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XIV Encontro Anual da ABEM Belo Horizonte, 25 a 28 de outubro de 2005

Estudo de aplicação da técnica pianística de Richerme (1996) ao


Mikrokosmos de Bártok

Sabrina Laurelee Schulz


Universidade Estadual de Maringá – Uem
sa.laureli@bol.com.br
André Luiz Gonçalves de Oliveira
Universidade Estadual de Maringá – Uem
alguns@gmail.com

Resumo. Atualmente conhecemos inúmeros livros com exercícios progressivos para o aperfeiçoamento da
ação motora ao piano, no entanto tais obras não indicam uma metodologia para a aplicação de uma técnica
precisa e consistente nessas atividades. Para tanto utilizaremos a técnica pianística descrita por Cláudio
Richerme em seu livro A técnica pianística – uma abordagem científica (1996), aplicando-a ao exercício 133
do quinto volume do livro de peças progressivas para piano intitulado Mikrokosmos de Béla Bartók. O
presente estudo tem por objetivo propor uma mostra de como a técnica de Richerme pode ser usada no ensino
do piano para desenvolvimento de uma técnica pianística eficiente. Portanto apresentaremos algumas soluções
técnicas para a execução clara e precisa de tal peça de Bartók.

Introdução

Nesse trabalho pretendemos aplicar a técnica pianística descrita por Cláudio


Richerme, em seu livro A técnica pianística - uma abordagem científica (1996), no livro de
exercícios progressivos Mikrokosmos de Béla Bartók como um aperfeiçoamento técnico
para estudantes que já possuam algum conhecimento e prática musical . Nossa escolha por
esse método de estudo para tal aplicação técnica, dentre tantos outras obras conhecidas e
usadas (por exemplo: Czerny, Hanon, Moskovisky, entre outros), deve-se ao fato de que
esse método possui uma sonoridade mais próxima da estética do século XX. Assim, além
de treinar os movimentos e as coordenações musculares necessárias para o
desenvolvimento de uma boa técnica, o aluno desenvolve também a escuta de padrões
sonoros que não são os da música tonal, ampliando seu escopo auditivo e estético.
A técnica de Cláudio Richerme pode e deve ser aplicada a qualquer obra musical e
espera alcançar uma execução musical clara e precisa. A escolha por esse autor deve-se ao
fato de que sua técnica está voltada para o treinamento de cada movimento realizado no ato
de tocar piano independentemente de uma peça específica.

O som depende de como a tecla foi abaixada, o que


depende de como a força exercida na superfície da tecla, o que, por
sua vez depende do movimento e da coordenação muscular
empregados.

Segundo o autor, o princípio para uma boa técnica pianística e conseqüentemente


uma boa execução musical está no estudo e na automatização dos movimentos e das
coordenações musculares em peças musicais inicialmente mais simples.
Escolhemos o livro Mikrokosmos, de Béla Bartók, por apresentar uma leitura
musical inicial mais fácil (início do primeiro volume) e também, como já dissemos, por
apresentar padrões sonoros voltados para a estética do século XX. É evidente que para uma
boa interpretação musical não basta apenas o treinamento e a automatização de movimentos
e de coordenações motoras. Mas quando o aluno conseguir treinar todos os seus
movimentos e as suas coordenações motoras de forma satisfatória estará apto para aplicar
essa técnica em outras obras musicais mais complexas de maneira rápida e objetiva.

1. Mikrokosmos de Béla Bartók


O compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945) dedicou grande parte da sua obra à
música folclórica, publicando mais de duas mil melodias populares da Hungria, da
Romênia e da Iugoslávia. Tal fato faz de Bartók um dos mais respeitados compositores
nacionalistas de sua época. Segundo Griffiths (1978), sua música tem um caráter próprio
por apresentar mudanças de andamentos variados, de afastamento da harmonia diatônica e
quebra da estabilidade rítmica, devido à influência da antiga música folclórica da Hungria.
Dentre suas obras as que mais destacam-se são o poema sinfônico “Mandarim
Miraculoso”, o primeiro e o segundo concerto para piano, os quartetos de cordas, a Música
para Cordas Percussão e Celesta, a Sonata para dois pianos e Percussão, inúmeras danças
para piano e os livros de exercícios progressivos Mikrokosmos para piano. Bartók usa em
suas composições para piano sonoridades mais percussivas, re-aproximando o timbre do
piano aos instrumentos de percussão de teclados (xilofone e a celesta), ao invés da
sonoridade das melodias românticas acompanhadas de acordes.
Na citação a seguir, Grout/Palisca (1988, p. 700) descrevem algumas características
do estilo composicional de Béla Bartok.
Bartók conjugou as texturas contrapontísticas, (...), somou
as linhas melódicas extraídas ou sublimadas a partir da música
folclórica da Europa do Leste, os rigorosos rítmos motores,
caracteristicamente refinados pelos compassos irregulares e pela
acentuação nos tempos fracos, um intenso impulso expressionista,
subordinado a um forte controle formal que abarca os mais
diversos aspectos, desde a exposição dos temas até à concepção do
conjunto da obra.

Tais características estilísticas de Bartók consagram sua importância como um compositor


que, ao mesmo tempo em que se preocupava e apoiava os movimentos de vangarda, nunca
negou a música nacionalista.
No livro Mikrokosmos, composto entre 1926 e 1937, podemos encontrar as várias
facetas do estilo de Béla Bartók. Esse livro contém 153 pequenas peças para piano
divididas em seis volumes, com exercícios progressivos quanto à dificuldade de leitura e à
coordenação dos dedos entre as mãos. Tais exercícios fogem dos padrões tonais de escalas
e de arpejos que geralmente são usados em outros livros de estudo técnicos.
O primeiro volume inicia-se com exercícios em décimas-quintas paralelas de
distância entre as mãos. Tal distanciamento é ideal para se iniciar o estudo técnico, pois
mantém os braços ao lado do corpo, formando um ângulo de noventa graus com o teclado
do piano, tornando o relaxamento do braço mais fácil de ser alcançado. No entanto o
paralelismo melódico usado não é indicado para pessoas que nunca tocaram piano. A
posição ideal para o início do estudo ao piano é usar as mãos em espelho (polegar da mão
direita tocando com o polegar da mão esquerda e assim por diante).
A progressão técnica dos exercícios do Mikrokosmos passa então por mãos
alternadas, mãos em espelho, rítmo sincopado, mudança de posição das mãos (como um
bloco dos cinco dedos e não passagem de polegar), imitação da melodia e melodias em
modos eclesiásticos. Já no final do primeiro livro, há indicações de dinâmica e de
andamentos mais lentos devido à complexidade dos movimentos. A indicação de
metrônomo presente em todos os exercícios deve ser seguida impreterivelmente, para que
se chegue aos resultados técnicos propostos por Bartók.
No segundo e terceiro livros, intensificam-se os exercícios de imitação usando
escalas pentatônicas, cromáticas, tríades, intervalos harmônicos de terças, quartas e sextas,
com acréscimo de exercícios a dois pianos e de melodias com acompanhamento ao piano.
Podemos ver a preocupação didática de Bartók no treinamento da performance em grupo e
da leitura de três pautas simultâneas pelo aluno, conforme nota do autor no prefácio da
partitura do primeiro volume do Mikrokosmos (Bartók, 1978):

É importante que os aluno se iniciem na modalidade


de tocar junto com outra pessoa o mais cedo possível. (...)
Estes tipos de exercícios, são de grande utilidade prática na
leitura de três pautas ao invés de duas, ocasião em que o
aluno canta enquanto toca o acompanhamento ao mesmo
tempo.

Podemos dizer que, quando o aluno toca em grupo, suas habilidades de execução e
de percepção têm espaço propício para se desenvolver. Tal fato pode ser facilmente
observado ao submetermos um aluno, que somente toca peças solo, à prática em conjunto,
seja em uma peça a dois pianos ou mesmo acompanhando um cantor. Geralmente tais
alunos mostram consideráveis dificuldades de sincronia métrica-temporal.
Ao começar o quarto livro, podemos dizer que o aluno está apto para iniciar o
Pequeno livro de Anna Magdalena Bach, de J. S. Bach, e até mesmo algumas sonatinas
clássicas. Tal volume introduz estudos com passagem de polegar, sons harmônicos1,
politonalidades, mudanças na fórmula de compasso e toque staccato. Os dois últimos livros
apresentam lições com as dificuldades técnicas anteriormente apresentadas, mescladas em
um mesmo exercício.

2. A técnica pianística de Cláudio Richerme


O pianista, ao tocar seu instrumento, abaixa as teclas do piano, procurando o melhor
som que corresponda à sua interpretação desejada. Para isso ele necessita de um domínio
muscular específico na ação de abaixar as teclas do piano. Sem o movimento e as
coordenações musculares corretas a boa técnica pianística e conseqüentemente o som ideal
para determinados trechos ficam comprometidos.
A técnica de Cláudio Richerme baseia-se no estudo de movimentos dos dedos, mãos
e braços, bem como suas coordenações musculares, visando um toque preciso e de boa

1
Entendemos por sons harmônicos o ato do pianista abaixar uma ou mais teclas do piano sem que produzam
sons e, ao tocar outras teclas, as cordas percutidas fazem com que as cordas que estão com os abafadores
liberados vibrem por simpatia.
qualidade tímbrica com o menor gasto de energia possível em menor tempo de estudo,
como podemos ver na citação abaixo:

Do ponto de vista fisiológico e mecânico, essa escolha de movimentos e coordenações


deve vir em função da precisão do movimento, da dosagem da força muscular, da agilidade
e da economia de energia. (Richerme, 1996 p.95).

Richerme propõe que o aluno com a ajuda de seu professor, ou mesmo um pianista
que já tenha alguma experiência, o qual esteja insatisfeito com sua técnica, faça uma análise
detalhada de seus próprios movimentos e coordenações musculares usada enquanto toca
uma peça musical; pois, em um trecho de determinada peça musical executada com um
mesmo movimento e velocidade. podem ser utilizadas coordenações musculares diferentes.
Esse estudo de coordenações musculares e movimentos, bem como o relaxamento,
mostra-nos pistas de como utilizar a força dos braços e das mãos ao abaixar as teclas do
piano. A escolha dessa força deve levar em conta também a variação de som da nota, ou
seja, a qualidade tímbrica, a intensidade e a duração de cada nota a ser tocada no instante
preciso da execução. Depois de decidir quais movimentos e coordenações serão usados é
preciso adquiri-las, dominá-las e automatizá-las (Richerme, 1996 p. 95). Assim podemos
investigar possibilidades de expressão individual por meio da interpretação musical.

3. Exemplo de análise de dificuldade técnica aplicada ao Mikrokosmos de Bartók


Partiremos agora para a análise de dificuldade técnica do exercício número 133 do
quinto volume do livro Mikrokosmos (cópia em anexo), afim de exemplificar como a
técnica de Richerme pode ser aplicada a uma obra musical.
O exercício n. 133 foi composto inicialmente com um compasso de cinco tempos
sincopados. No decorrer da música seu compasso passa para quatro tempos, voltando para
os cinco tempos iniciais em vários momentos, mas o caráter sincopado permanece em toda
a obra. Logo nos dois primeiros compassos, podemos perceber o grau de dificuldade que
será encontrado em toda peça: tríades com variações de dimânica tocadas, ora nas teclas
pretas, ora nas brancas, alternadas com pequenos motivos melódicos em intervalos de tom
ou semitom, seguidos também de acordes tocados,quer nas teclas pretas, quer nas brancas.
Para iniciar a leitura desse exercício, propomos, com base na proposta de Richerme
(1996), um estudo lento em piano para que se possa conhecer as notas em sua totalidade e
elencar os momentos de maior dificuldade técnica. Feito isso, destacamos alguns trechos
para a presente análise.
Os acordes iniciais presentes na mão esquerda bem como os que aparecem na mão
direita podem ser estudados separadamente com um movimento do pulso para baixo,
deixando os dedos rijos nas notas a serem tocadas (sem fixação muscular). Tal movimento
deve ser feito sem a elevação da mão antes do toque, pois essa elevação causará em um
movimento desnecessário com aumento do gasto de energia e possível toque percussivo2. A
posição da mão pode ser curva, quando os dedos se encontram arredondados, formando um
arco em relação ao polegar ou à posição plana, quando as articulações estão ligeiramente
esticadas, permitindo o toque da tecla com a parte mais carnuda do dedo (atrás da unha).
A posição de mão a ser usada depende do tamanho da mão e dos dedos, e da
passagem a ser tocada. Quando os acordes aparecem nas teclas brancas (mão esquerda,
compasso 1), pode-se usar tanto a posição plana quanto à curva, embora seja preferível a
utilização da posição plana devido a menor flexão do pulso (fator de possível fixação
muscular). No momento em que os acordes aparecem nas teclas pretas (mi bemol, sol
bemol e si bemol, compasso 9), a posição mais indicada é a posição plana, pois, na outra
posição, a palma da mão e o pulso teriam que sofrer uma ligeira elevação, movimento mais
tenso com possível fixação muscular.
O dedilhado a princípio pode parecer estranho, porque pede que o polegar toque nas
teclas brancas, forçando a posição curva, no entanto, em se tratando de um estudo de
aperfeiçoamento técnico, faz-se necessário o uso do dedilhado da mão direita indicado nos
compassos 1 e 2.
No compasso 12 há uma sobreposição das mãos, sendo que a mão esquerda deve
ficar em baixo da direita por utilizar teclas brancas, mesmo no próximo compasso, quando
a mão esquerda toca o ré bemol, pelo fato da mão direita tocar um ré bequadro em seguida.
A velocidade rápida indicada pelo metrônomo não permite a mudança da mão esquerda
para cima da direita nesse trecho, devido ao esforço e conseqüentemente ao gasto de

2
O toque percussivo ocorre quando levantamos o dedo afastando-o da tecla antes de abaixá-la. Tal toque
acrescenta ao som da nota o ruídos das peças que constituem o mecanismo do piano, causando uma certa
sujeira no timbre do piano. Para maiores esclarecimentos ver o experimento de Inouye no capítulo 2 de
Richerme, 1996.
energia excessivo e desnecessário, é melhor que a posição da mão fique um pouco esticada
do que se faça o movimento do pulso rapidamente.
Há um salto na mão esquerda de décima melódica descendente (compasso 28 para
29), que deve ser tocado aproveitando o movimento do pulso para cima enquanto leva a
mão até o mi, sem que os dedos desencostem das teclas do piano.
Toda indicação de dinâmica que vai do mf ao sff (no início da peça), e depois do mf
ao pp, deve ser tocada sem que os dedos desencostem das teclas, usando o toque
popularmente conhecido como toque de contato. A diferença de toque na produção do som
em p ou do som em ff será a velocidade e a força da descida da tecla dosada pelo
abaixamento da mesma pelo dedo. O leve levantamento do pulso será responsável por todas
as respirações fraseológicas indicadas pelas ligaduras de três notas, por exemplo no
compasso 18 a 24, na mão esquerda.
Esperamos que com todas as observações feitas anteriormente possamos contribuir
para esclarecer o modo de executar uma peça musical, utilizando os fundamentos da técnica
pianística de Cláudio Richerme. O presente estudo buscou apresentar um exemplo de
aplicação da técnica pianística de Richerme (1996) a uma peça do livro Mikrokosmos de
Bártok, acreditando que tal proposta técnica é fundamental para o desenvolvimento de uma
educação musical (instrumental em nosso caso) adequada e eficiente.

Referencias bibliográficas

BARTÓK, B. Mikrokosmos – 153 progressive piano pieces (volume 5). New York:
Boosey & Hawkes, 1987.
GROUT/PALISCA, Donald J., Claude V..História da música ocidental. Lisboa: Gradiva,
1988.
GRIFFiTHS, Paul. A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a
Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1978.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Primeiras e últimas páginas. Campinas-SP: Papirus, 1995.
RICHERME, Cláudio. A técnica pianística – uma abordagem científica. São João da Boa
Vista-SP: AIR Musical Editora, 1996.

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