, era ainda mais eficaz e a~
J Ó teatro, de um modo particular, é determinado pela so-
, ciedade muito mais severamente que as demais artes, dado o
relações entre o f~udalismo e a arte medieval podem ~r fa-
'cilmente contadas através do estabelecimento de um tipo ideal
. seu contato imediato com a platéia, e o seu maior poder de de arte, que, é claro, não tem a necessidade de explicar todos
convencimento. Essa determinação atinge tantp a apresenta- os casos particulares, embora muitas vezes se encontrem exem-
ção exterior do espetáculo, quanto o próprio conteúdo de idéia plos perfeitos:
do texto escrito. A quase auto-suficiência de cada feudo, o sistema social
No primeiro caso, basta lembrar as enormes diferenças de estamentos rigidamente estratificados, a pouca importân-
entre, P?r exempl.o, "a ~écnica formal de um Shakespeare e a Cia e a quase ausência do comércio deveriam produzir uma
de Shendan, a vwlencta do primeiro e a delicadeza do se- arte na qual, diz Hauser, "não existia qualquer compreensão
gundo, os duelos, os motins, as feiticeiras e os fantasmas de do valor do que é novo e, ao contrário, procurava preservar o
um lado, e, de outro, as pequeninas intrigas, os subente~di­ velho e o tradicional. Faltava à Idade Média a idéia de com-
dos, a complexidade estrutural dos pequenos. subenredos. petição que só é trazida pelo · individualismo".
Sheridan não seria eficaz se tivesse que enfrentar a violenta A arte feudal procurava atingir os mesmos objetivos do
e tumultuosa platéia isabelina, da mesma maneira que Sha- clero e da nobreza: imobilizar a sociedade, perpetuando o sis-
kespeare seria considerado, pelos espectadores do Drury tema vigente. A sua característica principal era a despersona-
~ane, na segunda metade do século XVIII, um selvagem tru- lização, a desindividualização, a abstração. "A. Arte cumpria
ctdador . de personagens. · uma missão coercitiva e autoritária, incutindo no povo, sole-
Quanto ao conteúdo, os exemplos que podem ser cita- nemente, uma atitude de respeito religioso pela sociedade tal
dos não são assim tão óbvios, embora a influência social qual ela era. Apresentava um mundo estático, estereotipado,
po,ssa se~ verificada, sem grande esforço de inteligência, tanto em que tudo era genérico, homogêneo. O transcendental tor-
nos atuats cartazes do teatro brasileiro, como na dramatur- nou-se muito mais importante, e os fenômenos individuais e
gia grega. · concretos não tinham qualquer valor intrínseco, valendo ex-
clusivamente como símbolos e sinais" (Hauser).
Arnold Hauser, no seu livro A História Social da Arte
analisando a função social da tragédia grega, escreve que o~ A própria Igreja simplesmente tolerava e, mais tarde, uti-
"aspectos externos do espetáculo para as massas eram indu- lizava a arte como um mero veículo das suas idéias, dogmas,
bitavelmente democráticos, porém o conteúdo das tragédias preceitos, mandamentos e decisões. Os meios artísticos signi-
revelava-se aristocrático. Fazia-se a exaltação ~ do indivíduo ficavam uma concessão ·que o clero fazia às massas ignoran-
excepcional, distinto de todos os demais mortais, isto é, do tes, incapazes de ler e de seguir um raciocínio abstrato, e
aristocrata. O único progresso da democracia ateniense foi o que podiam ser atingidas exclusivamente através dos sentidos.
d~ su.bstituir gradativamente a aristocracia do sangue pela do A .identidade que se procurava impingir entre os nobres
dmheuo. Atenas era uma democracia imperialista e as guer- e as figuras sagradas era marcante, na tentativa de se estabe-
ras traziam benefícios apenas para a parte dominante da so~ . . lecer uma inquebrantável aliança entre os senhores feudais e
ciedade. O Estado e os homens ricos pagavam a produção dos a divindade. Por exemplo: a apresentação das. figuras de san-
espetáculos, de modo que não permitiriam nunca a encenação tos e nobres, especialmente na arte românica, era sempre fron-
de peças cujo conteúdo fosse contrário ao que julgavam con- tal, e nunca essas personagens .podiam ser pintados trabalhan-
veniente". do, mas sempre em ociosidade, característica do senhor pode-

60 61
roso. Jesus era pintado como se fosse um nobre e o nobre aqui reside a sua importância ~u~damental. Na _tragéd~a! o
como se fosse Jesus. Infelizmente, Jesus foi crucificado, vindo importante era a sua função catarttca, a sua funçao pu_nftca-
a morrer depois de intensos padecimentos de ordem física: e dora das harmatias sociais do cidadão. Todas as teonas de
aqui a identificação não mais interessava à nobreza. Portan- Aristóteles se completam num todo harmônico que demonstra
to mesmo nas cenas de sofrimento mais intenso, Jesus, São a maneira correta de purificar a platéia de todas a~ idéias ou
S;bastião, e outros mártires, não mostravam no rosto qualquer tendências modificadoras da sociedade. Neste sent1do, o tea-
sinal de dor, e, pelo contrário, contemplavam o Céu com tro medieval era aristotélico, embora não se utilizasse dos
extrema bem-aventurança. Os quadros em que Jesus aparece mesmos recursos formais sugeridos pelo teórico grego.
crucificado dão a idéia de que ele está apenas apoiado num Os personagens tipicamente feudais não eram seres hu-
pequeno pedestal e de lá contempla a felicidade c~u_sada pel~ manos, mas abstrações de valores morais, re~igi~s~s, etc., não
perspectiva de voltar proximamente ao doce conv1v1o do Pat existindo no mundo real e concreto. Os mats tiptcos chama-
Celestial. vam-se Luxúria, Pecado, Virtude, Anjo, Diabo, etc. Não eram
personagens-sujeitos da ação dramática, mas simples objetos,
Não é fortuitamente que o principal tema da pintura
românica tenha sido o Juízo Final. Este tema é, realmente, porta-vozes dos valores que simbolizavam. O Diabo, p~r exem-
plo, não tinha qualquer livre iniciativa: apenas cumpna a sua
o mais capaz de intimidar os pobres mortais, mostrando-lhes
tarefa de tentar os homens, dizendo as falas que essa abstra-
terríveis castigos e eternos prazeres espirituais. à sua escolha.
ção necessariamente diria em tais ocasiões. As~im, ~ Anjo, a
Serve ainda para lembrar aos fiéis que os seus sofrimentos
Luxúria e todos os demais. Personagens que s1mbohzavam o
terrenos nada mais são do que um substancial acervo de boas
ações que serão lançadas a seu crédito no livro-caixa de São bem e o mal, o certo e ·o errado, o justo e o injusto, o reco-
Pedro, que fecha a conta individual de cada um de nós, ~o mendável e o condenável - evidentemente segundo a pers-
momento da nossa morte, verificando nosso saldo, ou defictt. pectiva da nobreza e do clero que patrocinava~ essa arte. As
Este livro de deve-haver é, no entanto, uma invenção renas- peças feudais tinham sempre um caráter morahza~te e exem-
centista que ainda hoje opera verdadeiros milagres, fazendo plar: os bons eram recompensados e os maus pumdos.
sorridentes e felizes os sofredores que têm suficiente fé no Podiam, esquematicamente, ser divididas em dois grupos:
Paraíso. peças do pecado e peças da virtude.
Tanto quanto a pintura, .o teatro revelou também uma Entre as peças de virtude podemos lembrar a "Repre-
tendência abstratizante, q_uanto à forma, e doutrinante, quanto sentação e Festa de Abraão e Isaac, seu Filho" de Feo Bel-
ao conteúdo. Costuma-se freqüentemente dizer que o teatro cari,. quase contemporâneo de Maquiavel. Conta a história
medieval era não-aristotélico. Quando se faz uma tal afirma- deste fiel servo de . Deus, sempre pronto a obedecer, mesmo
ção, acreditamos, é porque se tem em mente o aspecto me- sendo a ordem superior incompreensível e injusta. (Da m~sma
nos importante da Poética, isto é, a infelizmente célebre lei maneira, todo vassalo devia obedecer seu suserano, sem mda-
das três unidades. Esta lei não tem qualquer validade como gar da justeza das suas resol~ções) . Abraão, bom vass~o,
tal, e nem sequer os trágicos gregos a obedeciam rigorosamen- estava sempre disposto a cumpnr as ordens emanad~s do. Ceu.
te. Não passa de uma simples sugestão, dada de forma quase A peça narra o seu cumpriment? do dever e, depots, a mter-
acidental e incompleta. A Poética de Aristóteles é, acima de venção hitchcockiana de um AnJo que surge em cena no mo-
tudo, .JU!L perfeito disp'õsitivõ pafaõ funciõiiã'iilento social mento exato em que Abraão baixava a espada sobre o tenro
.EXS!!!P.!_ar do teatro. ~:1!_ ~m instrumento eficaz para a correção e inocente pescoço do filho, cumprin.do assi~ o seu .sagrado
.!l!!!.._lwmens_Ç!Jpazes de modificar a sociedade. :1! sob este dever. O Anjo regozija-se com o pa1 e o ftlho, elogtando a
aspecto social que a Poética deve ser encarada, e somente servil conduta de ambos, e revelando o enorme lucro que te-

62 63
rão por terem obedecido tão cegamente à vontade de Deus, o é freqüentemente secundário e muitas vezes cômico. Ainda
suserano supremo: como recompensa, o Senhor abrir-lhes-á hoje se costuma fazer o diabo falar língua estrangeira, como
as portas dos seus inimigos. :e. de supor-se que os seus inimi- acontece com certas peças gaúchas nas quais ele fala espa-
gos não fossem tão bons cassalos como eram eles ... nhol, obtendo-se com este recurso um efeito ridicularizante,
Entre as peças ·do pecado, deve ser citada uma também ao mesmo tempo em que se enfraquece uma das partes em
bastante tardia, de autor anônimo inglês: Todomundo. Conta litígio.
a história de Todomundo na hora da morte e indica a ma- Infelizmente, para a nobreza feudal, nada estaciona neste
neira certa de se proceder a fim de se ganhar a absolvição mundo, inclusive os sistemas políticos e sociais que surgem,
nessa hora extrema, por maiores que tenham sido os pecados desenvolvem-se e dão lugar a outros que virão a sofrer igual
anteriormente cometidos. Isto se faz através de um bom arre- destino. E com a burguesia nascente surgiu um novo tipo de
pendimento, uma boa penitência e, é claro, o aparecimento arte, uma · nova poética, através da qual começaram a ser tra-
providencial do Anjo portador do perdão e da moral da his- duzidos novos conhecimentos, adquiridos e "transmitidos de
tória. Embora os Anjos não tenham sido vistos ultimamente acordo com uma nova perspectiva. Maquiavel é uma das tes-
com muita freqüência aqui na terra, esta peça continua sendo temunhas dessas transformações sociais e artísticas. Maquia-
representada com bastante 'sucesso e ainda infunde um certo vel é inici~dor da poética da virtu.
temor.
Não é de se estranhar que os dois exemplos citados, tal-
vez os mais típicos da dramaturgia feudal, tenham sido escri-
tos quando a burguesia já estava bastante desenvolvida e for-
te: os conteúdos se aclaram na medida em que se aguçam
as contradições sociais. Também não é de estranhar que o
teatro mais tipicamente burguês esteja ainda agora sendo
escrito ...
As peças demasiadamente dirigidas para um só objeto
correm o risco de contrariar um princípio fundamental do
teatro, que é o conflito, ou a contradição, ou qualquer tipo
de choque ou combate.
Como foi possível ao teatro feudal resolver este pr,oble-
ma? Pondo em cena os adversários, porém apresentando-os de
tal forma e ma·nipulando o enredo de. tal maneira que o
desenlace pudesse ser ereviamente determinado.. Em outras
palavras: adotando um estilo narrãtivo e, ÇQ.locattdG -a ação
_!W;:passado, ~vitando-se a dramaticidade e a apreseõtação di-
reta e presente dos personagens em choque. Karl Vossler
(Formas Poéticas dos Povos Românticos) observa curiosamen-
te que não conhece um só drama medieval em que o Diabo
seja "concebido e apresentado como um digno adversário de
Deus; ele é fundamentalmente o vencido, o subordinado".
Embora poderoso, foge a qualquers inal dà- cruz. Seu papel

64
65
o corpo como a mente, ser trabalhador em contraposição à
ociosidade senhoril medieval, estes passaram a ser os meios
de que dispunha cada indivíduo empreendedor para elevar-se
socialmente e prosperar". A burguesia nascente encorajou o
desenvolvimento da ciência por ser ela necessária ao seu ob-
jetivo de promover um aumento de produção que viesse a fa-
11 - A concreção burguesa cilitar maiores lucros e acumulação de capital. Era tão ne-
cessário descobrir novos caminhos para as lndias como des-
cobrir novas técnicas de produção, novas máquinas, que me-
lhor fizessem render a força de trabalho que o burguês alu-
gava.
A própria guerra passou a ser travada de uma maneira
muito mais técnica do que antes, principalmente por causa das
novas armas de fogo, aperfeiçoadas e usadas mais fartamente.
Os ideais da cavalaria deveriam necessariamente desaparecer:
dezenas de valorosos cms CAMPEAOORES poderiam ser eli-
minados com a bala de um só canhão, disparado pelo mais
tímido e covarde dos soldados.
OM o desenvolvimento do comércio, já mesmo a partir do Nessa nova sociedade contabilizada, escreve Von Martin,
C século XI, a vida começou a transferir-se do campo para "o valor e capacidade individual de cada homem tornaram-
-se mais importantes do ·que o estamento do qual tivessem
as recém-fundadas cidades, onde se construíram entrepostos
e se estabeleceram bancos, onde se organizou a contabilidade nascido, e até mesmo Deus transformou-:se no Juiz supremo
mercantil e centralizou-se o comércio. A lentidão da Idade dos câmbios financeiros, o invisível organizador do mundo,
Média foi substituída pela rapidez renascentista. Essa rapi-. sendo o mundo considerado como uma grande empresa mer-
dez devia-se ao fato, observa Alfred Von Martim (Soc!ologia cantil. Com Deus travaram-se relações de conta-corrente, prá-
do Renascimento), de que cada um começava a construtr para tica que ainda hoje corresponde às boas ações do catolicismo.
si próprio e não para a glória do Deus eterno qúe, de tão A própria esmola é o modo contratual de assegurar a
eterno que era, não carecia ter pressa em receber as provas ajuda divina. "A bondade cedeu lugar à caridade". Este novo
de amor dadas pelos seus tementes· e fiéis. "Na Idade Média Deus-Propriet~rio, o Deus Burguês, exigia uma urgente refor-
podia-se trabalhar na construção de uma lgFeja ou castelo mulação religiosa, que não tardou a vir na fórmula do pro-
durante séculos, pois que se construía para a com~nidade e testantismo. Dizia Lutero que a prosperidade nada mais era
para Deus. A partir do Renascimento, começou-se a construir do que a recompensa dada por Deus à boa direção dos ne-
para os próprios homens perecíveis, e ninguém podia esperar gócios, à boa administração dos bens materiais. E, para Cal-
tanto tempo". vino, pão existia maneira mais segura de se verificar, ainda
· A ordenação metódica da vida e de todas as atividades em vida, quais os eleitos de Deus senão enriquecendo aqui na
humanas passou a ser um dos principais valores trazidos pela terra: se Deus estivesse contra determinado indivíduo certa-
burguesia em formação. "Gastar menos do que se ganha, eco- mente dispunha de poder bastante para evitar que ele enri-
nomizar forças e o dinheiro, administrar economicamente tanto quecesse. Se enriquecia, certamente Deus estava do seu lado.

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O Capital acumulado passou quase que. a denotar, a. graça di- menta paderia eleger senão unicamente os da própria reali-
vina. Os pobres, os trabalhadores braça1s, os operanos e cam- dade? O certo e o errado, o bem e o mal, tudo isso s6 se
poneses, nada mais eram que uma legião de não eleitos, que pode saber com o referendo da prática. Como também ne-
não podiam enriquecer porque Deus estava contra e!e~, ou nhuma lei ou tradição, mas apenas o mundo material e con-
pelo menos não os ajudava. Em A Mandrágora, comedta .de creto, poderia lhe fornecer os caminhos seguros para chega.r
Maquiavel, Frei Timoteo utilizava a Bíblia ~e uma mane1r.a ao poder. "Os homens são como são e · não como deveriam
tipicamente renascentista, mostrando que o hvro sagrado ti- ser" - esta frase de Maquiavel poderia ser endossada por
nha perdido a sua função normativa do comportamento dos qualquer burguês. A "praxis" foi a segunda lei da burguesia.
homens, para se transformar num santo repositório de tex~os, A Virtu e a Praxis foram e são os dois fundamentos
fatos e versículos que, interpretados · isoladamente, podenam burgueses, ·suas duas características principais. Evidentemen-
justificár, a posteriori, qualquer atitude do clero, dos homens, te, não se pode inferir daí que s6 quem não era nobre podia
qualquer pensamento, qualquer ato, por menos santo que foss:. possuir Virtu ou confiar na praxis, e muito menos que todo
E o Papa Leão X, quando a peça fQi representa?a pel~ P.n- burguês devia necessariamente possuir essa qualidade, sob
meira vez, não só a aprovou, mas déú-se por mUlto sat~sfe1~0 pena de deixar de ser burguês. O próprio Maquiavel censu-
com o fato de ter Maquiavel exposto, com tão extraordmária rav!l a Burguesia de seu tempo, acusando-a de namorar as
precisão e arte, a nova mentalidade religiosa e os novos prin- tradições do passado, de sonhar demasiado com as neves ro-
cípios da igreja. mânticas da nobreza feudal, enfraquecendo-se com isso e dei-
O burguês, apesar de todas essas· transformações sociais, xando de, mais rapidamente, consolidar suas posições e criar
ti1,1ha ainda uma grande desvantagem, em relação ao senhor seus próprios novos valores. Esta nova sociedade deveria ne-
feudal: enquanto este podia afirmar que o seu poder emanava cessariamente produzir um novo e radicalmente diferente tipo
de um contrato efetivamente realizado, em tempos imemo- de arte. A n~o/a classe não poderia jamais utilizar as abstra-
riais, no qual Deus, ele próprio, outorgara-lhe o direito à ções artísticas existentes mas, ao contrário, devia voltar-se,
posse da terra, fizera dele o seu representante na terra, o para a realidade concreta e nela procurar suas formas de arte.
burguês nada mais poderia alegar em sua própria defesa e Não podia tolerar que os personagens continuassem sendo os
proveito, a não ser a sua própria condição de homem empreen-
mesmos valores oriundos do Feudalismo. Precisav~ criar, no
dedor, o seu próprio valor e capacidade individuais.
palco e nos quadros, homens vivos de carne e osso, especial-
O seu berço não lhe dava privilégios especiais. E, se ele mente o homem virtuoso.
ps possuía, é porque os tinha conseguido com dinheiro, ~oro --..
sua livre iniciativa, seu trabalho e a sua capacidade fna e Em pintura, basta folhear qualquer livro de História de
racional de metodizar a vida. O poder burguês repousava, Artes Plásticas, para se dar conta do que aconteceu. Surgi-
portanto, no valor individual do homem vivo e concreto, exis- ram, nas telas, indivíduos rodeados de paisagem verdadeiras.
tente no ml•ndo real. O burguês nada devia ao seu destino Mesmo no estilo gótico os rdstos começaram já a se indivi-
ou à sua boa fortuna, mas tão-somente à sua própria virtu. dualizar. "A arte burguesa era, sob todos os aspectos, uma
Com sua Virtu afastara todos os obstáculos que lhe antepu- arte popular, tanto porque se afastava das tradicionais rela-
nham o nascimento, as leis do ·sistema feudal, a tradição, a ções com a Igreja, como porque começava a apresentar figu-
religião. A sua "viáu" era a sua primeira lei. ras familiares. Um dos fenômenos mais notáveis é o apareci-
Porém, o burguês virtuoso que negava todas as tradi- mento do nu. Não só a cultura clerical, como a aristocrática,
ções e renegava o passado, que outros padrões de comporta- eram opostas ao nu. O nu e a morte são democráticos e neles

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rentemente restaurasse a legalidade e o feudalismo no fim de
todos os homens se igualam. As danças da morte, já no fim suas peças.
da Idade Média, em processo de aburguesamento, eram con-
denadas pela igreja e pela Aristocracia" (Von Martin). Toda a dramaturgia shakespeariana é um documento com-
No teatro desapareceu, por exemplo, a figura abstrata probatório do aparecimento do homem individualizado no
do Diabo em geral, e surgiram diabos em particular. Lady teatr?·. Tod~s seus personagens centrais são sempre analisados
Macbeth, lago, ·Cássio, Ricardo 111 e outros de menor poder. mulbdunens10nalmente. Será difícil encontrar, na dramaturgia
Não eram mais "O Princípio do Mal", ou "anjos diabólicos" de qualquer outro país, ou época, um outro personagem que
s~ c~mpare a Hamlet. Ele é analisado em todos os planos c
ou coisa que o v.alha, ma~ homens vivos que, livremente, op-
tavam pelos cammhos considerados do mal. d1reçoes: nas suas relações amorosas com Ofélia amistosas
com Horácio, políticas em relação ao Rei. Cláudi~ e a For-
Homens virtuosos no sentido maquiaveliano, que "apro-
timbrás, na sua dimensão metafísica, psicológica etc. Shakes-
veitavam ao máximo todas as suas forças potenciais, pro- peare foi o primeiro dramaturgo a afirmar o homem em toda
curando eliminar todos os elementos emotivos e vivendo num a _sua plenitude, como nenhum outro dramaturgo o fizera antes,
mundo puramente intelectual e calculador. O Intelecto care- nao se excetuando sequer Eurípedes. Hamlet não é a dúvida
ce em absoluto de caráter moral. -a neutro como o dinheiro" abstrata, mas sim um homem que, diante de determinadas e
(Von Martin). bem precisas circunstâncias, duvida. Otelo não é o Ciúme em
Não é de estranhar que um dos temas mais tipicamente si, mas simplesmente um homem capaz de matar a mulher
shakespearianos seja a tomada do poder por quem não tem .
amada porque desconfia. Romeu não é o Amor, mas um ra-
o direito legal de o fazer. Também a burguesia não tinha o pazote que se apaiXona por uma certa moça chamada Julie-
direito de tomar o poder, e, no entanto, tomou-o. Shakes- ta, que tem tais pais e tal ama, e encontra 'resultados funes-
peare contava, em forma de fábula, a história da burguesia. tos nas suas aventuras amorosas.
Porém, sua situação era dicotômica: embora -sua si~patia,
como dramaturgo e como homem, estivesse decididamen- O que foi que aconteceu com o personagem do teatro?
te ao lado de Ricardo lU (o virtuoso-mor, o representante Simplesmente deixou de ser objeto e transformou-se no sujei-
simbólico da classe em ascensão, o homem que agia confian- to da ação dramática. O personagem tomou-se uma concre-
do na própria virtu derrotando a tradição e o esquema so- ção burguesa.
cial pré-estabelecido e consagrado), Shakespeare devia-se cur- .sendo Shakespeare o. primeiro dramaturgo da virtu e da
var, conscientemente ou não, à nobreza que o patrocinava e pra.:ts, é ele, neste sentido e exclusivamente neste, o pri-
que, afinal de contas, ainda detinha o poder político. Ricar- meuo dramaturgo burguês. Foi o que primeiro soube tradu-
do é o herói indiscutível, embora acabe sendo derrotado no
zir, em toda a sua extensão, as característi'cas fundamentais
V. 0 ato. Era sempre no V. 0 ato que essas coisas aconteciam.
E nem sempre aconteciam convincentemente: Macbeth é der- da nova classe. Antes dele, é claro, e mesmo durante a Idade
rotado de maneira criticável, do ponto de vista dramatúrgico, Média, já existiam peças e autores que tentavam o mesmo
pelo menos, pelos representantes da legalidade Malcolm e caminho: Hans Sachs na Alemanha, o Ruzzante na Itália
Macduff. Um, o herdeiro legítimo embora covarde e fujão, o (ainda sem falar de Maquiavel), na França, a célebre Farsa
outro, seu servidor e vassalo fiel. Hauser justifica essa dicoto- do Senhcr Pathelin, etc.
mia quando lembra que a rainha Elizabeth era uma das maiores -a preciso acentuar, entretanto, que Shakespeare não se
devedoras de todos os bancos ingleses, o que vem mostrar que utilizava. a não ser em casos excepcionais, como Antônio,
a própria nobreza inglesa era também dicotômica. Shakespeare o Mercador de Veneza, de heróis que fossem formalmente
afirmava. os novos valores burgueses que surgiam, embora apa-

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burgueses. Ricardo III é também o Duque de Gloucester. O porque acredita vãmente assim poder melhorar".) O povo é
caráter burguês da obra shakespeariana não reside absoluta- manipulado pela vontade dos virtuosos. Lembre-se a cena em
mente nos seus aspectos exteriores, mas unicamente na apre- que Brutus e depois Marco Antônio inflamam o povo, cada
sentação e criação de personagens dotados de virtu e confiao · um por sua vez e com argumentos apostos. O povo é massa
tes na praxis. Nos aspectos formais, o seu teatro apresenta informe e moldável. Onde estava o povo enquanto Ricardo e
resíduos que podemos considerar feudais: o povo fala em pro- Macbeth cometiam os seus crimes, ou quando Lear portilha-
sa e os nobres falam em versos, por exemplo. va o seu reino? São questões que não interessavam a Sha-
Uma crítica, e mais séria, que se pode levantar contra kespeare.
esta afirmação é a de que a burguesia, pela sua própria con- A burguesia, conclui-se. Jfirmava um,_tipo de excepcio-
dição de alienadora do homem, não seria a classe mais indi- nalidade contra outro: a individual contra a estamentâ/.
cada para propor justamente a sua multidimensionalização. Enquanto sua pnncipal contradição era cõnrra""ãóõ'breza feu-
Acreditamos que isto seria verdade se ocorresse sempre dal, a burguesia propunha o homem - esse mesmo homem
um salto brusco e repentino entre dois sistemas sociais que que foi mais tarde, por ela própria, submetidp às mais seve-
se sucedem, se um deixasse de existir no momento exato em ras reduções, quando a principal contradição burguesa pas-
que surgisse o- outro. Isto é, se a burguesia criasse a sua pró- sou a ser com o proletariado. Porém, esperou o momento
pria superestrutura de valores no momento exato em que o oportuno para iniciar essa nova tarefa e só começou a exe-
primeiro burguês alugasse a força de trabalho 'do primeiro cutá-la quando assumiu definitivamente o poder político.
operário e dele auferisse a primeira mais-valia. Como tal não Quando, no dizer de Marx, as palavras do slogan: Liberté!
ocorre, preferimos analisar mais detidamente este aspecto. Egalité! Fraternité! foram substituídas por outras que melhor
traduziam seu verdadeiro significado: "Infantaria! Cavalaria!
Na verdade, Shakespeare não instituiu a multidimensio- Artilharia!" Só então começou a reduzir o homem que ela
naíidade de todos os homens, de todos os personagens, ou da mesma propusera.
espécie humana em geral, mas somente a de alguns homens
possuidores de certa excepcionalidade, isto é, daqueles dota-
dos de virtu. A excepcionalidade d.estes homens era fortemen-
te marcada em duas direções opostas: contra a nobreza impo-
tente e esfacelada, e contra o povo em geral, a massa amorfa.
No primeiro caso é suficiente lembrar alguns conflitos fun-
damentais estabelecidos pelos personagens centrais. Quem são
os opositores de Macbeth se não gente medíocre? Duncan e
Malcolm não têm nenhum valor individual que os exalte. Ri-
cardo III defronta-se com toda uma corte de nobres decaden-
tes, começando pelo doentio Eduardo N, um grupo de fala-
dores, inconstantes, débeis. E sobre a podridão do reino da
Dinamarca não é necessário acrescentar nada às palavras do
próprio príncipe.
Por outro lado, o povo ou não se manifesta ou é facil-
mente ludibriado e aceita passivamente a troca de senhores.
(MAQUIAVEL: "O povo facilmente aceita a troca de senhores

72 '13
os virtuosos e os não-virtuosos, isto é, aqueles que acreditam
nessa premissa e por ela se regem, e os que não.
Sob este aspecto, Ligúrio é o personagem central da peça,
o personagem pivot, o maior virtuoso. Ele é uma metamor-
fose do Diabo que começa, nele, a adquirir livre iniciativa.
Ligúrio não é o parasita convencional, de longa tradição na
história do teatro. f: um homem dotado de grande virtU, que
III - Maquiavel e a Mandrágora livremente escolheu ser parasita, como poderia ter escolhido
ser monge ou cônego. Pouco importa se o autor utilizou uma
figura teatral preexistente: importa a nova contribuição tra-
zida. Ligúrio acredita apenas na própria inteligência, na sua
capacidade de resolver, através do intelecto, todos e quais-
quer problemas que surjam. Jamais confia no acaso, na boa
fortuna ou no destino, como Calímaco; confia apenas nos es-
quemas que pensa e preestabelece, e depois metodicamente
executa. Em nenhum momento passa-lhe pela cabeça qual-
quer pensamento ou preocupação de ordem moral, a não ser
quando medita sobre a maldade dos homens. Medita sem ne-
nhum lamento, mas apenas com muito sentido prático e utili-
tário. Medita friamente, como o faria o próprio Maquiavel,
Mandrágora é uma peça típica da transição entre o sobre o bom ou o mau uso que se pode fazer da crueldade,
A teatro feudal e o teatro burguês, e seus personagens con· sem atribuir à crueldade em si qualquer valor moral. A este
têm, equivalentemente, tanto abstração como concreção. Ainda respeito, não deixa de existir um certo parentesco entre Ma·
não são seres humanos completamente individualizados e mui· quiavel e Brecht. Também este é capaz de escrever que às
tidimensionalizados, mas já deixaram de ser meros símbolos
vezes é necessário ".mentir ou dizer a verdade, ser honesto
e sinais. Sintetizam características individuais e idéias abstra- . ou desonesto, cruel ou piedoso, caridoso ou ladrão". A praxis
tas, conseguindo um perfeito equilíbrio.
No prólogo, Maquievel desculpa-se por ter escrito uma deve ser a única determinante do comportamento do homem.
peça de teatro, gênero leviano e pouco austero. Parece acre- Ligúrio não possui uma forma particularmente sua de agir,
ditar que deve simplesmente entreter os espectadores, fazen· úma forma pessoal. E um camaleão. Dada a profissão que
do-os pensar o mínimo possível e deliciando-os com histórias escolheu, sabe que deve acomodar a sua personalidade a vá·
de amor e galanterias. Por isso, utilizou-se de um jocoso rias formas diferentes, de acordo com as conveniências dita-
caso de adultério e continuou pensando as idéias sérias e das por cada situação particular e por cada objetivo a ser
graves que o preocupavam. atingido. Conversando com o doutor, é requintado, procurao·
Maquiavel acredita que a tomada do poder (ou a con- do fazer com que Messer sinta-se um homem viajado, pro-
quista da mulher amada) só pode ser atingida através de ra- fundo conhecedor dos homens e das redondezas de Florença.
ciocínio frio e calculador, isento de preocupações de ordem Com Calímaco, faz-se passar por seu amigo desinteressado,
moral e voltado unicamente para a factibilidade e a eficácia pronto a ajudá-lo no seu maior anseio. Piedosamente, ajuda
do esquema a ser adotado e desenvolyido. Esta é a idéia cen· Frei Timóteo na sua incansável busca de Deus e de melhores
trai da peça, e divide os personagens e~ dois grandes grupos:
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condições financeiras. Para melhor se entender Ligúrio, seria Timóteo assimila as novas verdades, aceita os novos costumes,
aconselhável uma leitura, rápida que fosse, de Dale Camegie adapta-se à nova sociedade. No .mesmo livro,. gu~da os. sa,ntos
e Napoleon Hill, autores americanos modernos que ensinam ensinamentos da Bíblia e as fmanças eclestásttcas. Timoteo,
a arte de subir na vida. como mais tarde Lutero, já acredita que o livro santo pode
e deve ser diversamente compreendido, de acordo com cada
Frei Timóteo, porém - ao contrário de Nícia - , tam-
bém é um virtuoso, e h.mito cedo compreende Ligúrio, com caso específico e individual. Não deve existir uma í?te.rl?re-
tação dogmática, que tenha, objetivamente, o mesmo Significa-
ele contraindo enorme intimidade, para proveito de ambos. do e valor para todos. Cada um de nós d~ve entrar em con-
Os dois executam um plano no qual procuram afastar qualqu~r tato direto com Deus e seus santos ensmamentos, e nesta
interferência da corte, e no qual intervém apenas o conhect- subjetiva relação homem-Deus encontrare~os mais facilmen-
mento que ambos possuem dos homens reais, exatamente com? te a felicidade de que tanto carecemos, asstm na Terra como
são. Ligúrio sabe que os homens são maus, porque se afei- no Céu. A Bíblia passa a servir unicamente para socorrer o
çoaram demasiadamente ao dinheiro, o denomin~~or ~mu~ frade, para explicar e apoiar as suas decisõe~. J?~sta forma,
de todos os valores morais. De posse deste util conheci-
o procedimento ingênuo das filhas. de Lot vem JU St~ficar o a~ul~
mento, Ligúrio sabe que será bem sucedido em qualquer tério de Lucrécia. Em todas as coisas deve-se consrderar o ftm.
empresa, desde que não dê nenhuma impo~â~cia aos valores o fim de Lucrécia é preencher uma vaga no Paraíso e isso
fingidamente prezados, como a honra, a dtgmdade, a lealda- é o que conta. Se, para tanto, necessita trair o marido, P,ouco
de e· outras interessantes virtudes medievais. Tudo pode ser importa: importa apenas a pequena alma que será dada a luz
traduzido em florins. O esquema de Ligúrio não é maldoso, e a Deus. Moisés não deixaria de surpreender-se com esta
nem imoral, nem perverso: é apenas um esq~em~ inteligente furiosa interpretação do seu texto ...
e prático, e único capaz de realizar a proeza mcnvel e q~ase
impossível de conquistar Madonna Lucrécia, a honrada, a Este amoralismo de Timóteo tem sido questionado com
piedosa, a insensível aos prazeres carnais, - pelo menos ela base num único monólogo no qual ele se confessa arrependi-
reza bastante para acreditar nisso! - a distante, a recatada, do, afirmando que as más companhias são capazes de l.evar
aquela diante de cuja honestidade e retidão até os criados e um bom homem à forca. Acreditamos, entretanto, que Timó-
servidores ficavam temerosos. Tudo é possível neste mundo, teo não sente a consciência culpada ou o coração pesado, nem
desde que se conte sempre com a realidade dos homens, sem nada do gênero. Para nós, Timóteo nã? está apreensiv? pel?s
exaltá-los, sem execrá-los, sem louvá-los ou censurá-los~ ape- pecados que possa ter cometid~, ;n.as stmplesme~e mu1~? tns-
nas considerando-os como verdadeiramente são, e disso tiran- te por ter sido enganado por Lrguno. Ambos havtam fetto um
do partido. contrato pelo qual o frade · receberia a quantia de trezentos
ducados: Porém, esse contrato não previa a nece~s.idad~ do
Frei Timóteo, por sua vez, não é um frade corrupto, cobi- disfarce com que enganava mais uma vez Messer Ntcta; Timó-
çoso, mas ..sim o símbolo de uma nova mentalidade religiosa. teo lamenta ter sido ludibriado na sua boa-fé e ter que pagar
Se o mundo renascentista se mercantilizava em todos os seus mais do que estava combinado. Muito satisfeito ficaria se a
setores (e é conveniente lembrar que até frei Luís de Leon sua cota em florins fosse aumentada, mesmo que se aumen-
compara as mulheres às pedras preciosas, não pelos seus valo- tasse também o número de pecados que devia cometer.
res espirituais, mas pela simples possibilidade que têm de serem Nesta trajetória do Céu à Terra, todos os valores ater-
entesouradas), também assim o nosso frade admite que a Igre-
rissaram. Até o próprio Deus humanizou-se. Para Timóteo,
ja, para sobreviver, necessita contabilizar-se. Timóteo pensa
Ele deixou de· ser o Deus distante, atingível unicamente atra-
desta maneira, não por má-fé, mas porque compreende a na-
tureza dos novos tempos, e há que progredir ou desaparecer. vés de preces fervorosas. Timóteo conversa com Deus colo-

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quialmente, se bem que assumindo ainda uma posição subal- No seu momento crucial no segundo ato, Nícia .apenas consente
terna, exatamente como se Deus fosse o dono de uma firma que a mulher se deite com um estranho, unicamente porque
comercial na qual o frade desempenhasse as funções de ge- assim também o fizeram alguns nobres exemplares, como o
rente. Timóteo, nos seus monólogos, presta contas ao pro- rei da França e tantos outros fidalgos que há por lá. A cena
prietário da gerência dos seus negócios terrenos. Timóteo é o é admirável. A um só tempo Nícia sofre terrivelmente com o
símbolo da Igreja que faz sua entrada triunfal na era mercan- adultério consentido e sente-se feliz com a prespectiva de ter
tilista. Ao entrar, porém, não despreza nenhum dos elementos um herdeiro, imitando a nobreza francesa. Sente-se nobre, em-
encantatórios dos rituais ~-adicionais, da meiguice paternal que bora lhe doa a testa. Ligúrio manobra Nícia à sua vontade,
deve caracterizar os membros do clero, a fim de lhes facilitar utilizando-se dele até com certa simpatia, diante de tamanha
o melhor desempenho das suas funções. A grande teatralida- vontade ingênua.
de do frade deve-se precisamente a esta dicotomia: fala da ma- Lucrécia é o fiel da balança. Antes de conhecer Calíma-
neira mais espiritual possível nos momentos em que trata dos co conduzia sua vida de maneira exemplar, qu~ só poderia
assuntos financeiros mais materiais possíveis. Maquiavel ob- ser elogiada por Frei Luís de Leon (A Perfeita Casada) ou
tém assim um efeito energicamente desmistificador, que muito por Juan Luís Vives (Instrução à Mulher Cristã). Ela era o
conserva do processo hiperbólico aristofanesco, ou de seus dis- próprio símbolo desejado por .esses dois escritores. Passava
cípulos mais recentes, Voltaire e Arapuã. Todos estes autores o tempo lendo a vida dos santos mais puros c castos, deixando
desmistificam, cada um no seu setor, as verdades "eternas". de lado até mesmo aqueles que tiveram seus pecados perdoa-
Mas não o fazem através do tradicional processo de negá-las, dos. Guardava os tesouros do marido, jamais ousando dar uma
mas sim afirmando-as e tornando-as insustentáveis pelo exces- espiadinha pela janela entreaberta, gradeada. Lucrécia, sobre-
so de afirmação. Tornando-as absurdas. Ainda restaria acres- tudo, orava. E quanto mais o seu corpo sentia a falta de algu-
centar, ao rol dos personagens virtuosos, a mãe de Lucrécia, ma coisa indescritível, tanto mais fervorosa ela se tornava.
Sóstrata. Esta é uma espécie de virtuosa aposentada. Muitas, como ela, assim viveram e morreram, sentindo angus-
Foi, na sua distante juventude, uma respeitável e digna tiantemente a falta de algo impreciso. Lucrécia também acre-
dona de bordel. Isso, porém, em nada desencoraja o seu ca- ditava que o que lhe faltava era o suave bafejo dos anjos, a
ráter impoluto, a sua delicadeza afeita aos bons costumes da carícia e o leve roçar · do bafo dos habitantes do Paraíso. A
corte. Principalmente agora, que é uma mulher enriquecida. Lucrécia só lhe faltava morrer para que sua felicidade fosse
O seu comércio em pouco ou em nada difere de qualquer completa. Ou, então, faltava-lhe Calímaco; este não havia. de
outro tipo de comércio, apresentando inclusive algumas van- tardar.
tagens interessantes: os produtos comerciáveis eram as suas Como idéia, ela representa, no começo da peça, a abs-
próprias operárias, o que possibilitava um animador aumento tração medieval da mulher honrada e pura. A sua doce tran-
da mais-valia que delas se podia auferir ... sição representa o aparecimento da mulher renascentista, mais
O not~o Nícia é um dos personagens mais cativantes afeita às coisas terrenas, mais com os pés em cima da terra.
de toda a história do teatro. Enriquecido com o desenvolvi- Representa, como diria Maquiavel, a diferença entre "como
mento da vida citadina, lamenta morrer sem ter um herdeiro se deveria viver e como realmente se vive." Porém, mesmo
a quem deixar sua fortuna avaramente escondida. Nícia, como a depois de operada a mudança milagrosa ela continua pen-
maioria dos burgueses, gostaria de ter nascido príncipe ou sando 110 Céu, e não abdica de nenhum dos valores antigos:
conde, ou, pelo menos, um simples barãozinho. Como tal infe- simplesmente passa ·a utilizá-los de uma forma mais prudente
lizmente não aconteceu, ele quer fazer com que o seu com- e agradável. Aceita os novos prazeres, fruídos mais pelo corpo
portamento se assemelhe, no que for possível, ao dos nobres. do que pelo espírito, e neles não vê pecado, mas simples obe-

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diência à vontade divina: "Se isto me aconteceu s6 pode ter sido é bastante divulgada e aceita. Disêordamos frontalmente, como
por determinação de Deus e não me sinto com forças para discordaríamos de quem afirmasse que a novela radiofônica,
recusar aquilo que o Céu quer que eu aceite''. dada a sua peculiar ·violência emocional, é uma forma válida
Os demais personagens, a Viúva e Siro, são menos sig- de arte popular. Acreditamos, ao contrário, que a caracte-
nificativos. A primeira serve quase que exclusivamente para rística mais importante do teatro que se dirige ao povo deve
caracterizar, logo na sua primeira cena, a peculiar maneira de ser a sua clareza permanente, a sua capacidade de, sem ro-
pensar do frade e a sua capacidade de tudo traduzir em ter- deios ou mistificações, atingir diretamente o espectador, quer
mos de dinheiro. Quando a Viúva lhe pergunta se os turcos na sua inteligência, quer na sua sensibilidade. A Mandrágora
invadirão a Itália, freil Timóteo, sem hesitar, responde que atinge o espectador inteligentemente e, quando consegue emo-
tudo depende das orações e missa que ela mandar rezar. cioná-lo, ela o consegue através do raciocínio, do pensamento
As orações são gratuitas, porém as missas são bem pagas. A e nunca através da ligação empática, abstratamente emocio-
Viúva paga missas para que os turcos não invadam a Itália, nal. E aqui reside a sua principal qualidade. popular.
paga missas que façam seu inesquecível marido saltar do Pur-
gatório ao Paraíso, paga, enfim, para que lhe sejam perdoa~
dos os pequenos pecadilhos causados pelo fato que a carne é
fraca e não há espírito forte que a dome.
Quanto a Siro, pouco mais é do que o tradicional cria-
do, que tudo faz pelo bem-estar dos patrões, cuidando dos
seus interesses e provendo para que se realizem bem os seus
planos. E o personagem menos desenvolvido da peça, servin-
do apenas no que diz respeito à parte técnica, ajudando Ca-
lím~co a contar à platéia os antecedentes da história.
Acreditamos que qualquer encenação desta peça deve
manter sempre uma linha de total clareza e sobriedade de
meios. Não se deve esquecer nunca que este texto foi escrito
por. Maquiavel e que Maquiavel tinha alguma coisa importante
a dizer.
A utilização de uma simples história de amor e de per-
sonagens como Nícia, Lucrécia, Sóstrata e os demais é pu-
ramente .circ~nstancial, servindo apenas para apresenta;, numa
f~rma divertida .e teatral - numa forma figurada - o fun-
ctonamento prático do homem virtuoso. A liberdade do ence-
nador diminljj na medida em que aumenta a precisão concei-
tual do drámat~rgo. O diretor de Maquiavel necessita ser
claro ao traduzir teatralmente as suas idéias.
A Mandrágora é, t~mbém, uma;das experiências mais bem
logradas de dramaturgia popular. Acredita-se, convencional-
mente, que o teatro popular deve aproximar-se sempre do cir-
co, quer como texto, quer como interpretação. Esta opinião

80
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\

~ue o personagem possa ser caprichoso e fazer o que lhe


na veneta: "liberdade é a consciência da necessidade ética".
comportamento do personagem, no drama, é sempre um
mportamento étic~ Ele porém não deve exercer a sua liber-
e sobre o que for puramente acidental ou episódico, mas
apenas sobre as situações e os valores comuns a toda a hu-
manidade ou à nacionalidade: "os poderes ete""nos, as verda-
IV- Modernas reduções da ~irfu des mais", como, por exemplo, o amor, o amor filial, o patrio-
tismo etc.
Desse modo, Hegel consegue fazer com que o personagem
passe a incorporar um princípio ético, e a sua liberdade consis-
te unicamente em traduzir esse . princípio, em concretizá-lo na
vida real, no mundo exteriort'l'""õs valores moi:ais, abstratos,
adquirem porta-vozes concretos, que são os personagens. E!Q_
se trata mais do teatro feudal em que a Bondade era um ~rsq;
nagem chamado exatamente Bondade: agora ela se chama
Fulano ou Sicranõ. Porém, Bondaae- e Skrano são uma e a
mesma coisa, embora diferentes: um é o valor abstrato e o
/ a burguesia, no seu ímpeto inicial, tenha levado
outro a sua concreção humana. Esses personagens, portanto,
incorporam imanentemente um valor "eterno", uma verdade
T longe demais
ALVEZ
as fronteiras do teatro. O homem por ela ins- "moral", ou sua antítese. ~ra que hai.<!_c!_rama, no~anto, é
taufado ameaçava expandir-se. O próprio drama shakespearia- ~sário _que haja conflito._:Logo, os personagens que incor- "
no, embora ainda fortemente limitado, podia servir como faca poram esses valores entram em chogue com os personagens que
de dois gumes, abrindo novos caminhos que não se sabia bem mcorpor'!,m_as sua~ít~ês:"_.A ação dramática é o resultado
aonde poderiam conduzir. A burguesia cedo deu-se conta desse ~s P~~rip~çias advüldJ!s dessas lutas.
fato e, na medida em que assúmiu o poder político, iniciou a
tarefa de desarmar o teatro das armas que ela própria lhe dera, A ação, segundo Hegel, deve se.r cotiêiuzida a um de-
) terminado ponto onde possa ser restaurado o equilíbrio. O
em seu benefício.. Maquiavel propunha a libenação do homem
drama deve terminar em repouso, em harmonia (ainda esta-
de todos os valores morais. Shakespeare seguia à risca essas
\ instruções, embora sempre se arrependesse no quinto ato e res- mos bem longe de Bertolt Brecht que afirma o exato oposto).
taurasse a legalidade e a moral. Era necessário que surgisse · Como, porém, poderá esse equilíbrio ser atingido, senão atra-
l alguém que, sem renegar a liberdade recém-adquirida pelo per-
sonagem dramático, pudesse impor-lhe certos limites, teorizan-
vés da destruição de um dos antagonistas que conflituam? É
necessário que o sistema de forças tese-antítese seja levado a
um ponto de síntese e isto, em teatro, só pode ser feito atra-
do uma fórmula que lhe preservasse a liberdade formal, embo-
ra fazendo stfnpre prevalecer a verdade dogmática, preestabe- vés de duas maneiras: morte de um dos personagens irrecon-
lecida. Esse alguém foi Hegel, ciliáveis (tragédia) ou arrependimento (drama romântico ou
social, segundo o sistema hegeliano).
Hegel afirmava que o personagem é livre, isto é, "os mo-
vimentos interiores da sua alma devem sempre poder ser exte- Porém, e é ainda Hegel quem afirma, o drama, como
riorizados, sem peias nem freios". Porém ser livre não signifi- qualquer outra arte, é "o luzir da verdade através dos meios

82 83
sensoriais de que dispõe o artista". Como, porém, poderá a Procuravam-se, assim, resolver no campo do espírito os
verdade luzir se o personagem portador da verdade "eterna" problemas que os homens enfrentavam no campo social. To-
for destruído? Não. E necessário que o erro seja punido. O dos, indistintamente, podiam aspirar à perfeição espiritual,
personagem que incorpora a mentira deve morrer ou arre- mesmo que fossem pobres como Jean Va1jean, deformados
pender-se. Hegel poderia admitir, quando muito, a morte do como Rigoletto, ou párias com Hernani. Os homens, embora
herói concreto, do homem real, desde que, através dessa ca- famintos, devem preservar essa coisa bela que se chama li-
tástrofe, luzisse com maior brilho a 'verdade que ele portava. berdade espiritual. Quem o diz, com palavras mais lindas,
E isso freqüentemente acontecia no romantismo. certamente, é Hegel, é Victor Hugo. Esta foi a primeira grave
O romantismo é, sem dúvida, uma reação contra o mun- redl!Ção imposta ~o ho~ no te~tro: ele passo~ a ~er _equa-
do burguês, porém apenas contra o que ele tem de exterior, .... cionado em _relaçao aos valores d1tos eternos e 1mutave1s .
de acidental. Lutav~, aparentemente, contra os valores bur- O realismo, embora tão louvado p()r Marx, representou
gueses. Mas o que propunha em troca? :E: Hegel quem res- a segunda grande redução: o homem_p-ªssou ~ s~r Q. produto
poriâe: o Amor, a Honra, a Lealdade. Isto é, os mesmos va- ( dir~o do seu meio ambiental. É verdade que não assumiu,
lores da cavalaria. Um retomo mal disfarçado às abstrações nas mãos dos seus pnmelrõs cultores, as proporções esterili-
medievais, agora num teatro formulado com maior precisão zantes que veio a assumir mais tarde. Claro está que Marx
teórica e complexidade. nem sequer podia suspeitar o que fariam Sydney Kingsley,
O romantismo reeditou o tema feudal do Juízo Final, ou Tennessee Williams e outros,. modernamente.
melhor, da recompensa pós-terrena. Não têm outro significado A principal limitação realista consiste em apenas cons-
as falas finais de Dona Sol, em Hernani, que, ao morrer, fala tatar uma realidade que já se supõe conhecida. Do ponto de
do vôo maravilhoso que os dois apaixonados empreenderão, na vista naturalista, a ohra de arte será tão melhor na exata me-
morte, à procura de um mundo melhor. A verdadeira vida e a dida em que melhor logre reproduzir a realidade. Antoine
ver8adeira felicidade não é possível. :E: como se dissessem: levou esta premissa às últimas conseqüências, desistindo de
"Este mundo é por demais nojento e abjeto. Aqui só podem reproduzir a realidade e levando a própria realidade ao palco:
ser felizes os burgueses com seus interesses mesquinhamente num dos seus espetáculos utilizou carne verdadeira num ce-
materiais. Deixemos aos sórdidos dos burgueses a sua sórdida nário que representava um açougue.
felicidade e o seu sórdido dinheiro que apenas compra sórdi- ' Zola, expondo a sua célebre teoria de que o teatro deve
dos prazeres: nós seremos eternamente bem-aventurados. Sui- mostrar "uma fatia da vida", chegou a escrever que o dra-
cidemo-nos, pois!" Nenhum burguês ficaria seriamente ofendi- maturgo não deye tomar partido, mostrando a vida exatamen-
do com tais propostas. te como ela é, -não sendo, sequer, seletivo. A vulnerabilidade
O romantiS.!IlQ poderia ser considerado apenas como um desta argumentação é tão óbvia que nã() se torna necessário
canto do cisne da nobreza feudal, se não p9ssuísse também demonstrar que a própria escolha do telll.a, da história e dos
um caráter marcadamente ~ador e alienador. Arnold personagens já significa uma tomada de posição por parte do
Hauser analisa o verdadeiro significado do Roman d'un leune autor. A afirmação de Zola tem, no entanto, a importância
Homme Pauvre, mostrando que Octave Feuillet procura incul- de mostrar o beco sem saída onde foi ter : o!?Jetividade natu-
car no leitor ;-idéia de que um homem, mesmo pobre e mise- ralista: a .m:.ópria ~ealidade fotográfica. AI m desse ponto não
rável, pode e deve possuir a verdadeira dignidade aristocráti- ~síYel, obje.tiYarpepte, prosseguir. Mas havia o caminho
ca, que é enssencialmente espiritual. As condições mat~...IÍ-ªÍs_da ~rso: _ a ~suh1~.ti.VM!O~C~nte: ramais, depois de Shãkes-
:vida de cada um pouco importa.:!ll: os valore~o os mesmos peare, o homem foi mostrado multidimensionalmente no pal-
~óâõs ós homens. co. Quando cessou o movimento objeti'lt'o, iniciou-se a série
' - ...
84 85
de estilos subjetivos: impressionismo, expressionismo, surrea-
lismo. Todos eles tendentes a restaurar uma liberdade, porém já descoberto o Deus-Sputinik, o Deus-Cinturão Magnítico, e
meramente subjetiva. Surgiram as emoções abstratas, o medo, outros habitantes do moderno e científico Olimpo.
o terror, a angústia. Tudo na cabeça do personagem que pro- A burguesia descobriu recentemente, talvez ajudada pelas
jetava exteriormente o seu mundo fantasmagórico. estatísticas de Hollywood, o enorme poder persuasivo do tea-
O próprio realismo procurou caminhos dentro do ho- tro e das artes afins. Citamos Hollywood e gostaríamos de dar
mem, explorando a psicologia, porém nem aí foi mais feliz. um exemplo: no filme Aconteceu Naque~a Noite, em deter-
~-Q homem a equ~es psico-algébricas. Para se dar minada cena, o ator Clark Gable tira a camisa e revela que
conta do que aconteceu, basta lembrar algumas das últimas não usa camiseta. Isso foi o bastante para levar à .falência vá-
produções de Williams e outros autores de sua escola. A re- rias,.4ábricas americanas desse artigo, que deixaram de . ter
entre os seus clientes os membros ' dos vários Clark-Gable-fã-
ceita varia pouquíssimo: juntando-se um pai que abandona a
-clubes, ávidos de imitar o ídolo.
mãe logo após a nascimento do primogênito, com uma mãe
que se dá ao vício da embriaguês, certamente obteremos um O teatro, no entanto, influencia os espectadores não ape-
personagem cuja tara deverá ser um tipo qualquer de sado- nas no que se refere à indumentária, como nos valores espi-
masoquismo generalizado. Se a mãe é infiel - a matemática rituais que lhes pode incutir; através do exemplo. Surgiu assim
não falha - o filho será um delicado invertido sexual. um novo tipo de peça e de filme "exemplar" , que procura
reiterar alguns valores consagrados da sociedade capitalista,
:B lógico que qualquer evolução a partir dessas equações _como, por exemplo, a arte e a faculdade de subir na vida,
só poderia ser uma, e Tennessee Williams, autor dotado de através da livre iniciativa. São peças e filmes biográficos
grande talento, não podia deixar de segui-la: a mastigação li- que mostram a trajetória fulgurante de determinados cida-
teral dos órgãos sexuais do protagonista. Não · deixa de ter dãos que galgaram as escadas da fama e da fortuna, partindo
umá certa originalidade. . . Ir além, só entrando para um con- das condições de vida mais humildes. "Se J. P. Morgam amea-
vento, e cremos que Williams, cedo ou tarde, não deixará de lhou tão considerável fortuna, iates, mansões, etc. por que você
fazê-lo. não poderá fazer o mesmo? Claro que você também podê. A
O teatro,_ modernament~,-P-!9CJ!!PUJeguir-tamh6nl _os des- sua única obrigação é respeitar as regras do jogo". Isto é,
ca~~ do inis_!!ci~rp...Q; a procura de Deus como fu~os do jogo capitalista.

-
problemas materiais. Eugene O'Neill, mais de uma vez afir-
mou nao .
- estar mteressado nas relações dos homens entre si,
' . Disse Marx gue todos os fatos históricos ac.o.ntecem~pelo
menos ~e3~~-ª~-Prirneir,a COlllP _.tragédia,_a_s~gu....mf.ª-.~~.9
mas tao-somente nas relações do homem com Deus. Na falta ~ . Foi o que aconteceu com a obra de Maquiavel. Os
de Deus, O'Neill interessa-se pelos poderes misteriosos e sobre- seus escritos tinham um sentido de profunda gravidade. Jã
naturais que nos circundam e que não sabemos explicar. Os · os seus discípulos americanos de hoje, inspiradores dessa
fenômenos explicáveis parecem não interessá-lo. Seus · olhos linha exemplar do teatro e do cinema - Dale Carnegie e
estão "além do horizonte", em busca de trágicos destinos, ou outros - não podem jamais evitar a comicidade de que ine-
à espera e à espreita do aparecimento de novos deuses. En- vitavelmente envolvem seus conselhos, expressos em livro do
quanto Eles não vêm, O'Neill vai fabricando os próprios, para tipo How to make your wife keep on loving you tenderly,
uso caseiros.. Nã6 é isso. o que acontece em Dínamo? O drama- even after she's got a lover who's a much better guy than you
turgo quase se projeta no terreno da science-fiction. Se aind:l are. • . Se o leitor perdoar a quase despropositada compara-
\ivesse eT da mesma forma que descobriu o Deus-Dínamo, teria ção, diríamos que, no entanto, tanto Maquiavel como Date
Carnegie pregam o célebre slogan "Querer é Poder" ...
86 \
87
A mais recente e a mais severa redução do homem, con- Esta foi a trajetória desenvolvida pelo teatro desde o
tudo, é a que vem sendo realizada pelo antiteatro de Eugene surgimento da moderna burguesia. Contra esse teatro deverá
Ionesco, que procura retirar do homem até mesmo a sua ca- surgir um outro, determinado por urna nova classe, e que dele
pacidade de comunicação. O homem torna-se incomunicável, divirja ·não apenas em caracteres estilísticos, mas de forma
não no sentido em que lhe é impossível transmitir as emo- muito mais profundamente radical. Esse novo teatro, mate-
ções mais íntimas ou as nuanças de seu pensamento, mas rialista dialético, será forçosamente também um teatro de abs-
literalmente incomunicável. Tanto assim que todas as pala- trações, pelo menos, em sua fase inicial. Não mais apenas
vras podem ser traduzidas numa só: chat ("Jacques ou a abstrações superestruturais, mas também infra-estruturais. Seus
Submissão"). Todos os conceitos valem chat. Ionesco decla- personagens ainda revelam, em algumas peças de Brecht, a
ra este absurdo co~ muita graça e nós - burgueses e peque- sua condição de simples objetos. Objetos de funções sociais
nos-burgueses - nmos bastante. Mas já não o achariam tão determinadas que, entrando em contradiçãe, desenvolvem um
engraçado, operários à espera de um pronunciamento das clas- sistema de forças que determina o movimento da ação dra-
ses patronais quanto à necessidade de um imediato aumento mática.
dos níveis salttriais, (\ue recebessem em resposta um discurso Trata-se de um teatro que mal acaba de nascer e que,
como aquele que encerra a peça As Cadeiras, pronunciado embora rompendo com todas as formas tradicionais, ainda
por um mensageiro mudo. Ou se lhe dissessem que "aumento não teve os seus fundamentos teóricos suficientemente bem
de salário" é chat, "miséria" é chat, "fome" é chat, tudo é formulados. Só a prática constante fará surgir a nova teoria.
chat.
Esta tentativa .de análise e estas objeções não significam
q~ue _Pretendemos ~f~rmar que estes autores carecem de impor-
tãncta. Pelo contrano, acreditamos que eles são extremamente
significativos, por serem justamente as testemunhas da fase
final da so~ie~a?e e do teatro burgueses. São eles que con-
cluem a traJetona deste teatro, quando o homem multidimen-
sionalizado é submetido a reduções que o transformam por ~
completo em novas abstrações, quer sejam elas de ordem psi- Y
cológica, moral ou metafísica. Neste sentido, Ionesco leva a
palma a todos os seus demais companheiros, na ingente ta-
refa de desumanizar o homem. Foi ele quem escreveu o últi-
mo personagem burguês, Béranger, à volta do ~qual todos os
personagens vão gradativamente se transformando em rino-
cerontes, ou seja, em abstraç_ões. No que se terá transforma-
do este último representante da espécie humana, último e
ú.nico, quando todos os demais já desapareceram, se não pre-
Cisamente na abstração da espécie humana? Béranger nada
mais é do que a negação do rinoceronte, e portanto, ele pró-
prio, um não-rirfoceronte alienado! Ele não possui qualquer
outro conteúdo, além da simples negação.

88 89
3

Hegel e Brecht: Pe.rsonagem-Sujeito


ou Personagem-Objeto?
..
Conceito do "Épico"

MAIOR dificuldade para compreender as extraordinárias


A transformações que sofre o teatro, com a contribuição do
pensamento marxista, consiste na deficiente utilização de cer-
tos termos. Justamente porque essas gigantescas transforma-
ções não foram imediatamente percebidas, as novas teorias
foram explicadas com o velho vocabulário: para designar no-
vas realidades se utilizaram velhas palavras, tentou-se utili-
zar novas conotações para palavras já cansadas e exaustas por
suas velhas denotações.
Tomemos um exemplo: que quer dizer "épico"? No co-
meço, Bertolt Brecht chamou seu novo teatro com essa velha
palavra. Aristóteles, é verdade, não fala de teatro épico, mas
sim de poesia épica, de tragédia e de comédia. Estabelece di-
ferenças entre poesia épica e tragédia que se referem ao verso,
para ele necessariamente presente nas duas formas, a duração
da ação e finalmente ao que é mais importante, ao fato de que
a poesia épica é formalmente narrativa, ao contrário do que
acontece com a tragédia. Nesta, a ação ocorre no presente; na-
quela, a ação, ocorrida no passado, é agora recordada. Aris-
tóteles acrescenta que todos os elementos da poesia épica se
encontram na tragédia, mas nem todos os elementos da tragé-

93
g~ Na verdade, toda a Poética de Brecht é, basicamente,
dia são encontráveis na · poesia épica. Fundamentalmente uma resposta e uma contraproposta à Poética idealista hege-
ambas "i~ita~" as ações de personagens de "tipo superior"., Jiana. Quero que isto fique claro: a poética de Brecht não é
Erw10 Ptscator, contemporâneo de Brecbt, utiliza um con- uma categoria (épica) de uma poética anterior, mas se cons-
ceito complet~mente diferen.te do "épico": faz um teatro opos- titui, ao contrário, em uma poética inteiramente nova que
to ao precomzado. por Anstóteles e usa, para designá-lo, a inclui (como a de Hegel) os gêneros lírico, épico e dramáti-
mesma palavra. Ptscator utilizou, pela primeira vez em um co. A confrontação central entre estas duas Poéticas (hege-
e~petáculo teatra~, o cinema, os slides, os gráficos de uma infi- liana e brechtiana) se dá no conceito de liberdade do perso-
mdade de ?Iecamsmos. e recursos extrateatrais que podiam aju- nagem, como já veremos: para Hegel o personagem é inteira-
dar a exphcar a real~dade verdadeira na qual a peça se ba- mente livre quer se trate da poesia lírica, épica ou dramática;
seava. Esta absoluta hberdade formal, com a inclusão de qual- para Brecht (e para Marx) o personagem é. objeto de forças
~uer elem~nt~ até e~tão ins~lito era chamada por Piscator
sociais.
form~ éptca . E.sta tmensa nqueza formal rompia a ligação Para que se entenda o que significa "épico" para Hegel
empáttca convenciOnal e p,roduzia um efeito de distanciamento· é necessário lembrar iniciahnente que, dentro do seu "Siste-
este efeito. foi ?epois aprofundado por Brecht, e já o estuda~ ma das Artes", ele atribuiu importância fundamental ao maior
remos ma1s adtante. Quando Piscator montou As Moscas, de ou menor grau em "o espírito se liberta da matéria" Para
Sartre, em Nova York, para que nenhum espectador deixasse
de entende~ que Sa~t~e estava falando da França ocupada pelas
ex~licá-lo melhor, digamos que Arte, para Hegel, ~ra "o
ltlZir da verdade através da matéria". Por isso, dividia as
forças naztstas, ex1btu, antes do espetáculo, um filme sobre artes em simbólicas, clássicas e românticas. Nas primeiras pre-
a guerra, sobre a ocupaçã(1, a tortura e outros males do ca- domina a matéria e o espírito é muito pouco visível. Neste
pitalismo. Piscator não queria permitir que se pensasse que a caso está, por exemplo, a arquitetura. No segundo caso, o
o~r.a tratava dos gregos, que eram aqui simples elementos sim- 1 espírito já se liberta um pouco mais da matéria e consegue
bohcos de uma fábula que contava coisas pertinentes do mundo o equilíbrio; é o caso da escultura: o rosto de um homem,
atual. sua fisionomia, sua expressão, seu pensamento, sua dor, con- ·
---
~ Hoje em dil a palavra "épico" está outra vez de moda
m u?Ia nova ~cepção,, e~ relação . a certos filmes sobre o
seguem transparecer através do mármore. Finalmente, as artes
chamadas românticas são aquelas em que o espírito se con-
1 assass10ato mac1ço de md10s pelos tanques, ou filmes sobre segue libertar completamente da matéria. Neste caso está a
a guerra expansionista norte-americana contra o México. Em poesia. A matéria da poesia são as palavras e não o cimento
r~~umo, filmes a "céu aberto". Esta é a concepção mais fre- ou o mármore. Por isso, o espírito pode alcançar, na poesia,
I quente ~ue tem a palav~a: um filme com muitos 'personagens, refinamentos impossíveis na arquitetura, onde pesadamente pre-
com muitos cavalos e tiros e lutas e ocasionalmente algumas domina a matéria, a pedra, a terra.
c:oas de amor, no m~io de mortes, sangue de ketchup, viola-
çoes e estupros, tudo tsso embrulhado num pacote para maio-
res de 18 anos. G~NEROS DA POESIA EM HEGEL
Em todas estas acepções, a palavra épico tem a ver com
tudo que seja amplo, exterior, objetivo, a longo prazo, etc. Para Hegel, a poesia épica é ~quela que apresenta "o
Também na acepção de Brecht a palavra tem estas caracte- mundo moral sob a forma de realidade exterior". Para ele,
rísticas e algumas outras. tudo o que acontece é determinado por poderes morais, "se-
Brecht usa a expressão "teatro épico" principalmente em jam divin0s ou humanos, e os obstáculos exteriores que se
contraposição à definição de "poesia épica" que nos dá He-
95
94
lhes opõem, retardando sua marcha". Em. outras palavras: o e os personagens vivem um tempo distinto dos espectadores;
espírito de um Deus ou de um homem inicia uma ação na poesia · dramática , os espectadores são transporta dos à épo-
que se d~fronta com obstáculo no mundo--exterior: a poesia ca e ao lugar onde ocorre a ação, e ambos estão no mesmo
épica narra esses encontros e esses .çonflit~ do _ponto de_ tempo e lugar. Por isso, a empatia, a relação emocional pre-
vista da sua ocorrência no mundo exteríõf. e não ~o ponto sente e viva é possível apenas na poesia dramática e não na
de vista do espírito que lhe deu origem_;)'A ação toma a forma poesia épica. A poesia épica "recorda" e a poesia dramática
de um acontecer que se desenvolve livremente, e ante o qual se
obscurece a figura do poeta". O important e são os fatos e não "revive".
Vemos assim que na poesia dramática coexistem a obje-
'! subjeti_yidade do poeta que os conta, ou do personagem que tividade e a subjetivid a ·~ e. mas é important e notar que, para
os realiza. "A missão da poesia épica consiste em recordar tais
Hegel, esta precede aquela: a "1lma" é o sujeito que deter-
acontecimentos. Represent a assim o objetivo na sua própria
mina toda a ação exterior e interior. Como em Aristóteles,
objetividade", diz Hegel.
eram igualmente as paixões convertidas em atos as que
O poeta épico, ao contar como ocorreu tal ou qual ba- moviam a acão. Nestes dois filósofos, o drama mostra a
talha, deve descrever a batalha com o máximo possível de colisão exteri-or de forças originadas no interior, isto é,
detalhes objetivos, sem se preocupar. com a sua própria ma- o conflito objetivo de forças subjetivas. Para Brecht, como
neira particular de sentir esses fatos. Um cavalo deve ser des- já veremos, tudo acontece à inversa.
crito como um cavalo, objetivamente, e não através de ima-
gens subjetivas que o poeta possa imaginar quando vê um
cavalo.
CARACTERÍSTICAS DA POESIA DRAMÁTICA,
A poesia lírica é eX'citamente o oposto da poesia épica,
e expressa o "subjetivo, o mundo interior, os sentimentos, SEMPRE SEGUNDO HEGEL
as contemplações e emoções da alma". "Em vez de recordar
o desenvolvimento de uma ação, sua essência e finalidade con- Hegel pensa que temos a necessidade de ver os atos e as
siste em expressar os movimentos interiores da alma humana". relações humanas apresentados diante de nós ao vivo, de cor-
O important e na poesia lírica não é o cavalo em si mes- po pre~ ente. Mas, acrescenta, "a poesia dramática não se li-
mo, mas sim as emoções que o cavalo pode despertar no poeta. mita à simples realização de uma empresa que segue o seu
Não são importantes os fatos concretos de uma batalha cam- curso pacificamente, mas, ao contrário, se desenvolve essen-
pal, mas sim a sensibilidade do poeta estimulada pelo ruído cialmente em um conflito de circunstân cias, paixões e carac-
das espadas! A poesia lírica é completamente subjetiva, teres que leva consigo ações e reações, mais um desenlace
pessoal. final; assim, o que se apresenta à nossa vista é o espetácul?
móvel e contínuo de uma luta animada entre personagens Vl-
Finalmente, a poesia dramática , para Hegel, combina o ventes que perseguem desejos opostos, em meio a situações
princípio da objetividade (épica) com o princípio da subje- cheias de obstáculos e de perigos".
tividade (lírü::a): "o caráter objetivo da ação que é apresen- Sobretudo, Hegel insiste em um ponto fundamen tal que
tada diante dos nossos olhos e o caráter subjetivo dos moti- marcará sua profunda diferença com a poética marxista de
vos interiores, que movem os personagens e seu destino, que Brecht: "a ação não parece nascer de circunstâncias exterio-
só pode ser o resultado necessário de suas paixões e ações". res mas sim da vontade interior e dos caracteres dos pe~sona­
A ação não se apresenta como na poesia épica, como algo geos·" . Deste conflito surge o desenlace, que deve ser, como
já sucedido, mas sim como algo que ocorre no momento mes- a ação mesma, 'subjetivo e objetivo ao mesmo tempo'; depoif>
mo em que o estamos presenciando. Na poesia épica, a ação do tumulto de paixões e ações humanas, sobrevém o repouso".

96 97
to, se Hamlet tivesse medo da policia, dos advogados, dos
Para que isto possa ocorrer, é necessário que os persona· tribunais, dos promotores públicos, etc., talvez não exteriori-
gens sejam livres, isto é, é necessário que "os movimentos int~ zasse os livres movimentos do seu espírito matando a Polô-
riores da sua alma se possam exteriorizar livremente, sem nio, Laertes e Cláudio. E, segundo Hegel, o personagem dra-
freios e sem qualquer tipo de limitação". Em resumo, o per- mático necessita de toda sua liberdade! Caramba!
sonagem é sujeito absoluto de suas ações. 3. Convém esclarecer que a liberdade não se refere funda-
mentalmente ao aspecto "físico": Prometeu, por exemplo, é
um homem (perdão, um Deus!) livre. Está acorrentado em
LIBERDADE DO PERSONAGEM-S UJEITO uma montanha, impotente diante dos corvos que lhe vêm co-
mer o fígado, que todos os dias renasce para que no dia s~
Para que o personagem seja realmente livre é necessário guinte voltem os corvos para continuarem o banquete. Prome-
que a sua ação não seja limitada a não ser pela vontade de teu assiste impotente a este festim diário. Mas Prometeu pode!
outro personagem, igualmente livre. Hegel dá algumas expli- Tem poder suficiente para terminar com esse atroz castigo;
cações sobre o tema da liberdade do personagem sujeito: basta arrepender-se diante de Zeus, o Deus maior, e este o
perdoará. A liberdade de Prometeu consiste em que pode ter·
1 . o animal é inteiramente determinado pelo seu meio-am-
minar com seu próprio suplício no momento em que assim o
biente, e portanto não é Jivre, estando determinado por suas
desejar, mas livremente decide não fazê-lo.
necessidades básicas de comer, etc. Até mesmo o homem, em
certa medida, não é livre, porque possui igualmente uma parte Hegel conta também a história de um quadro de Murilo
animal. As necessidades exteriores que sofrem os homens, as que mostra uma mãe a ponto de bater em seu filho que, de-
necessidades materiais, são uma limitação ao exercício da sua safiante, continua comendo uma banana. A diferença de po-
liberdade. Por essa razão, os melhores personagens para a der físico entre a mãe e o fil:ho não impede que o menino
poesia dramática, segundo Hegel, são os que menos sentem tenha liberdade suficiente para enfrentar sua mãe mais po-
as pressões das necessidades materiais. Os príncipes, por exem- derosa. Por essa razão, pode-se escrever uma peça sobre um
plo, que não necessitam trabalhar fisicamente para ganhar o personagem que esteja na prisão, desde que ele tenha a liber-
pão nosso de cada dia, e que têm multidões de s~rvidores à dade moral de eleger.
sua disposição, que podem satisfazer suas necess1dades ma- Existem outras características que são importantes para
teriais, permitindo assim ao Príncipe que exteriorize livre- a construção de uma obra dramática:
mente os movimentos do seu espírito. . . Segundo Hegel, esc;a
multidão que cria ao Príncipe as melhores condições para 1 . a liberdade do personagem que não deve ser exerci-
~ que se converta em personagem dramático não pod~, ela mes- da sobre o acidental, o menos importante, o contingente, mas
ma, servir aos mesmos fins - não é bom matenal para o sim sobre o mais universal, o mais racional, o maii essencial, o
drama ... que mais importe à vida humana. A família, a pátria, o Estado,
a Moral, a Sociedade, etc. são interesses dignos do espírito
2 . uma sociedade altamente civilizada tampouco é a mais humano e portanto da poesia dramática.
indicada para oferecer bom material dramático, pois. os per-
sonagens devem aparecer como essencialmente livres, capazes 2. a arte em geral e a poesia dramática em particular tra-
de determinar seus próprias destinos, e os homens de uma so- tam de realidades concretas e não de abstrações: portanto, é
cidade desenvolvida estão atados de pés e mãos a todos os tipos necessário que o particular se veja no universal. A filosofia
de leis costumes, tradições, instituições, etc., e nesta floresta trata de abstrações, a matemática de números, mas o teatro
legal n'ão podem facilmente exercer sua liberdade. Com efei-
99
98

L
trata de indivíduos. :e pois necessário mostrá-los em toda sua _gero não é sl!i!ito @soluto e sim objeto de for.faS-econômicas,
concreção. • ou so~ais, às quaj§_r~ponde, e em virtude das quais atua. _
Se fizermos uma análise lógica da ação dramática tipi-
3. justamente porque são universai~ os inte~esses gerai~ c:om camente pertencente à Poética hegeliana, diremos que se tra-
que trabalha o teatro (e não, pelo contrán?! caractenst1c~s ta sempre de uma oração simples com sujeito, predicado ver--
idiossincráticas), essas forças motrizes do espmto humano sao bal e objeto direto. Exemplo: "Kennedy invadiu a Praia Gi-
eticamente justificáveis. Isto é: a vontade individual de ~m rón'\ Aqui o sujeito hegeliano é "Kennedy", cujos movimen-
personagem é a concreção de um valor moral ou de u~a opça? tos interiores do seu espírito se exteriorizaram de forma a
ética. Exemplo: o desejo concreto de Creonte de nao permi- ordenar a invasão de Cuba. "Invadiu" é o predicado verbal e
tir o enterro do irmão de Antígona é a concreção, em termos "Praia Girón" é o objeto direto.
de vontade individual da intransigência ética em defesa do Se fizermos agora uma análise lógica da ação dramática
bem do Estado; o m:smo pode dizer-se em relaç~o ~ vonta- segundo uma poética marxista, como a que propõe Brecht,
de férrea de Antígcna de dar sepultura a seu umao, que a frase que a explicaria deveria necessariamente conter uma
é a concreção de um valor moral, o bem da família. Ou_ando oração principal e uma oração subordinada e nesta o perso-
se chocam estas duas vontades individuais, na verdade estao se nagem "Kennedy" continuaria sendo sujeito, mas o sujeito da
chocando dois valores morais. :e necessário que este confli- oração principal seria outro. Esta frase seria mais ou menos
to termine em repouso, como quer Hegel, para que a disp~ta assim: "Forças econômicas determinaram que o presidente
moral possa ser resolvida: quem tem razão? qual é o mawr Kennedy invadisse a Praia Girón!" Creio que está claro o que
valor? etc. Neste caso particular, conclui-se que ambos. valo- propõe Brecht: o verdadeiro sujeito são as forças econômi-
res morais são aceitáveis e corretos ainda que neste caso se cas que atuaram atrás de Kennedy. A oração principal, nesta
apresentem exagerados: o erro não é o valor em si mesmo,
poética, é sempre uma inter-relação de forças econômicas. O
mas o seu excesso. personagem não é livre, em absoluto. :e objeto-sujeito!
4. para que ocorra a tragédia, para que seja verdadeiramen- Agora, vejam bem: em toda a Poética hegeliana -
te tragédia, é necessário que os fins perseguid?s ·pelos p~rs~­ em toda e não apenas em uma de suas partes - o espírito
nagens sejam irreconciliáveis; se por ac~so eXIste .uma possi- é sujeito! A poesia épica mostra as ações determinadas pelo
bilidade de reconciliação, a obra dramática pertencerá a outro espírito; a poesia lírica mostra os próprios movimentos
gênero: o drama. desse espírito; finalmente, a poesia dramática mostra, diante dos
nossos olhos, o espírito e as suas ações no mundo exterior. Está
De todas estas afirmações hegelianas, a que mais obvia- claro? Nos três gêneros de poesia ocorre o encontro da subjeti-
mente caracteriza sua Poética é a que insiste no caráter de vidade e da objetividade, mas igualmente nos três gêneros é
Sujeito do personagem. Isto é, que todas as ações exteriores sempre a subjetividade, são sempre os movimentos interiores
têm origem no espírito livre desse personagem. da alma, é sempre o espírito, é sempre aí que se produz a
objetividade. Em toda a poética hegeliana esse pensamento
surge e ressurge, e constantemente se revela.
A MÁ ESCOLHA DE UMA PALAVRA A objeção de Marx e Hegel e, portanto, de uma Poética
marxista a uma poética idealista, inverte os termos da pro~
A Poética marxista de Bertolt Brecht não se contrapõe posta. Qual dos dois termos precede o outro? Para Brecht,
a uma ou outra questão formal, mas sim à verdadeira essên- evidentemente a objetividade é anterior. Se, por um lado, para
cia da Poética idealista hegeliana, ao afirmar que o persona- a poética idealista, o pensamento condiciona o ser social, por

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outro lado, para a poética marxista, o ser social condiciona 4. ritmo climático ou ritmo linear narrativo;
o pensamento social. Para Hegel, o. espírito cria a ação ~a­ 5• curiosidade pelo desenlace ou curiosidade pelo de-
mática; para Brecht, a relação soc1al do personagem cna a
senvolvimento; suspense ou curiosidade científica por
ação dramática.
um processo;
Brecht se contrapõe a Hegel frontalmente, totalmente,
6. evolução contínua ou saltos?
globalmente. Portanto é um erro utilizar, para designar sua
Poética, um termo que significa um gênero da .Poética de 7. sugestões ou argumentos?
Hegel. A Poética brechtiana não é s~~plesmente ~pzca: é "!ar-
xista e, sendo marxista, pode ser hnca, dramática ou ép1ca.
Muitas de suas obras pertencem a um gênero, outras a outro DIFERENÇAS ENTRE AS CHAMADAS FORMAS "DRAMÁTICAS" E
e outras ao terceiro. Na Poética de Brecht existem peças líri- "~PICAS" DE TEATRO, SEGUNDO BRECHT - QUADRO TOMADO
cas, dramáticas e também peças épicas. DO PREFÁCIO DE MAHAGON NY E DE OUTROS EsCRITOS

O próprio Brecht percebeu seu erro inici~ e já em ~~us


A CHAMADA FORMA "DRAMÁ- A CHAMADA FORMA "ÉPICA",
últimos escritos começou a chamar sua poéttca de Poettca
TICA" SEGU~OO BRECHT - SEGUNDO BRECHT - POÉTI-
Dialética. O que também é um erro, considerando que igual-
mente a Poética de Hegrl é dialética. Brecht devia cha?Jar a POÉTICA lDEALISTA CA MARXISTA
sua por seu nome: Poética Marxista/ Mas, 9uan~o pos .em 1 . O pensamento determi- 1. o ser social determina
dúvida e designação inicial, já muitos livros haVlam stdo escntos na o ser (o persona- o pensamento (persona-
e já a confusão estava estabelecida. gem-sujeito); gem-objeto) ;
Utilizando o quadro de diferenças entre a sua Poética e 2. o homem é dado como 2. o homem ·é alterável,
as poéticas idealistas, que Brecht inclui em seu prefácio a fixo, imanente, inalterá- objeto de estudo, está
Mahagonny, vamos analisar quais são as diferenças de gêne- vel, considerado como "em processo";
ro e quais as de espécie. . . Nesse quadro incluímos também conhecido;
outras diferenças mencionadas por Brecht em outros trabalh~s.
Este quadro não é "científico" e muitos dos seus termos sao 3. o conflito de vontades 3 . contradições de forç as
vagos e imprecisos. Mas se tivermos sempre presente a ~i~e­ livres move a ação dra- econômicas, sociais ou
rença fundamental (Hegel propõe o personagem como suJe/lo mática; a estrutura da política movem a ação
absoluto e Brecht o propõe com objeto, como porta-voz de peça é uma estrutura de dramática; a peça se
forças econômicas e sociais), se tivermos isto bem presente, vontades em conflito; baseia em uma estrutu-
todas as diferenças secundárias ficarão muito mais claras. ra dessas contradições;
4. cria a "empatia", que 4. historiza a ação dramá-
Algumas diferenças mostradas ~or Brecht, _referem-,s~ a
diferenças reais entre as formas ~p1ca, Dramática e Lmca. consiste em um com- tica, transformando o
promisso emocional do espectador em observa-
Elas são: espectador que lhe reti- dor, despertando sua
ra a possibilidade de consciência crítica e ca-
1. equilíbrio subjetividade-objetividade; agir; pacidade de ação;
2. forma de enredo, que tende ou não às três unidades;
5 . no final, a catarse puri- 5 . através do conhecimen-
3. cada cena determina ou não, casualmente, a próxi- fica o espectador; to, o espectador é esti-
ma cena; mulado à ação;
102 103
6. emoção; 6. razão; Eisenbower propôs a invasão do Vietnã, Ke.nnedy começou
7. no final, o confito se re- 7. o conflito não se resol- a torná-la efetiva, e Johnson levou essa guerra a extremos ge-
solve na criação de um ve e emerge com maior nocidas. Nixon, que é talvez o mais facínora de todos, foi obri-
novo esquema de von- clareza a contradição gado a fazer a paz. Quem é o criminoso? O Presidente dos
tades; fundamental; Estados Unidos da América do Norte. Todos e qualquer um
8 . a harmatia faz com que que exerça esse cargo e que seja, portanto, obrigado a tomar
8 . as falhas que o perso- as decisões que esse cargo exige e compele.
o personagem não se nagem possa ter pes-
adapte à sociedade e é soalmente (harmatías) Outro exemplo: a boa alma Shen Te, pobre prostituta,
a causa principal da não são nunca a causa recebe uma enorme herança e se converte em milionária. Como
ação dramática; direta e fundam.ental é uma pessoa boníssima, não pode evitar dar todo o dinheiro
da ação dramática; que lhe pedem os amigos, parentes e vizinhos, ou simples co-
9. a anagnorisis justifica a nhecidos. Mas, como "é agora rica, decide assumir uma nova
9. o conhecimento adqui-
sociedade; personalidade: Shui Ta, em quem se disfarça, e de quem se
rido revela as falhas da
diz ser prima. A bondade e a riqueza não podem caminhar)
sociedade; juntas. Se um rico pudesse ser bom, fatalmente deixaria de ser
1O. a ação é presente; 1O. é narração; rico, porque daria toda sua riqueza, por bondade, aos neces-
11 . vivência; 11. visão do mundo; sitados ... ·
12. desperta sentimentos. 12. exige decisões. Nessa mesma peça, um aviador sonha poeticamente com
o formoso céu azul. Mas Shen Te (Shui Ta) lhe oferec.e a inve-
jável posição de capataz de uma fábrica, com ótimo salário.
0 PENSAMENTO DETERMINA O SER OU VICE-VERSA? Imediatamente o poético aviador se esquece do céu azul e
passa a preocupar-se somente em explorar mais e mais os seus
Como já vimos, para todas as poéticas idea!;stas (Hegel, operários, e aumentar seus lucros.
Aristóteles e outros) o personagem já "nasce" com todas as São exemplos de que o ser social, como dizia Marx, de-
suas faculdades e propenso a certas paixões. Suas características termina o pensamento social. Por isso, em momentós críticos,
fundamentais são imanentes. Para Brecht, ao contrário, não exis· as classes dominantes podem aparentar bondade e podem se
te "natureza humana" e, portanto, ninguém é o que é porque
tornar reformistas: e aos seres sociais "operários" lhes ofere-
sim! :B necessário buscar as causas que fazem com que cada
um seja o que é. Para esclarecer esta diferença fundamenta l cem um. pouco mais de carne e pão, esperando que esses seres
podemos citar alguns exemplos de peças de BÍ'echt em que a sociais, menos famintos, se tornem igualmente menos revolu-
ação é detenninada pela função social que cumpre o persona- cionários. E este mecanismo funciona. Não é por outra razão
gem. Primeiro, o clássico exemplo do Papa dialogando com Ga- que as classes operárias dos países capitalistas-imperialistas são
Iileu Galilei, e mostrando-lhe toda a sua simpatia e todo o tão pouco revolucionárias e chegam a ser reacionárias, como
seu apoio enquanto seus auxiliares o vestem de Papa. Quando a maioria do proletariado norte-americano: trata-se de seres so-
já está vestido, o Papa revela que, embora do ponto de vista ciais com geladeiras, carros e casas, que certamente não têm
pessoal possa estar de acordo com suas idéias, Galileu terá que os mesmos pensamentos sociais dos seres latino-americanos que,
voltar atrás em suas opiniões e responder à Inquisição. O Papa, em sua maioria, vivem em favelas, têm fome e nenhuma segu-
enquanto Papa, atua como Papa. rança contra a doença e o desemprego.
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:B ALTERÁVEL O ~OMEM? chefe retira sua mão e não o cumprimenta. Mais tarde, esse
senhor se converte em um furioso anti-semita.
Em "Um Homem É um Homem", Br:echt mostra Galy Nos procedimentos de Sartre e Brecht existe muito em
Gay, um bom homem que q~sconhece quem fo:am. seu pai comum e existem muitas diferenças. É comum o fato de que
e sua mãe, um ser obediente que uma bela manha sat de sua o anti-semitismo, como o heroísmo de Galy Gay, não são ima-
casa para comprar um peixe pái:a o almoço. Na metade do
A
nentes, não nasceram com os personagens, não são faculdades
caminho se encontra com uma patrulha de tres soldados que aristotélicas transformadas em paixões e em hábitos, mas, ao
perderam de vista o quarto soldado, do qual . necessitam para contrário, são características acidentalmente adquiridas na vida
poder voltar ao quartel. Agarram Galy Gay e o fazem vender social. Mas existem diferenças fundamentais: o Chefe evolui rea-
um elefante a uma velha, para comprometê-lo. Como não têm listicamente, psicologicamente, através de uma seqüência de
elefante à mão, dois dos soldados se disfarçam de elefante. A causas e efeitos, enquanto que o herói brechtiano é dissecado,
velha concorda em comprar o elefante, pelo qual paga algum é montado, desmontado e remontado. Não existe aqui nenhum
dinheiro, e o pobre Galy Gay se convence de que um elefante realismo: existe uma demonstração quase científica através de
é qualquer coisa que alguém esteja disposto a comprar como meios artísticos.
sendo elefante, desde que apareça o dinheiro. Vendendo este
elefante, Galy Gay comete o ato de roubar, já que se tratava
de um elefante de Sua Majestade.
CONFLITO DE VONTADE OU CONTRADIÇÃO DE NECESSIDADES?
O pobre Galy Gay; que' uma bela manhã saiu de casa
para comprar um peixe para o almoço, rouba um elefante que
não é elefante vende-o a uma velha que não era uma com- Como já vimos, não importa quem seja o Presidente dos
pradora e, par~ não ser castigado, abandona. sua .identidad~ e Estados Unidos, pois sempre terá que defender os interesses
se disfarça de Jeriah Jip, converte-se em Jenah Jtp e termtna imperialistas mais reacionários. Sua vontade individual nada
como herói de guerra, atacando ferozmente seus inimigos e determina. A ação não se desenvolve como se desenvolve
afirmando sentir um atávico e ancestral desejo de sangue! porque ele é como é: se desenvolveria da mesma maneira
Diante dos espectadores, diz Brecht, mostra-se e se desmonta ainda que ele fosse completamente diferente do que é.
um ser humano, uma "natureza humana". É necessário esclarecer a possível confusão originada no
Para que fique claro, Brecht não afirma que em outras fato de que também Hegel insiste em que o conflito trágico é
Poéticas o ser humano não se modifica jamais. Em Aristóteles uma inevitabilidade, uma necessidade. Aqui, ele fala de neces-
mesmo, o herói termina por compreender seu erro e por modi- s.idade, sim, mas de uma necessidade de natureza moral. Isto
ficar-se. Mas Brecht propõe uma modificação mais ampla e é, moralmente os personagens não podem evitar ser o que são
total: Galy Gay não é Galy Gay, não eXiste, pura e sim- e fazer o que fazem. Brecht, ao contrário, não fala de neces-
plesmente - Galy Gay não é Galy Gay senão que é tudo o sidades morais, mas sim de necessidades sociais ou econômi-
que Galy Gay, em situações determinadas, concretas, é capaz cas. Mauler se faz de bom ou de mau, absolve ou manda matar,
de fazer. não por características pessoais de bondade ou maldade, não
Na Infância de um Chefe, Sartre mostra um jovem que, por pensar desta ou daquela forma, mas sim porque se trata
por casualidade e sem convicção, afirma q~e não ~osta de de um burguês que tem que aumentar cada vez mais o seu
determinada pessoa porque se trata de um JUdeu. Dtvulga-s~ lucro. Quando a mulher de Dullfeet, assassinado por Arturo Ui,
em seguida que ele não gosta de judeus. Em uma festa é com ele se encontra, tem vontades psicológicas de cuspir-lhe
apresentado a um senhor e, ao saber que é um judeu, o futuro na cara, mas vem como proprietária, e termina ao seu lado,

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os dois de braço dado, com as caras muito satisfeitas, seguindo meno, po"em ser quaisquer: medo (ver filmes de vampiro),
o caixão do morto: assassino e viúva são sócios e, então, que sadismo, desejo sexual pela estrela, ou o que seja.
importam seus sentimentos pessoais? Eles têm que se amar, Convém igualmente observar que, já em Aristóteles, a em-
sempre em busca do lucro máximo! patia não se apresentava sozinha, mas sempre simultaneamen-
Brecht não quer dizer que as vontades individuais não te com outro tipo de relação: dianóia (pensamento do persona-
intervêm nunca: quer afirmar, isso sim, que não são nunca o gem - pensamento do espectador) . Isto é, a empatia era o
fator determinante da ação dramática fundamental. Neste últi- resultado do Ethos, mas a ação da Dianóia também provocava
mo caso citado, por exemplo, a jovem viúva, quando começa o que John Gassner chamou de enlightenment e que se pode-
a cena, deixa livre sua vontade psicológica, seu ódio contra ria traduzir como "esclarecimento" ou algo parecido.
Ui, e toda a cena se transforma quando, pouco a pouco, Ui O que afirma Brecht é que) nas peças idealistas, a emoção
lhe demonstra a inoperância das vontades e a determinação atua por si mesma, produzindo o que ele chama de orgias
emocionais, enquanto que as poéticas materialistas, cujo objeti-
inflexível das necessidades sociais. A cena se desenvolve, a ação
dramática se desenvolve através da contradição de necessida- vo não é tão-somente o de interpretar o mundo mas também
des sociais (neste caso, e quase sempre no capitalismo, trata- o de transformá-lo, e tomar esta terra finalmente habitável,
-se do desejo de lucro crescente). têm a obrigação de mostrar como pode este mundo ser trans-
formado.
Uma boa empatia não impede a compreensão e, pelo con-
I trário, necessita da compreensão, justamente para evitar que o
EMPATIA OU O Qu~? EMOÇÃO OU RAZÃo espetáculo se converta em uma orgia emocional e que o espec-
tador possa purgar seu pecado social. O que faz Brecht, funda-
Como· vimos no Sistema Trágico Coercitivo de Aristóteles, mentalmente, é colocar a ênfase na compreensão ( enlighten-
empatia é a relação emocional que se estabelece entre perso- ment), na dianóia.
nagens e espectadores, e que provoca, fundamentalmente a de- Em nenhum momento, Brecht fala contra a emoção, ainda
legação de poderes por parte destes que se transform~m em que fale sempre contra a orgia emocional. "Seria absurdo negar
objetos daqueles: tudo o que acontece com o personagem, acon- emoção à Ciência Moderna", diz, esclarecendo que sua posição
tece vicariamente com o espectador; tudo o que pensa o perso- é inteiramente favorável à emoção que nasce do conhecimen-
nagem, pensa vicariamente o espectador. to, e contra a emoção que nasce da ignorância. Diante de um
No caso de Aristóteles, a empatia que preconiza consiste quarto escuro de onde parte um grito, uma criança pode assus-
numa ligação emocional que se refere a duas emoções básicas: tar-se: Brecht está contra que se emocione o espectador com
piedade e terror. A primeira nos liga a um personagem que cenas deste tipo. Mas se Einstein descobre que E = MC2,
sofre um destino trágico imerecido (considerando suas múlti- que é a fórmula de transformação da matéria em energia, essa
plas virtudes) e a segunda se refere ao fato de que o perso- é uma emoção extraordinária! Brecht está totalmente a favor
nagem sofre as conseqüências de possuir uma falha que nós deste tipo de emoção. Aprender é emocionante e não existe
igualmente possuímos. razão para que a emoção seja evitada. Mas, ao mesmo tempo,
a ignorância causa emoções, e deve-se evitar estas emoções,
Mas a empatia não se refere obrigatoriamente a essas duas como se deve evitar a ignorância; ambas devem ser comba-
emoções, e pode-se realizar através de qualquer outra. A única
tidas.
coisa importante a observar na empatia é que o espectador
Como não vai o espectador emocio~ar-se com a MÃE co-
as~ume uma atitude "passiva", delegando sua capacidade de
/ RAGEM que perde os seus filhos, um a um, na guerra? I:: ine-
açao. Mas a emoção, ou as emoções que provocam esse fenô 1

108 109
\
Num estudo sobre teatro · popular, Brecht afirma que o
vitável que nos emocionemos todos até às lágrimas. Mas de- artista popular deve abandonar as salas centrais e dirigir-se aos
ve-se combater sempre a emoção causada pela ignorância: q~e bairros, porque só aí vai encontrar os homens _que estão verd.a-
ninguém chore a fatalidade que levou os filhos da Mãe Cora- deiramente interessados em transformar a soctedade; nos batr-
gem, mas sim que se chore de raiva contra o comércio da ros deve mostrar suas imagens da vida social aos operários,
guerra, porque é esse comércio que rouba os filhos à Mãe qu~ estão interessados em t-ransformar essa vida social, já que
Coragem. são suas vítimas. Um teatro que pretende transformar aos
Outra comparação poderá esclarecer melhor: existe uma transformadores da sociedade não pode terminar em repouso,
semelhança notável entre Cavaleiros ao Mar do irlandês J. M não pode restabelecer o equilíbrio. A polícia burguesa procura
Synge e Os Fuzis da Senhora Carrar. As duas peças são tremen- restabelecer o equilíbrio, impor o repouso: um artista marxista,
damente emocionantes. As duas histórias muito parecidas: duas ao contrário, deve propor o movimento em direção à libera-
mães que perdem seus filhos no mar. Na peça de Synge, é o ·Ção nacional e à liberação das classes oprimidas pelo capital.
próprio mar o assassino; as ondas são a fatalidade! Na de'Brecht, Hegel e Aristóteles purgam as . características anti-establish-
são os soldados fascistas que disparam contra pescadores ino- ment de seus espectadores. Brecht clarifica conceitos, reve~a
centes. A peça de Synge produz uma violenta emoção causada verdades, expõe contradições e propõe transformações. Os pn-
pelo mar desconhecido, impenetrável, fatal; a de Brecht, pro- meiros desejam uma quieta sonolência ao final do espetáculo:
funda emoção de ódio contra Franco e seus sequazes.! Nos Brecht deseja que o espetáculo teatral seja o iníci~ da ação,_o
dois casos aflora a emoção, mas de distintas cores, por distin- equilíbrio deve ser buscado transformando-se a soctedade e nao
tas causas e com distintos resultados. purgando o indivíduo dos seus justos reclamos e de suas ne-
:e. necessário insistir: o qJe Brecht não quer é que os cessidades.
espectadores continuem pendurando o cérebro junto com o cha-
No que diz respeito a esta característica, vale a pena dis-
péu, antes de entrarem no teatro, como o fazem os espectado-
cutir o final da peça Os Fuzis da Senhora Carrar, tantas vezes
res burgueses.
chamada de "peça aristotélica". Por que se afirma tal coisa?
Porque se trata de uma peça realista, .9ue obede~e às ~amosas
CATARSE E REPOUSO, OU CoNHECIMENTO E AÇÃO? "três unidades", de tempo, lugar e açao. Mas at termmam ~s
pretensas características aristotélicas desta peça. Quando se dtz
Diz Hegel: "Ao tumulto de paixões e ações humanas, que que Os Fuzis da Senhora Carrar é aristotélica porque a heroí-
constituem a obra dramática, sucede o repouso". Aristóteles na se purga de uma falha, argumenta-se falsamente, eludindo-se
propõe o mesmo: um sistema de vontades, que representam a essência do problema. Por isso é necessário repetir: ,a catar~e
concretamente, individualmente, os valores éticos justificáveis, retira ao personagem (e por isso ao espectador, que e empatt-
entram em colisão, porque um dos personagens possui uma .. camente manobrado pelo personagem) sua capacidade de ação.
falha trágica, ou comete um erro trágico. Depois. da catástro- Isto é retira o orgulho, a prepotência, a unilateralidade no amor
fe, quando a falha é purgada, necessariamente volta a sereni- aos d~uses, etc., que podem levar a sociedade a atit~des tra~s­
dade, é restabelecido o equilíbrio. Os dois filósofos parecem formadoras· ao contrário, Carrar se purga da não-açao: sua tg-
dizer que o mundo retoma sua perene estabilidade, seu infinito norância idtpedia que ela atuasse em favor da causa justa, e
equilíbrio, seu eterno repouso. por isso desejava a neutralidade na qual acreditava, e tentava
Brecht era marxista: por isso, para ele, uma peça de tea- abster-se, negando-se a oferecer os fuzir que tinha guardados.
tro não deve terminar em repouso, em equilíbrio. Deve, pelo O personagem trágico grego perde suas características ati-
contrário, mostrar por que caminhos se desequilibra a sociedade, vas; a senhora Carrar, ao contrário, empenha-se ativamente na
para onde caminha, e como apressar sua transição.
I
111
110
guerra civil, porque, enquanto a anagnorisis justifica a socieda- Observem ainda
de, "o conhecimento adquirido revela as falhas, não do perso- a seriedade e o cuidado da representação: ele sabe que
nagem, mas sim da sociedade que deve ser modificada". Ou, da sua fidelidade dependem muitas coisas:
outra vez em palavras do próprio Brecht, "o teatro idealista que não se arruíne o inocente,
desperta sentimentos, enquanto que o teatro marxista exige de- e que a vítima tenha indenização.
cisões". A senhora Carrar se decide e começa a agir. Portanto, Olhem-no agora repetindo o que já fez:
não é aristotélica. quando tem alguma dúvida,
faz um esforço de memória, sem estar muito certo de
COMO INTERPRETAR AS NoVAS PEÇAS? haver representado bem,
e pede a este ou aquele que o corrija.
Melhor que explicar longamente qual a relação que Brecht Esse detalhe, olhem com respeito:
propõe para substituir a relação de natureza emocional, para- com admiração devem notar que esse imitador
lisante, que ele condenava no teatro burguês alemão, ou bur- não se perde em nenhum papel.
guês de qualquer outra nacionalidade, será transcrever alguns Não se confunde jamais com o personagem que está inter-
versos de um poema que escreveu em 1930: "Sobre o Teatro pretando, permanece como intérprete,
de Todos os Dias": · sempre, sem confusões.
Os personagens não lhe fizeram nenhuma confidência,-
"Olhem aquele homem na rua, olhem-no; e com eles, ele não comparte nenhum sentimento ou
ele está mostrando comh ocorreu o acidente, e submete ponto de vista:
o chofer à sentença da multidão,
deles sabe muito pouco.
pela forma como dirigia, imprudentemente.
Olhem agora: está fazendo o papel de atropelado, De sua interpretação não nasce ninguém, filho de intér-
(pelo que se pode deduzir, era um ancião). prete e de interpretado, pulsando com um só cora-
Dos dois personagens, o chofer e o ancião, ção, pensando como um só cérebro:
este homem mostra tão-somente o essencial para que se sua forte personalidade é a de um intérprete
compreenda como foi o desastre. · que interpreta a dois vizinhos estranhos!
- E isso basta para apresentar os dois diante de vocês. Nos vossos teatros
Nada mais é necessário. a fabulosa transformação que se pretende que ocorra
Mostra que era possível evitar o acidente; e o acidente entre o camarim e o cenário
é compreendido, - um ator sai do camarim, um rei entra no palco -
embora seja incompreensível, esse truque mágico
pois tanto um como o outro podiam ter agido de outra (que, como já tantas vezes vi, provoca
forma. boas gargalhadas nos maquinistas que se riem enquanto
Olhem-no: agora o homem está mostrando como cada tomam suas cervejas)
um dos dois personagens podia ter· agido para evitar aqui, neste caso, aqui não tem cabida.
o acidente.
Nada de superstições no seu testemunho ocular: ele não Nosso ator, num canto da rua,
atribui o destino humano a nenhuma estrela, tão- não é nenhum sonâmbulo com quem ninguém pode falar;
-somente a falhas cometidas, falhas próprias. não é nenhum sumo sacerdote no seu divino ofício ..•

112 113
Podem interrompê-lo em qualquer momento,
e certamente ele lhes responderá coro toda calma, Por exemplo: no que se refere ao equilíbrio entre a sub-
prosseguindo depois com sua exibição. jetividade e a objetividade, também pode ocorrer o predomínio
objetivo (épica), subjetivo (lírica) ou o equilíbrio ( dramáti-
Mas, senhores, não digam:
ca). Neste caso, é evidente que personagens como Mãe Cora-
'Este homem não é um ARTIST Al'
gem, a Senhora Carrar, Galileu Gali!ei, Mauler e outros per-
Porque se vocês puserem tamanha barreira sonagens "dramáticos" são objetos de forças econômicas que
entre vocês e o mundo, atuam na realidade e, por sua vez, eles mesmos atuam sobre
'VOCÊS FICARÃO FORA DO MUNDO'; a realidade. Ao contrário, personagens como o Coolie, ou o
se vocês não lhe derem o título de artista, Come.rciante de A Exceção e a Regra, os companheiros da
talvez ele, a vocês, não lhes dê o título de homens. Decisão, Galy Gay, Shui Ta e outros, são personagens nos
A restrição que lhes pode fazer ele a vocês é muito mais quais predomina nitidamente o caráter de "porta-voz objeti-
grave do que a que lhes podem fazer vocês a ele vo": a subjetividade desses personagens está atrofiada ·em fun-
por isso digam: ção da clareza de exposição. No extremo oposto, a subjetivi-
É UM ARTISTA PORQUE É UM SER HUMANO. " dade reina desenfreada nos personagens líricos de Na Selva
das Cidades e de outras obras ainda expressionistas. O expres-
O poema segue e diz muito mais coisas, mas a nós por sionismo "expressa" subjetivamente o real, sem mostrá-lo.
ora nos basta com o que aqui se transcreve. Isto já esclarece Enquanto à tendência a concentrar a ação, o tempo e o lu-
muito bem as diferenças que existem entre o artista burguês, gar, observado por Brecht nas Poéticas anteriores, isso é ver-
sumo sacerdote, o artista eleilú, o único (que justamente por dade apenas no que se . refere às peças "dramáticas" anteriores.
ser único pode ser vendido ao melhor preço: a estrela cujo As obras "líricas" (expressionistas, surrealistas, etc.) não ten-
nome aparece antes do título da peça, antes do assunto, do dem a essa obediência, como tampouco o faziam as obras
tema, do conteúdo do que se vai ver) e, do lado oposto, o shakespearianas e isabelinas em geral. A concentração a que se
outro artista, o homem: o homem que, por ser homem, é ca- refere Brecht é própria tão-somente do gênero dramático e
paz de ser o que os homens são capazes de ser. A arte é ima- está totalmente excluída dos gêneros lírico e épico. Mas é pró-
nente á TODOS os homens e não apenas a alguns eleitos; a arte pria do gênero dramático nas duas Poéticas, idealista ou ma-
não se vende como não se vende o respirar, o pensar e o amor. terialista, hegeliana ou marxista.
A arte não é uma mercadoria. Mas, para a burguesia, tudo
Todas as peças características de que nos fala Brecht são
é mercadoria: o homem é uma mercadoria. E se o homem é
uma mercadoria, será igualmente mercadoria tudo o que o igualmente características do "gênero'' dramático e não da
homem produzir. Todo o sistema burguês se prostitui, o amor "Poética" hegeliana ou brechtiana. Evolução contínua ou em
e a arte. O homem é a suprema prostituta burguesa! saltos? Não se pode dizer que o desenvolvimento de A Viagem
de Pedro, o Afortunado, de Strindberg, tenha um desenvolvi-·
mento contínuo, com seus personagens surrea!isticamente trans-
0 DEMAIS NÃO IMPORTA: SÃO PEQUENAS DIFERENÇAS formando-se em animais ou coisas semelhantes. E que dizer
. FoRMAIS ENTRE os ~ G~NEROS de .filmes como O Gabinete do. Dr. Caligari, Metropolis, etc.?
Freqüentemente, as peças idealistas de estilo altamente subje-
As demais diferenças que Brecht assinala entre sua propos- tivo perdem seus compromissos com a credibilidade, com a ob-
ta de teatro e as propostas aceitas em seu momento, são
jetiv~dade: é algo próprio a esses estilos que, no surrealismo,
s~ples diferenças entre os três gêneros possíveis de poesia.
chega ao parôxismo do não-compromisso com o real.
114 ...
115
O mesmo no que se refere a que "Cada cena deter.rr· construir veículos e aviões; diante da sociedade, EM FA-
casualmente a próxima cena" ou não. Isto é verdade para as ZER A REVOLUÇÃO. Nossas representações da vida social
peças dramáticas, mas não para as peças épicas. . . ou líricas. devem estar destinadas aos técnicos fluviais, aos cuida-
O item n<:> 5 diz que na poética brechtiana existe uma
dores das árvores, aos construtores de veículos e aos
revolucionários. Nós os convidamos para que venham
curiosidade científica pelo processo e não uma curiosidade mór-
aos nossos teatros e lhes pedimos que não se esqueçam
bida pelo desenlace. E isso é verdade. Mas é necessário tomá
de suas ocupações (alegres ocupações), para que nos seja
-lo dentro de toda sua relatividade: não se pode dizer que n."'
possível entreg~r o mundo e nossa visão do mundo às
exista curiosidade pelo desenlace do julgamento de Azdak
suas mentes e aos seus corações, PARA QUE ELES MODI-
(com quem ficará finalmente o menino Miguel? qual é a
FIQUEM O MUNDO AO SEU CRITÉRIO". (As maiúsculas são
"verdadeira" mãe?). A mórbida curiosidade existe na sua ple-
minhas.)
nitude (em caráter exclusivo) tão-somente nas peças policiais
à la Agatha Christie ou filmes à la Hltchcock com ou sem vam-
piros. Da mesma maneira que existe "suspense" no julgamento
de Azdak ou na morte da filha muda da Mãe Coragem, exis- EMPATIA OU 0SMOSIS?
te profunda curiosidade científica pelo desenvolvimento dos
mecanismos burgueses liberais do Inimigo do Povo. Brecht lu- A empatia tem que ser entendida como a arma terrível
tava pela instauração de uma nova Poética e, portanto, ne-
que realmente é. A empatia é a arma mais perigosa de todo
cessariamente radicalizava suas g0sições e suas afirmações. Mas
essa radicalização necessária tem que ser entendida dialetica- o arsenal do teatro de artes afins (cinema e TV).
) .
mente. Porque o mesmo Brecht era o primeiro em fazer, apa- Seu mecanismo, às vezes insidioso, consiste em justapor
rentemente, o contrário do que ele mesmo predicava, sempre duas pessoas (uma fictícia, outra real), dois universos, e fazer
que necessário. Repito: sempre que necessário. com que uma dessas pessoas (a real, o espectador) ofereça à
outra, a fictícia (o personagem), seu poder de decisão.
Ta.rnbém o último item é bastante impreciso: sugestões ou
argumentos? Brecht não quer dizer que, antes dele., nenhum O homem abdica, em favor da imagem, do seu poder de
outro autor utilizou argumentos em suas peças, e sim apenas decisão.
sugestões. O pensamento brechtianci ficará mais claro se re- Mas existe aqui algo monstruoso: o homem, quando ele-
produzimos uma frase sua muito esclarecedora: ge, elege em uma situação real, vital, elege em sua própria
"O dever do artista não é o de mostrar como são as coi- vida; o personagem quando elege, (e por isso, quando induz
sas verdadeiras e sim o de mostrar como verdadeiramente são o homem a eleger), elege em uma situação fictícia, irreal, des-
as coisas". Como fazê-lo? E para quem fazê-lo? Ninguém nos provida de toda densidade de fatos, matizes e complicações que
explica melhor que o próprio Brecht: a vida oferece. Isto faz com que o homem, real, eleja segundo
situações e critériost irreais.
"Nós, filhos de uma época científica, temos que A justaposição de dois universos (real e fictício) produz
assumir uma posição crítica diante do mundo. Diante igualmente outros efeitos agressivos: o espectador vivencia a
de um rio, nossa atitude crítica consiste no seu aprovei- ficção e incorpora elementos da ficção. O espectador, que é
t~ento; diante de uma árvore frutífera, em enxertá-la; homem real e vivo, assume como realidade e como vida o que
diante do 1:11ovi.mento, nossa atitude crítica consiste em se lhe apresenta na obra de arte como arte: osmosis estética.

116 117
QUE OS MENINOS APRENDEM. Que aprendem? Claro, as letras,
Exemplificando: o universo do Tio Patinhas está cheio de as palavras, etc. Aprendizagem feita à base de historietas em
dinheiro, de problemas causados pelo dinheiro, de ânsia de ter que se mostram crianças aprendendo a usar o dinheiro, a eco-
e de guardar dinheiro, etc. O Tio Patinhas é um personagem nomizar dinheiro nos seus cofrezinhos e se explicam as dife-
muito simpático e por isso criá empatia com seus leitores, ou renças entre um cofre caseiro e um banco, etc. Assuntos e te-
com os espectadores dos filmes em que aparece. Por essa
mas escolhidos entre os valores de uma sociedade capitalista
empatia, pelo fenômeno da justaposição de dois universos, os
competitiva. Os pequenos e indefesos espectadores são expos-
espectadores passam a viver como reais, corno suas, essas ânsias
tos a esse mundo competitivo, organizado, coerente e coerciti-
de lucro, essa capacidade de tudo sacrificar pelo dinheiro. O
público adota as regras do jogo, como ao jogar qualquer jogo. vo! Assim nos educam. Por osmosis!
Nas películas de far-west é fora de dúvida que a capaci-
dade de usar o revólver, a pericia de quebrar um prato voando Buenos Aires, julho de 1973
com um só tiro ou a força para nocautear a 1O inimigos com
poucos tabefes, cria a mais profunda empatia entre esses cow-
-boys e os meninos das matinês infantis. Isso ocorre mesmo
que se trate de um público mexicano olhando a 1O mexicanos
nocauteados em defesa de sua terra. Os meninos, empaticamen-
te, abandonam seu próprio universo, sua necessidade de defen-
der sua terra, e assumem, empqticamente, o universo do inva-
sor ianque, seu desejo de conquistar ·terras alheias.
A empatia funciona mesmo que exista uma colisão de
interesses entre o universo fictício e o universo real dos espec-
tadores. Por isso existe censura: para impedir que um universo
indesejável se justaponha ao universo dos espectadores.
Um~ história de amor, por mais simples que seja, pode
ser o ve1culo de valores de outro universo que não o do
espectador. Estou convencido de que Hollywood causa muito
mais dano ao~ nossos países com as películas inocentes do que
com as que d1retamente tratam de temas mais ou menos polí-
ticos. As histórias de amor idiotas do tipo Love Story são
mais perigosas, dado que sua penetração ideológica se faz su-
bliminarmente: o herói romântico trabalha incansavelmente
para poder merecer o amor de sua amada; o mau patrão se
regenera e passa a ser bom (mas continua sendo patrão), etc. \
O mais recente êxito da TV ianque, Sesamo Street é uma
amostra evidente da "solidariedade" norte-americana em rela-
ç.ão aos nossos pobres países subdesenvolvidos: eles querem nos
aJudar a nos educarmos e nos emprestam seus métodos educa- ·
ti vos. . . Mas, como educam? MOSTRANDO UM UNIVERSO EM
119
118
4

Poética do Oprimido

A - Uma Experiência de Teatro Popular no Peru


B - O Sistema Coringa
o PRINCÍPIO,o teatro era o canto ditirâmbico: o povo livre
N cantando ao ar livre. O carnaval. A festa.
Depois, as classes dominantes se apropriaram do teatro e
onstruíram muros divisórios. Primeiro, dividiram o povo, se-
parando atores de espectadores: gente que faz e gente que
observa. Terminou-se a festa! Segundo, entre os atores, sepa-
rou os protagonistas das massas: começou o doutrinamento
\ coercitivo!
O povo oprimido se liberta. E outra vez conquista o tea-
l tro. É necessário derrubar muros! Primeiro, o espectador volta
a representar, a atuar: teatro invisível, teatro foro, teatro ima-
gem, etc. Segundo, é necessário eliminar a proeriedade priv~p~
dos ersona ens elos atores individuais: Sistema Coringa.
Com estes dois ensaios procuro fechar o ciclo deste lívro.
Neles se mostram alguns dos caminhos pelos quais o povo reas-
sume sua função protagônica no teatro e na sociedade.

123
centes, calcula-se que existem pelo menos 41 dialetos das duas
principais línguas indígenas, o quechua e o aymará. Investi-
gações feitas na província de Loreto, ao norte do país, che-
garam a constatar a existência de 45 línguas distintas nessa
região. Quarenta e cinco línguas e não apenas dialetos. E
isso numa província que é, talvez, a menos povoada do país.
A - Uma experiência ·de teatro Essa enorme variedade de línguas certamente ' facilitou
a compre·ensão, por parte dos organizadores da Operação Alfa-
popular no Peru* betização Integral (ALFIN), de que os analfabetos não são
"pessoas que não se expressam", mas simp.lesmente são pe~­
soas incapazes de se expressarem em uma hnguagem determi-
nada, que é o idioma castelhano, neste caso. :B. importante
compreender que todos os idiomas são linguagem, mas nem
todas as linguagens são idiomáticas! Existem muitas linguagens
além de todas as línguas faladas e escritas.
O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que
a domina uma nova forma de conhecer a realidade, e de
transmitir' aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é
absolutamente insubstituível. Todas as linguagens se comple-
mentam no mais perfeito e amplo conhecimento d~ real. Isto
é, a realidade é mais perfeita e amplamente conheCJda através
E plano1973,
M o Governo Revolucionário Peruano iniciou um
nacional de alfabetização Integral, com o objetivo de
lia soma de todas as linguagens capazes de expressá-la.
O ensino de uma linguagem deve necessariamente partir
erradicar o analfabetismo em um prazo aproximado de 4 anos.
desse pressuposto. E isto era pérfeitame?te compreend1~o e
Supõe-se que haja no Peru entre 3 a 4 milhõe~ de analfabetos
considerado pelo projeto ALFIN que constderava os segumtes
ou semi-analfabetos, em uma população d~ 14 milhões de
pessoas. pontos essenciais:
Em toda parte, ensinar um adulto a ler e a escrever é 1 ) alfabetizar na língua materna e em castelhano, sem
um problema delicado, e difícil. No Peru, talvez seja mais di- forçar o abandono daquela em benefício desta;
dicil ainda, considerando-se o enorme número de línguas e
dialetos que falam os seus habitantes. Segundo estudos re- · 2) alfabetizar em todas as linguagens possíveis, especial-
mente artísticas, como o teatro, a fotografia, os títeres, o
cine, o periodismo, etc. (Ver Quadro de Linguagens, ao
final deste ensaio.)
• (Esta experiência foi realizada com a inestimável colaboração
de Alicia Saco, dentro do Programa de Alfabetização Integral (ALFIN)
dirigido por Alfonso Lizarzaburu, e com a participação, nos diversos. A preparação dos alfabetizadores, selecionados nas mes-
setores, de Esteta Lii'íares, Luis Garrido Lecca, Ramón Vilcha e Jesus. mas regiões onde se pretendia alfabetizar, desenvolveu-se em
Ruiz Durand, entre outros, em agosto de '1973, nas cidades de Lima
e Chaclacayo. O método de alfabetização utilizado por Alfin era, na- 4 .. atro etapas, segundo as características específicas de cada
turalmente, inspi(ado em Paulo Freire) - Março, Buenos Aires, 1974. grupo social:

124 125
1) barriadas ou pueblos jóvenes que correspondem às
nôssas favelas ( cantegril, villamiséria . .. ) ; não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser
2) regiões rurais; um excelente "ensaio" da revolução. O espectador liberado, um
homem íntegro, se lança a uma ação! Não importa que seja
3) regiões mineiras ; fictícia: importa que é uma ação.
4) regiões onde a língua matema não era p castelhano,
e que incluem 40% da população. Destes 40%; metade Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revo-
está constituída por cidadãos bilíngües que aprenderam lucionários devem transferir ao povo os meios de produção tea-
o castelhano depois de1 terem dominado a língua materna tral, para qu.e o próprio povo os utilize, à sua maneira e para
indígena. A outra metade não fala castelhano. os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deye ma-
nejá-la!
O Plano Alfin ainda está começando e é demasiado cedo Como deve, porém, ser feita esta transferência? Quero co-
para avaliar seus resultados. Neste trabalho, quero tão-somente meçar dando um exemplo do que fez Esteta Liõares, orientado-
relatar o que foi minha participação pessoal no setor de teatro . ra do setor de fotografia de ALFIN.
e contar todas as experiências que fizemos, considerando .o tea- Qual seria a velha maneira de se utilizar a fotografia num
tro como linguagem, apto para ser utilizado por qualquer pes- plano de alfabetização? Sem dúvida, seria fotografar coisas,
soa, tenha ou não atitudes artísticas. Quero mostrar, através ruas, pessoas, panoramas, comércios, etc., mostrar essas fotos
de e~emplos práticos, como pode o teatro ser posto ao serviço aos alfabetizandos, e discuti-las. Quem tiraria as fotos? Os
dos oprimidos, para que estes se expressem e para que, ao uti- alfabetizadores, capacitadores ou instrutores. Mas quando se
lizarem esta nova linguagem, descubram igualmente novos con- trata de entregar ao povo os meios de produção, deve-se entre-
teúdos. gar, neste caso, a máquina fotográfica. Assim se fez em ALFIN.
Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido Entregava-se uma máquina às pessoas do grupo que se estava
deve-se ter sempre presente seu principal objetivo: tránsfor- alfabetizando, ensinava-se a todos a utilizá-la, e se faziam pro-
mar o povo, "espectador'', ser passivo no fenômeno teatral, em postas: - "Nós .vamos fazer perguntas a vocês. Nossas per-
sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Espero guntas vão ser . f~itas em castelhano, e vocês vão nos respon-
que as diferenças fiquçm bem claras: Aristóteles propõe uma der. Mas. vocês não podem responder em castelhano: vocês têm
Poética em que os espectadores delegam poderes ao persona- que 'falar' em fotografia. Nós vamos perguntar coisas na lín-
~ gem para que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma gua castelhana, qu~ é uma linguagem. E vocês vão nos. respon-
Poética em que o espectador delega poderes ao personagem para der em fotografia, 'que também é uma ·linguagem."
que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de pensar As perguntas que se faziam eram muito simples e as res-
por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem. No postas, isto é, as fotos, eram depois discutidas pelo grupo. Por
primeiro caso, produz-se · uma "catarse"; no segundo, uma exemplo: quando se perguntou: "Onde é que você vive?" obti-
"conscientização". O que a Poética do Oprimido propõe é a veram-se fotos-respostas dos seguintes tipos:
própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem
para que atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, 1) uma foto mostrando o interior de uma choça. Em Lima,
ele mesmo assume um papel protagônico, transforma ·a ação pr~ticamente não chove nunca e por isso as palhoças são feitas
dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, de- de esteira de palha em lugar de paredes e tetos. Em geral, são
bate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, feitas num só ambiente que serve de cozinha, sala e dormitó-
preparando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro rio; as famílias vivem na maior promiscuidade, sendo muito fre-
qüente que· os filhos menores assistam às relações sexuais de
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127
seus pais, o que faz com que seja muito comum que irmãos e como se fossem inimigos. A foto ajudava a COQstatar sua seme-
irmãs de lO ou 12 anos de idade pratiquem o sexo entre si, lhança: miséria dos dois lados. As fotos dos bairros elegantes,
simplesmente por imitar seus pais. Uma foto que mostre o inte· por outro lado, mostravam os verdadeiros inimigos. A _foto da
rior de uma choça responde perfeitamente à pergunta "Onde rua divisória mostrava a necessidade de reorientar a violência
é que você vive?" Todos os elementos de cada foto possuem que pobres exerciam contra pobres. O exame e a discussão dessa
um significado especial que deve ser discutido por todos os foto ajudava a sua autora e aos demais a compreender sua
participantes do grupo: os objetos enfocados, o ângulo esco- realidade.
lhi(jo para tirar a foto, a presença ou ausência de pessoas na
foto, etc. • 5) Um dia um homem tirou uma fotografia do rosto de uma
criança de poucos meses, como resposta à mesma pergunta.
2) Para responder à mesma pergunta, um. homem tirou uma Claro, todos pensaram que esse hom:em tinha se enganado, e
foto da margem do Rio Rímac. A discussão em grupo esclare- reiteraram a pergunta:
ceu o significado: o Rio Rúnac, .que cruza Liina, cresce muito - "Você não entendeu bem: o que nós queremos é que
em certas épocas do ano. Isso toma extremamente perigosa a nos mostre onde é que você mora, onde vive. Queremos que
vida nas suas margens, já que é freqüente o.desmoronamento tire uma fotografia mostrando onde é que você vive, nada mais.
de grandes extensões de terra, superpovoada de choças, e a Qualquer foto serve: da rua, da casa, qa cidade, do rio ... ''
conseqüente perda de vidas humanas. S muito comum também
que crianças caiam ao rio, enquanto brincam e, quando estão - "Esta aqui é a minha resposta: eu .vivo aqui ... "
altas as águas, é quase impossível salvar as pequenas vítimas. - "Mas é uma criança ... "
Quando um homem responde a essa pergunta com essa foto, - "Olha bem no rosto dela: tem sangue. Esse menino,
está contundentemente expressando toda a sua angústia: como como todos os outros que vivem onde eu vivo, vivem amea-
poderá ~abalhar em paz se o seu filho. está brincando na beira çados pelos ratos que pululam nas margens do Rio Rímac.
do rio, e talvez se afogando? Quem cuida dessas crianças são os cachorros que atacam os
ratos e não deixam que cheguem perto. Mas houve por aqui
3) Outro homem tirou uma foto de uma parte desse mesmo
rio, onde os pelicanos costumam vir comer o lixo que se acu- uma epidemia de sarna e a Prefeitura teve que pegar a maio-
mula, em épocas de grande fome; os homens, igualmente fa- ria dos cachorros, e levou embora. Esse menino tinha um ca-
mintos, capturam os pelicanos, matam-nos e comem-nos. Mos- chorro que cuidava dele. Durante o dia, o pai e a mãe iam
trando essa foto, esse homem expressava, com uma grande ri- trabalhar e ele ficava sozinho, com o cachorro .tomando conta.
Agora já não. Na semana passada, quando você me pergun-
queza lingüística, que vivia em ~m lugar onde se bendizia a
fome, porque esta atraía os pelicanos, que saciavam sua pró- tou onde é que eu vivia, os ratos tinham vindo de tarde, en-
pria fome. · quanto o .menino dormia, e comeram uma parte do nariz d~!e.
Por isso ele tem tanto sangue no rosto. Olha bem a fotografta:
4) Uma mulher, que havia emigrado de um pequeno povoado essa é a .minha resposta. Eu vivo num lugar onde coisas como
inte~orano, respondeu com uma foto da "rua" principal ó :1 essa ainda acontecem."
favela onde morava: de um lado da rua viviam os antigos ha- Eu podia escrever uma novela sobre os meninos que vi-
bitantes limenhos, do outro lado os que vinham do interior do vem às margen.s do Rio Rímac, mas tão-somente nessa foto-
país. De um lado, os que sentiam seus empregos ameaçados pe- grafia e em nenhuma outra linguagem não fotográfica podia-
los recém-chegados; do outro lado, os pobres que tudo deixa- -se expressar a dor daqueles olhos infantis, daquelas lágrimas
ram atrás; em busca de trabalho. A rufl dividia esses irmãos, misturadas com aquele sangue. E, para maior ironia e raiva,
igualmente explorados, que se en~ontravam frente a frente, a foto era em kodakrome, made in USA .. •
128 129
. ,A utilização ·çt~ fotografia pede igJJalment~ ajudar a des- ' 'S muito fácil -dar uma máquina fotográficá á uma pessoa
cobrit -símbolqs válidos. para toqa uma _coxnun~dade, ou gru{>o qtie jamais tirou umà foto, dizer-lhe por ande deve olhar para
soci_al.. Oron:e. muitas ,vezes que grupos teatrais b~m intencio- poder enfocar, e que botão deve apertar. Basta isso, ·e · os meios
n~dps não conseg'l,l;e~- conectar-se com um público ·popular de p~odução da fotografia estarão .em mãos dessa ..pessoa. Mas,
como pr oceder no .caso específico do teatro? . ;) ·
1
~o,rq~u~ · utjliz1tm símbolos que, .par .. a esse públic:o, ,. nada signi-
~!Çam. f Pode ser que · ~ma coroa real seja um símbolo, .pé po- Qs .meios de produção da fotografia estão constituídos
der. . . mas apenas para af pessoas que aceitam, c.orno ·símbolo pela -máquina .fotogr-áfica.• que é relativamente fácil de, 1panejar,
de poder, uma coroa realf . . Um símbolo só é um símbolo se mas os meios de proàução do tçatrô estão constitu(~os pelo
é .aceito por do'is . interlocutares: o ·que transmite •.e. o que re- próprio homem, que já não é tão fácil de manejar.
cebe. A coroa pode provocar um tremendo. impacto em ·uma
pessoa \e deixar uina outral:completamente insensível. · Podemos mesmo afirmar que a primeira palavra do voca-
O que é a exploração? A tradicional figUra do' Tio Sam bulário teatral· é o corpo humano, principal fonte de' som . e
é; para muito~ grupos sociais' espalhados · po.r' todo d mundo o movimento. Por isso, . para qúe se poss.a dominar O!! meios ae
máis perfeítct e acabado sím}?dlo da exploração. Expressa ~m .produção ' teatral, deve-se ' primeiramente conhecer o próprio
perfeição a rapina do. imperialismo iànque: · ·· . corpo, para poder depois tomá-lo mais expressivo. SÓ d'epois
. Na·· experiênci~ teatràl limenhá também · s~ periuntou ·a de conhecer o próprio corpo e ser çapaz de torná-lo mais
vánas ·p~ssoas _o ·que era exploração·, exigindo-se a' _resposta em exP.ressivo, o "espectador" estará habilitado·• a ·praticar formas
fotografta. Muttas fotos-respostas mostrávam o dorio do arma- teatrais que, por etapas, ajudem-no a ,Iibetàr.:.se de súa condição
,zéQl; qu o ~9mem . que v:inha cobrar o aluguel, ou um balcão de de "espectador" e assumir a de "ator'~. · deixando· de ser objeto
um~ ·venda; ,ou lJIIl.a· repartição.. pública, etc. ·Um menino res- e passando a ser sujeito, convertend0-se 'de testemunha em
pondeu a essa pergunta com uma f<»to que mostrava um prego protagonista.
na parede. P·a ra ele, esse prego era- o símbolo , mais ·perfeito L .
O plano geral da conversão do espectador em ator· pode
da1 exploraç~o. ;Quas~. ninguém entendeu porque, mas .todos os
ser sistematizado no seguinte esquema -~~al de quatro. etapas:
demats:,memnos estavam totàlme,nte de acordo. A discussão da
foto ..es.clareceu· 0. porque. Em Lima, os meninos, começam tra-
~a~ando para .ajudar a econom.ia .doméstica, quando chegatn PRIMEIRA ET.\PA - Cp~heciii?-ento do Corpo .- :; ~eqijência de
l;!. ~Idade-,de · $ ou .6 anos: , com,eç<,tm cemo .engraxates. ~ lógico exercícios em, que se começa a conhecer o · próprio corpo,
qu~,. na_s favelas onde vivem ·não existem sapatos para engraxar, ~~as limitações e suas ,pos{ibilidaçles, suas deformaç,ões sociais
e, por ,1sso essas. crianças devem ir ao centro de Lima· exercer e. suas possibilidades de recuperação;. . . .
o seu ·afício. Levam consigo uma caix~.- qen~ro da ,qual colocam
todas os apetrechos· necessários à, St:Ja~ _profissão. Mas ev:ident,é - SEG~NDA ETAPA- Tornar o Corpq Expr~ssiv9 _:,Seqüência
mente ·não podem ficar .carregando .todas as manhãs e todas de jogt)s .em que cada , pessoa comçça a se expressar unicamen-
as noites suas caixas, do trabalho à casa e da casa ao traba- te através do corpo, abandonaqdo outras formas de express.ão
U10• .PQr isso, são obrigados a alugar um prego -na parede de mais usuais e cotidianas; ·
um ' b;tr, e o proprietário. lbes cobra Cf aluguel · d~ três soles
por·,:noite e por .prego. Quando vêem _um, prego,. esses meninos TERCEIRA ETAPA - 0 Teatro como Linguagem - Aqui ·se
ode1~ a. op.x:essíio; se vêem. uma coma re~~. o Tio Sam ou·
~meça a praticar o teatro como lingUagem viva ·e presente, e
uma foto de Nixon, etc., o m.ais provável ~ que, não compreen-
dam nada. ·· · nao .. oomc:> produto acabado que mostra imagens do pàssaào:

IJQ i31
PRIMEIRO GRAU- Dramaturgia Simultânea: os especta- simples:fato de que o alfabetizador vem com a missão de alfa-
dores "escrevem", simultaneamente com os atores que re- betizar (que se supõe ser uma ação coercitiva, impositiva) ten-
presentam; de a afastá-lo da gente do lugar. Por isso, convém que a apli-
SEGUNDO GRAu- Teatro-Imagem: os espectadores inter- cação de um sistema teatral comece por algo que não seja
vêm diretamente, "falando" através de imagens feitas estranho aos participantes (como por exemplo certas técnicas
com os corpos dos demais atores ou participantes; teatrais dogmaticamente ensinadas ou impostas); deve, ao con-
trário, começar pelo próprio corpo das pessoas interessadas em
TERCEIRO GRAu- Teatro-Debate: os espeçtadores inter-
participar da experiência.
vêm diretamente na ação dramática, substituem os atores
e representam, atuam! Existe uma enorme quantidade de exercícios que se podem
praticar, tendo todos, como primeiro objetivo, fazer com que
o participante se tome cada vez mais consciente do seu corpo,
QUARTA ETAPA- Teatro como Discurso- Formas simples de suas possibilidades corporais, e das deformações que o seu
em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas corpo sofre devido ao tipo de trabalho que realiza. Isto é:
necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas cada um deve sentir a "alienação .JDUScular" imposta pelo tra-
ações. Exemplo: balho sobre o seu corpo.
Um pequeno exemplo ·poderá esclarecer este ponto: com-
1) teatro-jornal pare-se as estruturas musculares do corpo de um datilógrafo
2) teatro invisível com as de um vigia noturno de uma fábrica. O primeiro realiza
3) teatro-fotonovela seu trabalho sentado em uma cadeira: do umbigo para baixo,
4) quebra de repressão seu corpo se converte, durante o trabalho, em uma espécie de
5) teatro-mito pedestal, enquanto que os seus braços e os seus dedos se agi-
6) teatro-julgamento lizam. O vigia, ao contrário, é obrigado a caminhar de um
7) rituais e máscaras lado para outro durante oito horas seguidas e, conseqüente-
mente, desenvolverá estruturas musculares que o ajudem a
.·;·
caminhar. Os corpos de ambos se alienam segundo os traba-
lhos que realizam respectivamente. .
PRIMEIRA ETAPA- Conhecimento do· COrpo
/ O mesmo que acontece com esses dois trabalhadores
acontece igualmente com qualquer pessoa, em qualquer função,
O contato inicial com um grupo de camponeses ou ope- em qualquer status social. O conjunto de papéis que uma pes-
rários é extremamente difícil se se coloca a proposição de soa desempenha na realidade impõe sobre ela uma "máscara
"fazer teatro". O mais provável é que nunca hajam ouvido falar social" de comportamento. Por isso terminam por parecer-se
de teatro óu, se alguma idéia têm a respeito, é uma idéia de- entre si pessoas que realizam os mesmos papéis: militares, clé•
formada pela televisão, pelo mau cine ou por algum grupo cir- rigos, artistas, operários, camponeses, professores, latifundiá-
cense. g muito comum também que essas pessoas associem rios, nobres decadentes, etc.
"teatro" com ócio ou perfumes. De modo que é necessário ter Compare-se a placidez angelical de um cardeal passeando
cuidado, ainda que o contato inicial se dê através de um alfa- sua bem-venturança pelos jardins do Vaticano, com um beli-
betizador que pertença à mesma classe dos analfabetos ou coso general dando ordens aos seus subalternos. O primeiro
semi-alfabetizados, ainda que viva entre eles em uma choça caminha suavemente, ouvindo música celestial, colhendo flores
semelhante à deles, com a mesma falta de comodidades. O coloridas com as mais puras cores impressionistas. Se, por ca-

132 .I
133
sualidade, um passarinho cruza pelo seu caminho, supõe-se que que uma corrida .convencional de 500 metros: o esforço ne-
o cardeal lhe dirá alguma coisa ternamente, alguma palavra cessário para manter o equili'brio em cada nova posição, a
amável de estímulo cristão. Ao general, pelo contrário, não fica cada pequeno deslocamento, é enorme e muito intenso.
bem falar com os passarinhos, mesmo que tenha vontade. Um
general deve falar como se estivesse sempre ordenando, mesmo
que esteja dizendo à sua mulher que a ama. Um militar deve 2) Comda de Pernas Cruzadas - Os participantes se unem
usar esporas, sempre que possível, mesmo que se trate de um em duplas, se abraçam pela cintura e cruzam suas pernas (a
almirante ou de um brigadeiro. Por essa razão, todos os ge-- perna esquerda de um com a perna direita do outro), apoian-
nerais se parecem entre si, e o mesmo acontece com todos os do-se cada um na perna não cruzada. Durante a corrida, cada
cardeais; mas os cardeais são completamente diferentes dos ge- dupla se move como se fosse uma só pessoa, e cada pessoa se
nerais. move como se o companheiro fosse sua perna. A "perna" não
Os exercícios desta primeira etapa têm por finalidade pode saltar sozinha: tem que ser movida pelo seu coptpa-
"desfazer" as estruturas musculares dos participantes. Isto é: nheiro.
desmontá-las, verificá-las, analisá-las. Não para que desapare-
çam, mas sim para que se tomem conscientes. Para que cada 3) Corrida do Monstro - Formam-se "monstros" de quatro
operário, cada camponês, compreenda, veja e sinta até que pon-
• pés, com duplas ém que cada um abraça o tórax do compa-
to seu corpo está determinado pelo seu trabalho. nheiro, estando um de cabeça para baixo, de tal forma que
Se uma pessóa é capaz de "desmontar" suas próprias estru- as pernas de um encaixam no pescoço do outro, formando um
turas musculares, será certamente capaz de "mentar'' estrutu- monstro sem cabeçá e com · quatro patas. Correm, levantando
ras musculares próprias de outras profissões e de outros status cada um ó corpo inteiro do outro, dando uma volta no ar,
sociais, estará mais capacitado' para interpretar outros perso- firmando-se outra vez no chão, e assim sucessivamente.
nagens diferentes de si mesmo.
Todos os exercícios desta série estão, portanto, destinados 4) Corrida de Roda - As duplas formam rodas, cada um
a "desfazer"; não interessam os exercícios acrobáticos, atléti- agarrando os tornozelos do companheiro, e correm uma corrida
. cos, que tendam a criar estruturas musculares próprias de atle- de rodas humanas.
tas e de acrobatas.
A título de exemplificação, descrevo alguns destes exer- 5) Hipnotismo - As duplas se põem frente a frente e cada
cícios: um coloca a mão a poucos centímetros do nariz do compa-
nheiro, que está obrigado a manter essa distância permanente-
1) Corrida em Câmara Lenta - Os participantes são convi- mente; o primeiro começa a mover a mão em todas as direções,
dados a fazer uma corrida com a finalidade de perdê-la: ganha para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, mais
o último! O corpo de cada um, ao mover-se em câmara lenta, rápida ou mais lentamente, enquanto que o segundo move
em cada centímetro em que se desloque o seu centro de gra- todo o seu corpo de tal maneira a manter a mesma distância
vidade, terá que r~encontrar uma nova estrutura muscular entre o seu nariz e a mão do companheiro. Nestes movimen-
que promova o equiHbrio. Os · participantes não podem nunca tos, os participantes são · obrigados a assumir posições corpo-
interromper o movimento, uma vez iniciado, e ficar parados; rais que jamais ·assumem na vida diária, "reestruturando" per-
devem também "dar .o passo mais comprido que puderem e, ao manentemente suas estruturas musculares.
"correr", os seus pés devem passar por cima dos joelhos. Neste Em seguida, formam-se grupos de três: um lidera e os
exercício, uma corrida de 10 metros pode ser mais cansativa outros dois acompanham cada uma das mãos do líder que pode,
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por sua vez fazer qualquer coisa, cruzar os braços, separar utilizados ·nesta etapa. Creio, porém, que é sempre conveniente
as mãos, etc~, enquanto que os outros dois devem m~ter se~­ propor um exercício e ao mesmo tempo propor que os parti-
pre a mesma distância. Deve-se observar que se a mao do h- cipantes inventem outros. :e importante manter uma atmosfera
der está com os dedos para cima, o rosto do que o segue criadora: todos estão criando, os que ensinam e os que apren-
deve igualmente estar na vertical, e se a mão se inclina para dem. Todos devem inventar. E, nesta etap~, é necessário ima-
a horizontal, igualmente se inclinará o rosto. . ginar e praticar exercícios que "analisem" as estruturas muscula-
Em seguida, formam-se grupos de cinco, se_ndo q~e um h- res de cada participante
dera e os outros quatro seguem as mãos e os pes do llder, 9-ue
.pode fazer o que sentir vontade, inclusive dançar. ~~ste tlp?
· de exercício o líder deve procurar permanentemente deseqUI- SEGUNDA ETAPA- Tomar o Corpo Expressivo
librar" o ~rpo do companheiro que, assim, será fo~çado a
buscar um novo equilíbrio através de posições corp.o:a1s abs~­
O objetivo da segunda etapa é o de desenvolver a capaci-
lutamente novas; quanto mais ridículas e~sas. pos1~oes, .~ats
novas serão menos usuais, e portanto mats aJudarao a des- dade expressiva do corpo. Estamos acostumados a tudo comu-
montar" as ~struturas musculares usuais e mecanizadas. nicar através da palavra, o que colabora para o subdesenvolvi-
mento da capacidade de express~o corporal. Uma série de
"jogos" pode ajudar os participantes a desenvolver os recursos
6) Luta de Box à Distdncia - Os participantes são convida- .do corpo; como forma de expressão. Trata-se de "jogos de sa- , •
los a praticar nma luta de box, ma'!; não se podem tocar tão" e não necessariamente de exercíCios de laboratório. Os •
uns aos outros. Cada um deve lutar como se estivesse lutando participantes são convidados a "jogar" e não a "interpretar"
de verdade mas sem tocar o companheiro que, não obstante, personagens, mas é certo que "jogarão" tanto mellior quanto
deve reag;l fisicamente como se tivesse recebido cada golpe. melhor "interpretem".
Estas lutas podem chegar a ser extremamente violentas e a
única coisa que se ·proíbe é que os lutadores se toquem ... AJguns exemplos de "jogos": distribuem-se entre os par-
ticipantes pequenos papéis com nomes de animais, macho e
:e
7) Far-West- uma variação do exercício anterior. ~s par- fêmea. Cada participante tira um papel, na sorte. Durante dez
minutos de "jogo" devem tentar dar uma visão física, corporal,
ticipantes improvisam uma cena típica das más comédtas. de
far-west, representando o pianista bêbedo, o garçom afemma- do animal que lhes tocou. :e proibido falar ou fazer ruídos
do, as bailarinas-prostitutas, os homens maus que ~ntram dando óbvios que denunciem o animal, já que a comunicação deve
pontapés nas portas de vaivém, etc. Toda esta cena muda se ser exclusivamente corporal. Portanto não se pode miar no
representa sem que os participantes possam tocar-se, mas de caso de "gato" ou "gata", nem ladrar, no caso de "cachorro"
tal maneira a reagir a todo gesto ou fato que ocorra,. como ou "cachorra". Depois dos dez minutos iniciais, e obedecendo
por exemplo uma cadeira imaginária que se atira contra uma a um aviso do orientador, cada participante deve procurar o
fila de garrafas, cujos fragmentos saem disparados e.m todas as seu par, entre os demais participantes, que também estarão
direções: é necessário reagir ao movimento ~ cade1ra, ~ gar- imitando seus animais, sempre em suas versões "macho" ou
rafas quebradas, etc. No fim da cena estarao todos bngando "fêmea". Quando dois participantes estiverem convencidos de
contra todos. que eles formam UfP casal~saem de "cena" e só então se lhes
No meu livro 200 EXERCÍCIOS E JOGOS PARA O ATOR E permite falar para saber se realmente são um casal, e o jogo
p A O NÃo-AUTOR COM VONTADE DE DIZER ALGO ATRAVÉS DO termina quando todos os "animais" hajam encontrado seus
T~~TRO sistematizei diversas séries de exercícios que podem ser companheiros. E isto terá sido feito através da comunicação

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exclusivamente corpóral, sem a .utilização de palavras, ·nem - "Eu sou o colibri macho e você é a colibri fêmea,, não
sequer de ruídos óbvios. é verdade???" ..
Nos jogos deste tipo, o .importante .~ão é. ·~acertar"; o O gordo desalentado. olhou pra ele e disse assim:
importante .é fazer com' que todos os participantes se ~sforcem :- "Não, imbecil ... vocênãp vi.u que·eu sou o touro? .. , "
para expressar~se ,através. de seus corp,os, coisa a .que nJío e~tão O movimento da, mão significava (O \I pretendia!) o mo-
acostumados. Ainda que se cometam todos OS·. ~rros ,magmá- vimeqto que fazem os .touros pa arem~ ~ntes de investirem
veis, o exercício será igualmente bom se os participantes ten- ,contra o to,ureiro. Mas nunca ~al;>eremps , de que Dfaneira ;'um
tarem se expressar fisicamente, sem o recurso da palavra. gordo -interpretando um touro convence~ ao pobre homem s~r
Deste modo, e sem .que se dêem conta~ estarão já "fazendo um. deljcado e canoro colibri. Não ·importa: a úpic~ cois~ jm- .
teatro". . . · · · portante é que, durante 15 ou 20 minutos, toda essa gente ten-
tou "falar" com seu corpo. ,
Eu me. lembro. gue uma vez, num,a favela, a .um ltomem Este tipo de jogo po.de. variar ao infinito e os papéis po-
lhe tocou. interpr,etar. o coliqri. .O pobre .coitado. não tinha , a dem conter, por exemplo, nomes de.profissões. Se os partidpan-
menor idéia .de como seri.a possível expr~ssar fisicamente· um tes mostram animais, talv.ez isso ·nada tenha. que ver com a
colibri; mas se lembrou' de que esse pa,s~arinbo . voa muito rapi:- ideologia. .Mas se um c amponês ·deve in.terpretar um latifundiá-
damente de flor:..e~ .flor, f~ca parado no a.! ppr alguns i~stantçs, rio, ou se um operário deve interpretar um dono .d~ fábrica,
enquanto l?eija çada flor e. e,mit,e, um rujdq p~rticular. .Com o~ ou se a mulher de :'!Jm. destes deve interpretar um policial, nestes
braços, o homem comC9ou a im!t~r 9 bater frenéF~P d,e .asas dq . casos a ideologia também conta e encontra sua expressão atra-
beija-flor, ,e . "voando" de..;Bltrttc;_tpante e\11. parttctpan_t~, c9mo vés do jogo. Os papéis podem ·também conter o.s nomes dos
se' seus companheiros fqssem. ~ores, detinha-se diante d!? ca~a próprios participantes, de tal forma que uns interpretarão os
um por alguns instantes e emitia um ruído que supunha pró- óutros, desta maneira :revelando suas opiniões e fazendo fisica-
prio dessa ave: "Brrrrrrrrrr!" Durante dez minutos todos tive- mente suas críticas mútuas. . .
ram que · agüentar o aguerrido ·sênhor fazendo "Brr~l" Também nesta etapa, como na primeira, exi,stem muitíssi-
diante de-uns ·é outros.. Depois, quando começliram todos a bus:- mo·s jogos que se podem utilizar, ·tratando-se semp,re de f~zer
car o t:ompanheir<?", este ·bomeril ol~av,~ à todos o~ dem~i~ e . com . que os •partiçipantes inventem outros, -e que .não, seJaw.
nenhum lhe parecia suficiente "colibn ~ para atrai-lo. Fmal- receptores passivos do divertimento · que .·vem de fora.: •
mente descobriu um· senhor gordo e alto que, COn;J. suas mãos, .
fazia ~om desalento ·um movimento pendular e não teve ~uvi::­
das, pensou q.ue ~le era: á s'uà_ amada. 'rolit>ri;·' e -~~,rth1 ' pra TERCEIRA ETAPA- Teatro como l,.inguagem
cima dt> ·gordo, âando vo1tas ao seu redor, cada vez ·.caiitando
com mais galhardia "Brrrrrrrrrrriinrr!!! . :): ", · m~is· anroro~a­ . .
mente 'batendo· s~as ·asas e; dando beijiiÜlOs' no ' ar; ·esperou· que' Esta etapa se divide em três-, partes,. significandb cada uma
o gordo o· seguis~e. 0 gordo tentava escapar de. tó'? o jeito~ ·~à~ um grau diferente e -progressivo ··de participação direta~ do
vinha ,.sempre em cima o colibri macho enamorado, c~11tando espectador no espetáculo. Trata-se de· fazer com que O· espec-
alegrenrente; até que o ·gordo, eriquàntó ,os 'outros :~~rriam 1 ~e tador se disponha a intervir na ação,. abandonando sua condi-
ção de objeto e assumindo plenamente o papel de sujeito.
riso; decidiu ·acompaiihá-lo para fota·1da '·'c'êna" e as~I~' t:rm~~ · .As· duas etapas anteriores ·são preparatórias e estão cen-
1
nar seus padecim."etitds,' ·embófa estivesse' c~rt? ·~e que na?. ~e tradas no trabalho do participante com o seu próprio corpo.
tratava tle üm casaL Quandó sàíram ··(e só enta:o se permitia Esta nova etapa· enfatiza ·o tema a ser discutido, e promove o
falar) ;, cheio de , alegria, o h omedi quase gritou: ' · ·· passo do espectador à ação -verdadeira;_

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Primeiro Grau: Dramaturgia Simultdnea - Este é o primeiro atores improvisaram a história que ela lhes contou até o ponto
convite que se faz ao espectador para que intervenha, sem que em que o marido retoma a casa, depois de um dia de trabalho
seja necessária sua entrada física em "cena". Trata-se aqui de e quando a mulher acaba de ser informada do mistério das
interpretar uma cena curta de 1O ou 15 minutos, proposta por cartas. Aqui se interrompia a ação e a participante-atriz, que
alguém do lugar, por um vizinho da favela, e improvisado pelos. interpretava a senhora analfabeta, perguntava aos demais parti-
atores, depois de discuti-la com o "autor" e delinear o enredo. cipantes-espectadores qual devia ser a sua atitude frente ao ma-
Pode-se, inclusive, e sempre que haja tempo, escrever a cena, rido.
que não tem que ser necessariamente improvisada. Em qualquer Todas as mulheres da platéia se alvoroçaram, começaram
caso, o espetáculo ganha em teatralidade se a pessoa que pro- a discutir e a expor suas opiniões. Os atores ouviam as dife-
pôs a cena, que contou a história, estiver presente na platéia. rentes sugestões e representavam segundo as non:nas dadas pelo
A cena deve ser representada até o ponto em que se apresente público, procurando ser intérpretes fiéis desse público-dra-
o problema central, que necessite uma solução. Neste ponto, os maturgo. Todas as possibilidades de feminina vingança foram
atores param de interpretar e pedem ao público que ofereçam examinadas a quente, em teatro, e não a frio, em palavras.
soluções possíveis, para que as interpretem, para que as anali- Neste caso particular, foram estas as soluções propostas:
sem. Em seguida, improvisando, interpretam todas as solu-
ções propostas pelo público, uma a uma, sendo que todos os
1) Chorar muito para fazer com que o marido se sentisse
espectadores têm o direito de intervir, corrigindo ações ou falas
culpa4o. Foi uma jovem que sugeriu que a mulher se pusesse
inventadas pelos atores, que são obrigados a retroceder e a
interpretar outra vez as mesmas cenas ou dizer as novas pala- a chorar muito para que o marido se desse conta de como
vras propostas pelos espectadores. Assim, enquanto a platéia havia se comportado mal. Os atores não podem recusar as
soluções propostas, gostem ou não dessas propostas. Devem
"escreve" a peça, o elenco simultaneamente a interpreta. Tud<> interpretar todas. A atriz portanto chorou muitíssimo, enquan-
o que possam pensar os espectadores é discutido "teatralmen- to o marido a consolava e lhe assegurava que águas passadas
te" em cena, com a ajuda dos atores. Todas as soluções pro- não movem moinhos, que. já se havia esquecido desses amores
postas e opiniões são expostas em forma teatral. A "discussão" juvenis, que a amava, etc., e quando ela parou de chorar, ele
neste caso não se produz através da utilização de palavras so- pediu que ela servisse o jantar e tudo ficou por isso mesmo,
mente, mas sim de todos os elementos teatrais possíveis. na santa paz de Deus. O público não aceitou essa solução, pois
Um pequeno exemplo: numa favela de San Hilarión, em pensavam todos (especialmente as mulheres presentes) que o
Lima, uma senhora propôs um tema candente. Era ela analfa- marido merecia maior castigo.. .~
beta e seu marido lhe havia dado para guardar, anos atrás.
certos "documentos" que, segundo ele, eram de suma impor- 2) Abandonar a casa deixando· o marido sozinho, como cas-
tância. A boa senhora os guardou sem suspeitar de nada. Um tigo. A atriz, sem discutir, interpretou esta sugestão e, depois
belo dia, os dois brigaram e a mulher se lembrou dos tais de mostrar ao marido como havia sido ruim, agarrou as suas
"documentos" e quis saber exatamente de que se tratava, pois. coisas, meteu tudo dentro de uma mala e foi embora, batendo
temia que se relacionassem com a casinha que possuíam. Como- a porta na cara do marido, que ficou sozinho, muito sozinho,
não sabia ler, pediu a ajuda de uma vizinha. Muito amável,. dentro de casa. Mas, assim que saiu, perguntou ao público o
veio a vizinha e leu os "documentos" que, para posterior di-· que deveria fazer em seguida. Para castigar seu marido, ter-
versão de todo o bairro, não eram documentos e sim cartas. minava por castigar-se a si mesma. Aonde iria agora? Em
de amor escritas pela amante do marido da pobre analfabeta. que casa poderia viver? Esse castigo positivamente não servia,
A mulher traída jurou vingança. Mas, como vingar-se? Os. já que recaía sobre ela mesma.
140 141
\
3) Expulsar o marido de casa. Também esta variante foi soas conseqüências, suas indicações e contra-indicações. Todo
ensaiada. O marido pediu e pediu que o deixasse entrar, mas espectador, por ser espectador, tem o direito a experimentar
a mulher decidiu que ficasse de fora. Depois de muito rogar, sua versão. Nada de censura prévia. :e. a própria representaçã o
o marido comentou: -"Muito bem, eu vou embora. Hoje foi teatral que mostrará os acertos ou desac:rtos ~e ~ada prop?sta.
o dia de pagamento e eu vou com esse dinheiro viver eom a . O ator não se modifica em sua funçao prmctpal:· contmua
minha amante, porque eu gosto muito mais dela do que de sendo o intérprete. O que se modifica é à quem tem que inter-
você, e você que se vire sozinha!" E foi :mbora. A atriz ~ pretar! Se antes interpretava a um senhor que escrevia fecha-
mentou que não bavi~ gostado dessa soluçao, porq~e o ~ando do em seu escritório (e não tenho nada contra esses senhores:
iri~ agora viver com outr~ e ela,.. pobre, ~u_e far~a? Nao. g~­ sou um deles!), aqui, ao contrário, deve interpretar um pú-
nhava o suficiente para VIver sozinha e nao podta prescmdtr blico popular, um dramaturgo coletivo, que não lhe oferece
do marido. um texto acabado mas sim soluções, sugestões, cenas, frases,
características - e ele deve reunir tudo isso na apresentação
perfeita de um personagem vivendo uma história. Esse dra~a­
4) A última solução foi apresentada por uma senhora gorda
turgo coletiy~ vive npma f~vela, ou tr~balha numa ~ábnca,
e exuberante, e foi aceita pela unaniulidade do 'público pre- ou são os vtzmhos que se reunem na soctedade dos amigos do
sente, homens e mulheres. Disse a experiente senhora: "Você
bairro, ou os paroquianos de uma igreja, ou os camponeses
faz assim como eu te digo: deixa ele entrar, agarra um pau
de uma Liga Camponesa, ou os estudantes de uma escola. Os
bem co~prido e bem forte, e quando ele entrar, baixa a
lenha com toda tua força, bate bastante. Depois que tiver lhe atores têm a missão de interpretar os pensamentos destes gru-
dado uma boa surra, para que se arrependa, você joga fora o pos de homens e mulheres. O ator deixa. de inte.rpretar o indi-
pau, você serve o jantar a ele, com muito carinho, e depois você víduo e passa a interpretar o grupo ; detxa de mterpretar um
o perdoa ... " texto já escrito, acabado, e passa a interpretar uma dramatur-
A atriz representou essa versão ( dep0is de vencer as re- gia embrionária. Isto é mui.to o:ais difícil, não resta dúvida,
sistências naturais do ator que representava o marido e que não mas é igualmente muito mats cnadorl
queria apanhar) e, depois de lhe dar uma boa tunda, para
diversão do público presente, os dois se sentaram à mesa, co- Segundo Grau: Teatro-Ima gem- Neste segundo grau? espec-
meram, e discutiram amistosamente as últimas medidas do go- tadOJ; deve intervir muito mais diretamente. Pede-se que ele
verno, nacionalizandp companhias ianques •.• expresse sua opinião sobre um tema determinado, de interes-
Esta forma de teatro produz uma grande excitação entre se coinum que os participantes desejem discutir. Esse tema
os participantes: começa a demolir-se o muro que separa ato- pode ser a~plo, aqstrato, como por exemplo "o imperialismo",
res de espectadores. Uns escrevem e outros representa~ qua~e ou pode mais concretamente referir-se a um problema local,
simultaneamente. Os espectadores sentem que podem mtervtr como a ausência de água encanada, coisa que costuma acon~
na ação. A ação deixa de ser apresentada deterministicame~te, tecer em quase todas as favelas latino-americanas. Pede-se ao
como uma fatalidade, como o Destino. O Homem é o. Destmo participante que expresse sua opinião, mas sem falar: deve
do Homem! Pois então o Homem-Espectador é o cnador do apenas usar os corpos dos demais participantes pa.ra "esculpir''
Destino do Homem-Personagem. Tudo está sujeito à crítica, com eles um conjunto de estátuas, de tal maneira que suas
à retificação. Tudo é transformável, e tudo se pode transfor- opiniões e sensações resultei? evidentes. O participante deve-
rá usar os corpos dos demais como se ele fosse um escultor,
mar no mesmo instante: os atores devem estar sempre prontos
e como se os outros estivessem -feitos de barro. Deverá deter-
a aceitar qualquer proposta e não rechaçar nenhu~a: d:vem
minar a posição de cada corpo até os detallies mais sutis de
simplesmente representá-Ias, ao vivo, mostrando quats serao as

142 143
\
\
suas expressões fisionômicas. Não é permitido falar em enhu- agarrava por trás, tornando-o indefeso. Diante destes três ho-
ma hipótese. O máximo que pode fazer cada escultor é mos- mens, a moça colocou uma mulher ajoelhada, rezando, de um
trar com o seu próprio rosto a expressão que deseja ver no lado e do outro um grupo de cinco homens, igualmente ajoe-
rosto do participante-estátua. Depois de organizado este con- lhados, com as mãos atadas atrás das costas. Atrás do homem
junto de estátuas, deve-se discutir com os demais participantes, castrado, a moça p ôs outro participante em ostensiva atitude
se todos estão de acordo ou se propõem modificações. Todos de pode:r e violência e, atrás deste, doi's homens armados apon-
têm o direito de modificar o primeiro conjunto, no todo ou tando suas armas contra o prisioneiro caído.
em parte. O importante é chegar a um conjunto modelo que, Est~ era a imagem que a moça tinha do seu povoado.. Ima-
na opinião geral, seja a concreção escultural do tema dado, gem terrível, trágica, pessimista, derrotista, mas, ao mesmo
isto é: este modelo é a representação física peste tema! Quan- tempo, imagem de algo realmente acontecido. Quando se lhe
do finalmente se chega a uma figura aceita mais ou menos una- pediu que mostrasse como ela gostaria que fosse seu povoado,
nimemente, pede-se ao escultor que faça outra imagem mos- a jovem compôs outro conjunto de gente que se amava, que
trando como ele gqstaria que fosse o tema dado. Em outras trabalhava, enfim, um Otusco feliz e contente. Primeiro a ima-
palavras: o primeiro conjunto deve mostrar a imagem real, gem real, depois a imagem ideal. A partir daí, começava o tra-
enquanto que o segundo mostrará a imagem ideal. Tendo-se balho: como se poderia, a partir da imagem real, chegar à ima-
estas duas imagens, pede-se a qualquer participante que mostre gem ideal? Como produzir a modificação, a transformação, a
qual seria, a seu ver, a imagem de trânsito. Isto é: temos revÇ>lução? Esta discussão, feita através das imagens, se cons-
uma realidade que queremos -transformar; como transformá- titui ná parte mais importante desta forma teatral.
-Ia? Isto deve ser mostrado através de imagens formadas pelos Cada participante tinha o direito de, a partir da primeira
corpos dos participantes. Cada um terá o direito de, sempre imagem, reordenar o grupo para. mostrar de que maneira, na
sem falar, esculpir modificações na imagem real, mostrando sua opinião, a realidade poderia ser transformada, reordenando
como seria possível chegar-se à -imagem ideal, isto é, mos- as forças significadas pelas imagens. Cada um devia mostrar a
trará concretamente uma imagem de trânsito (visível, palpável, sua opinião feita de imagens. Havia discussões ferocíssimas,
concreta!) qual seria o melhor caminho para a transforma- sem palavras. Quando alguém exclamava:
ção, .a revolução, ou qualquer outra palavra que se · queira - "Eu acho que ... " era imediatamente interrompido:
utilizar. Todo o debate é feito pelos "escultores" que modiii- "Não diga o que pensa: venha e mostre!" O par:ticipante ia e
cam "esculturas": cada escultura terá inequivocamente um sig- mostrava, fisica~:p.ente, visualmente, o seu pensamento, e a dis-
nificado, e cada modificação, igualmente, terá um significado cussão prosseguia.
particular. Neste caso-particular, observaram-se especialmente as se-
Um exemplo concreto ajudará a esclarecer este processo. guintes variantes:
Uma jovem alfabetizadora que vivia num pueblo pequeno, cha-
mado Otusco, foi encarregada de mostrar como era seu po- 1) Quando se pedia a qualquer moça do interior do país que
voado natal aos demais participantes. Em Otusco, antes do ftZes.se a imagem de trânsito, essa moça jamais modificava a
atual governo revol~cionário, houve uma revolta camponesa; imagem da mulher ajoelhada, significando claramente que não
os Iatifundistas (já não existem mais no Peru) prenderam o via na mulher nenhuma força transformadora, revolucionária.
lídef dessa rebelião, conduziram-no à praça central do povoa- Naturalmente, essas moças se identificavam com essa figura
do e, diante de todos, castraram-no. A moça de Otusco compôs feminina, e como não ·acreditavam em si mesmas como pro-
a imagem da castração, colocando um dos participantes no tagonistas possíveis da revolução, tampouco modificavam a
chão, enquanto que outro fazia o gesto de castrá-lo, e outro o imagem da mulher ajoelhada. Quando, ao contrário, pedia-se

144 ' 145

. '
o mesmo a uma moça de Lima, esta, mais "liberada", come-
çava por modificar justamente essa imagem, com a qual se 5) Outra jovem, no extremo oposto, fez todas as modifica-
identificava. Esta experiência foi feita repetidas vezes e sem- ções possíveis e imagináveis, deixando intocados unicamente
pre produziu o mesmo resultado, sem variações. Certamente os cinco homens de mãqs atadas. Esta jovem pertencia à
não se trata de uma ocorrência fortuita, mas sim de uma ex- classe média alta, e não se sabia porque estava aí nesse plano
pressão sincera e visual da ideologia e da psicologia das par- de alfabetização. Depois de várias tentativas, a jovem já esta-
ticipantes. As moças de Lima sempre modificavam a imagem va nervosa por não poder imaginar nenh\una outra transfor-
feminina, mas cada uma à sua maneira: umas faziam com que mação e por sentir que talvez algo mais houvesse, alguém lhe
a mulher se agarrasse à figura do homem castrado, outras que perguntou sobre a possibilidade de transformar primeiramente
se dispusesse a lutar contra o castrador, outras contra a po- as figuras atadas. A moça olhou espantada: "Que coisa . . • eu
derosa figura central, etc. Enquanto isso, as moças do interior não tinha reparado nesses ... " E era verdade. Era no povo que
do país não faziam mais do que permitir que a mulher levan- ela não tinha reparado nunca •. •
tasse as mãos em atitude de oração. . Es~ forma de teatro-imagem é, sem dúvida, uma das
mrus es~unu~antes, por ser tão fácil de praticar e por sua
2) Todos os participantes que acreditavam no Governo Re- extraordmária capactdade de tomar visível o pensamento. Isto
volucionário começavam por transformar as figuras armadas, ocorre. porque, qu~ndo se usa a linguagem idioma, cada pala-
no fundo do conjunto~ isto é, os dois homens apontando suas vra ubltza~a .possut uma denotação que é a mesma para todos,
armas contra o castrado: passavam a ap9ntar suas armas con- .mas possu1 Jgua1m~nte uma conotação, que é a única para
tra a figurà central, ou contra os castradôres; quando, ao con- cada um. Se eu dtgo a palavra "revolução", evidentemente
trário, o participante não tinha a mesma fé em seu Governo, todos compreenderão que estou falando de uma transforma-
modificava todas as outras, menos essas figuras armadas. ção radical mas, ao mesmo tempo, cada um pensará na "sua"
:ev~luç ão, em seu .conceito p~ssoal de revolução. Mas se, ao
3) As pessoas que acreditavam em soluções mágicas, ou em mves de falar, eu tiver que fazer um conjunto de estátuas que
transformações "<;le consciência" das classes exploradoras, co- signifique a "minha'' revolução, neste caso não existirá a di-
~ot?~ i a denotação-conotação. A imagem sintetiza ·a conotação
meçavam por modificar os castradores que se transformavam
mdtvtdual e a denotação coletiva. No meu conjunto que sig-
de moto próprio, e a poderosa figura central também se rege- nifica " revo!ução"? Que fazem as "estátuas"? Têm armas na
nerava sozinha. Mas aqueles que não acreditam nessa modali- mão, ou simplesmente votos? As figuras do povo estão unifi-
dade de trânsito social, transformavam primeiramente os ho- cad_a~ ~ uma atitude de luta contra as figuras que significam
mens ajoelhados, fazendo com que estes assumissem posições os mun tgos comuns a todos ou, pelo contrário, as figuras po-
de luta, atacando os seus dominadores. pulares estão dispersas, ou em atitude de discutir entre elas
enquanto se unificam as da opressão? Meu conceito de "re~
4) Uma jovem, depois de fazer com que todas as transforma- volução" ficará perfeitamente claro se, ao invés de falar, mos-
ções fossem obra dos homens ajoelhados que se liberavam e tro com imagens o que penso.
atacavam seus verdugos, e os capturavam, fez também com Recordo qu~ em uma sessão de psicodrama uma jovem
que uma das figuras do "povo" se dirigisse a todos os demais comentava repetidamente os problemas que tinha com seu
participantes, indicando claramente que, em sua opinião, as noivo, e sempre começava mais ou menos com a mesma frase:
transformações sociais são feitas pelo povo em seu conjunto, :·~1~ veio e me abraçou e então • •• " Sempre o mesmo abraço
e não apenas por sua vanguarda. Jructando seus relatos, e todos nós entendíamos que eles se
abraçavam, isto é, entendíamos o que a palavra "abraço" de-
146 , 147
nota. Um dia foi-lhe pedido que mostrasse, representando, Terceiro Grau: Teatro-Debate - Este é o último grau desta
como eram esses encontros e esses abraços. Foi isto o que ela etapa e aqui o participante tem que intervir decididamente na
mostrou: o noivo se aproximando, ela cruzando os braços ação dramática e modificá-la. Este é o processo: inicialmente,
sobre o próprio peito, como se estivesse se defendendo, en- pede-se aos participantes que contem uma história com um
quanto o noivo a agarrava e a apertava, e ela mantinha sem- problema político ou social de difícil solução. Deve-se .a se-
pre as mãos fechadas, continuamente se defendendo. ·Essa era guir improvisar ou ensaiar um texto que se escreva baseado na
a sua conotação particular da palavra "abraço". Quando com:.. história contada, e se apresenta a cena de 1O ou 15 minutos,
preendemos qual era o "seu" abraço, pudemos afinal com- que inclua uma solução proposta para determinado problema,
preender os problemas que tinha com o noivo ... e que se deseja debater. Quando termina a apresentação, per-
gunta-se aos participantes se estão de acordo com a solução
No teatro-imagem pode-se também utilizar outras téc- apresentada. Como quase sempre se apresenta, para fins de
nicas: discussão, uma má solução, é evidente que os participantes-
-espectadores dirão que não estão de acordo. Explica-se então
1) permitir que cada participante transformado em estátua que a cena será representada uma vez mais, exatamente da
realize um movimento, um gesto, e apenas um, cada vez que mesma maneira que da primeira vez. Porém agora qualquer
o orientador bata palmas. Neste caso o conjunto de imagens pessoa terá o direito de substituir qualquer ator e conduzir a
ação na direção que lhe pareça mais adequada. O ator subs-
se transformará segundo o desejo individual de cada partici- tituído deve aguardar do lado de fora, pronto para reintegrar-
pante-estátua; · -se no momento em que o participante dê por termináda sua
intervenção. Os demais atores, que permanecem em cena, de-
2) pede-se aos participantes-estátuas que guardem de memó- vem enfrentar as novas situações criadas pelos espectadores,
ria a imagem ideal, que voltem à imagem real primitiva e examinando "a quente" todas as possibilidades que a nova pro-
depois, a um sinal do orientador, realizem os movimentos· ne- posta ofereça.
cessários para outra vez retomarem à imagem ideal, mostrando Os participantes que intervenham devem obrigatoriamente
assim o conjunto de imagens em movimento e permitindo ana- continuar as ações físicas dos atores que são substituídos, de
lisar a viabilidade ou não dos trânsitos propostos. Através modo a que ·a "marcação" continue mais ou menos a mesma.
deste processo, será possível observar se um conjunto se trans- Não é permitido entrar em cena e simplesmente ficar falando,
forma em outro (real em ideal) por obra graça do Espírito falando, falando: devem todos realizar os mesmos trabalhos
Santo, ou se a transformação se opera pelas forças em contra- ou as mesmas atividades dos atores que estavam em seus lu-
dição no seio mesmo do conjunto; gares. Em cena, a atividade teatral deve seguir a mesma.
Qualquer pessoa pode propor qualquer solução, mas para isso
3) pede-se ao participante-escultor que, uma vez terminada deverá ir à cena, aí trabalhar, fazer coisas, agir, e não sim-
sua obra, procure colocar-se ele mesmo dentro do conjunto plesmente falar. E ninguém pode propor nada na comodidade
de sua cadeira. Muitas vezes, em debates posteriores a espe-
que criou: assim, muitas pessoas percebem que às vezes pos-
táculos convencionais, tenho visto espectadores sempre discou-
suem uma visão c6smica da realidade, como se não estivesse formes que revelam ser extraordinários revolucionários . . . po-
também dentro dessa mesma realidade. rém sentados nas suas poltronas. Falar é muito fácil, é muito
O jogo com imagens oferece muitas outras possibilidades. fácil sugerir atos heróicos e maravilhosos. O mais difícil é
O importante é sempre analisar a viabilidade de transformação. realizá-los. Ec;ses mesmos espectadores se darão conta de que

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a fábrica, fazer uma greve, formar um sindicato, etc. Foi então
as coisas são um pouco mais difíceis do que pensam se tive- que se propôs ao público uma sessão de teatro-debate. A cena
rem que fazer eles mesmos os atos que preconizam. seria representada outra vez, de forma idêntica, porém agora
Um exemplo: um jovem de 18 anos trabalhava na cidade teriam todos o direito de ensaiar suas soluções e propostas,
de Chimbote, um dos ·portos pesqueiros mais importantes do intervindo diretamente na ação e modificando-a. O primeiro
mundo. Existe ali uma infinidade de fábricas de farinha de que interveio foi o da bomba: levantou-se, substituiu o ator que
p_:scada, principal produto de exportação do Peru. Algumas interpretava o jovem e propôs jogar uma bomba na máqui-
sao enormes e outras contam com apenas 8 ou 1O operários. na. _f: claro que os demais atores o dissuadiram, pois isso
Numa destas, trabalhava o nosso jovem. Tinha um patrão terri- significaria a destruição da fábrica, e portanto de uma fonte
velmente explorador, que obrigava seus operários a trabalhar de trabalho. Aonde iriam parar tantos operários se a fábrica
da 8 da manhã às 8 da noite, ou vice-versa, em dois turnos. fechava? Por quanto tempo teriam que viver sem salário?
Total: 12 horas de trabalho contínuo. Todos ·pensavam em Inconformado, o homem tentou jogar a bomba sozinho, mas
lutar contra essa exploração desumana. Cada um tinha uma logo percebeu que não sabia como fazê-lo, nem muito menos
i~éia, uma P~?P?sta, como, por exemplo, realizar a "opera
-
rzinho, especia l- como fabricá-la. Acontece que muita gente, em discussões teó-
çao tartaruga , Isto ~· trabalhar bem devaga
teve ricas, é capaz de atirar muitas bombas, mas que na realidade
ment~ q~and~ o patrao não está olhando. Mas este rapaz não saberia que·fazer com uma bomba verdadeir,a ·e seria capaz
ar o mais rapidam ente possíve l e I I
uma Idéia bnlhan te: trabalh
que, com o peso de explodir com ela no bolso. Depois de experimentar a solu-
encher. a máquina. de peixe de tal maneira ção-bomba, o homem voltou ao seu lugar, e o ator retomou
excessivo, a máquma se quebrava e parava de funcionar. Para o seu papel, até que veio um segundo espectador experimentar
repará-la, eram necessárias duas ou três horas' e ' durante esse a solução da greve. Depois de muita discussão com os demais,
tempo, os operarias poderiam descansar tranqüilos. Esse era
,
conseguiu fazer com que· se interrompesse o trabalho, indo todos
o problema: a exploração patronal; e essa, uma solução, inven- embora e deixando a fábrica vazia. Neste caso, o patrão, o
tada pela esperteza nativa. Mas seria essa a melhor solução? capataz e o alcagüete, que haviam preferido ficar, foram até a
. . Preparou-se uma cena que foi apresentada a todos os par- praça (que ·era a platéia) buscar outros operários que se pres-
ticlp~ntes. Alguns atores representaram os operários,
outros 0 tassem a substituir os grevistas: no Chimbote existe um tre-
patrao, o capataz, o alcagüete. A cena se conver teu numa mendo desemprego massivo.
um operári o descarr egava o peixe,
fábrica de farinha de peixe: Esse espectador-praticipante' experimentou uma solução,
outro pesava sacos cheios de peixe, outro transportava os sacos a greve, e percebeu que, sozinha, era ineficaz: com tanto de-
até. a máquina, outro cuidava da máquina, enquanto outros semprego, os patrões encontram sempre operários suficiente-
faz1am outras tarefas pertinentes. Enquanto trabalhavam dialo- mente famintos e pouco politizados que substituirão os gre-
gav:un, propunham soluções e as discutiam, até que finalmente vistas. .
aceitava~ a proposta do. rapaz, arrebentavam a máquin
a de
que lhe metiam dentro, vinha o patrão com o A terceira tentativa foi a de formar um sindicato destina-
tanto pe1xe
durant e o tempo do a lutar ·pelas reivindicações operárias, a politizar os operá-
engenheiro enquanto os operários dormiam. rios, ocupados e desocupados, a formar caixas de assistência
de conserto da máquina. Terminado o conserto, voltavam todos
ao trabalho. mútua, etc. Nesta sessão de teatro-debate, esta foi a solução
que pareceu melhor, a 'critério do público presente. No teatro-
. A_cena foi apresentada pela primeira vez e se propôs a -debate não se impõe nenhuma idéia: .o público (o povo) tem a
d1scussao. Estavam todos de acordo? Positivamente não! Pelo oportunidade de· experimentar todas as suas idéias, de ensaiar
contrário, o desacordo era total. Mas cada um tinha, pelo seu todas as possibilidades e de verificá-las na prática, isto é, na
lado, uma proposta diferente: atirar uma bomba e incendiar
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prática teatral. Se a platéia tivesse chegado à conclusão de que / .erdade, ainda que seja igualmente verdadeiro que o teatro
seria necessário dinamitar todas as fábricas de farinha de peixe pode apresentar imagens de "trânsito".
do Chimbote, isto também seria certo do ponto de vista do (
funcionamento do teatro-debate, que é uma técnica teatral não- Em toda minha atividade, em tantos e tão diferentes paí-
-impositiva. Esta forma teatral não tem a finalidade de mos- ses da América Latina, pude observar esta verdade: os públi-
trar o caminho correto (correto de que ponto de vista?), mas cos populares estão sobretudo interessados em experimentar,
sim a de oferecer os meios para que todos os caminhos sejam ensaiar, e se chateiam com a apresentação de espetáculos fe-
estudados. chados. Nestes casos, tentam dialogar com os atores em ação,
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mes- interromper a história, pedir explicações sem esperar "educada-
mo, mas estas formas teatrais são certamente um ensaio _da mente" que o espetáculo termine. Ao contrário da educação
~ revolução. A verdade é que o espectador-ator pratica um ato
burguesa, a educação popular ajuda e estimula o espectador a
feãl;-mesmo que o faça na ficção de uma cena teatral. Enquan- fazer perguntas, a dialogar, a participar.
to ensaia jogar uma bomba no espço cênico, está concretamente
ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar
uma greve, está concretamente organizando uma greve. Dentro
Todas estas formas que expus até aqui são formas de
teatro-ensaio e não de teatro-espetáculo. São experiências que
se sabe como começam mas não como terminam, porque o
If
dos seus termos fictícios, a experiência é concreta. espectador está livre de suas correntes, e finalmente atua e se
Aqui não se produz de nenhuma maneira o efeito catár- converte em · protagonista. Porque respondem a necessidades
tico. Estamos acostumados a peças em que os personagens reais do público popular, são sempre praticadas com êxito e
fazem a revolução no palco, e os espectadores se sentem revo- com alegria.
lucionários triunfadores, sentados nas suas poltronas, e assim Mas nada disso impede qu'! um público popular possa
purgam seu ímpeto revolucionário: para que fazer a revolução igualmente praticar formas mais "acabadas" de teatro. Na ex-
na realidade, se já a fizemos no teatro? Mas isto não acontece periência peruana foram utilizadas igualmente muitas outras
neste caso: o "ensaio" estimula a praticar o ato na realidade. formas desenvolvidas antes em outros países, principalmente
O teatro-debate e estas outras formas de teatro popular, em \ \ Argentina e Brasil, e que, também ali, tiveram grande eficácia.
vez de tirar algo do espectador, pelo contrário, infundem no es-
pectador o desejo de praticar na realidade o ato ensaiado no Algumas destas formas foram:
teatro. A prática destas formas teatrais cria uma espécie de
insatisfação que necessita complementar-se através da ação 1) Teatro-Jornal - Foi desenvolvido inicialmente pelo gru-
real. po Núcleo do Teatro de Arena de São Paulo, do qual fui di-
retor artístico desde 1956 até 1971, quando tive que abando-
QuARTA ETAPA - O Teatro como Discurso nar o Brasil por motivo de força maior. Consiste em diversas
técnicas simples que permitem a transformação de notícias de
Jorgem lshizawa dizia que o teatro da burguesia é o espe- jornal ou de qualquer outro material não-dramático em cenas
_) áculo acabado. A burguesia já sabe como é o mundo, o seu teatrais. Exemplos:
mundo, e pode portanto apresentar imagens desse mundo com-
pleto, terminado. A burguesia apresenta o espetáculo. O pro- a) leitura simples- a notícia é lida destacando-se do
letariado e as classes exploradas, ao contrário, não sabem contexto do jornal, da diagramação, que a toma falsa ou
ainda como será o seu mundo; conseqüentemente, o seu teatro tendenciosa - isolado do resto do jornal readquire sua
será o ensaio e não o espetáculo acabado. Isto tem muito de verdade objetiva;

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b) leitura cruzada - duas notícias são lidas de forma 2) Teatro Invisível- Consiste na representação de uma cena
cruzada, uma lançando nova luz sobre a outra, e dando- em um ambiente que não seja o teatro, e d~ante de pessoas
-lhe uma nova dimensão; que não sejam espectadores. O lugar pode ser um restaurant~,
uma fila, uma rua, um mercado, um trem, etc. As pessoas que
c) leitura complementar - à notícia do jornal acres- assistem à cena serão as pessoas que af se encontrem aciden-
centam-se dados e informações geralmente omitidos pelos talmente. Durante todo o "espetáculo", essas pessoas não de-
jornais das classes dominantes; vem sequer desconfiar de que se trata de um espetáculo, pois
d) leitura com ritmo - a notícia é cantada em vez de se assim fosse, imediatamente se transformariam em "especta-
lida, usando-~e o ritmo mais indicado para s'e transmi- dores".
tir o conteúdo que se deseja: samba, tango, canto gre-
goriano, bolero, de tal forma que o ritmo funcione como Um espetáculo de teatro invisível deve ser minuciosamen-
verdadeiro filtro crítico da notícia, revélando seu verda- te preparado (com texto ou simples roteiro), não apenas no
deiro conteúdo, oculto nas páginas dos jornais; que se refere à cena em si mesma e às relações entre os atores,
e) ação paralela - paralelamente à leitura da notícia, como também no que diz respeito à provável participação dos
os atores mimam ações físicas, mostrando em que con- "espectadores": todos os atores devem estar preparados para
texto o fato descrito ocorreu verdadeiramente; ouve-se a incorporar nas suas interpretações todas as interferências pos-
notícia e, ao mesmo tempo, vêem-se imagens que a com- síveis dos espectadores: estas possíveis interferência.s deverão
plementam; ser previstas na medida do possível, durante os ensaios, e for-
f) improvisação - a notícia é improvisada cenicamen- marão uma espécie de texto optativo.
te, explorando-se todas as suas variantes e possibilidades; O teatro invisível deve "explodir" em um determinado
g) histórico - a notícia é representada juntamente com local de grande afluência de pessoas. Todas as pessoas próxi-
outras cenas ou dados, que mostrem o mesmo fato mas devem ser envolvidas pela explosão, e os efeitos desta
em outros ·momentos históricos ou em outros países, ou muitas vezes perduram até depois de muito tempo de termi-
em outros sistemas sociais; nada a cena.
h) reforço - a notícia é lida, ou cantada, ou bailada, Um pequeno exemplo mostra o funcionamento, em linhas
com a ajuda de slides, jingles, canções ou material de gerais, do teatro invisível: num enorme hotel de Chaclacayo,
publicidade; onde estavam hospedadas as brigadas de alfabetizadores, além
i) concreção da abstração- concreta-se cenicamente o de mais 400 pessoas, os atores se reuniam no restaurante, e
que a notícia às vezes esconde em sua informação ·pura- se sentavam em mesas separadas. Os garçons começaram a
mente abstrata: mostra-se concretamente a tortura, 'a servir. O protagonista, em voz mais ou menos ~lta para atrair
fome, o desemprego, etc., mostrando-se imagens gráficas; a atenção dos demais, mas não em forma óbvia, informa ao
reais ou simbólicas; garçom que não pode continuar comendo a comida que esse
hotel habitualmente oferece porque, na sua· opinião, é muito
j) texto fora do contexto - uma notícia é ·representada ruim. O garçom não gosta da observação mas diz que ele pode-
fora do contexto em que sai publicada: por exemplo, um rá escolher o que quiser do menu, algo que mais lhe agrade.
ator representa o discurso sobre austeridade pronunciado
O protagonista escolhe uma comida chamada "Churrasco de
por um ministro da economia enquanto devora um enor- Pobre". O garçom adverte que custa 70 "soles", mas o ·prota-
me jantar; a verdade do discurso fica assim desmistifi- gonista, com a voz sempre razoavelmente alta, diz que não
cada: quer austeridade para o povo, mas não para si tem problema. Minutos depois, o garçom traz o churrasco, o
mesmo.
155
154
protagonista come rapidamente e se prepara para ir embora posso jogar fora o lixo do hotel. Quanto ganha· o lixeiro que
do restaurante, quando o garçom traz a conta. O protagoni~ta trabalha pra vocês?"
faz cara de preocupado, diz aos seus vizinhos de mesa que. o O maitre, como é lógico, não quer dar nenhuma informa- .
churrasco estava excelente, e que sem dúvida era muito me- ção sobre salários, por isso um segundo ator, sentado em outra
lhor do que a comida que eles estavam comendo, mas que mesa, já está preparado para essa eventualidade previsível, e
era uma pena que agora teria que pagar a conta. explica que ele é amigo do lixeiro e que este ganha nada
- "Mas não se preocupe não, que eu vou pagar. Comi o mais do que sete soles por hora. Os atores fazem as contas e o
Churrasco de Pobre e vou pagar. Só que tem um problema: . protagonista exclama:
eu não tenho dinheiro nenhum ... '' - "Não é possível! Quer dizer que, se eu trabalhar como
- "E como é que vai pagar se não tem dinheiro?" - lixeiro, vou ter que trabalhar 1O horas pra poder comer este
perguntou indignado .o garçom. - O senhor sabia muito bem Churrasco de Pobre?! Dez horas pra pagar um churrasco
qual era o preço antes de pedir o churrasco. Vai ter que pa- que comi em 10 minutos??? Não pode ser! Vocês vão ter que
gar de qualquer maneira .. . " aumentar o salário do lixeiro ou diminuir o preço do chur-
:e claro que os vizinhos seguiam atentamente esse diálo- rasco! ·Mas, no meu caso, talvez eu possa fazer uma coisa mais
especializada, como por exemplo, posso cuidar dos jardins do
go; muito mais atentamente do que se soubessem que era uma
cena de teatro e se estivessem sentados numa platéia. O pro- hotel, que são tão bonitos, que estão tão bem cuidados· o
tagonista continuou: jardineiro é uma pessoa com muito talento, não resta dÓvi-
- "Não se preocupe não, meu amigo, eu vou pagar, da. . . Quanto ganha o jardineiro deste hotel? Eu vou traba-
como não? Mas, como eu não tenho dinheiro, vou pagar em lhar de jardineiro. Quantas horas vou ter que trabalhar nesse
força de trabalho .. . " · jardim pra .Poder pagar o meu Churrasco de Pobre?"
- "Em força do .quê"? - perguntou o garçom atônito. Outro ator, noutra mesa, explica sua amizade com o jar-
dineiro, que é oriundo do mesmo povoado que ele; por isso,
- "Em força de trabalho, 'nada mais nada menos. Di- sabe que o jardineiro ganha 10 soles por hora. E outra vez o
nheiro eu não tenho, mas posso alugar a minha força de tra- protagonista não se conforma:
balho. Quer dizer: eu posso trabalhar pra vocês durante tantas
horas quantas sejam necessárias pra pagar o meu Churrasco - "Como é .possível uma coisa dessas??? O homem que
de Pobre que, prá dizer a verdade, estava uma delícia, estava cuida desses jardins tão lindos, que passa os dias aí fora expos-
muito melhor do que essa porcaria que vocês servem a todo to ao vento, ao sol e à chuva, tem que trabalhar 7 horas se-
mundo ... " guidas para poder comer um churrasco em 10 minutos? Não
Nesta altura, alguns dos comensais intervêm, fazem co- pode ser!!! Explique como é que é isso, seu Maítre?"
mentários entre eles mesmo em suas mesas, discutem o preço O Maítre já está desesperado; vai e volta, dá ordens em
da comida, a qualidade · dos serviços . do hotel, etc., e o gar- voz alta aos demais garçons para distrair a atenção dos co-
çom chama o rnaítre para decidir .a questão. O protagonista, mensais, ri e fica sério; enquanto que todo o restaurante se
uma vez mais, explica o assunto - esse de alugar a força de transforma em uma assembléia. O protagonista termina por per-
trabalho, e acrescenta: guntar ao próprio garçom ql;lanto é que ele ganha para servir
- '~Além disso tem outro problema: eu estou disposto a à mesa-7 e se oferece para substituí-lo o tempo que seja ne-
alugar a minha força de trabalho, mas, na verdade, eu não sei cessário. Um outro ator, proveniente de um pequeno povoado
fazer nada, ou quase nada. . . Por isso, vocês vão ter que me interiorano, informa que no seu povoado ninguém, absoluta-
dar um emprego bem humilde, bem modesto ... Por exemplo: mente ninguém, ganha o salário de 70 soles por dia, e, por-

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...
tanto, ninguém do seu povoado poderia comer e.sse ChurrasC? lhas e gastas. A energia teatral é completamente liberdade, e o
de Pobre. (A sinceridade desse ator, que além disso estava di- impacto que este teatro livre causa é muito mais violento e
zendo a verdade, comoveu todos que estavam perto de sua duradouro.
mesa.)
No Peru, fizeram-se espetáculos de teatro invisível em
Finalmente, concluindo a cena, um outro ator propõe: distintos lugares. Vale a pena narrar brevemente o sucedido
- "Companheiros, isso está dando a iml'ressão. de q~e no Mercado del Carmen, no bairro de Comas, a uns 14 quilô-
nós estamos contra o garçom e contra o m(litre' e ISSO nao metros do centro de Lima. Duas atrizes protagonizavam uma
tem sentido, isso não é verdade. Eles são companheiro~ nossos, cena diante de um vendedor de verduras. Uma, que se fazia
trabalham como nós; e não têm culpa se os preços .sao altos. passar por analfabeta, insistia em que o vendedor estava rou-
Proponho fazer uma coleta: nós quatro, desta mesa, vam~s bando nos preços, aproveitando-se de que ela não sabia ler;
pedir que cada um contribua com o que pode, um s<;>l, ~o1s a outra refazia as contas que estavam corrétas, e aconselhava
soles, cinco soles, com o que puderem. E com esse dinheLr?, a primeira a entrar para um dos cursos de ·alfabetização de
vamos pagar o churrasco. E sejam generosos, porque o di- ALFIN. Depois de muita discussão sobre qual era a melhor
nheiro que sobrar fica de gorjeta para o garçom, que b nosso idade para começar a estudar, da qual participaram todas as
companheiro e é um trabalhador." pessoas próximas, feirantes e compradores, depois de discutir
Ato contínuo, os que estão com ele na mesma mesa se como e com quem estudar, a primeira continuava insistindo
levantam e começam a coletar dinheiro para pagar a cont~. em que era demasiado velha para essas coisas. Foi aí que
Algumas pessoas dão um ou dois soles, outras comentam, rai- uma velhinha, dessas 'que já se apóiam em um.a bengalinha,
vosas: comentou indignada:
- "Ele disse que a ·comida que nós comemos aqui é uma - "Minha filha, isso não é verdade. Para aprender e para
porcaria, e agora quer que a gente p~gue o Churras~o que fazer o amor, não há idade!"
ele comeu ... ? E essa porcaria, quem va.t comer? Eu? Nao,dou
um tostão, para que aprenda. Que vá lavar os pratos . . . :S c1 aro que. todos os que· presenciaram esta cena come-
çaram a rir da violência amorosa da velha dama, e as duas atri-
A arrecadação quase chegou aos 100 soles, e a discussão
zes não encontraram ambiente para continuar a cená.
continuou durant~ toda a noite.
eatro-Fotonovel~~ Em muitos países latino-america-
:S importante insistir que, nesta fon:na de t.eatro invis~vel
os atores não se podem revelar como tais: precisamente msto 3) [r
reside o caráter invistvel desta forma de teatro. E precisamente nos exi.ste uma verdâãeira epidemia de fotonovelas, que se
este caráter de invisibilidade fará com que o espectador atue utilizam do mais baixo que se possa imaginar em matéria de
livremente, totalmente, como se estives$e vivend~ uma situação subliteratura, além· de servir sempre como veículo da ideolo-
gia das classes dominantes. O Teatro-Fotonovela objetiva a
real: afinal de contas, a situação é real! desmistificação da fotonovela e consiste em ler para os parti-
Deve-se insistir igualmente em que o teatro invisível não cipantes, em linhas gerais, o texto de uma fotonovela, pedin-
é o mesmo que o happening ou o guerrilla-theatre: n~tes,. fica do-lhes que representem a história que se vai contando. Os
bem claro que se trata de "teatro" e, portanto, surge JIDedJat~­ participantes não devem saber aprioristicamente que se trata
mente o muro que separa atores de espectadores, e estes sao de fotonovela. Deve representar a história da maneira que
obviamente reduzidos à impotência: um 'eSP,ectador é sempr;__ lhes pareça mais correta. Quando terminem, compara-se a· his-
menos do que..uJ')1..../u»;neo teatrólnvisivel, os rituais teatrais tória tal como foi representada com a versão original da foto-
.....;_.::;.- - são abolidos: existe apenas o teatro, sem as suas formas ve- novela, e se discutem as diferenças.

158 159
Por exemplo, conto uma história de Corin Tellado, talvez A jovem esposa não deixa por menos: faz de conta que
o mais horrível autor deste gênero embrutecedor. B uma histó- está doente para obrigar o marido a ficar ao seu lado e para
ria bastante imbecill, que começa assim: que, através dessa artimanha, finalmente se apaixone por ela.
"Uma senhora está esperando que o seu marido retome Que ideologia! O mais putrefato happy-ending coroa esta his-
tória de amor.
à casa; está em companhia de uma outra senhora que a ajuda
nos trabalhos de casa." É evidente que essa história, sem os diálogos de Corin
Tellado, e contada por gente do povo, toma características
Na favela, os participantes representavam essas indica- completamente diferentes. Quando, no final da representação
ções da maneira como estavam habituados, segundo seus cos- os participantes são informados da origem da história que aca~
tumes: uma mulher que está esperando o regresso do marido,
naturalmente estará preparando o jantar; se uma mulher a aju- bam. ~e representa_r, sofrem um choque. Por quê? Bem, se os
part1c1pa~tes ~e poem a ler Corin Tellado sabendo de quem
da, naturalmente trata-se de uma vizinha que vem conversar e
bate-papo enquanto dá uma mãozinha; o marido volta .can- se trata, Imediatamente assumem o papel passivo de especta-
sado depois de um intenso dia de trabalho; a "casa" é uma dores. Mas se, ao contrário, eles mesmos têm que representar
choça de uma só habitação, etc., etc. Em Corin Tellado, é tudo um~ história cuja origem ignoram e, depois, lêem a versão de
ao contrário: a mulher está com um vestido de noite e cola- Conn Tellado, já agora terão uma atitude crítica, comparativa,
res de pérolas, a mulher que a ajuda é uma empregada negra olhando a casa da jovem senhora e comparando-a com a sua
que não diz mais que "sim, senhora", "pois não, senhora", própria choça, lendo as atitudes do marido e comparando-as
"o jantar está servido, senhora"; \'aí vem o senlior, senhora"; com as suas próprias atitudes, etc. Em resumo, estarão já
a casa é um palácio cheio de mármores; o marido regressa de- preparados para detectar o veneno que se infiltra através des-
pois de uma jornada de trabalho em "sua" fábrica, onde havia sas fotos, como também através de historietas cômicas, tele-
discutido com os operários porque estes, "não compreenden- novelas e outra~ formas de dominação cultural e ideológica.
do a crise em que vivemos todos, queriam aumento de salá- Tive uma grande alegria qúando, meses depois de reali-
rios ... " e por aí .afora. za~~ a experiência com os alfabetizadores, de regresso a Lima,
Esta história, particularmente, era uma porcaria, mas ser- fw informado de que em várias favelas muitas pessoas estavam
via como excelente ·exemplo de penetração ideológica. A jovem utilizando a mesma técnica para analisar as telenovelas fonte
senhora recebia uma carta de uma desconhecida, ia visitá-la e inesgotável de veneno contra o povo. Representavam ele~ mes-
descobria que se tratava de uma ex-amante de seu marido; a mos as histórias da TV e depois comparavam as duas histórias
amante lhe contava que o marido a havia abandonado porque os dois elencos de personagens, os dois conteúdos. Esta é um~
se queria casar com a filha do dono da fábrica, ou seja, a jo- forma poderosa de desmistificação dos meios massivos de co-
vem senhora. Num rompante, a "outra" exclamava: municação.
- "Sim, ele me traiu casando-se com você. Mas eu o
perdôo porque, afinal de contas, ele sempre foi muito ambi- 4) Quebra da Repressão - As classes dominantes dominam
cioso e sabia muito bem que comigo não podia subir demasia- as dominadas através da repressão; os velhos dominam os jo-
do alto. Mas com você, sim, pode." vens, através da repressão; certas raças a certas outras, os
Quer dizer: a ex-amante perdoava o rapaz porque ele homens às mulheres, sempre através da repressão. Evidente-
possuía no mais alto grau a ânsia capitalista de tudo possuir! mente nunca através do entendimento cordial, da honesta troca
A vontade de ser proprietário de fábricas, de subir na vida a de idéias, da crítica e da autocrítica. Não. As classes dominan-
qualquer preço, está apresentada como sendo algo tão nobre tes, os velhos, as raças "superiores", o sexo masculino, pos-
que até se perdoam algumas traições pelo caminho. suem os seus quadros de valores e, pela força, os impõem às

160 161
classes dominadas, aos jovens, às raças que eles consideram às vezes tem de resistir e não resiste, ajuda a medir a ver-
inferiores, e às mulheres. dadeira força do inimigo. Igualmente permite ao protagonista
O capitalista não pergunta ao operário se ele está de ter a oportunidade de tentar outra vez, e de realizar, na ficção
acordo com que o capital seja de um e o trabalho de outro: o que não pôde realizar na realidade passada, preparando-s~
simplesmente põe um policial armado à . porta da. fábrica e para, talvez, realizar na realidade futura. Já vimos que estes !
acabou o assunto. Fica decretada a propnedade pnvada. processos não . são catárticos: o fato de haver ensaiado resistir
A raça, classe, sexo ou idade dominada sofrem- a mais à opressão preparará o protagonista para .resistir efetiv.a m
. ente à
constante diária e onipresente repressão. A ideologia se torna repressão futura, quando a mesma volte · a se apresentar.
concreta ~a pessoa do dominado. O proletariado é explor~do Por outro lado, é necessário fazer com que se entenda
através da dominação que se exerce sobre todos os proletários. sempre o caráter genérico do caso particular apresentado. Neste
A sociologia e a política se tomam psicologia. Não exist~ a ~po de experiê?cia teatral, é necessário sempre partir do par-
opressão do sexo masculino "em geral" contra o se~o ~e~imno ticular, mas é Igualmente necessário chegar sempre ao geral.
"em geral". Existe a opressão concreta de homens ( mdividuos) Durante a própria cena ou depois, durante o debate deve:se
contra mulheres (indivíduos). realizar a ascese desde o fenômeno até a lei. Desde 'os fenô-
A técnica da quebra de repressão consiste em pedir a um menos que são apresentados na trama até as leis sociais que
participante que se recorde de algum momento em que se sen- regem esses fenômeno.s. Os espectadores-participantes devem
tiu particularmente reprimido, e em que aceitou essa repres- sair da experiência enriquecidos com o conhecimento dessas
são, passando a agir ·de uma maneira contrária aos seus interes- leis, obtido através da análise dos fenômenos.
ses ou aos seus desejos. Esse momento tem que ter um pro-
fu~do significado pessoal; eu, proletário, sou op~imidol n~s 5) Teatro-Mito- Trata-se simplesmente de descobrir o óbvio
proletários, estamos oprimidos! portanto, o proletanad~ é opn- atrás do mito: contar uma história (um mito conhecido) de
mido! Deve-se partir do particular para o geral e nao VICe- uma forma lógica, revelando as verdades, evidenciando as ver-
-versa· deve-se escolher alguma coisa que aconteceu a alguém dades escondidas.
partic~armente, mas que, ao I?esmo tempo, seja típico ?o que
Numa localidade chamada Motupe existia um pequeno
acontece com todas as demais pessoas nas mesmas Circuns-
morro, com um caminho muito estreito através das árvores
tâncias. que o ~obriam e ~o denso. matagal que o cobria até o topo.
A pessoa que conta a história escolhe entre -os demais No meto do camtnho havta uma cruz: até aí se podia su-
participantes todos os que intervirão na reconstrução da cena. bir, porém ultrapassar a cruz era perigoso e mesmo fatal. As
Em seguida, depois de receber as insf:ruções dadas pel? pro- poucas pessoas que o haviam tentado jamais retornaram. Exis-
tagonista (o que conta o fato), e obedientes a essas mstru- ~a na região o mito de certos fantasmas sanguinários que ha-
ções, os participantes e o protagonista representam a cena tal bttavam o topo da montanha. Mas também se conta a histó-
como ocorreu na realidade, tentando recriar a mesma cena, ria de um jovem corajoso que subiu até o cimo, armado, e ali
as mesmas circunstâncias e as mesmas emoções originais. encontrou os "fantasmas", que nada mais eram do que ianques,
Uma vez terminada a "reprodução" dos fatos aconteci- proprietários de uma mina de ouro situada precisamente no
dos, pede-se que o protagonista repita a cena, mas desta vez topo daquele cerro.
sem aceitar a repressão, lutando para impor sua vontade, suas Conta-se também a hist6ria da lagoa de Cheken: antiga-
idéias e seus desejos. Os demais participantes são instados a mente (assim diz a lenda) aí não havia água e todos os cam-
tentar manter a mesma repressão da primeira vez. O choque poneses morriam de sede e tinham que viajar quilômetros para
que se produz ajuda a medir a possibilidade que uma pessoa conseguir um copo de água. Hoje existe uma lagoa que, antes

162 163
da Reforma Agrária, foi propriedade de um latifundista do desconfie em meu coração da sua verdadeira identidade e dos
lugar. Como surgiu essa lagoa, e como ~e conve~eu em pro- lugares aonde me leva ... "
priedade de um só homem? A lefl:da ass~m o explica: quando Dito e feito: feliz e contente (e também, é claro, com
ainda não existia água, em um dta de mtenso cal.or, quando algumas lagrimazinhas) foi o bondoso pai contar tudo ao ho-
todo 0 povo chorava pedindo aos céus que .lhe~ enVIasse~ pelo mem de negro, enquanto a filha maior, antes de ir embora, e
menos um mísero riachuelo,.- e os céus lmJ?tedosos nao res- para adiantar o trabalho, escrevia o preço do litro dágua em
pondiam nem com .um chuVIs~o - e~ um dia ~omo esse, ou uns cartõezinhos muito bonitinhos. O senhor de negro desnu-
melhor, à meia-n01te desse d1a, surgtu no honzonte um se- dou a jovem, pois que nada queria levar dessa casa mais do
nhor com um comprido poncho negro, montado em cavalo que a jovem em si, e montou com ela, em seu cavalo, que
negro e assim falou com o latifundista (que Il:essa época era partiu a galope em direção a um vale. Ouviu-se então uma
ainda um pobre camponês, como todos os demats): enorme explosão, e apareceram chamas e fumaça no lugar
- "Eu te darei uma lagoa, roas tu me tens que dar o por onde iam cavalo e cavaleiro, que desapareceram no mes-
que de mais precioso possuas!" mo instante, juntamente com a jovem desnudada! Produziu-se
no solo uni buracão enorme e, enquanto a fumaça se dissipava,
O pobre homem, muito aflito, gemeu:
começou aí a brotar uma fonte que formou a lagoa de Cbeken,
- "Eu nada tenho de meu, sou tão pobre e miserável. a de água mais fresca de todo o Peru ...
Aqui sofremos muito pela falta dágu~, vivemos todos. em ~­ Este mito esconde por certo uma verdade: o latifundista
seráveis choças, padecemos a fome mats cruel. De prec10so nao se apropriou daquilo que não lhe pertencia. Se antes os nobres
temos nada, nem as nossas vidas, que tão pouco valem. E eu, atribuíam a Deus (nada menos!) a outorga de suas proprie-
particularmente, de precioso tenho minhas três filhas, e nada dades e direitos, ainda hoje se usam explicações não menos má-
ma1s. ... "
gicas. Neste caso, a propriedade da lagoa era explicada pela
- "E das três a mais bela é a maior! - assegurou o es- perda da filha mais velha, que era o que de mais precioso pos-
tranho personagem vestido de negro, montado em negro cavalo. suía o latifundista: houve, portanto, uma transação! E para
E te darei uma lagoa cheia da água mais fresca de todo o que todos se lembrassem disso muito bem, dizia a lenda que,
Peru mas em troca tu me darás tua filha, a maiorzínha, para em noite de lua cheia, podiam-se ouvir os cânticos da jovem
que eu' me case com eI a ... " .
desnuda no fundo da lagoa, chorando de saudade de seu pai e
O futuro latifundiário pensou muito ·e muito chorou, e de suas irmãs, penteando seus longos cabelos com um pente de
perguntou à sua aterrorizada filha mais velha que deviam fa- ouro. . . E na · verdade, para aquele latifundiário, aquela la-
zer, se aceitar ou não tão insólita proposta de casamento. A goa era de ouro ...
filha obediente assim se expressou:
- "Se é para a salvação de todos e para que se termine 6) Teatro-Julgamento - Um dos participantes conta uma
a sede e a fome de todos os camponeses, se é para que tenhas história e em seguida os atores improvisam. Depois se decom-
a lagoa com a água mais fresca de todo o Peru, se é para que põe cada personagem em todos os seus papéis sociais, e pede-se
essa lagoa te pertença a ti e só a ti, e que faça a sua pros- que os participantes escolham um objeto físico, cenográfico,
peridade pessoal e a tua riqueza, pois .que poderás vender es:a para simbolizar cada papel. Por exemplo: um policial matou
água tão maravilhosa a todos os demais camponeses, que serao um ladrão de galinhas. E o policial pode ser assim decompos~o:
teus fregueses, pois para eles será muito mais barato comprar
a água aqui tão perto sem ter que viajar para tão longe, se é a) é um operário, porque aluga sua força de trabalho;
para que tudo isso aconteça, vai dizer ao senhor de negro símbolo: um macacão;
poncho, montado em negro cavalo, que vou com ele, embora
165
164

'
b) é burguês, porque defende a propriedade privada e 7) Rituais e Má~caras - As relações de produção (infra-
a valoriza mais do que a própria vida humana; sím- -estrutura) determmam a cultura de uma sociedade (superes-
bolo: uma gravata, um chapéu, etc. trutura). As vezes, modifica-se a infra-estrutura, mas a super-
estrut~ra permanece, por algum tempo, a mesma. No Brasil
c) é repressor, porque é policial; símbolo: um revólver.
os latifundiários não permitiam que os camponeses olhasse~
para eles cara a cara, ollio no olho, porque isso seria consi-
E assim sucessivamente até que os participantes tenham derado falta de respeito. Os camponeses se haviam acostuma-
analisado todos os seus papéis possíveis: pai de família (sím- do a falar com os senhores da terra com os olhos pregados no
bolo: a carteira de dinheiro? ; ou uma cadeira maior do que chão: "Sim senhor, sim senhor, sim senhor!" Quando ( evi-
as outras?) , companheiro de uma sociedade de amigos de bair- dentemente antes de 1964) o governo decretou a Reforma
ro, etc. g importante que os símbolos sejam escolhidos pelos ~grária, os funcionários govem~mentais iam ao campo comu-
participantes presentes e que não venham "de cima". Para mcar aos camponeses a nova le1, segundo a qual se poderiam
determinada comunidade, a carteira de dinheiro pode ser o converter em proprietários da terra que cultivavam, os cam-
símbolo de um pai de família, por ser a pessoa que controla poneses, olhando o chão, murmuravam: "Sim companheiro sim
as finanças da casa e que, . através disso, controla a família. companheiro, sim companheiro ... " A cultura feudal estàv~ to-
Para outra comunidade, pode este símbolo não simbolizar nada, taAlmente impr~gnad.a ~m suas vidas. . . As rel~ções do campo-
isto é, pode ser que não seja símbolo. nes com o latifundiáno e com o companheiro do Instituto de
Reforma. Agrária eram completamente diferentes, :'porém o ri-
Depois de decomposto o personagem, ou os personagens tual co.ntmuava o mesmo. A razão talvez resida no fato de que,
(é conveniente que esta operação se. faça apenas com o perso- nos do1s casos, o camponês era o espectador passivo: no primei-
nagem ou com os personagens centrais, para maior simplici- ro caso lhe tiravam a terra, no segundo lhe outorgavam. Cer-
dade e eficácia), tenta-se contar outra vez a mesma história, tamente não aconteceu o mesmo em Cuba: aí os camponeses
mas agqra retirando-se alguns símbolos a cada personagem, c fnram protagonistas da reforma agrária!
conseqüentemente alguns papéis sociais.
· Esta particular técnica de teatro popular (Rituais e Más-
Seria a história exatamente a mesma se:
caras) consiste precisamente em revelar as superestruturas os
rituais que coisificam t?das as relações humanas, e as másc~ras
1 - o policial não tivessCf a gravata (ou chapéu)?;
de comportamento soctal que esses rituais impõem sobre cada
2 - se o ladrão tivesse uma gravata (ou chapéu)?; pessoa, segundo os papéis que ela desempenha na sociedade
3 - se o ladrão tivesse um revólver?; e os rituais que deve representar.
4 - se o policial e o ladrão tivessem a.mbos o símbo-
lo de uma sociedade de amigos do bairro? Um exemplo muito simples: um homem vai ao confessor
confessar seus pecados. Como o fará? Claro que se âjoelha,
conf~ssa seus pecados, ouve a penitência, faz o sinal da cruz
Pede-se aos participantes que_façam combinações, propos-
e vai embora. Mas todos os homens se confessarão sempre da
tas que devem depois ser ensaiadas pelos atores e criticadas
mesma maneira diante de todos os padres? Quem é o homem
pot todos os presentes. Assim se poderá perceber, graficamen· e quem é o padre? Isto importa muito.
te, que as ações humanas não são fruto exclusivo nem primor-
dial da psicologia individual: quase sempre, através do indi- Neste caso são necessários atores versáteis para represen-
víduo, fala a sua classe! tar 4 vezes a mesma cena da confissão:
.._

166 167
1 - o padre e o fiel são latifundiários; trágica - isto é, de algo capaz de transformar a sociedade.
2 - o padre é latifundiário e o fiel é camponês; Produz-se a catarse do ímpeto revolucionário! A ação dramáti-
3 - o padre é camponês e o fiel é latifundiário; ca substitui a ação real.
4 - o padre e o fiel são camponeses. A poética de Brecht é a Poética da Conscientização: o}
mundo se revela transformável e a transformação começa no
teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao per-
O ritual é aqui sempre o mesmo, porém as máscaras so- sonagem para que pense em seu lugar, embora continue dele I
ciais são diferentes e farão com que as quatro cenas sejam ~ando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiênci ]
igualmente diferentes. e reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao
Esta técnica é extraordinariamente rica e possui inúmeras nível da ação. A ação dramática esclarece a ação real. O espe-
variantes: o mesmo ritual mudando de máscaras; o mesmo ri- táculo é uma preparação para a ação.
tual feito por pessoas de uma classe social e depois de outra; A poética do oprimido é essencialmente ·uma Poética da
intercâmbio de máscaras dentro do mesmo ritual, etc., etc., etc. Liberação: o espectador já nãd delega poderes aos persona-
gens nem para que penseni nem para que atuem em seu lugar.
O espectador se libera.: pensa e age por si mesmo! Teatro é
I ação!
CONCLUSÃO: "ESPECT ADOR", QUE PALAVRA FEIA!
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mes-
mo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!
Sim, esta é, sem dúvida, a conclusão: Espectador, que pa-
lavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem
e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de Buenos Aires, dezembro de 1973
ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o ~ujeito,
um ator, em igualdade de condições com os atores, que devem
por sua vez ser também espectadores. Todas estas experiências
de teatro popular perseguem o mesmo objetivo:_Jl liber:tação_do
espectador, sobre quem o teatro se habituou a impor visões
acabadas do mundo. E considerando · que quem faz teatro, em
geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes do-
minantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as ima-
gens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o
povo) não pode continuar sendo vítima passiva dessas imagens.

Como vimos no primeiro ensaio deste livro, a poética de


Aristóteles é a Poética da Opressão: o mundo é dado como
conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus
valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente de-
legam poderes aos personagens para que atuem e pensem em
seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua falha

168 169
QUADRO DE DIVERSAS LINGUAGENS

COMUNICAÇÃO CONSTATAÇÃO TRANFORMAÇÃO


DA REALIDADE DA REALIDADE DA REALIDADE

Linguagem Uxico (vocabulário) Sintaxe

Idioma Palavras Oração (sujeito, ob-


jeto, predicado ver-
bal, etc. )

Música Instrumentos musicais, Frase musical, me-


e seus sons (timbre, lodia e ritmo
tonalidade, etc.) notas

Pintura Cores e formas Cada estilo possui


sua própria sintaxe

Cinema Image~ (secundaria- Montagem: corte,


mente, a música e a fusão, superposição,
palavra) faden-in, fade-out,
travel/ing, etc.

TEATRO SOMA DE TODAS AS AÇÃO DRAMÁTICA


LINGUAGENS POSSÍVEIS:
palavras, cores, formas,
movimentos, sons, etc.

171
B - O sistema "coringa"

I - Etapas do Teatro de A~ena de São Paulo

INTRODUÇÃO

O SNT desejou publicár uma espécie de inventário do tea-


tro brasileiro· nestes últimos quinze anos. Geralmente, os inven-
tários são publicados depois da morte definitiva do falecente.
Neste caso, publica-se com pequena antecedência: o teatro, no
Brasil, vive seus momentos agônicos.
Para este panegírico polüônico muitos artistas foram con-
vidados. O que dissemos em nossa declaração, pretendemos
neste artigo resumir. Deve-se notar que falamos sempre segun-
do a perspectiva muito especial do Teatro de Arena - isto
não por hipertrofia da participação deste elenco no teatro pau-
lista, mas sim por terem sido estes os limites impostos a este
depoimento.
Pensando no Teatro em São Paulo, devemos constatar que,
ep1 verdade, à classe teatral não cabe nenhuma culpa desta mor-
__te juvenil. Não foram os elencos que subitamente passaram a

173
apresentar espetáculos inadequados às suas platéias. A presente O que está acontecendo com o teatro brasileiro no mo·
morte não vem para "certas tendências" ou "certas correntes": mento, não difere do que acontece -com os demais setores da
é morte total, genérica. atividade nacional. E, da mesma forma que as falências e con-
De quem a culpa, se há culpados? Este inventário só cordatas de tantas indústrias e comércios não se explicam pela
terá sentido se procurar descobri-los, já que se destina, creio, qualidade do produto que fabricavam ou vendiam, também a
a encontrar soluções possíveis e imediatas, e não é contempla- falência teatral não se explica pelo valor ou características esté-
ção nirvânica do sucedido. Devemos analisar as causas do atual ticas das peças apresentadas. Bons ou maus produtos, indus-
malogro, para melhor vislumbrar as vias de fuga ao desastre, triais ou estéticos, encontravam antes compradores que hoje já
utilizando esta série de artigos como entendimento do passado não compram. · ·
e organização do futuro. Falta ditilieiro no bolso da platéia, como falta capim no
Um inglês, certa vez, pretendeu habituar seu cavalo a vi- estômago do cavalo: ambos emagrecem. E, apoiando a teoria
ver em condições perfeitamente normais, porém sem alimenta- do inglês da fábula, todos os Serviços e Comissões de Teatro
ção. Para isso, dava-lhe cada vez menos comida até que um (em qualquer nível~. era!, estadual e municipal) orientam-
dia o eqüino, já qpase acostumado à inanição, inesperadamente -se pelo pensament falaz i:le que ~s companhias de teatro po-
morreu. O inglê$ pôs-se a procurar profundas causas psit=osso- dem-se habituar a qu 'squér condições e minguam também suas
ciológicas para explicar o passamento. Veio um profeta e disse: rações.
"morreu de fome". · De um lado, o teatro perde seu público; de outro, perde
Esta história esopiana não pretende afirmar que o teatro o apoio econômico que poderia promover o barateamento dos
seja eqüestre e a platéia capim; mas, sem platéia, os artistas ingressos, ·facilitando o retomo das platéias.
- Os sintomas da crise há muito vêm sendo notados; a evi-
n~?- comem, por mais simbolistas que sejam. E, portanto, o
feiJao com arroz nossos de cada dia dev.em ser procurados alhu- dência da morte, no fim de 1966, em São Paulo, foi dada pelos
res na TV ou em outras profissões. · anúncios em jornais: apenas uma peça em cartaz, O Fardão,
em temporada popular,.pela metade do preço; e o público, ain-
Os artistas debandam, como conseqüência mecânica da da assim, não comparecia. Se a carreira desta peça fosse inter-
debandada do público. E por que debanda o público? \ rompida, sairia de cartaz o teatro paulista.
Tempos atrás, o dinheiro e a inflação apostavam corrida. .Dado o malogro do teatro não ter raízes estéticas e a
Hoje, o dinheiro parou de crescer e a inflação só acabou para perdurarem as atuais causas econômicas, restar-lhe-á tão-somen-
quem tem mordomo e não vai à feira. A platéia, em geral, te o retomo ao amadorismo e aos teatros-íntimos, como às si-
constitui-se de gente sem mordomia. Por isso, a carência de derurgias restará voltar ~s forjas domésticas, os carros aos co-
dinheiro elimina do orçamento doméstico todas as atividades ches e o poder a Pombal.
familiares dispensáveis·ou substituíveis: quem não tem cão caça
com gato, quem não vai ao teatro vê televisão do vizinho.
O sucesso de uma peça, até 1964 mais ou menos, promo- 0 TEATRO DE ARENA DE SÃO PAULO
via o sucesso de- outras: a platéia ficava com um gostinho na
boca, queria mais. Hoje, os poucos espectadores fanáticos Os elencos nacionais, independentemente da qualidade de
remanescentes são disputados à faca pelas p<>ucas com- seus espetáculos, dividem-se em clássicos e revolucionários. ~ão
panhias remanescentes e fanáticas. O espectador que vai clássicos não os que montam obras clássicas, mas os que pro-
uma vez ao teatro pratica, assim, sua boa ação de cada ano curam desenvolver e cristalizar um mesmo estilo através de seus
e dificilmente volta a repetir a e_xperiência onerosa. vários espetáculos. Neste sentido, o senhor Oscar Ornstein se-
174 175

. "
ria um produtor "clássico"•. já que seus espetáculos procuram Perto de onde? De sua platéia. Quem era? Bem, aqui
aperfeiçoar sempre a novela radiofônica em termos vagamente vem outra história. Quando surgiu o TBC, em nossos palcos
teatrais. "Clássico" foi o TBC dos áureos tempos: muita gente estavam os divas, atores-empresários, que em si centralizavam
ainda sofre de saudades da elegância de todos os seus espe- todo o espetáculo, . majestosamente pisando num pedestal de
táculos: Ralé e Antígona, Go1doni e Pirandello, eram fon:no- supporting-casts e "N. N.". As platéias eram impedidas de ver
sos. A formosura era a suprema meta clássica daquelas neves os personagens, já que as estrelas se mostravam, prioritaria-
de antanho. Clássico, portanto, é qualquer elenco que se desen- mente, idênticas a si mesmas, em qualquer texto. Eram poucas
volva e se mantenha dentro dos limites de qualquer estilo, lou- as estrelas e já tinham todas sido vistas. A platéia fartou-se e
vável ou pecaminoso. Assim, o "teatro de caminhão" dos v_!rios abandonou-as.
Centros Populares de Cultura mantinha-se numa linha clás- Com isto rompeu o TBC. Teatro de equipe: conceito novo.
sica. A platéia voltou para ver e misturou-se aos freqüentadores de
Já o Teatro de Arena de São Paulo elabora a outra ten- estréias. Se estes eram a elite financeira de São Paulo, aquela
dência;â- da teatro r-evolucionário - e eu estou sempre falan- era a classe média. A princípio, . este 'conúbio foi feliz. Mas a
do no bom sentido. O seu desenvolYiment.o ti~t~ ~12p~s incompatibilidade de gênios das duas platéias cedo ia mos-
que não se cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, co- trar-se.
ordenada e necessariamente. A coordenação é artístiça e a ne- A p_!imeira etapa do Arena veio responder às necessidades
cessidade social. desta ruptura, e veio satisfazer a classe média. Esta, fartou-se
dãs encenações abstratas e belas e, à ,impecável dicção britâni-
ca, pr~f~rjlJ que os atores, sendo gagos, fossem gagos; sendo
brasilejros, falassem português, misturando tu e você.
PRIMEIRA ETAPA: · O Arena devia responder com peças nacionais e interpre-
NÃO ERA POSSÍVEL CoNTINUAR ASSIM tações brasileiras. Porém, peças não havia. Os poucos autores
nacionais de ent[lo preocupavam-se especialmente com mitos
Em 1956, o Arena iniciou sua fase "realista". Entre outras gregos. Nelson Rodrigues chegou a ser ovacionado com a se-
característcias que trazia, esta etapa significoU) um "não" res- guinte frase, que consta da orelha de um dos seus livros: "Nel-
pondido ao teatro que se praticava. Qual? son cria, pela primeira vez no Brasil, o drama que reflete o
verdadeiro sentimento trágico grego da existência". Estávamos
Ainda nesse ano, o panorama paulista era dominado pela interessados em combater o italianismo do TBC, mas não ao
estética do TBC, . teatro fundado - e quem o disse foi seu preço de nos helenizarmos. Portanto, só nos restava utilizar
fundador - entre dois copos de whisky, 'para orgulho da "d- textos moder_n_os _r~ealistas, ainda que de autores estrangeiros.
dade que mais cresce". Feito por quem de dinheiro para quem -- O_!e_alismo tinha, entre outras vantagens, a de ser mais
também o tivesse. Luxo indiscriminado cobrindo Gorky e Gol- fácil de realizar. Se antes usava-se como padrão de excelência
doni. Teatro para mostrar ao mundo: "aqui· também se faz a- imitação quase perfeita de Guielgud, passávamos a usar a ·
o bom teatro europeu. On parle trançais. "Somos Província dis- imitação da realidade visível e P.róxima. A interpretação seria
tante, mas temos alma de Velho Mundo". tão melhor na medida em que os atores fossem eles mesmos e
I
Era a nostalgia de estar distante, mas alegria de fazer qua- não atores.
se igual:YO Arena descobriu que estávamos longe dos "gran- Fundou-se no Arena o Laboratório de Interpretação. Sta-

l
des centros" mas perto de nós mesmos - e quis fazer um tea- nislawsky foi estudado em cada palavra e praticado desde as
tro que estivesse perto. nove da manhã até a hora de entrar em cena. Gianfrancesco

176 177
Guamieri, Oduvaldo Vianna Filho, Flávio Migliaccio, Milton atores mais Steinbeck e O'Casey. Continuava a dicotomia, ago-
Gonçalves e Nelson Xavier - são alguns dos atores que fun- ra invertida. Tomou-se necessária a criação de uma dramaturgia
damentaram esse período. que criasse personagens brasileiros p'ara os nossos atores. Fun-
· dou-se o Seminário de Dramaturgia de São Paulo.
As peças selecionadas nessa época foram, en~re outras:
Ratos e Homens de John Steinbeck, ]uno e o Pavao de Sean ) No princípio era a descrença: como seriam transformados
, Q!Casey, They Knew What They Wanted de Sidney How~rd, em autores jovens de pouca idade, sem quase experiência de
vida ou de palco? Juntaram-se doze, estudaram, discutiram,
e outras que, embora vindo mais tarde, pertencem estetica-
mente a esta .etapa, como Os Fuzis da Senhora Carrar de Ber- escreveram. E pôde-se inici~r a segunda etapa.

tolt Brecht, este dirigido por José Renato.
O palco tradicional e · a forma em arena divergem em suas
adequações. Podia-se pensar, inclusive, q~e fo_sse o palco a SEGUNDA ETAPA:
forma mais indicada para o teatro naturahsta, já que a arena A FoTOGRA FIA
revela sempre o caráter "teatral" de qual9uer espetáculo: pla-
téia diante de platéia, . com atores no me10, e todos os mec~­
nismos de teatro sem véus e visíveis: refletores, entradas e sat- Em fevereiro de 1958, começou. Eles não usam Black-
tie, de Gianfrancesco Guamieri foi a primeira, e ficou todo o
das rudimentos de cenários. Surpreendentemente, a arena mos-
ano em cartaz até 59. Pela primeira vez, em nosso teatro, o
tro~ ser a melhor forma para o teatro-realidade, ~ois peX:UUte
drama urbano e proletário.
usar a técnica de close-up: todos os espectadores esta~ próxtmos
de todos os atores; o café servido em cena é chetrado pel_a Durante quatro anos (até 1962) muitos estreantes foram
lançados: Oduvaldo Vianna Filho (Chapetuba F. C, ), Rober-
platéia; o macarrão comido é visto em processo de _de~lutt­
to Freire (Gente como a Gente), Edy Lima (A Farsa da
ção; a lágrima "furtiva" expõe seu segredo ... O palco 1tahano,
Esposa Perfeita), Augusto Boal (Revolução na América do
ao contrário, usa preferentemente o long-shot. Sul), Flávio Migliaccio (Pintado de Alegre), Francisco de
Quanto à imagem, Guamieri, num dos seus artigos, obser-
A Assis (O Testamento do Cangaceiro), Benedito Ruy Barbosa
vou a evolução do cenário em Arena, segundo seus tres mo- (Fogo Frio) e outros.
mentos. Primeiro: a forma envergonhada procurava fazer-se Foi um longo período em que o Arena fechou suas portas
passar por palco convencional, mostrando estruturas de portas à dramaturgia estrangeira, independentemente de sua excelên-
e janelas. Como imagem, arena era apenas um palco pobre.
cia, abrindo-as a quem quisesse falar do Brasil às platéias bra-
Segundo: a arena toma consciência de ser forma _autôn_?ma_ e
sileiras.
elege 0 despõfamento absoluto - algumas palhas no c?ao dao
Esta etapa coincidiu càm o nacionalismo político, com o
idéia de celeiro, um tijolo é uma parede, ~ o · :spetaculo _se florescimento do parque industrial de São Paulo, com a criação
éoncentr a na interpretação·' do ator. T ercetro: do despoja- de Brasília, com a euforia da valorização de tudo nacional. ( •)
mento nasce a cenografia própria dessa forma -:- o mel~or As peças tratavam do que fosse brasileiro: suborno no
exemplo foi o cenário de Flávio Império _para O_Filho fo _Cao. futebol interiorano, greve contra os capitalistas, adultério em
Quanto à interpretação; o ator reuma em st a carencta do Bagé, vida subumana dos empregados em ferrovias, cangaço no
fenômeno teatral, era o demiurgo do teatro - nada sem ek Nordeste e a conseqüente ap?"ição .de Virgens e Diabos, etc.
se fazia e tudo a ele se resumia.
Porém se antes os nossos caipiras eram afrancesados pc-
los atores l~xuosos, agora, os revolucionários irlandeses eram
gente do Brás. A interpretação mais brasileira era dada aos • Na mesma época nasceram a Bossa Nova e o Cinema Novo.

178 179

. "
q estilo pouco variava e pouco fugia do .fot?grá!i<:<', se- guesia então nascente; nossa produção inseria-se no século da
guindo demasiado de perto as peg~das do ~r~erro extto da sua decadência.
série. Eram as singularidades da vtda o pnnctpal tema des- E o ideólogo deste último alento é Date Camegie. De
te ciclo dramatúrgico. E esta foi a sua principal limitação: a fato, a máxima de cada um desses pensadores são idênticas, em-
• platéia via o que já conhecia. Ver o vizinho no palc?, ver o bora opostas por quatro séculos de His~ória. O self-made-man
homem da rua, ofereceu de início grande prazer. D~pots~ todos do decadent~ é o mesmo "homem de virtu" do florentino.
perceberam que podiam vê--los fora do palco sem pagar entrada. A Mandrágora, em nossa versão, foi feita não como peça
A interpr:etação, nesta fase, continuou o caminho iá tri- acadêmica, mas como esquema polítiéô ainda hoje utilizado
lhado antes, continuou Stanislawsky. Porém, antes, a enfase pãra a tomada do poder. O poder, na fábula, era simbolizado
interpretativa eiã dada a "sentir emoções", agora, as emoções põr Lucrécia, a jovem esposa guardada a sete chaves, mas mes-
foram dialetizadas e a ênfase passou a ser posta no "fluir de mo assim acessível a quem a queira e por ela lute - sempre
emoções". Se se permite a metáfora máo-tsé-tunguiana! não ·m~is que se lute tendo em vista o fim que se deseja e não a moral
"lagos, mas sim rios emocionais". . . Aplicaram-se le1s da ~~~­ dos meios que se usam.
lética: o conflito de vontades opostas desenvolve-se quantltatt- Depois, da Mandrágora, outros clássicos vieram, alguns fora
·va e qualitativamente, dentro de uma estrutura conflitual int:r- da etapa: O Noviço de Martins Penna, O Melhor Juiz, o Rei,
~endente. Assim, ~t~ni~lawsky. foi posto dentro ~e u~ . sis- de Lope de Vega, O Tartufo de Moliere, O Inspetor Geral de
tema. Apesar da reststençta do dtretor russo em ace1tar siste- Gogol.
mas" todas as suas teorias cabiam perfeitamente dentro deste.'
. . A "nacionalização" era feita diversamente, dependendo
'A chegada de Flávio Império, que passou a mtegrar a equi- dos objetivos sociais do moll!ento. Assim, por exemplo, O Me-
pe, trouxe, pela primeira vez, a cenografia ao Arena. lhor Juiz, o R ei sofreu alterações profundas no texto do ter-
Esta fase necessariamente deveria ser superada. Suas van- ceiro ato, a ponto de fazer com que a autoria se atribuísse mais
tagens foram imensas: os autores nacionais deixaram de s~r aos adaptadores do que ao autor. Lope escreveu quando a evo-
considerados "veneno de bilheteria", já que quase todos obti- lução da História exigia a unificação das nações, sob o do-
veram imenso êxito; entusiasmados pela existência de um tea- mínio de um Rei. A obra exalta o 'incfuríduo justo, _que em
tro que só apresentava autores nacionais, muitos aspirantes con- suas mãos reúne todos os poderes, caridoso, bom, ímpoluto'
verteram-se em dramaturgos, contribuindo com suas obras para Exalta o carisma. Se, para sua época, sua fábula se adequava,
a formação de um teatro mais br~sileiro e ~~nos mim~tico. para a nossa e· para o Brasil co'rria o grave risco de se trans-
Porém a desvantagem principal cons1st1a em retter~~:r o formar em texto reacionário. Por isso, tornou-se necessário
óbvio. Querlamos um teatro mais "universal" que, sem deiX~ alterar a própria estrutura para devolver ao texto, séculos de-
de ser brasileiro, não se reduzisse às aparências.. O novo caiDl· pois, sua idéia original.
nho começou em 63. Por outro lado, Tartufo foi encenada sem que se lhe
alterasse um alexandrino. Na época em que o 'texto foí mon-
tado a hipocrisia religiosa era profusamente utilizada pelos tar-
TERCEIRA ETAPA:
tufo~ conterrâneos, que, em nome de Deus, da Pátria, da Fa-
mília, da Moral, da Liberdade, etc., marchavam pelas ruas exi-
NACIONALIZAÇÃO DOS CLÁSSICOS gindo castigos divinos e militares para os ímpios. Tartufo pro-
fundamente desmascara esse mecanismo que consiste em trans-
Escolhemos A Mandrágora, de Maquiavel. em tradução formar Deus em parceiro de luta, ao invés de mantê-lo na posi-
de Mário da Silva.' Maquiavel foi o primeiro ideólogo da bu~ ção que lhe compete de Juiz Final. Nada era preciso acrescen-

180 181
tar ou subtrair ao texto original, nem mesmo considerando que mano é o personagem que cada um cria para ·si mesmo. Porém,
o próprio Moliere, para evitar censuras tartufescas, tivesse sido cada um é capaz de ver, sentir, pensar, ouvir, emocionar-se
obrigado a fazer, ao final, imenso elogio ao governo; bastava mais do que o faz no dia-a-dia. Uma v.ez libertado o ator de
aí o texto em toda a sua simplicidade para que a platéia se suas mecanizações cotidianas, estendidos os limites de sua per-
pusesse a rir: a obra estava nacionalizada. cepção e expressão,. este ator,. assim liberto, reduz suas possi-
Esta etapa oferecia, de início, alguns problemas impor- bilidades àquelas exigidas pelas inter-relações nas quais desen-
tantes, entre eles o de estilo. Muita gente acreditava que a mon- volve seu personagem.
tagem de peças clássicas seria um retomo ao TBC, e · assim
não se dava conta do alcance, bem mais distante, do novo pro-
jeto. Quando montávamos Moliere, Lope ou Maquiavel, I)Unca
' Uma vez desenvolvida esta etapa,<verificou-se sem grande
esforço que, se a anterior restringia-se além do desejável na
exaustiva análise de singularidades, esta reduzia-se demasiado à
o estilo vigente desses autores era proposto como meta de síntese de universalidades. Uma apresentava 1\ existência não
chegada. Para que se pudesse radicar no nosso tempo e lugª-t, conceituada; outra, conceitos etéreos.
tratavam-se esses textos como se não estivessem radicados à
tradição de nenhum teatro de nenhum país. Fazendo Lope Era necessário tentar a síntese.
não pensávamos em Alejandro Ulloa, nem pensávamos nos elen-
cos franceses, fazendo Moliere. Pensávamos naqueles a quem
nos queríamos dirigir, e pensávamos nas inter-relações human~s QUARTA ETAPA:
e sociais dos personagens, válidas em outras épocas e na nossa.
Claro que chegávamos sempre a um "estilo" - porém nunca MUSICAIS
aprioristicamente.I\'Isto nos dava a responsabilidade de artistas
criadores e ·nos retirava os limites da macaqueação. O Arena tem uma vasta produção de musicais. Desde que
Quem prefere o já conhecido, o já avalizado pela crítica iniciou, às segundas-feiras, apresentações de cantores e instru-
dos grandes centros, claro que não podia gostar - e muitos mentistas, reunindo espetáculos sob a denominação genérica d ·~
assim reagiram. A maioria, entretanto, sentiu-se fascinada pela "Bossarena", com produção de Moracy do Vai e Solano Ribei-
aventura de compreender que um clássico só é universal na ro, até algumas experiências feitas por Paulo José, como His-
medida em que for brasileiro. Não existe o "clássico universal" torinha e Cruzada das Crianças; desde a ca::produção reali-
que só o Old Vic ou a Comédie podem reproduzir. Nós tam- zada com o Grupo Opinião, do Rio de Janeiro, do musical Opi-
bem somos universo. nião, do qual participaram Nara Leão, Maria Bethânia, Zé Keti
Ainda no terreno interpretativo, outra ênfase foi deslocada. e João do Vale, até o one-man-show A Criação do Mundo
Cada vez mais passou ao primeiro plano a interpretação soei~!. Segundo Ari Toledo, passando por Um America~o em Brasília
Os atores passaram a construir seus personagens a partir de de Nelson Lins de Barros, Francisco de Assis e Carlos Lyra,
suas relações com os demais, e não a partir de uma discutível Arena Conta Bahia, com Gilberto Gil, Caetano Veloso Gal
essência. Isto é, os personagens passaram a ser criados de fora Costa, Tomzé e Piri, Tempo de Guerra com Maria Bethânia.
para dentro. Percebemos que o personagem é uma redução do Muitos outros foram feitos de caráter mais episódico e circuns-
ator, e não uma figura que paira distante e flutua até ser alcan- tanciaL De todos, o que me parece mais importante, pelo me-
çada por um instante de inspiração. Mas redução de que ator? nos na seqüência desta argumentação, é Arena Conta Zumbi,
Cada ser humano forma seu próprio personagem na vida real: de Guarnieri e Boal, com música de Edu Lobo.
ri da sua maneira própria, anda, fala, ·cria vícios de linguagem, Zumbi propunha-~ a muito e o conseguiu bastante. Sua
de pensamento, de emoções: o enrijecimento de cada ser hu- proposta fundamental foi a destruição de todas as convenções

182 183
teatrais que se vinh~m _ç_onstituindo em obstáculos ao d_eS.en- nos adros de Igrejas, no Nordeste e na periferia de São Paulo.
volvimento estético do teatro. Estes espetáculos, festas populares, eram gratuitos; mas o artis-
ta é um profissional. Conseguia-se apoio econômico que tor-
Procurava-se mais: contar uma história não da perspecti-
nava o desenvolvimento. possível. Já não se consegue. A pla-
va cósmica, mas sim de uma perspectiva terrena bem localiza-
téiã foi golpeada. Que -pode agora acontecer? o único cami-
da no tempo e no espaço: a perspectiva do Teatro de Arena,
nho que parece agora aberto é o da elitização do teatro. E este
e de seus integrantes. A história não era narrada como se exis-
deve ser recusado, sob pena de transformarem-se os artistas
tisse autonomamente: existia apenas refdida a quem a con-
em bobos de corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo
tava. a sua inspiração e o seu destino.
Zumbi era peça de advertência contra todos os males pre- O beco não parece ter saída. A quem interessa que o
sentes e alguns futuros. E, dado o carátet:_j_2_rnalístico do_téxto, teatro seja popul-ar? Descontando-se o povo e alguns artistas
requeria-se conotações que deveriam ser, e fÕram, oferecidas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder. Vindo o
pela platéia. Em peças que exigem conotação, o texto é arma- que vier, neste momento de morte clínica do teatro, muitos
do de tal forniãã estinmlar respostas prontas nos espectadores. são os responsáveis: devemos todos analisar nossas ações e
:ESsããrlüãÇão e esse caráter determinam a simplificação de omissões.
toda a e~trutura. Moralmente o texto torna-se maniqueísta, o Que cada um diga o que ·fez, a que veio e porque ficou.
que pertence à melhor tradição do teatro sacro-medieval, por E que cada um tenha a coragem de, não sabendo porque per-
~~~mplo. ·E da mesma forma e pelos mesmos motivos porque manece, retirar-se.
o teatro sacro da Idade Média requeria todos os meios espeta-
cuíares disponíveis, também, no caso de Zumbi, o texto deveria.
ser amparado pela música, que, nesta peça, tjnha como missão
principal preparar ludicamente a platéia a receber as razões
contadas.
~Uf!lbi destruiu convenções, destruiu todas que pôde. Des-
truiu inclusive o que deve ser recuperado: a empatia. Não po- ·
detlao identiij.car-se a nenhum personagem em n·enhüm mo-
mento, a platéia ml.Jitas vezes se colocava como observadora
fria dos feitos mostrados. E a empatia deve ser reconquistada.
Isto, porém, dentro de um novo sistema que a enquadre e a
faça desempenhar a funçã? que lhe seja atribuída.

CONCLUSÃO

Este é o caminho que vinha o Arena percorrendo e que


percorre. Cada uma de suas etapas sempre ligadas ao desenvol-
vimento social do Brasil. Quando a fase nacionalista do tea-
trÕ fof ·sucydida pela nacionalização dos clássicos, o teatro che-
gou ao po"vo, indo buscá-lo nas ruas, nas conchas acústicas,

184 185

. ,,
u.cces.siclª-de social e teatral de mostrar em ccna..a_vida br:asi-
leira, dsgeciãlmente nos seus aspectos aparentes. Pedindo em-
presta a a frase a Brecht, estávamos mais interessados em
mostrar "como são as coisas verdadeiras" do que em "revelar
como verdadeiramente são· as coisas". P ara isto, utilizávamos
a fotografia e todos os seus esquemas. Da mesma forma, está-
II - A necessidade do '~coringa'! vamos dispostos a utilizar o instrumental de qualquer outro
estilo, desde que respondesse às necessidades estéticas e sociais
de nossa organização como teatro atuante - isto é, teatro que
procura influir sobre a realidade e ·não apenas refleti-la, ainda
que corretamente. ·
A realidade estava e está em trânsito; os instrumentais es-
tilísticos, perfeitos e acabados. Queríamos refletir sobre uma
realidade em modificação, e tínhamos ao nosso dispor apenas
estilos imodificáveis ou imodificados. Estas estruturas reclama-
vam sua própria destruição, a fim de que não destruíssem a
possibilidade de, em teatro, surpreender o movimento. E que-
ríamos surpreendê-lo quase no dia-a-dia - teatro-jornalístico.
Z umbi, primeira peça da série "Arena Conta ... " desco-
MONTAGEM de Arena Conta Zumbi foi, talvez, o maior
A sucesso artístico e de público logrado pelo Teatro de Are-
ordenou o teatro. Para nós, sua principal missão foi a de criar
o necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a eta-
na até hoje. De público, por seu caráter polêmico, por sua pa da proposição de um novo sistema. A sadia desordem foi
proposta de rediscutir um importante episódio da História na- provocada por quatro técnicas principais que se usaram.
cional - utilizando para isso uma ótica moderna - e por ter
revalidado a luta negra como exemplo de outra que se deve A primeira consistia na desvinculação ator-personagem.
instaurar em nosso tempo. Artístico, por ter destruido algumas Certamente não foi esta a primeira vez que personagens e ato-
res estiveram desvinculados. P ara sermos mais exatos: assim
das convenções mais tradicionais e arraigadas do teatro, e que
persistiam 'como mecânicas limitações estéticas da liberdade nasceu o teatro. Na tragédia grega, dois e depois três atores
alternavam entre si a interpretação de todos os personageas
criadora.
constantes do texto. Para isso, utilizavam máscaras, o que evi-
Zumbi culminou a fase de "destruição" do teatro, de to- tava a confusão da platéia. No nosso caso, tentamos também
dos os seus valores, regras, preceitos, receitas, etc. Não podía- a utilização de uma máscara; não a máscara física, mas sim o
mos aceitar as convenções p-:-aticadas, mas era ainda impossível conjunto de ações e reações mecanizados dos personagens.
apresentar um novo sistema de convenções. Cada um de nós, na vida real, apresenta um comportamento
Convenção é hábito criado: em si mesma não é boa nem mecanizado preestabelecido. Criamos vícios de pensamento, de
má. As convenções do teatro naturalista, por exemplo, não linguagem, de profissão. Todas nossas inter-relações se padro-
são boas nem más - foram e são úteis em determinados nizam na vida cotidiana. Estes padrões são nossas "máscaras".
momentos e circunstância~O próprio Arena, durante o perío- como são também "as máscaras" dos personagens. Em Zumbi.
do que vai de 1956 a 1960, valeu-se fartamente do realismo, independentemente dos atores que representavam cada papel,
de suas convenções, técnicas e processos. Esse uso respondia à procurava-se manter, em todos, a interpretação da "máscara"

186 187
permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violên- "E = MC2", narrava a história da teoria atômica desde De-
cia característica do Rei Zumbi era mantida, independentemen- mócrito, e da Bomba Atômica desde Hiroshima, propugnando
te do ator que interpretava em cada cena. A "aspereza" de pela utilização pacífica desse tipo de energia. As cenas são
Don Ayres, a "juventude", de Ganga Zona, a "sensualidade", totalmente independentes uma das outras e se relacionam ape-
de Gongoba, etc., igualmente não estavam vinculados ao tipo nas porque se referem ao mesmo tema.
físico ou características pessoais de nenhum ator. f: verdade
Existe, em geral, vigente, o gosto de inserir cada peça na-
que as próprias aspas já dão uma idéia dq. cará_ter ge~~rico de
cional no contexto da História ·do Teatro; e, muitas vezes,
cada "máscara". Por certo, este proces)P Jamais servma para .
esquece-se de inseri-la no próprio contexto da sociedade brasi-
interpretar uma peça baseada em escritos de Proúst ou Joyce.
leira. Assim, embora a História do Teatro seja farta de amos-
Porém Zumbi era texto maniqueísta, texto de bem e mal; de
tras anteriores, o importante, nesse novo procedimento do Are-
certo e errado: texto de exortação e combate. E, para este
na, referia-se principalmente à necessidade de extinguirmos a
gênero de teatro, este gênero de interpretação adequava-se per-
influência que sobre o elenco tivera a fase realista anterior na
feitamente. qual cada ator procurava exaurir as minúcias psicológica; de
Mas não seria necessário citar a. tragédia grega, já que cada personagem, e ao qual se dedicava com exclusividade. Em
tantos exemplos de teatro moderno desvinculam personagem Zumbi, cada ator foi obrigado a interpretar a totalidade da
· de ator. A Decisão de Brecht, as Histórias para serem Conta- peça e não apenas um dos participantes dos conflitos expostos.
das, do dramaturgo argentino Oswaldo Dragun, são dois exem-
plos. Ao mesmo tempo se assemelham e se diferenciam de Fazendo-se com que todos os atores representassem todos
Zumbi. Na peça argentina, em nenhum momento se estabelece os personagens, conseguia-se segundo objetivo técnico dessa pri-
um conflito teatral; o texto tende à narração lírica: os perso- meira experiência: todos os atores agrupavam-se em uma úni-
nagens são narrados como se se tratasse de poesia, e os -atores ca perspectiva de narradores. O espetáculo deixava de ser rea-
se comportam como se estivessem dramatizando um poema. lizado segundo o ponto de vista de cada personagem e passa-
Também no texto brechtiano narra-se distanciadamente o que va, narrativamente, a ser contado por .toda uma equipe, segun,.
no passado ocorreu com uma patrulha de soldadós: a morte do critérios coletivos: "Nós, somos o Teatro de Arena" e "nós,
de um companheiro é mostrada diante dos juízes: o «tempo todos, juntos, vamos contar uma história, naquilo que seme-
presente" é a narração do fato acontecido e não o fato acon- lhantemente pensamos sobre ela:''. Conseguiu-se assim um níyel
de "interpretação coletiva".
tecendo. ·
~bi - e isto não é qualidade nem defeito -
cada trrcm'ientô"da peça era interpretada "presentemente" e "con-
flitualmente", ainda que a "montagem" do espetáculo não per-
mitisse esquecer a presença do grupo narradôr da história: al-
Zumbi, foi a dÓ ecletismo de gênero e estilo. Dentro do mes-
mo espetáculo peroonia-se o caminho que vai do melodrama
mais simplista e tenenovelesco à chanchada mais circense e vo-
3
A terceira t~cniea Ele G.[iação de caos, usada com êxito em ( } )

guns atores permaneciam no tempo e no espaço dos especta- devilesca. Muitos julgaram perigoso o caminho escolhido e vá- .
dores, enquanto outros viajavam a outros lugares e épocas. rias advertências foram feitas sobre os limites por onde cami-
Resultava daí uma "colcha de retalhos" formada por pe- nhava o Arena; tentou-se mesmo uma enérgica demarcação de
quenos fragmentos de muitas peças, documentos, discursos e fronteiras entre a "dignidade da arte" e o "fazer rir a qualquer
canções. preço". Curioso que as advertências foram sempre dirigidas à
Exemplos de desvinculação são inumeráveis. Lembre-se chanchada e nunca ao melodrama que, no extremo oposto, cor-
ainda Les Freres Jacques e todo o movime.nto do Living News- ria os mesmos riscos. Talvez isso se deva ao fato de que a
paper do teatro americano. Uma das peças deste . movimento, nossa platéia e a nossa Crítica já se habituaram ao melodrama

188 189

' .
e as oportunidades de riso andem muito escassas nos dias que cipal meta de toda uma fase. Esse caminho, embora necessário
correm ... no seu momento, apresentava grande perigo e risco de tornar
Também em estilo, e não apenas em gêneros, instaurou-se a obra de arte inútil. ~te é uma forma de conbecime{\to,
o salutar caos estético. Algumas cenas, como a do Banzo, portanto o artista se obriga a interpretar a realidade, tornando-a
tendiam ao expressionismo, enquanto que outras, como a do ínteligível. Porém, se ao invés de fazê-lo, apenas a reproduz,
P adre e da Senhora Dona, eram realistas, a da Ave-Maria sim- não estará conhecendo nem dando a conhecer. E quanto mais
boli$ta, a do twist beirava o surrealismo, etc. "iguais" forem a realidade e a obra, tão mais desnecessária será
E m teatro, qualquer quebra desentorpcce. As regras tra- esta. O critério de semelhança é a medida de ineficácia. Cer-
dicionais do Playw.riting americano receitam o comic relie{ como - tamente, os autore.s representados nessa época não se limitavam
forma de estímulo. Aqui, obtinha-se uma espécie de stylistic às constatações. Porém a utilização do instrumental naturalista
relief e a platéia recebia satisfeita as mudanças bruscas e vio- reduzia a possibilidade de análise. Os textos se tornavam am-
lentas. bíguos ou bivalentes; quem é o herói: o pequeno-burguês Tião
Ain?a uma quarta técnica foi usada. A música tem o po- ou o proletário Otávio? Qual é a solução de José da Silva: dei-
der de, mdependentemente de conceitos, preparar a platéia a ,>;ar como está pra ver como é que fica, morrer de fome, ou
curto prazo, ludicamente, para receber textos simplificados que fazer guerrilha? (*) Na fase posterior, quando se procurava
só poderão ser absorvidos dentro da experiência simultânea "nacionalizar os clássicos", contrapuseram-se as metas: p assa-
razão-música. Um exemplo esclarece: sem música, ninguém mos a tratar apenas com idéias, vagamente corporificadas em fá-
acreditaria que às margens plácidas do Ipiranga ouviu-se um bulas, Tartufo, O Melhor Juiz, o Rei, etc. Pouco nos importava
grito heróico e retumbante ( *) ou que, qual cisne branco em reproduzir a vida na época de Luís XIV ou na Idade Média.
noite de lu a, algo desliza no mar azul(**). Da mesma maneira, Don Tello e Tartufo não eram seres humanos radicados no
e pela forma simples com que a idéia está exposta, ninguém seu mome1:1to, mas Lobos de La Fontaine que bem se asseme-
acredi~aria que este "é um tempo de guerra" se não,.,fosse a
lhavam à gente paulista e brasileira; Dorina e P elayo eram
melodta de Edu Lobo. cordeirinhos com alma de raposas. Todo o elenco de persona-
Finalmente, usando estas quatro técnicas, tinha Zumbi a gens se constituía de símbolos tornados significativos pelas fei-
missão estética principal de sintetizar as duas fases anteriores ções semelhantes à gente nossa. Eram "universais" flutuando
do desenvolvimento artístico do Teatro de Arena. sobre o Brasil.
Durante todo o período realista, tanto a dramaturgia como Havia que sintetizar: de um lado o singular, de outro o
a interpretação do Arena buscavam sobretudo o detalhe. Como universal. Tínhamos que encontrar o particular típico.
diz o Coringa em "Tiradentes": "P eças em que se comia ma- O p roblema foi em parte resolvido utilizando-se um epi-
carrão e se fazia café e a platéia aprendia exatamente isso : fa-
sódio da H istória do Brasil, o mito de Zumbi, e procurando-se
zer café e comer macarrão - coisas que já sab"ia". Foi todo
um período em que a preocupação máxima consistia n a busca recheá-lo com dados e fatos recentes, bem conhecidos pela pla-
de singularidades, na descrição mais minuciosa e veraz da vida téia. Exemplo: o discurso de Don Ayres, ao tomar posse, foi
brasileira, em todos os seus aspectos exteriores, visíveis e àci-. escrito quase que totalmente tomando-se por b ase recortes de
dentais. A reprodução exata da vida como ela é - esta a prin- jornais de discursos pronunciados na época da encenação.

• Hino Nacional. (*) Personagens de Eles Não Usam Black-tie e Re1·olução na América
** Hino da Marinha. do Sul.

190 191
A verdadeira síntese, é certo, não se lograva: conseguia-se
apenas - e isto já era bastante - justapor "universais" e
"singulares", amalgamando-os: de um lado a história mítica com
toda a sua estrutura de fábula, intacta; de outro, jornalismo
com o aproveitamento dos mais recentes fatos da vida nacional.
A junção dos dois níveis era quase simultânea, o que aproxi-
mava o texto dos particulares típicos. III - As metas do "coringa"
Zumbi preencheu sua função e representou o fim de .uma
etapa de investigação. Concluiu-se a "destruição" do teatro e
propôs-se o início de novas formas.
Coringa é o sistema que se pretende propor como for-
ma permanente de se fazer teatro - dramaturgia e encenação.
Reúne em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena e,
neste sentido, é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, tam-
bém as coordena, e neste sentido é o principal salto de todas
as suas etapas.

M SISTEMA não se propõe porque sim. Vem sempre em


..,·)
U resposta a estímulos e necessidades estéticas e sociais. Já
... foi exaustivamente estudada a estrutura dos textos isabelinos
como decorrência das condições sociais de sua época, de sua
platéia, e até mesmo das características especiais do seu teatro
como edifício. Em geral, todas as peças de Shakespeare se ini-
ciam com cenas de violência: criados em luta corporal (Romeu
e Julieta) , movimento reivindicatório de massas (Coriolan o),
aparição de um fantasma (Hamlet), de três bruxas (Macbeth ),
de um monstro (Ricardo 111), etc. Não era por coincidência
que o dramaturgo elegia iniciar suas obras assim de maneira
violenta. Sobre o comportamento barulhento de sua platéia nar-
ram-se muitos detalhes, alguns bem curiosos. Por exemplo, a
linguagem romântica das laranjas: durante o espetáculo um se-
nhor, desejoso de cortejar uma jovem da platéia, comprava
uma dúzia de laranjas, aos gritos, não importando fosse a
cena, no momento, um terno solilóquio. Pelo vendedor, enviava
as frutas à desejada. Dependendo do comportamento desta, ele
entendia tudo. Se a dama devolvesse o pacote, convinha não
insistir; se devolvesse metade, quem sabe? Se as guardasse, as

193
192
lha de Pagamento em termos argentinos. A montagem de peças
esperanças eram muitas. E, Deus seja louvado, se as comesse de. dois ou três personagens, pretende resolvê-lo em termos de
ali mesmo, durante o "Ser ou não Ser", não havia dúvida: · o
ca1xa de música. A paralisação de muitas companhias em ter-
jovem casal não assistiria ao final da tragédia, preferindo inven- m o~ de "~ssim não é possível". Também em relação ao reper-
tar sua própria comédia bucólica alhures. tóno •. mmtas esperanças .são acalentadas: a pornografia talvez
Im.agine-se que estas não eram condições ideais para o de- soluc10ne o problema_de outras companhias além da de Dercy
senvolvimento da dramaturgia maeterlinckiana. Laurence Oli- Gonçalves; a formaçao de elencos com astros de TV talvez
'?~r•. no s~u firm~ Hen.rique V, d~u uma imagem precisa da pla- atraia fã-clubes; a montagem de textos internacionais vindo
teJa 1sabehna: gntos, msultos, bngas, ameaças diretas aos ato- quentinhos de Paris ou Londres, talvez seduza gente' up-to-
res, circula.ção .ininterrupta de espectadores, nobres no palco, -date. Outros grupos, percebendo que atualmente a montagem
e~c. Para sllen~1a.r esta platéia seria necessária uma introdução de qualquer texto representa risco total de tudo ganhar ou per-
v1gorosa e dec1d1da. Os atores deveriam fazer mais ruído no der, ousam espetáculos que sempre quiseram fazer: estão anun-
palcQ do que os espectadores na platéia. Assim se ia formando ciados Peter Weiss, Brecht, e outros autores da mesma impor-
a técnica de plawriting shakespeariana. tância.
Também as condições de desenvolvimento da ciência pro-
O Teatro de Arena também se encontra diante das mes-
põe a possibilidade de novos estilos: sem a eletricidade, seria cole~ivas do tea~rAo paulista. E suas respostas fu-
mas indaga~ões
impossível o expressionismo. tur.as deverao reflet1r as expenencias que vem realizando. O
Mas não só os aspectos exteriores determinam a forma "~tstema ~o Coringa" também não nasceu porque sim, mas
t~atral. Sem seus sessenta mil sócios proletários, não seria pos- fo1 determmado pelas características atuais da nossa sociedade
sivel o Volksbuhne, berço do teatro épico moderno, como sem e, mais especificamente, da nossa platéia.
a platéia novaiorquina são seriam possíveis as aberrações se- Suas metas são de caráter estético e econômico.
xuais, castrações e antropofagias de Tennessee Williams. Seria
Q_primeiro pro~lema a, ser resolvido_consiste em apresen-
absurdo oferecer A Mãe de Brecht à Broadway, ou Noite de
tar, dentro do própno espetaculo, a peça e sua análise,. Eviden-
Iguana aos sindicatos berlinenses. Cada platéia exige peças que
temente, qualquer peça já inclui, em cada encenação critérios
assumam sua visão do mundo.
analíticos ~róp~ios. Todos os ~spetáculos de Don Juan, por
Nos países subdesenvolvidos, no entanto, costuma-se ele- exemplo, sao diferentes entre st, ainda que se baseiem todos
ger o teatro dos "grandes centros" como padrão e meta. Re- no mesm~ texto de Moliere. Coriolano pode ser montada como
cusa-se a platéia de que se dispõe, almejando a distante. O artis- peça fascista ou como condenação ao fascismo. O herói de
ta não se permite receber influências de quem o assiste e so- Júlio Cesar pode ser Marco Antônio ou Brutus. Pode o dire-
nha com os espectadores chamados "educados" ou "de cultu- tor moderno optar pelas razões da Antígona ou de Creon ou
ra~'· Procura absorver tradições alheias sem fuJ!damentar a pró- pela condenação de ambos. Pode a tragédia de Edipo s~r a
pna; receber a cultura estranha como palavra de ordem divina, Moira ou seu orgulho. -·
sem dizer sua palavra. A necessidade de analisar o texto e revelar essa análise à
No momentO', o teatro brasileiro atravessa sua maior crise platéia; de enfocar a ação segundo uma determinada e prees-
a única que chegou simultaneamente em todos os níveis de sua~ tabelecida perspectiva e só dessa; de mostrar o ponto de vista
preocupações: crise econômica, de platéia, de caminhos, de ~os recria?ores - essa necessidade sempre exis-
~o autor ou o
ideologia, de repertório, de material humano. E a crise, de sau- tm e sempre fo1 respond1da diversamente.
dável, traz apenas a necessidade urgente de reformulações, que . O mon~logo, em geral, serve para oferecer à platéia um
também se pretendem em níveis diversos. A tímida introdução pnsma atraves do qual possa entender a totalidade dos confli-
do sistema de cooperativa pretende resolver o problema de Fo-
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tos do texto. O Coro da tragédia grega, que tantas vezes atua Mesmo em cinema, o célebre Gabinete do Dr. Caligari nada
como moderador, analisa também o comportamento dos prota- mais é do que .um filme realista disfarçado - no fim, pede-se
gonistas. O raisonneur das peças de Ibsen quase nunca tem desculpas pelo mstrumental estilístico usado, justificando-se pelo
uma função especificamente dramática, revelando-se a cada ins- fato de que se tratava de uma visão do mundo segundo a ótica
tante porta-voz do autor. O recurso do "Narrador" é também · de um louco.
freqüentemente usado, como o foi por Arthur Miller em Pa- O próprio espetáculo de Zumbi, com todas as liberda-
norama do Alto da Ponte e, pelo mesmo autor, de forma mo- des que assumia, apresentava-se unificado por uma atmosfera
dificada, em Depois da Queda, onde o protagonista dirige-se geral de fantasia: com os mesmos instrumentos de fantasia tra-
explicativamente a alguém, que tanto pode ser o psicanalista balhava-se indistintamente todas as cenas : a variedade de esti-
como pode ser Deus - a Miller pouco importa e muito menos lo era dada pela diferente maneira de utilizar o instrumental e
a nós. a unidade por se trabalhar sempre com os mesmos instrumen-
Estas são algumas das muitas soluções possíveis e já ofe- tos: absorção pelo corpo do ator das funções cenográficas, éti-
recidas. No sistema do Coringa, o mesmo problema se oferece e c~ de branco e preto, mau e bom, amor e ódio, tom ora nostál-
uma solução parecida se propõe. Em todos estes mecanismos gico ora exortativo, dialética tanque panzer x Ave-Maria, etc.
citados, o que mais nos desagrada é a camuflagem que a sua No Coringa pretende-se propor um sistema permanente
verdadeira intenção termina por assumir. O funcionamento da ?e fazer teatro ( :strutura de texto e estrutura de elenco) que
técnica é escondido, envergonhadamente. Preferimos o dêspu- mclua em seu bOJO todos os instrumentais de todos os estilos
dor de mostrá-lo como é e para que serve. A camuflagem aca- ou gêneros. Cada cena deve ser resolvida, esteticamente segun-
ba criando um "tipo" de personagem, muito mais próximo dos do os problemas que ela, isoladamente, apresenta. '
demais personagens do que da platéia: "Coros", "narradores", Toda unidade de estilo traz o empobrecimento inevitável
etc., são habitantes da fábula e não da vida social dos ~specta­ dos processos possíveis de serem utilizados. Habitualmente se-
dores. Propomos o Coringa contemporâneo e vizinho do espec- lecio~am-se os instrumentos de um só estilo, daquele que s~ re-
tador. Para isto, é necessário o esfriamento de suas "Explica- vela .Ideal para o tr~tamento das principais cenas da peça; em
ções"; é necessário o seu afastamento dos demais personagens, segutda, os mesmos mstrumentos são aplicados à solução de to-
é necessária a sua aproximação aos espectadores. das as cenas, mesmo quando se mostrem absolutamente inade-
Dentro do sistema, as "Explicações" que ocorrem periodi- quados. Por isso, decidimos resolver cada cena independente-
camente procuram fazer com que o espetáculo se desenvolva em m_e?te das ~ema~s.. Assim, o realismo, surrealismo, pastoral bu-
dois níveis diferentes e complementares: o da fábula (que pode cohca, tragtcomedta, ou qualquer outro gênero ou estilo estão
utilizar todos os recursos ilusionísticos convencionais do tea- per~anentemente à disposição de autor e diretor, sem que estes,
tro) e o da " conferência", na qual o Coringa se propõe como p_or Isso, se obriguem a utilizá-los durante toda a peça ou espe-
exegeta. taculo.
A segunda meta estética refere-se ao estilo. Certamente O perigo que este procedimento acarreta é razoavelmente
muitas peças bem logradas utilizam dois ou mais estilos, como grande: pode-se perfeitamente cair na total anarquia. A fim
é o caso de Lilion, de Ferenc Molnar e A Máquina de Somar, de evitá-~o, dá-se total ênfase às "Explicaçóes"', de forma a
de Elmer Rice (realismo e expressionismo, para as cenas de que o esttlo em que são elaboradas se constitua no estilo geral
terra e Céu). Porém sempre também os autores se dão a enor- da obra, e ao qual todos os demais devem ser referido-s. Pre-
mes trabalhos para "justificar" as mudanças estilísticas. Admi- tende:.se escrever- Oõras que sejam .fundamentalmente- julga-
te-se o expressionismo desde que a cena se passe no Céu: mentos. E, como num tribunal, ou fragmentos de cada inter-
ora, isto se constitui num disfarce do realismo que permanece. venção podem ter a sua própria forma, sem prejuízo da forma

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especial de julgamento, também assim no Coringa cada capí- que regulam o andamento das jogadas. 0 pré-conhecimento é
tulo ou cada episódio pode ser tratado da maneira que me- indispensável à total fruição.
lhor lhe convier sem prejuízo da unidade que será dada, não
No Coringa, uma mesma estrutura será usada para Tira-
pela permanência limitadora de uma forma, mas pela pletora
dentes e Romeu e Julieta. Porém, dentro dessa estrutura imu-
estilística referida à mesma perspectiva.
tável ou pouco modificável, nada deverá impedir a originali-
Deve-se ainda observar que --ª-E_OSsibilidade de extrema
dade de cada "jogada" ou cada "cena", "capítulo", "episó-
~_!o formal é ..Q~@da pela si!!!I?Tes pres~ça, dentro do
dio" ou "explicação".
ststema, d~ Jun~õ~ extremadamente opostas: a funçãõ -
PJO!agonica que é a realidade mais concreta e a função Cõrin- Não só o esporte oferece exemplos: o espectador de um
.· ga que é a abstração mais con~U!Ial. Entre o naturalismo quadro, ao examinar a parte, pode inseri-la na totalidade que
fotõgráfico de um, singular, e a abstração universalizante do também se mostra visível. O detalhe de um mural é visto,
outro, todos os estilos estão incluídos e são possíveis. simultaneamente, isolado e inserido no todo. Em teatro, este
O teatro moderno tem enfatizado em demasia a origina- efeito, só poderá ser conseguido se a platéia conhecer de an-
lidade. As duas guerras deste século, a guerra permanente de temão as regras do jogo.
libertação de colônias, a ascensão das classes subjugadas, o Finalmente, um dos propósitos estéticos não menos im-
avanço da tecnologia, desafiam os artistas, que respondem com portante do sistema consiste em tentar resolver a opção entre
uma chuva de inovações, especialmente formais: a rapidez personagem-sujeito e personagem-objeto, que, esquematica-
com que evolui o mundo significa também uma impressionante mente, deriva da consideração de que o pensamento determina
rapidez com que evolui o teatro. Uma liderança, porém, faz-se a ação ou, ao contrário, a ação determina o pensamento.
entrave: cada nova conquista da ciência fundamenta a con- A primeira posição é exaustivamente defendida por He-
quista seguinte, nada se perdendo e tudo se conquistandõ:: Ao gel em sua poética, e muito antes por Aristóteles.
contrário, cada nova conquista do teatro tem significado o Afirmam os dois, com palavras pouco diferentes, que a
arrasamento do já conquistado. "ação dramática resulta do livre movimento do espírito do
Portanto, o principal tema da técnica teatral moderna fi- personagem". Hegel vai ainda mais longe e, como se estivesse
cou sendo a coordenação de suas conquistas, de forma a que premonitoriamente pensando no Brasil atual, afirma que a so-
cada novo produto venha enriquecer o patrimônio existente e ciedade moderna vai-se tornando incompatível com o teatro
não substituí-lo. E isto deve ser feito dentro de uma estrutura já que os personagens de hoje se aprisionam num emaranhado
que seja inteiramente flexível e absorvente .de qualquer desco- de leis, costumes e tradições que vão aumentando e se vão
e,
berta ao mesmo tempo, imutável e sempre idêntica a si
tomando mais complexos na medida em que se desenvolve e
mesma. civiliza a sociedade. Assim, o herói dramático perfeito seria
A criação de novas regras e convenções em teatro, den- o "príncipe medieval" - isto é, um homem que em si enfei-
tro de um sistema que permaneça imodificado, permite aos xasse todos os poderes: legislativo, judiciário e executivo - ,
espectadores conhecerem as possibilidades de jogo de cada espe- o que não deixa de ser uma das mais caras aspirações de
táculo. O futebol tem regras pré-conhecidas, uma estrutura rí- alguns políticos atuais, medievos de coração. Só tendo em suas
gida do off sides e penalties, o que não imede a improvisação mãos o poder absoluto poderá o personagem "livremente exte-
e a surpresa de cada jogada. Perderia todo o interesse o fu- riorizar os movimentos do seu espírito"; se esses movimentos
tebol no momento em que cada jogo fosse disputado em obe- · o levam a matar, possuir, agredir, absolver, etc. - nada estr'l-
diência a leis legisladas apenas para esse jogo; se os torcedo- nho a ele poderá impedi-lo de fazê-lo. As ações concretas têm
res tivessem que descobrir, durante a partida, quais as leis origem na subjetividade do personagem.
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f
Brecht - o te6rico e não necessariamente o dramatur-
go - defende a posição oposta: o personag~m é o reflex? _da
ação dramática e esta se desenvolve por me10 de contradtçoes
objetivas, ou objetivas-subjetivas, isto é, um dos pólos é se~­
pre a infra-estrutura econômica da sociedade, ainda que seja
o outro um valor moral.
No Coringa, a estrutura dos conflitos é ~pt:e infr_a- IV - As estruturas do "coringa" :
-estrutural, ainda que se movall: -os rersonag~n((í?noran~emen~
deste desenvolvimento subterraneo, Isto é, amdà:::q ue sejam- he-
gelianamente livres.
Procura-se assi~ Q?est.aurar a liberda e plena do persona-
ge~ sy$ito,~e~tf,@ _~~ - u~ • ·~~ da a~ál~s~ social. A
,co~naç~e:ssa 1iberd= . d e o caos subjetlVlsta con~ ,~
(~en-te-aoS""'êstiles lírict:>s: expressi~nismo, etc. lmp:de ~ apr~-· ·
sentação do mundo como perpleXIdade, como _destmo m.el.uta-
vel. E deve impedir, esperamos - intepretaçoes mecamcistas 1
que reduzam a experiência humana à mera ilustração de com {
pêndios. ' ,
Muitas são as metas deste sistema. Nem todas são este-
ticas ou tiveram na estética a origem de sua proposição . ,. A M ZUMBI ~od?s ~~ atores rep~esentava~ todos os persona-
violenta limitação do poder aquisitivo da população deteríni- E gens: a dtstnbUtçao 'de papéts era fetta em cada cenà e
nou a rarefação do mercado consumidor de produtos supér- sem nenhuma constância; procurava-se mesmo evitar qualquer
fluos: o teatro entre eles. periodicidade na distribuição dos mesmos papéis aos mesmos
Não se pode ficar esperando que ocorram modificações atores. Mal comparando, parecia uma equipe de futebol de
fundamentais na política econômica, de forii?~ a que se de- várzea: todos os' jogadores, independentemente de suas posi-
volva ao povo a possibilidade de compra. Deve-se enfrentar ções, estão sempre onde' está a bola. Em Tiradentes, e dentro
cada situação no âmbito da própria situação, e não segundo do sistema do Coringa, cada ator tem a sua posição pré-de-
perspectivas otimistas. E estes sã~ os dados: falta m~rcad~ terminada, e move-se dentro das regras estabelecidas para essa
consumidor de teatro, falta matenal humano, falta apOlO of~­ posição. Também aqui não se distribuem personagens aos ato-
ciàl a qualquer campanha de popularização e sobram restn- res, mas sim funções de acordo com a estruturação geral dos
ções oficiais (impostos e regulamentos). . ~ . conflitos do texto.
Nesse panorama hostil, a montagem obedtente ao sistema A primeira função é a "Protagônica" que, no sistema, re-
do Coringa toma-se capaz de apresentar qualq~er texto com pre~enta a realidade concreta e fotográfica. Esta é a única fun-
número fixo de atores, independentemente do. n~mero de pe~­ ção na qual se dá a vinculação perfeita e permanente ator-per-
sonagens, já que cada ator de ca~a coro m~~phca suas possi- sonagem: um só ator desempenha só o protagonista e nenhum
bilidades de interpretação. Reduzmdo-se o onus de cada mon- outro.
tagem, todos os textos são viáveis. . Várias são as características necessárias a esta função,
Estas são as metas do sistema. Para tentar consegut-las há na quai deve o ator valer-se da interpretação stanislawskiana,
que criar e desenvolver duas estruturas fundamentais: a de na sua forma mais ortodoxa. O ator não pode desemp~nhar ne-
elenco e a de espetáculo.

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nhuma tarefa que exceda os limites do personagem enquanto
\
conhecimento exterior desde que se apresentem simultanea-
ser humano real: para comer necessita comida; para beber, be- mente análises dessa exterioridade.
bida· para lutar uma espada. Seu comportamento em cena
deve~se assemelhar ao de um personagem de Eles Não Usam ,, A escolha do protagonista não coincide necessariamente
com o personagem principal. Em Macbeth pode ser Mac-
Black-tie ou de Chapetuba F. C. O espaço em que se move duff; em Coriolano pode ser um homem do povo; em Romeu
deve ser pensado em termos de Antoine. O at~r "pro- e lulieta poderia ser Mercutio, não fosse sua morte prematura;
tagônico" deve ter a consciência do personage!ll e nao ~ dos em Rei Lear pode ser o Bobo. Desempenha a função "pro-
atores. 'Sua vivência não se interrompe nunca, amda que SlDlul- tagônica" o personagem que o autor deseja vi~cular empatica-
taneamente possa estar o Coringa analisando qualquer detalhe mente à platéia. Se "ethos" e "dianóia" pudessem ser separa-
da peça: ele continuará sua .ação "verd~~eirament_e" como ,per- dos - e só o podem para fins didáticos - diríamos que o
sonagem de outra peça perdtdo em cenano teatralista. :a a !~­ protagonista atribui-se um comportamento "ético", e o Coringa,
ta de vida", o neo-realismo, o cine-verdade, o docu~entano "dianoético".
ao vivo, a minúcia, o detalhe, a verdade aparente, a co1sa ver- A segunda função do sistema é o próprio Coânga. Pode-
dadeira. ríamos defini-la como sendo exatamente o contrário do Pro-
Não só o comportamento do ator deve obedecer crité~ios tagonista.
da verossimilhança, mas também sua concepção cenográftca: Sua realidade é mágica: ele a cria. Sendo necessário, in-
sua roupa, seus adereços, devem ser - perdoando o teri?o - venta muros mágicos, combates, banquetes, soldados, exércitos.
os mais "autênticos" possíveis. Ao vê-lo, deve. a platéta ter Todos os demais personagens aceitam a realidade mágica cria-
sempre a impressão de quarta parede ausente, amda que este- da e descrita pelo Coringa. Para lutar usa arma inventada,
jam ausentes também as outras três. 1. para cavalgar inventa o cavalo, para matar-se crê no punhal que
Esta função procura reconquistar a "empatia" que· se não existe. O Coringa é polivalente: é a única função que pode
perde todas as vezes em que o espe!áculo tende a um alto desempenhar qualquer papel da peça, podendo inclusive subs-
grau de abstração. Nestes casos, a platéta perde o .~n~acto emo- tituir o Protagonista nos impedimentos deste, determinados por
cional imediato com o personagem e sua expenencta tende a sua realidade naturalista. Exemplo: inicia-se o segundo ato de
reduzir-se ao conhecimento puramente racional. Tiradentes com este cavalgando em cena fantástica: como
Não importa nem é o momento de desco~rir quais as não será prudente trazer o cavalo para o cenário, esta cena será
principais razões desse fato: basta por ora const~~a-lo . E cons- desempenhada pelo ator que fizer o Coringa, montado em po-
tata-se que a empatia se produz com grande factlidade no mo- tro de pano, economizando-se o desnecessário farelo.
mento em que qualquer personagem, em qualquer peça, com Todas as vezes em que casos como este ocorrerem, os
qualquer enredo ou tema, realiza uma tarefa facilmente re- dois Corifeus desempenharão momentaneamente a função Co-
conhecível, de caráter doméstico, profissional, esportivo, ou ringa.
qualquer outro. A consciência do ator-coringa deve ser a de autor ou
A empatia não é um valor estético: é apenas um dos adaptador que se supõe acima e além, no espaço e no tempo,
mecanismos do ritual dramático, ao qual se pode dar bom ou da dos personagens. Assim, no caso de Tiradentes não terá
mau uso. Na fase realista do Arena, nem sempre esse uso foi ele a consciência e o conhecimento possível, aos inconfidentes
louvável e, muitas vezes, o reconhecimento de situações verda- do século XVIII, mas, ao contrário, terá sempre presente os
deiras e cotidianas substituía o caráter interpretativo que deve fatos que desde então se passaram. Isto deverá ocorrer ao nível
ter o teatro. No Coringa esta empatia exterior será traba- ·da História e ao nível da própria fábula - já que neste aspec-
lhada lado a lado com a exegese. Tenta-se e permite-se o re- to ele vepresenta também o autor ou o recriador da fábula,
coohec&.dor de princípios, meios e fins. Conhece portanto o
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amor, por exemplo, deverão ser desempenhadas por atores do
desenvolvimento da trama e a finalidade da obra. I! onisciente.
Porém, quando o ator Coringa desempenha não apenas essa sexo oposto - a menos que, inesperadamente, resolva-se o
função em geral, mas em particular um dos personagens, ad- Arena a contar Tennessee Williams, coisa que não ocorrerá.
quire tão-somente a consciência de cada personagem que inter- Completando esta estrutura, está a Orquestra Coral: vio-
preta. · lão, flauta e bateria. Os três músicos deverão também tocar
Assim, todas as possibilidades teatrais são conferidas à outros instrumentos de corda, sopro e percussão. Além de
função C~ringa: é mágico, onisciente, polimorfo, ubíquo. Em apoio musical, deve a Orquesta cantar, isoladamente ou em
cena funciona como menneur du jeu, raisonneur, mestre-de- conjunto com o Corifeu, todos os Comentários de caráter in-
-cerimônias, dono do circo, conferencista, juiz, explicador, exe- formativo ou ilusionístico.
geta, contra-regra, diretor de cena, regisseur, kurogo, etc. Esta é a estrutura básica do sistema que deverá ser flexí-
Todas as "explicações" constantes da estrutura do espetáculo vel bastante para adaptar-se à montagem de qualquer peça.
são feitas por ele, que, quando necessário, pode ser ajudado Por exemplo, em caso de necessitar o texto a presença de três
pelos Corifeus ou pela Orquestra Coral. blocos em conflito, pode-se criar o Coro Tritagonista, manten-
Todos os demais atores estão divididos em dois Coros: do-se o esquema intacto em tudo o mais. No caso de uma
Deuteragonista e Antagonista, tendo cada um seu Corifeu. Os peça como Romeu e Julieta, pode-se aumentar o número de
atores do primeiro Coro podem desempenhar qualquer papel Protagonistas para dois, mantendo-se um só Coringa, ou atri-
de apoio ao Protagonista: isto é, p~péis que representem a buindo-se suas funções aos Corifeus que, por sua vez, represen-
mesma idéia central deste. Assim, no caso de Hamlet, ' por tariam os chefes das Casas de Montequio e Capuleto. No caso
exemplo: Horácio, Marcelo, os comediantes, o Fantasma, etc. de peças que não apresentem interesse especial em mostrar
I! o Coro-Mocinho. O outro, o Coro-Bandido, é integrado por nenhum protagonista, pode-se abolir esta função e criar dois
todos os atores que representem papéis de desapoio. No mes- Coringas que poderão também absorver as funções dos Cori-
mo exemplo: o Rei Cláudio, a Rainha Gertrudes, Laertes, feus. Finalmente, no caso em que uma das forças em confli-
Polônio, etc. to necessita apenas de um ou dois atores durante a maior
Os coros não possuem número fixo de atores, podendo parte do desenvolvimento da ação, pode-se, mantendo-se os
variar entre um Episódio e outro. Existirão dois tipos de fi- Corifeus, agrupar todos os demais atores num único Coro do
gurino: um básico, relativo à função e ao Coro a que per- Coringa.
tence. Outro, referente não a cada personagem, tpas sim aos A adaptação de cada texto em particular determinará as
diferentes p~péis sociais desempenhados no texto e em confli- modificações necessárias, mantida a estrutura e a proposta
to na trama. Poderá haver apenas um figurino para cada papel fundamental.
social: Exército, Igreja, Proletariado, Aristocracia, Poder Judi- Além desta "estrutura de elenco", o Coringa terá também,
ciário, etc. Pode acontecer que coexistam no ~ palco dois ou em caráter permanente, uma única "estrutura de espetáculo"
mais atores que desempenhem o mesmo papel: soldado, por para todas as peças. Este divide-se em sete partes principais:
exemplo. Neste caso, deve o figurino ser de tal forma a que Dedicatória, Explicação, Episódio, Cena, Comentário, Entre-
possa ser usado por igual número de atores, simultaneamente,. vista e Exortação.
e que permita à platéia, visualmente, identificar todos os ato- Todo espetáculo será sempre iniciado com uma Dedica-
res que desempenham o mesmo papel. Ou tantos figurinos tória a alguém ou a alguma coisa. Poderá ser uma canção cole-
como personagens. tiva, uma cena, ou simplesmente um texto declamado. Poderá
Atores e atrizes poderão representar indiferentemente per- ainda se; uma seqüência de cenas, poemas, textos, etc. Em
sonagens masculinos ou femininos, menos, é claro, nas cenas Tiradent~s, por exemplo, a Dedicatória se constitui de uma
em que o sexo determina a própria ação dramática. Cenas de
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canção, um texto, uma cena e novamente uma canção coletiva,
dedicando-se o espetáculo a José Joaquim de Maya, o primeiro
l documento, que deternllne mudança de qualidade no sistema
de forças conflituais.
As cenas se ligam entre si pelos Comentários, escritos pre-
homem a tomar medidas concretas pela libertação do Brasil.
ferentemente em versos rimados, cantados pelos Corifeus ou
Uma explicação é uma quebra na continuidade da ação pela Orquestra ou por ambos, servindo para ligar uma cena
.dramática, escrita sempre em prosa e dita pelo Coringa, em a outra, ilusionisticamente. Pode-se constituir também pela sim-
termos de conferência, e que procura colocar a ação segundo a ples enunciação do local e tempo onde se passa a ação. Con-
perspectiva de quem a conta - no caso, o Arena e seus inte- siderando que cada cena tem seu estilo próprio, quando ne-
grantes. Pode conter qualquer recurso próprio da conferência: cessário, os Comentários deverão advertir a platéia sobre cada
slides, leitura de poemas, documentos, cartas, notícias de jor- mudança.
nais, exibição de filmes, de mapas, etc. Pode inclusive refazer As Entrevistas não têm colocação estrutural própria e
cenas a fim de enfatizá-las ou corrigi-las, incluindo outras que predeterminada, já que sua ocorrência depende sempre de oca-
não constem do texto original, no caso de adaptações e a fim sionais necessidades expositivas. Muitas vezes o dramaturgo
de maior clareza. Por exemplo: contando o. irresoluto Hamlet sente-se obrigado a revelar à platéia o verdadeiro estado aní-
pode-se apresentar uma cena do decidido Ricardo III. As Expli- mico de um personagem e não obstante não pode fazê-lo na
<:ações dão o estilo geral do espetáculo: conferência, forum, presença dos demais personagens. Por exemplo, os atos de
debate, tribunal, exegese, análise, defesa de tese, plataforma, Hamlet só serão bem entendidos se o seu desejo de morte
etc. A Explicação introdutória apresenta o elenco, a auto- for exposto; porém, não poderá fazê-lo diante do Rei, da
ria, a adaptação, as técnicas utilizadas, a necessidade de reno- Rainha, nem mesmo de Horácio ou Ofélia. Sbakespeare re-
var o teatro, propósitos do texto, etc. Como se vê, todas as corre então ao monólogo, como o expediente mais prático e
Explicações podem e devem ser extremamente dinâmicas, 11:?-0- rápido de informação direta. Pode acontecer também que esta
dificando-se na medida em que são apresentadas em cidades necessidade informativa esteja presente e perdure durante toda
ou datas diferentes. Assim, quando a peça for apresentada a ação. O'Neill resolveu o problema forçando seus persona-
em cidade onde nunca se fez teatro, será mais oportuno expli- gens de Estranho lntvlúdio a diz~rem o texto falado e n
car o teatro em geral do que o Coringa em particular. Se texto pensado durante toda a peça, em tons diferentes, aju-
algum fato importante ocorrer no dia da apresentação e se dados pela iluminação e outros recursos teatrais. Em Dias
estiver relacionado com o tema da peça, esta relação deverá Sem Fim chegou à exigência de dois atores para o desempenho
ser analisada. Cremos ficar bem marcado o caráter transitó- do protagonistas John Loving: um interpretava John, a parte
rio e efêmero deste sistema permanente: objetiva-se aumen- que se mostrava, e outro, Loving, a intimidade subjetiva. Tam-
tar a velocidade de refletir o espetáculo o seu momento, dia bém o aparte tem sido largamente usado através da História
e hora, sem reduzir-se à hora, ao dia e ao momento. do Teatro. O fato de estar hoje esta técnica fora de uso, deve-
A estrutura geral será dividida em Episódiós que reunir?o -se, talvez, a que o aparte cria uma estrutura paralela de ca-
cenas mais ou menos interdependentes. O primeiro Tempo con- ráter intermitente, que mais interfere na ação do que a ex-
terá sempre um episódio a mais do que o segundo: 2 e 1, 3 plica.
e 2, 4 e 3, etc. No Coringa, esta necessidade será resolvida utilizando-se
recursos de outros rituais que não o teatral. Durante as dispu-
Uma cena ou lance, é um todo completo de pequena mag- tas esportivas, futebol, box, etc., nos intervalos entre um tem-
nitude, contendo ao menos uma variação no desenvolvimento po e outro, ou durante as paralisações temporárias e acidentais
qualitativo da ação dramática. Pode ser dialogado, cantado, ou das partidas, os cronistas entrevistam atletas e técnicos que di-
resumir-se à leitura de um poema, discurso, notícia ou .retamerlte· klformam a platéia sobre o sucedido em campo.

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Assim, todas as vezes que for necessário mostrar o "lado (
de dentro" do personagem, o Coringa paralisará a ação, mo-
mentaneamente, a fim de que ele declare suas razões. Nestes
casos, o personagem entrevistado deverá manter a consciência
de personagem, não devendo o ator assumir sua própria cons-
ciência de hoje e aqui. Em Tiradentes, toda a jogada política
do Visconde de Barbacena, com relação ao lançamento da
Derrama, seria fatalmente atribuída ao seu "bom coração" e
não à frieza do seu pensamento, se este fosse revelado inti- V- Tiradentes: questões preliminares
mamente aos espectadores.
Finalmente, a última "porção" da estrutura do espetáculo
consiste na Exortação final, em que o Coringa estimula a pla-
téia segundo o tema tratado em cada peça. Pode ser em forma
de prosa declamada ou em canção coletiva, ou uma combi-
nação de ambas.
Estas, as duas estruturas básicas do sistema. E o que já
ficou dito, aqui se ~eitera: o sistema é permanente apenas den-
tro da transitoriedade das técnicas teatrais. Com ele não se
pretendem soluções definitivas de problemas estáticos: pret~tl­
de-se apenas tornar o teatro outra vez exequível em nosso país.
E pretende-se continuar a pensá-lo útil.

U põe, e nãodevesegundo
MA PEÇA ser analisada segundo os critérios que pro-
uma teoria geral do teatro. Sempre
que se discute um texto, é comum prover-se o discutidor de
todas suas teses pessoais sobre .o teatro em geral e nelas en-
quadrar uma peça em particular, ainda que os critérios que
presidiram a elaboração desta tenham sido diametralmente
opostos. Não se pode entender lonesco munido do instrumen-
tal estético de Racine, nem este com o de Bertolt Br~cht.
Porém, se critérios "universais" não são estabelecidos, so-
brevém o caos de valores: um texto medíocre será perfeito,
se perfeitamente responder aos medíocres critérios de sua ela-
boração. :S muito freqüente ouvir-se autores que, diante de res-
trições possíveis, exclamam: "Mas foi exatamente isso que eu
quis fazer". Ora, pode suceder que não se reconheça validade
exatamente a "isso". A mediocridade da obra acabada não jus-
tifica ne~se justifica por propostas medíocres.
Portanto, há que inserir os critérios particulares de cada
texto dentr& dos critérios mais gerais, que não necessitam ser
apenas artísticos.
208
209
Seria po;,; necessário, antes da análise de cada peça, ana- (
lógico aplicável a situações semelhantes. Poder-se-ia, ao con-
lisar os instrumentos de sua fabricação. Estes, porém, não po-
trário, pretender a análise exaustiva dos fatos históricos _
dem ser recusados em função de preferências por nenhuma
escrever obra científica e verdadeira, tomando-se "verdadeira"
escola, gênero, estilo, tendência ou época. Nem podem, só por
no sentido em que ficção e realidade se confundem.
isso, ser aceitos. A validade de uma peça deve considerar-se
sobretudo em função do público ao qual se destina, sem que Tiradentes trilha o meio caminho: só modifica os fatos
se permita tomar abstratamente a palavra público. Na relação conhecidos na medida em que mantê-los significaria perda de
peça-público deve-se considerar este como parte da população, analogia. Muitas de suas cenas foram escritas com base em
esta como povo, este como nação, e esta no mundo de hoje. documentos da época; porém, desses documentos extraiu-se uma
Há que se considerar o texto como fenômeno social presente fábula que se pretende autônoma. Desta vez, não resistimos à
- portanto, liberto da historiografia teatral - idêntico ou se- tentação de sermos aristotélicos, preferindo "prováveis impos-
melhante a outros fenômenos sociais de natureza não estética: sibilidades a improváveis possibilidades". Esta preferência per-
comícios políticos, assembléias, partidas de futebol, lutas de mitiu-nos colocar dentro da mesma obra textos inteiros dos
box. Um texto não será válido senão na medida da sua eficá- Autos da Inconfidência (especialmente depoimentos de Tira-
cia teatral .e do seu acerto social, e este não será outro que a dentes, Gonzaga, Padre Carlos, Francisco de Paula e outros) ,
humanização do homem, e esta não será nunca uma atitude lado a lado com cenas absolutamente fantásticas, como a falsa
puramente contemplativa, mas um fato concreto de condições cena dos Embuçados na casa de Alvarenga Peixoto - (anti-
e direções de vida no sentido de uma sociedade que se desa- ga tradição mineira) e com, ainda, digamos assim, alguns mo-
liene progressivamente e aos saltos. Os meios empregados não dernismos jornalísticos. Considere-se que a avaliação da "pro-
importam, só importam os objetivos que se desejam. · babilidade" não foi feita sobre intempestividades psicológicas,
mas sim sobre a totalidade personagens-idéia-enredo-sistema
O principal objetivo de Arena Conta Tiradentes é a aná..: Coringa.
lise de um movimento libertário que, teoricamente, poderia ter
sido bem sucedido. Estava inserido no movimento inevitável · O microcosmo teatral e o macrocosmo social se constituem
do avanço social - usando uma expressão corrente, "estava na segunda questão preliminar que devemos expor. Cada obra
ao lado da História". . . Seus principais integrantes, detinham de teatro supõe e pressupõe o mundo, sem nunca poder mos-
o poder ou podiam tomá-lo. Francisco de Paula Freire de trá-lo em sua totalidade, que se infere presente. Se a dor
Andrade era o Comandante da Tropa Paga - segundo se de cotovelo de uma criatura de Nelson Rodrigues e a guerra do
dizia, a segunda pessoa em importância dentro da Capitania; Vietnã interdependem, há, não obstante, que eleger o centro
Alvarenga, o Padre Carlos de Toledo, o Padre Rolim, e outros, de concentração da ação dramática, pois estas antípodas inter-
eram gente que levantava gente; Gonzaga, melhor que nin- dependem de tudo o mais, inclusive de Lyndon e Feydeau, não
guém, faria leis ; dinheiro e pólvora havia bast~nte - pelo tão antípodas: e o mundo não cabe em duas horas.
menos para dois anos de assédio, segundo Alvarenga; e o Em Tiradentes, foi necessário escolher. A Inconfidência
povo estava industriado por Tiradentes. Melhores condições Mineira desenvolveu-se em três planos principais: povo, re-
objetivas para uma revolução dificilmente se encontram. No lações internacionais e conversas palacianas.
entanto, este grupo fracassou. Ruiu como roi castelo de areia, Sempre nos fascinou a idéia de mostrar essa revolução
embora fosse este construído com armas, dinheiro, gente e pro- gorada segundo a perst'ectiva do povo de então, e os efeitos
pósitos definidos. de cada lance in<:<onfid~te no seio desse povo. A vida do ga-
Esta é uma das questões preliminares que Tiradentes rimpeiro, do mineiro, do pequeno negociante, da costureira,
do carrasco, do soldapo, interessam-nos mais do que as liras
propõe: pretende-se do fato sucedido extrair um esquema ana-
de Gonzaga e Cláudio. Porém, o tema de Tiradentes é pouco
210
211
uma revolução popular, nem poderia sê-lo. Para mostrar o
I
povo, melhor faríamos contando o Conselheiro, Os Alfaiates, na. E sendo palaciana, a peça é escrita dentro dos cômodos
, -

do palácio e poucas casas, e nao na rua e nas m.Inas.


o

e outros.
Também sempre nos interessaram as relações políticas Referências aos outros dois níveis são feitas, a fim de
e econômicas entre Inglaterra, Portugal, Espanha, França e que tenham os espectadores os instrui?-entos necessá~ios para
Estados Unidos no século XVIII. Por que razão mandou enquadrar a ação em coordenadas mais amplas. Pore~, estas
a França 100000 soldados e 30 navios ajudarem os alemães referências são apenas flashes, curtos e espaçados. Lê-se em
contratados e os americanos-ingleses contratantes a fazerem a cena a carta de José Joaquim da Maya a Thomaz Jefferson,
Independência no Norte? E por que para cá não mandou nem e sua resposta extraída da correspondência com John ~ay e
um professor de literatura francesa? Por que Jefferson, que com o próprio Maya. Vê-s~ o povo na tabern~, depots ?a
tanto amava a liberdade, reduzia o exercício desse amor às proibição da mineração de diamantes, que passana a se! fetta
fronteiras do seu país? Por que foram deixados sós dez ho- exclusivamente pela coroa; vê-se o povo na festa e fetra do
mens degradados e um na forca baloiçante? enforcamento exemplar; vê-se as minas e conta-se a história
de Manuel Pinheiro, caçado e preso pelo próprio Tir~dente~,
Todos esses assuntos merecem várias trilogias, porém a mando do Governador Luís da Cunha M~nezes; ve-se Ti-
para a análise do comportamento desses países melhor seria radentes conversando com as Pilatas. E mais não se vê nem
escolher como tema outra Independência que não a nossa, já se mostra: espera-se que se suponha.
que tão sós fomos deixados. Outra questão preliminar que se deve discutir refere-se
Escolhemos o palácio e isso nos forçou a ' exclusão quan- à causalidade da ação dos personagens. Estamos de há muito
titativa do povo e dos estrangeiros. Nosso tema nos parece, habituados à técnica de playwriting americana: nela, todos os
assim, melhor servido. atos têm suas razões perfeitamente discerníveis e cuidadosa-
mente comunicadas pelo dramaturgo. O cinema a isto nos ha-
Explicamos: hoje é comu·m o exercício do poder em nome
bituou. Quando Blanche Du Bois entra em cena, e durante
do povo. Em todas as Constituições dos países ditos democrá-
seus primeiros diálogos, a platéia fica indagando as causas do
ticos (e quase todos se dizem) consta que do povo o poder
seu comportamento estranho. Descobre-se depois sua ninfo-
emana e que em seu nome será exercido. Em nenhuma', que mania mas imediatamente vem o perdão e a causa: seu ma-
nos conste, consta frase como esta, que imaginamos a título
rido :ra homossexual, e ela muito jovem quando se casou, a
de exemplo: "Todo o poder emana de uma camarilha que o
ponto de não saber descobri-lo. O choque foi tão violento
assumiu, e será exercido em nome do foro íntimo de cada que a pobre senhora só se pôde refazer aderindo à ninfoma-
um". Ainda que isto possa às vezes ser prática, nunca é letra nia. Neste tipo de explicação cria-se uma mecânica relação
escrita. Sendo o mundo como está, esta e outras inconfidên- de causa e efeito, e a platéia fatalmente extrapola uma rela-
cias menos remotas ou em curso, vitoriosas ...ou derrotadas, ção mais geral e eterna: todas as se~~ras que venh~m a d<:s-
tendem a interpretar o povo sem ouvi-lo, traduzindo em sua cobrir seus maridos em ternos coloqwos reprováveis. estarao
própria linguagem de elite palavras que em nenhuma parte condenadas a ouvir a V arsoviana todas as vezes que se apro-
foram pronunciadas. Ao povo, depois, informam sua tradução. ·ximarem, com fins lucrativos, de jovens imberbes.
Assim, Gonzaga, Alvarenga, Francisco de Paula, Silvério Outro exemplo, também terrivelmente redutor é a expli-
e os outros são, em nossa versão, intérpretes do povo não cação fornecida por Miller sobre o ódio entre pai e filho em
perguntado. Sua estratégia e suas metas são fabricadas sem Morte de um Caixeiro Viajante: o pobre Biff, certa vez, sur-
consulta prévia. A Inconfidência se move em casas particula- preen<jeu o" pai, num hotel de Boston, em companhia ?e uma
res, poucas, e nos gabinetes oficiais.e Inconfidência palacia- loura ~xtranumerária; daí começou sua vida a ser um inferno;
)
212 213
,
características que, embora integrem o ser humano tratado
e isso foi acontecer logo com ele, pobre menino que prometia
tanto ... são dispensáveis à idéia e à trama. Um exemplo talvez con-
cretize: certamente os intelectuais da Inconfidência não eram
Se quiséssemos explicar a!l ações de Tiradentes de forma gente que apenas se mostrava disposta a fabricar dísticos para
facilmente inteligível, recursos como esses não faltariam como a bandeira, balançando-se comodamente em redes e discutindo
não ~altaram aos historiógrafos. Conta-se, por exemplo '<e dis- o clima da cidade de Salvador. Porém, o que nos interessava
e
to Citam-se como prova próprios Autos da Inconfidência mostrar, na principal cena em que participam, era justamente
o. quarto in.terrogatório a que foi subme tido o Alfere s), que
que a característica de se preocuparem com detalhes de importân-
T!Iadente~. JUigav~-se preterido em várias nomeações, já cia secundária, quando decisões primárias deviam ser tomadas;
out~os militares tmham , segund o suas palavr as, "caras mais
a tendência a esperar o acontecimento dos fatos para entãoo
bom!as ou melhores c?madr~s". o. viol~nto e constante desejo sabiamente interpretá-los, ao invés de se anteciparem criand
de liberdade do heró1 estana assim diretamente relacionado os fatos ou modificando-os. Enquanto Barbacena põe seus
se
com .a falta ~e promoçã~ nas fileiras da Tropa Paga. Ou, en- soldados na rua, os poetas da Arcádia celebram o aniversá-
esta mformaçao causal nao bastasse, ainda se poderia acresc rio da filha de Alvarenga, a "Princesinha do Brasil". ~ claro
t~r outro fato que parece. ter sido verdadeiro: Tiradentes,
per-
ha do Padre Carlos , pediu a este que nem todos os dias celebravam aniversários ou discutiam
dido. de amor pela sobnn sua Sá de Miranda e o clima tropical; nem todos os dias Bar-
qu_e Interce desse junto ao pai da moça para que lhe desse -
pprém a menin a bacen a punha os soldados na rua; porém, se os autores preten
~ao. O bond.oso sacerdote fez o que pôde, dem agredir a atitude contemplativa, não poderã o contem pla-
Já estava destmada pelo pai a quem tinha melho r cara ou me-
tivamente conceder que foram esses mesmos intelectuais que
lhores comadres que o Mártir da Independência. Desiludido lançaram as bases teóricas da sedição. Isto importa ao juizo
no amor e no serviço militar, nada mais restaria ao nosso definitivo daqueles personagens históricos já falecidos, porém
protagonista do que converter-se em Herói Nacional. em nada contribui para que nos questionemos todos nós, que
Soluções deste tipo, não devem parecer incríveis já que estamos vivos, diante de situações semelhantes: não estaremos
-
foram usadas até mesmo por Castro Alves. No drama Gonza todos batizando nossas filhas enquanto Barbacenas e outros
ga, ou a Inconfidênci a Mineira, o vate investi ga os aconte ci-
Viscondes põem seus soldados na rua?
mentos de Ouro Preto sob o prisma do triângulo amoroso Gon-
zaga-Marília-Barbacena. O Visconde, indignado pela recusa Questões preliminares deste tipo devem ser discutidas a
do seu am.or, resolve pôr tudo em pratos limpos, impiedosa-o fim de que se evitem certos problemas que inevitavelmente
mente castigando os que tramaram contra a Coroa e contra surgem. ~ freqüente no comentarismo teatral de hoje, dentro
seu temo coração. e fora do periodismo, rotularem-se peças, espetáculos e perso-
nagens. Isto é feito com o fito de livrar-se cada um da ne-é
. Porém, se re~usam~s explicações causais simplés e sim- cessid~de de entender, já que o processo
de entendimento
-
plóna~, r;s~am dois cammhos a seguir: aprofundar a pesqui penoso e, entre outras coisas, obriga a uma tomada de posi-
sa psiCologrca do personagem ou esquem atizá-lo em função -
ção não apenas frente à obra (problema que rótulo solucio
o
do enredo e da ação dramática, considerada como fábula. na), como também frente ao tema tratado .
O primeiro caminho é mais próprio da peça que pretende
reconquistar um tempo da História; o segundo é mais própri
o Esta peça é fácil de rotular, especialmente seus persona-
da fábula e da verdade de agora. Este foi escolhido. gens; nela, sem maiores dores de cabeça, pode-se afirmar que
Tirfdentes é um quase santo, Silvério o demônio, Cláudio pu·
Esta decisão leva à conseqüência inevitável de ser neces- silânime; Alvarenga a perfeição do canalha, pois chega ao ex-
~á.rio, muitas veze~, limitar o personagem ao seu aspecto
mais
e tremb de denunciar sua própria mulher.
uttl ao desenvolvimento da trama e da idéia, eliminando-s
215
214

J
Grande e compreensível é o desejo generalizado de que de Synge porque a pobre mãe de pescadores perde seus filhos
cada cena revele sempre facetas inesperadas dos personagens no m ar, um a um. O outro tipo de emoção sobrevém exata-
conhecidos. Um dia chegar-se-á ao extremo de lamentar que mente em virtude do conhecimento adquirido: choramos com
um texto sobre o descobriment'J do Brasil peque pela falta de Mãe Coragem não porque seus filhos morrem, mas porque
originalidade e então se dirá: "Ainda uma vez, nesta peça, o entendemos a estrutura comercial à qual ela se alienou. No
descobridor do Brasil é Pedro Alvares Cabral e o remetente caso da peça dé Synge, a emoção sobrevém pela inevitabilidade
da carta, Caminha" - falta imperdoável. Também em Tira- da morte; no caso da Mãe Coragem, porque compreendemos
dentes, o primeiro delator será Silvério, e disso já sabem todos. (ao contrário da protagonista) a evitabilidade dessas mortes.
Estes dois problemas se unem: de um lado o gosto pela Em Tiradentes, usou-se um outro mecanismo mais apa-
novidade, de outro o gosto pela complexidade. Recusa-se com rentado ao segundo: uma vez compreendidas as estruturas (ou
extrema facilidade e sem remorsos qualquer personagem de supostamente compreendidas) o próprio Coringa, que até o
fácil compreensão, sob o pretexto de que o romantismo é utna penúltimo episódio distancia-se racionalmente da trama, pas-
escola passada, e só a ele se permitia mostrar inteiramente sa, no último, a dela participar, nela se integrando, como se
bons os personagens bons e inteiramente maus os personagens subitamente não mais interessassem peça, personagens, idéia
maus. Muito mais agrada o santo que se revela crápula ou central, nada, a não ser acompanhar o "herói" no seu martí-
o canalha que se heroiciza. rio. Em outras palavras: a morte de Tiradentes era evitável;
Concordamos em que o romantismo assim muitas vezes porém não foi evitada. A Inconfidência tinha todos os meios
procedia, porém parece-nos igualmente romantismo disfarçado concretos para libertar o Brasil e proclamar a República, po-
preferi~ motivações contrárias e opostas à caracterização mais rém a liberdade não veio e a República não se proclamou. Por-
obviamente revelada. Tiradentes poderia ter secretos planos de tanto, depois de mostrar todas as "evitabilidades" e "possibi-
fortuna individual se sobreviesse a Inconfidência: preferimos lidades de êxito", o espetáculo se comove com o "inevitado"
mostrá-lo como um homem que deseja a !iberdade, não para e o fracasso, sem que neste momento, simultaneamente, man-
si mesmo, mas para o povo; preferimos aceitar a visão que tenha qualquer distância crítica, que só será recuperada no epí-
dele se tem tradicionalmente, ainda que seja esta talvez mis- • logo.
tificada. Esta é a questão: a emoção foi usada de todas as formas
Concluindo: nenhum personagem desta peça pode ser que se julgaram possíveis, sempre criticamente, ainda que em
analisado isoladamente - nenhum tem vida fora do teatro. alguns casos estivesse o nível crítico defasado. No último epi-
Todos devem ser entendidos dentro do esquema geral que .! a sódio, idéia e emoção se desconjugam em lances isolados, ainda
peça, isto é, nas suas múltiplas relações de interdependência. que estejam conjugadas, uma vez considerada a totalidade da
Entenda-se que todos · os personagens são contados pelo Co- obra. Estas são algumas das questões preliminares propostas
ringa e, neste estilo, atribui-se ao Coringa o direito de contar por Arena Conta Tiradentes. Outras surgirão na sua montagem.
como bem lhe parecer, a fim de demonstrar sua tese. A últi-
ma questão preliminar refere-se ao uso da emoção ou ao uso
dos mecanismos e técnicas que conduzem à emoção. Cremos,
como Brecht, que há dois tipos distintos de emoção. O pri-
meiro tipo assalta o espectador que sente a inevitabilidade do
destino humano, a perplexidade da vida: é a emoção que surge
diante do desconhecido - e esta é própria do teatro bur-
guês. Choramos diante da protagonista de Cavaleiros ao Mar

216 217
deve sempre dizer que sim - sua missão principal é sedativa
e tranqüilizante.
No caso do neobrechtianismo, o problema se complica.
Cabe perguntar: foi Brecht quem eliminou os heróis, ou f~
ram as interpretações de alguns exegetas mais afoitos? O estu·
do de alguns casos concretos talvez ajude a discussão.
VI - Quixotes e heróis Num de seus poemas Brecht conta histórias de heróis,
entre eles, São Martinho, o caridoso. Conta-se que uma noite,
caminhando pelas ruas geladas de rigoroso inverno, encontrou
um pobre morrendo de frio e, heroicamente, não hesitou: ras-
gou seu capotão em dois e deu metade ao pobre - os dois
morreram gelados juntos. Perguntamos: São Martinho foi he.
rói ou, digamos moderadamente, em atenção à sua santidade,
teve um gesto "impensado"? Nenhum critério de heroicidade
recomenda a irreflexão. O heroísmo de São Martinho não é
desmistificado por uma simples e bastante razão: não é he.
roísmo.
Noutro poema, também sobre heróis, Brecht enfatiza o
fato de que quando um general vence uma batalha, ao seu
lado combatem milhares de soldados; quando Júlio César atra-
Eturas.é o·E sistema
STE do Coringa, e estas são suas metas e estru·
este é o herói: Tiradentes. E este o perigo: foi vessa o Rubicon, leva consigo um cozinheiro. Evidentemente
não depõe contra o herói não saber cozinhar, nem contra o
herói.
general lutar acompanhado. Brecht amplia o número de heróis,
Hoje em dia os heróis não são bem vistos. Deles, falam sem destruir nenhum.
mal todas as novas correntes teatrais, desde o neo-realismo, Porém, afirma-se que Brecht deseroiciza. Cita-se, como
ne~romântico da dramaturgia recente americana,
que se com· exemplo, Galileu diante do Tribunal da Inquisição, "covarde·
praz na dissecação do fracasso e da impotência, até o novo mente" negando o movimento da Terra. Diziam os exegetas
brechtianismo sem Brecht. que se Galileu fosse herói, heroicamente teria continuado afir-
No caso americano, é pacífico o entendimento dos objeti- mando que a Terra se move, e, mais heroicamente ainda, supor·
vos ideológicos-propagandísticos da exibição de fracasso: é taria as chamas. Eu prefiro pensar que para ser herói não
sempre bom mostrar que no mundo há gente em pior situação é absolutamente indispensável ser burro - ouso até imaginar
do que a nossa - isto tranqüiliza as platéias mais cordatas que uma certa dose de inteligência é condição básica. Atribuir
que, facilmente, agradecem a Deus a disponibilidad~ financeira heroicidade a um ato de estupidez é mistificação. O heroísmo
que lhes permitiu comprar um ingresso de teatro (ao contrá- de Galileu foi a mentira, como dizer a verdade teria sido to-
rio dos personagens que não o poderiam fazer), ou agradecem lice.
sua pequena felicidade caseira (ao contrário dos personagens Brecht não fustiga o heroísmo "em ~i", pois tal não exis-
atormentados por taras, esquizofrenias, neuroses e outras enfer· te, mas apenas certos conceitos de heroísmo e cada classe tem
midades do trivial psicanalítico). O herói, seja qual for, traz o seu. :S ainda num poema que afirma que o homem deve
sempre em si o movimento e o não, e o teatro americano "saber dizer a verdade e mentir, esconder-se e expor-se, matar

218 2-19
e morrer". Soa bem distante do herói de Kipling, do "serás brica, enfrentando gás lacrimogêneo e cassetete. Não foi tolo
um homem meu filho". Soa bem próximo às táticas guerrilhei- o Cid-Vassalo por ter feito o que fez, nem o seria o Cid-
ras do maoísmo: "Só se deve atacar o inimigo de frente quan- -Proletário por fazer o que faria. Foi e seria herói.
do se é proporcionalmente dez vezes mais forte do que ele". Lidando com heróis, pode a literatura indiferentemente
Ouvindo Mao, certamente Orlando ficaria bem mais furioso apresentá-los como seres humanos reais, ou mitificá-los. A for-
do que costumeiramente ouvindo o tio. O heroísmo de Ama- ma de usá-los deve depender tão-somente dos fins a que cada
dises e Cides era determinado por estruturas de vassalagem obra se propõe. Júlio César sofria várias doenças: isto pode
e suserania, e quem pretender reeditá-lo fora dessas estruturas ser revelado no personagem, como pode-se também, ao mito,
deverá necessariamente pelejar contra moinhos de vento e pipas fazê-lo gozar esplêndida saúde.
de vinho diante dos olhares curiosos de prostitutas, outrora
castelãs. Tal foi a sorte de D. Quixote e tal sempre será. O mito é o homem simplificado - contra isto nada se
tem a objetar. Porém a mitificação do homem não tem ne-
Sempre os heróis de uma classe serão os Quixotes da classe
que a sucede. ce·ssariamente que ser mistificadora - pois contra isto .muito
se pode e deve objetar. Em nada nos aborrece o mtto de
O inimigo do povo, Dr. Stockman, é um herói burguês. Espartacus, embora saibamos que talvez não ~enha sido tão
Em que consiste seu heroísmo? Se necessário, ele é capaz de enorme sua valentia. Nada nos aborrece em Cato Graco e sua
optar por fazer ·desaparecer sua cidade, pois considera honrada Reforma Agrária. Porém o mito de Tiradentes nos perturba.
apenas a atitude de denunciar a poluição das águas das ter- Por quê?
mas, única ou principal fonte de renda do Município. No tex- O processo mitificador consiste em magnífica r a . ~s~ência
to de Ibsen revela-se a contradição entre a necessidade de cres- do fato acontecido e do comportamento do homem mttiftcado.
cimento burguês da cidade e os valores morais que os cidadãos O mito de Caio Graco é muito mais revolucionário do que deve
apregoam possuir. Stockmaq fica com os valores e comete o 't er sido o homem Caio Graco, porém é verdade que o homem
erro da pureza - aí reside seu tipo especial de heroísmo. distribuiu terras aos camponeses e foi por isso morto pelos
Podemos condená-lo por sabeFffiOS que a solução verdadeira senhores da terra. A diferença entre o homem e o mito é, aqui,
(desde que se considere a verdade de outra classe que não a apenas de quantidade, pois a essência do comporta!ll.ento e .d~s
burguesa) não é a que Stockman propõe, e nem sequer não fatos é a mesma: magnificam-se os dados essenctats e elnru-
está contida nos termos do problema que a peça expõe. Porém, nam-se os circunstanciais. Seus CQzinheiros, seus vinho.s e seus
se o condenamos, não condenaremos o seu heroísmo, apenas, amores, por exemplo, não integram o mito, embora possam
e sim a burguesia e todas suas estruturas, inclusive morais. ter integrado o homem. Para a instituição do mito Caio Graco,
O heroÍsmo de Stock.man é determinado e avaliado pelas é irrelevante saber se o romano tinha amantes ou se gostava
estruturas burguesas que o patrocinam e informam. Cada clas- delas, como para a instituição d<;> mi~o ~i~adentes é igualm~nte
se, casta ou estamento tem seu herói próprio e intransferível. irrelevante acrescentar-lhe sua ftlha tlegt.ttma e sua concubma,
Portanto, o herói de uma dasse só poderá ser entendido pelos embora para Joaquim José pudessem ser as duas relevantíssi-
crjtérios e valores dessa classe. Ou poderão as classes domi- mas - o que em nenhum momento duvidamos.
nadas entender os heróis das classes domin4ntes, enquanto per- Se a mitificação de Tiradentes tivesse consistido exclusi-
manecer a dominação, inclusive moral. Heroicamente, o Cid vamente na eliminação de fatos inessenciais, nenhum mal ha-
Campeador arriscou sua vida em defesa de Affonso VI, e he- veria. Porém as classes dominantes têm por hábito a "adapta-
roicamente suportou a humilhação como recompensa. Hoje, e ção" dos heróis das outras classes. A mitificação, nestes ca-
ainda heroicamente, o Campeador teria processado seu Senhor sos, é sempre mistificadora. E sempre é o mes~o o p;oc~sso:
na Justiça do Trabalho, e organizado piquetes na porta da fá- eliminar ou esbater, como se fosse apenas ctrcunstancta, o

220 221
fato essencial, promovendo, por outro lado, características cir-
cunstanciais à condição de essência. Assim foi com Tiraden-
tes. Nele, a importância maior dos atos que praticou reside no
seu conteúdo revolucionário. Episodicamente, foi ele também
um estóico. Tiradentes foi revolucionário no seu momento
como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pre-
tendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um· regime
de opressão e desejava substituí-lo por outro, mais capaz . de
promover a felicidade do seu povo. Isto ele pretendeu em
nosso país, como certamente teria pretendido em qualquer
outro. No entanto, este comportamento essencial ao herói é
esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento
na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava
o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação.
Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes eomo o Mártir da
Independência, e esquece-se de pensá-lo como herói revolu-
cionário, transformador da sua realidade. O mito está misti-
ficado. Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificaçãa.
Não é o herói que deve ser empequenecido; é a sua luta que
deve ser magnificada.
Brecht cantou: "Feliz o povo que não tem heróis". Con- Impresso nos Estab. Grá-
cordo. Porém nós não somos um povo feliz. Por isso precisa- fieos Borsoi S.A. lndustria
mos de heróis. Precisamos de Tiradentes. e Comércio, à Rua Francis-
co Manuel, 55 - ZC-15,
Benfica, Rio de Janeiro
Exemplar
São Paulo, janeiro de 1967

3229

DEDALUS - AceNo-ECA ...


222
lll\llll ll lllllllll llll l\ll llll lllllllll l llllll llll ll\1 ·.
20100001 256 I • .•.
Os escritos de Augusto Boa\
não são fruto apenas de leituras,
resultados eruditos de uma vida
compromissada com o estudo, a
AUTOR meditação e a pesquisa. São, an-
TÍTULO tes, produtos de uma vivência,
permanente e incansável, de um
Assin. Data contínuo traQalho com a matéria
viva dos textos, dos palcos, das
arenas, dos picadeiros e de outros
locais em que se exerça o ofído
UNIVEftSID~E DE SÃO PAUL,O artístico - ofício que aspira seja
ESCOLA DE COMUNIC~ÇÓES E ARTES encaminhado de modo a que o
BIBLIOTECA
teatro reencontre a atmosfera de
liberdade que lhe é vital.
O livro de Boal é polêmico,
discutidor, como convém ·a uma
obra em que as idéias são o seu
principal conteúdo. Idéias foram
Boa!, A~ueto feitas para sofrerem, não perse-
'leatro·, do oprimido e guições, mas o mais amplo, vee-
ou~raa poetieae pol{ticas
mente, candente e caloroso deba-
te. A função do leitor, diante
deste livro, é discutir também com
o autor.
Os ensaios de Teatro do opri.\
mido e outras poéticas políticas
foram escritos, com diferentes
propósitos, - diz Boa! - desde
1962, em São Paulo, até ·fins <ie · ·-·
Fornecf!dor 1!?::.. :&:!/:.it~~~..!!...(i~~j 1973, em Buenos Aires, relatan~ _
do experiências realizadas no Bra- . -
Data de <' (' is -~ 1 .IY.r.~ ...... Preço --~~--- si!, na Argentina, no Peru, ria
Verba ................................................................. Venezuela e em vários países lati~ .. ·
Indicação de .............. .......................... ' no-americanos.

Ctassificação 8 .....:............_._____________
---·······-~-~.:.?.: ~l EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASI~I.RA .

B(d'n.J. t ............................
- --·-t;~ ···~--~- ---

I
/
\

Teatro do Oprimido
e outras poéticas políticas

condensa a longa e vivida experiência,


como autor e diretor teatral, de

Augusto Boal

- uma das principais personalidades


da renovação da cena brasileira.

São ensaios polêmicos e críticos,


em que o autor, não só analisa e
discute teorias poéticas, como
propõe novos rumos para o trabalho
teatral - rumos que dêem como
conseqüência o reencontro do
teatro com o clima de liberdade
que lhe 6 vital.

Mais um lançamento de categoria da


CIVILIZAÇÃO BRASI LEIRA

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