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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ci€ncias Sociais


Departamento de Hist•ria
Programa de Estudos Medievais

MONOGRAFIA

“Mais causavam ru•na que reinavam...”: o ideal de realeza no reino


visigodo e a tirania na Vita Desiderii, do rei Sisebuto de Toledo (sƒculo VII)

Aluna: Adriana Concei‚ƒo de Sousa – DRE: 104039719


Orientadora: Prof…. Dr…. Leila Rodrigues da Silva

Rio de Janeiro
2008
Adriana Concei‚ƒo de Sousa

“Mais causavam ru‡na que reinavam...”: o ideal de realeza no reino visigodo e a tirania na
Vita Desiderii, do rei Sisebuto de Toledo (s‰culo VII)

Trabalho de Conclusƒo de Curso apresentado ao


Departamento de Hist•ria do Instituto de Filosofia e
Ci€ncias Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessŠrios ‹ obten‚ƒo
do grau de bacharel em Hist•ria.

Orientadora: Prof.… Dra. Leila Rodrigues da Silva

Rio de Janeiro
2008

1
Adriana Concei‚ƒo de Sousa

“Mais causavam ru•na que reinavam...”: o ideal de realeza no reino visigodo e a tirania
na Vita Desiderii, do rei Sisebuto de Toledo (sƒculo VII)

Trabalho de Conclusƒo de Curso apresentado ao Departamento de Hist•ria do Instituto de


Filosofia e Ci€ncias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessŠrios ‹ obten‚ƒo do grau de bacharel em Hist•ria.

Aprovado por:

____________________________________

Prof.… Dra. Leila Rodrigues da Silva – Orientadora

____________________________________

Prof.… Dra. Andr‰ia Cristina Lopes Frazƒo da Silva

____________________________________

Prof.… Ms. Jaqueline de Calazans

Rio de Janeiro

2008

2
Sousa, Adriana Concei‚ƒo de –

“Mais causavam ru‡na que reinavam...”: o ideal de realeza no reino visigodo e a tirania na
Vita Desiderii, do rei Sisebuto de Toledo (s‰culo VII)
/ Adriana Concei‚ƒo de Sousa – Monografia. Departamento de Hist•ria, Instituto de Filosofia
e Ci€ncias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

71fls. Inclui bibliografia.

1. Alta Idade M‰dia. 2. Pen‡nsula Ib‰rica. 3. Reino visigodo. 4. Sisebuto de Toledo (612-
621). 5. Hagiografia visigoda. 6. Vita Desiderii. 7. Monarquia e Igreja. 8. Espanha – Reis
e Governantes – Hist•ria. 9. Hist•ria pol‡tica. I. T‡tulo.

3
RESUMO

SOUSA, Adriana Conceição de. “Mais causavam ru•na que reinavam...”: o ideal de
realeza no reino visigodo e a tirania na Vita Desiderii, do rei Sisebuto de Toledo (sƒculo
VII). Rio de Janeiro, 2008. Monografia. Departamento de História, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.

O objeto de estudo central deste trabalho é o ideal de realeza presente na narrativa

hagiográfica Vita Desiderii, escrita pelo rei visigodo Sisebuto no ano 615, aproximadamente.

O objetivo é demonstrar a inserção do referido texto no processo de institucionalização da

monarquia visigoda iniciado na segunda metade do século VI. Nossa hipótese é a de que o

monarca autor da hagiografia, ao apropriar-se do ideal de conduta régia defendido pelo bispo

Isidoro de Sevilha em uma obra contemporânea, visa demonstrar sua própria adequação aos

princípios que atribuem ao rei a responsabilidade sobre a salvação ou a perdição de seus

súditos, e que apóiam a sua legitimidade como governante no exercício de uma justiça

prudente e na adoção de uma conduta condizente com as normas cristãs.

4
Agradecimento

Chegando ao fim de mais uma etapa da vida. Cheguei trope‚ando mais do que nunca,

mas cheguei. E nessas horas ‰ sempre bom agradecer ‹quelas pessoas que nos permitem

acreditar que tudo vai dar certo, por mais que as crises internas e externas ao nosso ser

insistam em nos fazer pensar em largar tudo do jeito que estŠ. Serei breve porque o

contentamento do dever cumprido infelizmente nƒo foi suficiente pra me fazer virar uma

menina sentimental (mas a gente chega lŠ!). E deixo claro tamb‰m que a ordem das pessoas

que citarei aqui – e a das que eu vou acabar esquecendo ou abrindo mƒo de citar tamb‰m –

nƒo deve ser entendida como hierarquia, ok, ciumentinhos?

Pois bem, primeiro eu gostaria de agradecer aos meus amigos, aos antigos (Mariana

DeLarge, Kelly Melissa) e aos ifcsianos tamb‰m (Diego, Diogo, Juliana, Mariana Renou,

Patr‡cia, Raquel, Ricardo, Silas, Tiago e tantos outros) por terem me dado um pouco de

Œnimo, Šlcool, e horm•nios necessŠrios ‹ saŽde do meu cora‚ƒo, da minha mente, da minha

alma e da minha vida acad€mica tamb‰m (por que nƒo?). S‰rio, nada serŠ melhor que poder

contar com voc€s a vida inteira.

Agrade‚o tamb‰m aos colegas do Pem e de laborat•rio, todos. Se for de conhecimento

que estamos falando, eu seria muito menos ainda do que sou sem o aux‡lio, os pitacos e os

eventuais pux•es-de-orelha de voc€s. Agradecimento especial a nossa jŠ saudosa Ver•nica

“USP” Silveira, Paulo “Pauli” Duarte e ao grande – grande mesmo – Rodrigo Rainha, dentre

outros veteranos, cujos toques me foram, continuam sendo e ainda serƒo muit‡ssimo Žteis.

Aos calouros, muita sorte: daqui a pouco chega a vez de voc€s, hehehe... (eu sou mesmo

muito mŠ...)

Um agradecimento em separado se faz necessŠrio ‹ minha orientadora Leila. Isso

porque sua orienta‚ƒo foi muito, mas muito mais que acad€mica, o que voc€ deu a esta

5
crian‚a indolente e indisciplinada foi apoio e instru‚ƒo pra vida e pra tudo. Agrade‚o de alma

e cora‚ƒo!

E por fim, mas nƒo por menor sentimento, eu venho agradecer a minha fam‡lia mais

uma vez. Mais uma vez, sim, porque esta nƒo ‰ a primeira nem hŠ de ser a Žltima etapa que eu

vou encerrar ou come‚ar gra‚as a voc€s. Voc€s sempre foram a minha base, e hoje continuam

sendo as pernas, bra‚os e o ju‡zo extras de que eu volta e meia preciso pra continuar seguindo

em frente – e olha, eu sei que me aturar em certos dias nƒo ‰ nada fŠcil, hehehe. Nem sei se

voc€s chegarƒo a ler isto, mas um dia eu ven‚o a minha s‡ndrome de bicho-do-mato e

finalmente tomo coragem de dizer: muito obrigada, voc€s sƒo dez!

6
Dedicado a Deus, ou o que quer
que seja essa força estranha, que
ninguém sabe ainda se inventou o
Poder ou se foi só mais uma
invenção brilhante dele.

7
Sumário

CAPÍTULO 1: Introdução ............................................................................................................................. 9


1.1) Apresentação do problema: o processo de institucionalização da monarquia visigoda (589-633)............10
1.2) Discussão bibliográfica: as questões políticas envolvendo a Vita Desiderii, segundo os estudos literários
e a historiografia .........................................................................................................................................15
1.3) Quadro teórico .....................................................................................................................................23
1.4) Fontes e Metodologia...........................................................................................................................24
1.5) Objetivos e Hipótese ............................................................................................................................26

CAPÍTULO 2: O contexto político franco-visigodo nos séculos VI e VII.....................................................27


2.1) O processo de fortalecimento da monarquia visigoda a partir de Leovigildo e Recaredo ........................28
2.2) As relações entre o reino franco e o reino visigodo (século VI-VII) .......................................................38

CAPÍTULO 3: A Vita Desiderii .....................................................................................................................44


3.1) Considerações sobre a teoria política isidoriana ....................................................................................45
3.2) A tirania na Vita vel Passio Sancti Desiderii, de Sisebuto .....................................................................51

CAPÍTULO 4: Conclusão .............................................................................................................................64

Referências ....................................................................................................................................................67

8
CAPÍTULO 1: Introdução

9
1.1) Apresentação do problema: o processo de institucionalização da monarquia

visigoda (589-633)

Nosso objeto de estudo se relaciona ‹ concep‚ƒo de tirania presente na narrativa

hagiogrŠfica Vita vel Passio Sancti Desiderii, escrita pelo rei Sisebuto de Toledo (612-621),

bem como a sua rela‚ƒo como o projeto de fortalecimento pol‡tico-ideol•gico da monarquia

visigoda, vigente nas primeiras d‰cadas ap•s a conversƒo oficial da realeza e da aristocracia

germŒnicas ‹ ortodoxia cristƒ nicena, anunciada no III Conc‡lio de Toledo em 589. Nosso

estudo se insere dentro das preocupa‚•es da chamada “Nova Hist•ria Pol‡tica”, tal como

definida pelo historiador franc€s Ren‰ R‰mond. A Nova Hist•ria Pol‡tica se diferencia da

hist•ria tradicional oitocentista, preocupada com a enumera‚ƒo e descri‚ƒo de “grandes”

feitos, “grandes” homens e “grandes” Estados, ao voltar as suas aten‚•es a um campo mais

amplo, o das rela‚•es de poder, nƒo s• no interior do que seria a esfera de Estado

propriamente dita, e sim na forma como elas se dƒo em todo o tecido social.1

Nossa pesquisa ‰ desenvolvida no Œmbito do projeto coordenado pela professora Leila

Rodrigues da Silva, intitulado “O processo de organiza‚ƒo eclesiŠstica e a normatiza‚ƒo da

sociedade nos reinos suevo e visigodo: perspectivas anal‡tica e comparativa”, vinculado a uma

das linhas de pesquisa desenvolvidas no Œmbito do Programa de P•s-gradua‚ƒo em Hist•ria

Comparada da UFRJ. Adotando uma perspectiva comparativa, em que se fundem

problemŠticas diferenciadas relacionadas a um tema comum, o projeto em questƒo tem, entre

os seus vŠrios objetivos, o de avaliar o papel do discurso eclesiŠstico no processo de

legitima‚ƒo pol‡tica e disciplina dos monarcas e dos segmentos nobiliŠrquicos. Nossa

monografia vincula-se ao plano desse projeto geral ao visar uma contribui‚ƒo ‹ compreensƒo

1
R•MOND, Ren‰. Uma hist•ria presente. In: _______ (org.). Por uma história política. 2… ed. Rio de Janeiro:
FGV, 2003. p. 13-36.

10
da fun‚ƒo do discurso hagiogrŠfico e, em particular, da Vita Desiderii de Sisebuto, no referido

processo.

Na constru‚ƒo e afirma‚ƒo do reino visigodo, cujo in‡cio do processo de assentamento

na Pen‡nsula Ib‰rica ‰ situado pela historiografia no s‰culo V, podemos identificar uma s‰rie

de grupos, com lideran‚as pr•prias e administra‚ƒo aut•noma que se organizam em torno de

necessidades b‰licas. Katherine F. Drew apontou para o fato de no reino visigodo, bem como

em outros reinos germŒnicos, o rei ocupar uma posi‚ƒo que equivalia mais a de um Šrbitro do

que propriamente a de um governante. A responsabilidade pela seguran‚a individual e

coletiva, pela administra‚ƒo da lei e da justi‚a, reca‡a sobre as mƒos dos grandes proprietŠrios

e chefes das grandes linhagens aristocrŠticas.2

Sendo um grupo germŒnico romanizado, seguindo inclusive uma vertente do

cristianismo, o arianismo, os visigodos mantiveram frente ‹ popula‚ƒo aut•ctone da Pen‡nsula

Ib‰rica uma postura que, embora se caracterizasse pela manuten‚ƒo das estruturas

administrativas, era marcada por buscar manter tamb‰m uma diferencia‚ƒo em rela‚ƒo ‹

aristocracia de origem hispano-romana.

Pablo C. D‡az, tratando do processo de institucionaliza‚ƒo da monarquia visigoda,

aponta que, a partir do momento em que o “Estado de guerra” vai deixando de ser um fator de

unidade para os diversos grupos/clƒs reunidos em torno do l‡der visigodo, inicia-se a

elabora‚ƒo de discursos visando substituir a no‚ƒo de poder ascendente pela de poder

descendente, no sentido de construir, do ponto de vista simb•lico, um maior distanciamento

entre o rei e o restante da elite visigoda. Para isso, entende-se que os monarcas necessitavam

contar com recursos que os colocassem em posi‚ƒo de vantagem em rela‚ƒo a rivais - e

usurpadores em potencial - oriundos das vŠrias fac‚•es aristocrŠticas que disputavam o trono.

‘ medida que o contato entre as duas aristocracias, visigoda e hispano-romana, intensifica-se,

2
DREW, Katherine Fischer. Another Look at the origins of the Middle Ages: A Reassessment of the Role of the
Germanic Kingdoms. Speculum, Cambridge, v.62, n. 04. p. 803-812, 1987.

11
surge a necessidade de um novo pacto, de uma nova ordem, cujos termos se definem

especialmente a partir da conversƒo do monarca visigodo Recaredo ao cristianismo niceno, no

III Conc‡lio de Toledo de 589, ato que viria a ser dotado de teor simb•lico bastante

significativo. Mais de quatro d‰cadas depois, os cŒnones do IV Conc‡lio de Toledo, realizado

em 633, durante o reinado de Sisenando (631-636), representaria a matura‚ƒo do processo de

associa‚ƒo entre monarquia e Igreja iniciado com a conversƒo de Recaredo.3

A conversƒo de Recaredo, assim, se insere dentro do processo de constru‚ƒo da

alian‚a entre as elites visigodas e hispano-romanas, na Pen‡nsula Ib‰rica. Tal processo

come‚ara a tomar forma jŠ durante o reinado de seu pai, Leovigildo (572-586), que embora se

mantivesse ariano, iniciou uma pol‡tica visando abrir canais de diŠlogo mais amplos com

for‚as pol‡ticas diversas, cat•licas ou nƒo, dentro e fora do reino visigodo.4 A busca de

aproxima‚ƒo ‰ compreens‡vel uma vez que, reconhecendo a Igreja, ou seu episcopado, como

um grupo a dotar a sua autoridade de significado, e passando a adotar seu discurso,

referenciais e ideologias como instrumentos de coopta‚ƒo, os monarcas garantiam, tamb‰m, o

seu reconhecimento frente ‹s aristocracias locais, uma vez que essa aceita‚ƒo passava a ser de

importŒncia capital naquele momento pol‡tico.

Sisebuto ascende ao trono visigodo em 612, com a morte do rei Gundemaro, e governa

at‰ a sua pr•pria morte em 621. • tido pela historiografia como um dos mais eruditos reis

visigodos, tendo mantido um estreito contato pol‡tico e intelectual com o bispo Isidoro de

Sevilha (570-636), um dos principais autores cristƒos da ‰poca.5

3
DIAZ, Pablo C. Rey y Poder en la Monarquia Visigoda. Iberia, Logro’o, n.01. p. 175-195, 1998.
4
Santiago Castellanos, por exemplo, aponta para o papel que teve a manipula‚ƒo do fisco e da tributa‚ƒo na
busca da monarquia visigoda pelo fortalecimento de suas bases de apoio junto ‹s lideran‚as locais em
CASTELLANOS, S. The pol‡tical nature of taxation in Visigothic Spain. Early Medieval Europe, NewYork,
v.12, n. 03. p. 201-228, 2003. Para uma anŠlise da pol‡tica externa visigoda na virada dos s‰culos VI-VII, ver
ISLA FREZ, A. Las relaciones entre el reino visigodo y los reyes merovingios a finales del siglo VI. En la
España Medieval, Madrid, n.13. p. 11-32, 1990.
5
Jos‰ Orlandis discorre sobre o monarca: “Sisebuto – escribi• Isidoro – ‘fue brillante em sua palabra, docto en
sus pensamientos y bastante instru‡do en conocimientos literŠrios’. Se trata – como puede advertirse – de rasgos
t‡picos de un hombre culto, que, para la ‰poca que le toco vivir, parecen mŠs propios de un eclesiŠstico cultivado
que de un laico, que fue ademŠs el mŠs ilustrado de los reyes visigodos.” Isidoro de Sevilha teria dirigido a

12
Seu reinado foi marcado por campanhas militares e vŠrios acordos pol‡ticos, inclusive

junto ao reino franco e aos representantes do Imp‰rio Bizantino, que na ocasiƒo ainda

dominava uma pequena faixa territorial ao sul da Pen‡nsula Ib‰rica. Al‰m disso, sua pol‡tica

ficou caracterizada pela defesa da homogeneidade religiosa e da disciplina episcopal,

preocupa‚ƒo demonstrada nas cartas que o rei teria trocado com membros da hierarquia

episcopal,6 em que Sisebuto os exorta, com autoridade, para que cumpram adequadamente

com as prescri‚•es de seu cargo.7 O reinado de Sisebuto teve como caracter‡stica tamb‰m a

pol‡tica anti-judaica, em fun‚ƒo da qual o rei teria decretado a obrigatoriedade do batismo a

todos os judeus do reino visigodo, al‰m de estabelecer o cumprimento de outras medidas

discriminat•rias jŠ aprovadas em vers•es anteriores da legisla‚ƒo.8 Entendemos que tais

medidas sinalizam uma tentativa por parte do monarca de fazer do zelo religioso um meio de

fortalecer a sua posi‚ƒo junto ao clero e ‹ pr•pria aristocracia.9 Constam da trajet•ria de

Sisebuto a autoria de um tratado astron•mico, o Astronomicum, um poema sobre os eclipses

lunares, conhecido como Carmen de Luna, e o texto hagiogrŠfico intitulado Vita vel Passio

Sancti Desiderii, conhecido tamb‰m como Vita Desiderii.

A exist€ncia de um texto hagiogrŠfico produzido pelo monarca nƒo ‰ fora de lugar,

tendo em vista a sua filia‚ƒo com a pol‡tica de Recaredo e a influ€ncia da obra de Isidoro de

Sevilha, cuja produ‚ƒo intelectual conheceu seu apogeu durante o reinado de Sisebuto e na

Sisebuto, dentre outros textos, a primeira reda‚ƒo de sua principal obra, as Etimologias. Estes e outros aspectos
da biografia e da trajet•ria pol‡tica de Sisebuto podem ser encontrados em ORLANDIS, Jos‰. Sisebuto, um rey
clemente, sensible y erudito. In: ______. Semblanzas visigodas. Madri: Rialp, 1992. p. 105-127.
6
Ibidem. p. 117-124.
7
Temos o exemplo de uma mensagem enviada por Sisebuto a Eus‰bio de Tarragona, em que este ‰ criticado por
seu apre‚o pelo teatro; a carta em questƒo ‰ estudada em JIMENEZ SANCHEZ, Juan Antonio. Un testimonio
tardio de ludi theatrales em Hispania. Gérion, Madrid, v.21, n.1. p. 371-377, 2003.
8
Ver ORLANDIS, Jos‰. op. cit. p. 124-126. Bernard S. Bachrach defende a hip•tese de que a pol‡tica anti-
judaica de Sisebuto teria sido uma resposta do mesmo a uma suposta oposi‚ƒo da comunidade judaica ‹ sua
ascensƒo ao trono. O autor tamb‰m indica que, diante da oposi‚ƒo de elementos expressivos do clero – inclusive
o pr•prio Isidoro de Sevilha – e da aristocracia provincial ‹ sua pol‡tica de persegui‚ƒo aos judeus, ‰ bastante
provŠvel que o rei tenha contado com um forte apoio da nobreza palaciana para ter conseguido levar a sua
pol‡tica adiante. Ver BACHRACH, Bernard S. A Reassessment of Visigothic Jewish Policy, 589-711. The
American Historical Review, Chicago, v.78, n. 01. p. 11-34, 1973.
9
Bachrach, assim como Pablo C. Diaz, tamb‰m parece tender ‹ mesma conclusƒo. Cf.: DIAZ, Pablo C. op. cit. e
BACHRACH, B. S. op. cit. p. 18.

13
década imediatamente posterior. O objetivo principal deste trabalho é buscar elementos dentro

e fora do texto hagiográfico de Sisebuto que demonstrem a apropriação dos valores

defendidos pelo bispo hispalense em suas obras, e que nos permitam compreender o sentido

da construção e da difusão de um modelo de conduta régia durante o reinado deste monarca.

A questão que norteia o nosso estudo diz respeito a qual seria o sentido da proposição

e da difusão de princípios de conduta política, como os presentes na Vita Desiderii, para o

projeto de fortalecimento da monarquia visigoda, fundado a partir dos monarcas Leovigildo e

Recaredo, e ao qual o rei Sisebuto se filia.

14
1.2) Discussão bibliográfica: as questões políticas envolvendo a Vita Desiderii, segundo os

estudos literários e a historiografia

Com rela‚ƒo aos estudos voltados ao papel da Vita Desiderii no contexto pol‡tico

anteriormente identificado, destacaremos a contribui‚ƒo da Šrea de Letras, que se apresenta

nos trabalhos de Jacques Fontaine e de Isabel Velazquez Soriano, bem como as reflex•es

trazidas pelos estudos do historiador Santiago Castellanos.

Jacques Fontaine, em artigo jŠ clŠssico publicado em 1980,10 rev€ uma antiga tese,

segundo a qual a hagiografia de Sisebuto era apresentada como propaganda pol‡tica contra a

monarquia franca. Nesta segunda reflexƒo, Fontaine fornece indica‚•es que permitem

acrescentar nuan‚as alternativas nƒo apenas ‹ anŠlise da funcionalidade pol‡tica do discurso

hagiogrŠfico como tamb‰m ao estudo das intera‚•es entre o reino visigodo ib‰rico e o reino

franco merov‡ngio.

O primeiro aspecto a ser assinalado por Fontaine ‰ a atipicidade da Vita Desiderii –

texto escrito por um monarca visigodo, narrando a vida e a morte de um bispo bem como a

sua rela‚ƒo com eventos pol‡ticos ocorridos fora da Pen‡nsula Ib‰rica. Entretanto, o autor

destaca que esta hagiografia deve ser analisada menos em compara‚ƒo com outros textos

hagiogrŠficos produzidos na Hispania visigoda – como a Vida de Emiliano ou a Vida dos

Padres Emeritenses – mas sim em rela‚ƒo ao conjunto da produ‚ƒo literŠria de Sisebuto,

incluindo a correspond€ncia diplomŠtica do rei dirigida ao representante do Imp‰rio Bizantino

ou ao rei lombardo de Pavia. Para Fontaine, a atividade literŠria de Sisebuto nƒo pode ser

dissociada da id‰ias de que ele se achava incumbido de uma dupla missƒo,

concomitantemente pol‡tica e religiosa, como rei cristƒo e como cristƒo cat•lico. Para o

monarca, os aspectos morais, religiosos e pol‡ticos dessa missƒo estavam totalmente

10
FONTAINE, Jacques. King Sisebut’s Vita Desiderii and the political function of Visigothic Hagiography. In:
JAMES, Edward (ed.). Visigothic Spain: new aproaches. Oxford: Claredon, 1980. p. 93-129.

15
mesclados em um. A produ‚ƒo literŠria de Sisebuto se realiza segundo interesses deste

governante tanto dentro da esfera pol‡tica quanto da religiosa. Para o historiador, ter no‚ƒo

quanto ‹ multiplicidade de objetivos que Sisebuto poderia ter, portanto, facilita a investiga‚ƒo

dos poss‡veis alvos da Vita Desiderii.

Fontaine tamb‰m indica que o trabalho hagiogrŠfico de Sisebuto foi influenciado nƒo

apenas pela “Renascen‚a Isidoriana”11 como tamb‰m pela concep‚ƒo que os homens da ‰poca

tinham sobre os chamados “homens de Deus”: profetas, mŠrtires, em constante conflito com

as elites laicas, e muitas vezes destinados a um fim trŠgico. O modelo t‡pico de representa‚ƒo

do conflito entre poderes pol‡tico e religioso pode ser encontrado na Vita Martini, de

Sulpicius Severus, e na oposi‚ƒo entre rei e profeta que se apresenta na obra de Prudentius. As

presentes conclus•es do autor seriam reafirmadas pelo jŠ citado estudo de Isabel Velazquez,

publicado posteriormente.12 A Vita Martini teve uma influ€ncia considerŠvel no modo como

os embates entre santos e governantes temporais eram representados nas hagiografias da Alta

Idade M‰dia, nas quais, muitas vezes o poder pol‡tico aparece associado ao Diabo. A Vita

Desiderii, entƒo, parece ter sido profundamente inspirada pelo que o autor designa como

“martinismo pol‡tico”.13

11
Estudiosos do per‡odo designam por “Renascen‚a Isidoriana” o esfor‚o intelectual levado a cabo por Isidoro
de Sevilha no sentido de efetuar uma esp‰cie de resgate da cultura e dos valores clŠssicos cristƒos e romanos,
que fica patente em obras como as Etimologias ou as Senten€as. Cf.: MARTIN, Jos‰ C.. Une nouvelle ‰dition
critique de la • Vita Desiderii – de Sisebut, accompagn‰e de quelques r‰flexions concernant la date des •
Sententiae – et du • De uiris illustribus – d’Isidore de Seville. Hagiographica, Firenze, v.07. p. 127-180, 2000.,
dentre outros.
12
VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximaci„n a sus
manifestaciones liter…rias. M‰rida: Museo Nacional de Arte Romano, 2005. p. 164-176. Analisaremos as
contribui‚•es trazidas por esta obra adiante.
13
Sobre o modelo emanado da Vita Martini de Sulpicius Severus, Martin Heinzelmann escreve: “En pr‚sentant
l’existence de Martin comme un „ martyre sans sang … (‚p. 2, 12), attribuant, sur la foi de son style de vie
asc‚tique, les m‚rites des martyrs † l’‚v‡que, la Vie a fortement favoris‚ l’‚largissement du cercle des saints
susceptibles de dever l’object d’une ven‚ration au-del† des seuls martyrs. De plus, par la synth‡se „ de la
dignit‚ de l’‚vˆque avec le mode de vie et la vertu du moine … (10, 2), l’oevre de Sulpice S‚v‡re devint un mod‡le
couramment imit‚ dans l’hagiographie du tr‡s haut Moyen ‰ge en Gaule, par le remploi de passages de la Vie
ou par une stylisation cons‚quente du saint concern‚. Ainsi, la pr‚sentation plus ou moin fictive d’une image
d’asc‡te suivant le mod‡le ‚labor‚ par Sulpice S‚v‡re a permis † de nombreux ‚vˆques francs d’ˆtre valoris‚s
en tant que saints.”. Cf. HEINZELMANN, Martin. Le mod—le martinien. In : WAGNER, Anne (org.). Les
saints et l’histoire: sources hagiographiques du Haut Moyen Age. Paris : Br‰al, 2004. p. 34.

16
Outra indicação fornecida pelo autor é a de que Sisebuto tenha distorcido os fatos

deliberadamente, e envolvido Teodorico e Brunequilda numa disputa que outras fontes que

discorrem sobre os mesmos eventos apresentam como tendo se dado no interior da hierarquia

episcopal franca.

O manuscrito de Oviedo, atualmente perdido, mas do qual provêm as melhores

versões da Vita Desiderii, está na mesma coleção em que se encontra a correspondência

diplomática do monarca (incluindo suas cartas ao filho Teudila e ao rei lombardo Aladoaldo),

e próxima aos textos da chamada historiografia asturiana e visigoda. Tal fato, na visão de

Fontaine, seria mais um indício do peso marcadamente político da hagiografia.

A política de alianças matrimoniais entre visigodos e francos vinha se revelando

desastrosa desde o século VI.14 Além disso, ao longo de praticamente todo o século VI, godos

e francos disputavam a posse da Septimania. Às vésperas das mortes de Teodorico e

Brunequilda, godos e burgúndios estavam à beira de uma guerra aberta pelos territórios na

região dos Pirineus. Witerico se aliou a Clotário II, da Nêustria, contra Teodorico da

Burgúndia e os avaros. A vitória dos primeiros foi recebida com alívio pela chancelaria

visigoda. Não por acaso, a virulência dos textos referentes à política de Brunequilda perpassa

os reinados de Witerico e Gundemaro, monarcas de quem Sisebuto herda não só o trono, mas

também as diretrizes políticas quanto ao reino franco.

Logo, o provável interesse do rei visigodo seria o de inaugurar uma nova fase nas

relações entre godos e francos. Amaldiçoando a memória de Brunequilda e seus aliados mais

próximos, o monarca visigodo desvinculava a imagem da rainha da do reino visigodo e

ganhava pontos junto ao fortalecido rei Clotário.

14
Cf. ISLA FREZ, Amancio. op. cit.

17
Santiago Castellanos endossa as conclus•es de Jacques Fontaine em dois trabalhos

publicados no ano de 2004,15 e apresenta um desenvolvimento das linhas de anŠlise propostas

pelo franc€s, destacando nƒo apenas a rela‚ƒo do texto com as disputas dinŠsticas do reino

franco - nas quais a rainha Brunequilda, demonizada por Sisebuto, desempenhou um papel

mais que fundamental - , como tamb‰m a sua articula‚ƒo com a teoriza‚ƒo pol‡tica em

constru‚ƒo no reino visigodo, evocando aqui a supracitada rela‚ƒo entre o monarca e Isidoro

de Sevilha.16

No artigo “Obispos y santos. La Construcci•n de la Historia C•smica en la Hispania

Visigoda”, Santiago Castellanos se prop•e a analisar a forma como, na Hispania visigoda, a

produ‚ƒo hagiogrŠfica e os discursos referentes aos santos em geral se relacionavam com a

cosmologia providencialista que caracterizava a produ‚ƒo intelectual eclesiŠstica no per‡odo.

A alian‚a com a hierarquia episcopal era fundamental para a monarquia visigoda em

processo de consolida‚ƒo, diante de um quadro no qual o poder pol‡tico se encontrava

progressivamente pulverizado entre as diversas aristocracias que controlavam as prov‡ncias da

Hispania. O apoio, formalizado por meio de um discurso centrado na id‰ia de unidade e

consenso, converteu o episcopado em sustentŠculo social e ideol•gico da monarquia. Os

l‡deres religiosos locais - designados pelo autor como hombres santos -, nesse contexto,

ganham uma fun‚ƒo bastante importante, que seria a de servir como elo entre esse projeto

ideol•gico unificador e as suas respectivas comunidades. Nos textos hagiogrŠficos, pode-se

perceber uma esp‰cie de simbiose entre a no‚ƒo de santidade (santitas) e nobreza (nobilitas).

Textos hagiogrŠficos como a Vita Desiderii constroem-se a partir de personagens-tipo.

Segundo Castellanos, os tipos positivos atuam como um eixo que permite que os

15
Nos referimos aqui a CASTELLANOS, Santiago. Obispos y santos. La Construcci•n de la Historia C•smica
en la Hispania Visigoda. In: AURELL, Mart‡n; GARC˜A DE LA BORBOLLA, Angeles. La imagen del obispo
hispano en la Edad Media. Pamplona: EUNSA, 2004. p. 15-36; e CASTELLANOS, Santiago. La hagiografia
en la articulaci•n pol‡tica del Regnum. In: _______. Hagiografia visigoda. Domínio Social y proyección
cultural. Logro’o: Fundacion San Millan de la Cogolla, 2004. p. 163-302.
16
Ver nota 5.

18
leitores/ouvintes, por meio de um processo de auto-identifica‚ƒo, sejam capazes de

estabelecer liga‚•es entre o passado apresentado na hagiografia e o status quo presente,

representado na figura do bispo.

Em rela‚ƒo ‹ Vita Desiderii, o autor aponta que Sisebuto usa de uma estrat‰gia

ret•rica comum nos textos hagiogrŠficos, que ‰ a oculta‚ƒo de lugares e datas concretas dos

acontecimentos – o que certamente facilitava a identifica‚ƒo dos leitores com a vida do santo

e contribu‡a para certa universaliza‚ƒo do discurso. No contexto merov‡ngio, ocorreu uma

instrumentaliza‚ƒo pol‡tica do culto ao santo, na medida em que o culto a Desid‰rio foi

fomentado por ClotŠrio II. A valoriza‚ƒo do mart‡rio do santo servia como uma forma de

damnatio memoriae de Brunequilda, que tamb‰m interessava ‹ aristocracia visigoda, pelas

raz•es jŠ enunciadas por Fontaine.

No que se refere ao contexto propriamente visigodo, Castellanos observa que a

caracteriza‚ƒo da rainha e de seu neto na hagiografia - os dois sƒo claramente descritos como

exemplos de tirania e de mŠ realeza - era muito conveniente para a ratifica‚ƒo dos valores e

modelos por meio dos quais a monarquia e o episcopado visigodos buscavam, nesse

momento, legitimar a posi‚ƒo da realeza, valores os quais viriam a ser apresentados no IV

Conc‡lio de Toledo em sua forma plena.17 Assim, a caracteriza‚ƒo da mŠ realeza que se

apresenta na Vita Desiderii foi, tamb‰m, uma forma de refor‚ar a associa‚ƒo do pr•prio

Sisebuto com o modelo contrŠrio.

Nesse sentido, Santiago Castellanos conclui que os milagres do bispo/santo Desid‰rio

e os feitos dos reis na Vita Desiderii se convertem em eixos de interpreta‚ƒo do passado a

partir de uma •tica providencialista.

Esta questƒo tamb‰m ‰ discutida no livro publicado pelo autor no mesmo ano,

“Hagiografia visigoda. Dom‡nio Social y proyecci•n cultural”. No que concerne ‹ Vita

17
Aqui nos referimos especificamente ao cŒnone 75 das atas desse conc‡lio, que cont‰m uma longa admoesta‚ƒo
‹ popula‚ƒo para que esta nƒo se coloque contra a autoridade do monarca. Cf. IV Conc‡lio de Toledo (633). In:
VIVES, Jos‰ (org.). Concílios Visigóticos y Hispano-Romanos. Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963.

19
Desiderii especificamente, a principal contribuição do autor aqui é a minuciosa análise do

entorno político-aristocrático de um dos principais personagens da narrativa: a rainha

Brunequilda. Ele aponta para o fato de ela se tratar de uma rainha estrangeira e

excessivamente influente, o que incomodava amplos segmentos da aristocracia austrásica, os

quais eram apoiados muitas vezes por membros do alto clero. O caso da execução do bispo

Desidério de Vienne não teria sido o primeiro, tampouco o único. A rainha, entretanto,

manteve diálogo próximo com o bispo de Roma da época, Gregório Magno, e o retrato dela

desenhado por Gregório de Tours em suas cartas é mais afável que o de Sisebuto.

Castellanos recompõe o contexto de institucionalização da soberania de Clotário II

sobre o conjunto da Gália merovíngia. Aqui ele aponta que, embora a hegemonia de Clotário

estivesse definitivamente estabelecida no plano militar, a existência de registros concernentes

a rebeliões contra a sua autoridade indica que pareceu necessário a esse monarca garantir um

referendo moral à sua vitória sobre a facção liderada por Brunequilda. E é aí que entra em

cena o discurso hagiográfico, que contribui com o projeto de Clotário por meio da damnatio

memoriae da rainha. Trata-se do caso da Vita Desiderii de Sisebuto, que Castellanos entende

como um texto por meio do qual este monarca indica o seu próprio posicionamento diante da

reorganização das forças políticas no reino franco, provocada pela recente e definitiva vitória

de Clotário II. Ao mesmo tempo, ao narrar a derrocada de Brunequilda e de seu neto

Teodorico na Burgúndia em função do martírio do bispo Desidério, a Vita Desiderii

contribuía para transmitir a idéia de que as relações entre os dois e a Igreja eram conflituosas,

dado que o apoio de parte do episcopado a ambos poderia desmentir e fragilizar a adesão

buscada por Clotário junto às autoridades eclesiásticas.

No que se refere à relação entre a Vita Desiderii e as questões políticas internas ao

reino visigodo, Castellanos também faz referência ao paralelismo existente entre este texto e o

20
ideal de realeza das Sententiae de Isidoro de Sevilha. 18 Al‰m disso, ao aproximar-se da

dinastia franca vitoriosa, Sisebuto provavelmente buscava reduzir as potenciais dificuldades

em controlar a prov‡ncia Narbonense, com a qual a monarquia toledana ainda teria muitos

problemas ao longo do s‰culo VII, como se verificaria no caso da ascensƒo do grupo de

Sisenando ao poder, na d‰cada de 630.

Isabel Velazquez, em obra publicada hŠ dois anos, apresenta uma grande s‡ntese dos

estudos relacionados ‹ hagiografia de Sisebuto, com €nfase nos seus aspectos propriamente

literŠrios. Comentando o trabalho de autores como Jos‰ Mart‡n, Carmen Cordo’er, Jacques

Fontaine e Santiago Castellanos, Velazquez concorda com os dois Žltimos com rela‚ƒo ‹

presen‚a de uma clara intencionalidade pol‡tica permeando o texto da hagiografia, fato

evidenciado pelo destaque dado por Sisebuto aos crimes e ‹s mortes de Brunequilda –

princesa visigoda que se torna uma rainha franca em meados do s‰culo VI e que teve rela‚•es

conflituosas com reis e aristocratas dos dois reinos – e dos demais inimigos do santo,19 dentre

outros elementos. A autora discorda de Carmen Cordo’er no ponto em que esta afirma a

exist€ncia, na Vita Desiderii, de uma “confusƒo” entre dois g€neros literŠrios – no caso, o

hist•rico e o hagiogrŠfico, e contesta, portanto, a possibilidade de uma dicotomia rigorosa

entre discurso hagiogrŠfico e discurso pol‡tico-ideol•gico.

Velazquez tamb‰m prop•e uma resposta ‹ questƒo sobre o porqu€ da escolha do

g€nero hagiogrŠfico para narrar a derrocada de Brunequilda. Aqui, a autora evoca a inser‚ƒo

da produ‚ƒo literŠria de Sisebuto no contexto do chamado “renascimento cultural isidoriano”,

bem como os paralelos existentes entre o discurso sobre Brunequilda e Teodorico que se

apresenta na Vita Desiderii e a concep‚ƒo do papel da realeza que Isidoro de Sevilha

18
Mas sem entrar em detalhes, jŠ que nesta obra o autor parece optar por uma €nfase nas quest•es hist•ricas
externas aos textos hagiogrŠficos em si. Esta op‚ƒo do autor tamb‰m ‰ constatada por Isabel Velazquez. Ver
VELAZQUEZ, Isabel. op. cit. p. 154.
19
VELAZQUEZ, Isabel. op. cit. p. 167-168.

21
desenvolve principalmente nas Sentenças. 20 Logo, a vida e o mart‡rio do bispo Desid‰rio de

Vienne atenderiam a vŠrios interesses pol‡ticos: referendar a execu‚ƒo de Brunequilda por

ClotŠrio II, denegrindo a imagem de uma forte inimiga do regnum visigodo, e dar uma

resposta literŠria aos pressupostos isidorianos, por meio de uma exemplifica‚ƒo prŠtica da

teoria do bispo hispalense sobre o bom governo dos reis. Da‡, uma obra hagiogrŠfica pode ter

parecido mais adequada que uma cr•nica comum para permitir que eventos pol‡ticos – como

os ocorridos na GŠlia franca de princ‡pios do s‰culo VII – fossem revestidos de uma

justificativa moralizadora.21

Tendo em vista os aspectos apresentados, podemos concluir, por fim, que desde o

marco representado pelo artigo publicado por Jacques Fontaine em 1980, percebe-se uma

intensifica‚ƒo das discuss•es em torno da Vita Desiderii e uma obra como a de Santiago

Castellanos indica um maior interesse por parte dos historiadores sobre este texto

hagiogrŠfico nos Žltimos anos.

At‰ o ponto em que pudemos apurar, percebemos que a hagiografia de Sisebuto ainda

‰ um tema relativamente marginal dentre os estudos sobre o reino visigodo, talvez em fun‚ƒo

da atipicidade comumente assinalada pelos autores que sobre ela se debru‚am.

Entretanto, trabalhos como os de Santiago Castellanos t€m contestado a exist€ncia de

um suposto isolamento hist•rico entre os reinos franco e visigodo, ressaltando a grande

interdepend€ncia entre as dinŒmicas pol‡ticas de um e de outro, fen•meno do qual a Vita

Desiderii ‰ um dos principais exemplos, e abrem espa‚o para uma amplia‚ƒo cada vez maior

das abordagens sobre a estreita rela‚ƒo entre a produ‚ƒo hagiogrŠfica e projetos pol‡tico-

ideol•gicos vigentes naquele per‡odo.

20
Tal como ressaltado por Jacques Fontaine. Vide FONTAINE, J. op. cit.
21
VELAZQUEZ, Isabel. op. cit.. p. 173-176.

22
1.3) Quadro teórico

Este estudo tem como base te•rica os princ‡pios propostos pelos estudos do soci•logo

alemƒo Norbert Elias, com destaque para O Processo Civilizador e Os Estabelecidos e os

Outsiders. Nestas obras, o autor estabelece uma ‡ntima correla‚ƒo entre a constru‚ƒo de

modelos de conduta – pol‡tica, inclusive – e o aumento da interdepend€ncia social entre

grupos e indiv‡duos.

No Processo Civilizador, Norbert Elias analisa como a urbaniza‚ƒo, o fortalecimento

da posi‚ƒo dos reis nas monarquias feudais da Europa Ocidental, e a conseq™ente expansƒo do

uso de formas nƒo-violentas de controle social e aumento da competi‚ƒo e, logo, da

interdepend€ncia social entre grupos e indiv‡duos, leva a, dentre outros resultados, um

aumento da preocupa‚ƒo com a conduta dos indiv‡duos em espa‚os de sociabilidade (ex: mesa

de jantar), ou, em outras palavras, uma maior preocupa‚ƒo com o olhar do outro.22 Em Os

Estabelecidos e Outsiders, encontramos um contexto social de pleno s‰culo XX em que a

situa‚ƒo se repete, na medida em que a hegemonia de um grupo social se constr•i e se

reproduz por meio de um r‡gido e quase silencioso controle da conduta de seus membros uns

pelos outros.23

Entendemos que os estudos de Elias tamb‰m podem ser ferramentas Žteis para a

compreensƒo da dinŒmica pol‡tica do reino visigodo, na medida em que encontramos, no

contexto hist•rico da nossa pesquisa, circunstŒncias pol‡ticas que se caracterizam pela

constru‚ƒo de alian‚as e, portanto, pelo aumento da interdepend€ncia entre elites pol‡ticas, o

que no nosso ver, entƒo, ‰ a origem do uso de novas formas de diŠlogo pol‡tico24 – isto ‰,

formas nƒo-violentas de dom‡nio social – bem como da maior preocupa‚ƒo em fazer com que

22
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, v. 1. p. 91-93.
23
ELIAS, Norbert et SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
24
Como a produ‚ƒo literŠria ou a concessƒo de privil‰gios fiscais, como demonstra Santiago Castellanos (vide
nota 4).

23
as disputas políticas e o próprio exercício do poder monárquico se dêem mediante regras

claras e bem estabelecidas, preocupação que passa a se manifestar na produção intelectual

posterior à conversão de Recaredo.

1.4) Fontes e Metodologia

Nosso documento central de estudo é um texto hagiográfico escrito pelo rei visigodo

Sisebuto no ano 613, aproximadamente, intitulado Vita Vel Passio Sancti Desiderii, mais

conhecido simplesmente como Vita Desiderii.

Neste texto, escrita por volta de 613, o rei visigodo Sisebuto narra a vida e a morte de

Desidério, bispo de Vienne, executado em 607 por ordem do rei merovíngio Teodorico da

Burgúndia, e de sua avó, a rainha Brunequilda, após entrar em choque direto contra estes.

Vale ressaltar que Desidério nunca foi objeto de culto na Península Ibérica, mas a referida

rainha era de origem visigoda, filha do monarca Atanagildo e de Gosvinta, rainha que foi

casada também com o rei Leovigildo. Problemas diversos envolvendo trocas matrimoniais

levaram Brunequilda, já na posição de esposa e mãe de reis francos merovíngios, a sucessivos

atritos com reis e aristocratas visigodos.25

Além da forte carga política que se apresenta na crítica à postura da rainha

Brunequilda e de seu neto na condução de seu reino, identificamos também a preocupação

com a valorização do papel do bispo Desidério na assistência espiritual à população de

Vienne, assim como na defesa dela contra o poder tirânico dos reis. Tal dado nos permite

concordar com influência do modelo de santidade inaugurado pela Vita Martini de Sulpicio

Severo, dentre outros,26 na redação do texto de Sisebuto.

25
Para uma síntese desses conflitos, cf. ISLA FREZ, Amancio. op. cit.
26
Como os citados por André Vauchez. Cf.: VAUCHEZ, André. O santo. In: LE GOFF, Jacques. O Homem
Medieval. Lisboa: Ed. Presença, 1989. p. 215.

24
Peter Brown indica que um dos papéis desempenhados pelos santos no imaginário

cristão tardo antigo e medieval era o de permitir que os fiéis fizessem uso dos acontecimentos

presentes nos textos hagiográficos para atribuir sentido às suas próprias ações e experiências

pessoais, bem como para julgar a de outros.27 Esta forma peculiar de conceber o conteúdo dos

textos hagiográficos, no nosso entender, tornava uma narrativa como a Vita Desiderii bastante

conveniente à difusão de um projeto político-ideológico como o proposto pela produção

intelectual eclesiástica dos anos posteriores à conversão oficial do reino visigodo, em 589,

que influencia diretamente a elaboração da obra de Sisebuto.

Como metodologia para o estudo do documento, optamos pela análise semântica do

discurso. Esta forma de análise atém-se ao estudo do sentido das palavras empregadas pelo

autor como indícios de seu discurso. Neste caso também são selecionadas unidades de análise,

que, porém, não são termos, mas categorias, como, por exemplo, os adjetivos associados a um

personagem em certa narrativa.28 Para os fins de nossa pesquisa, selecionamos todas as

referências do texto que dizem respeito à ação dos monarcas Brunequilda e Teodorico, bem

como às suas características (temperamento, vícios, atitudes etc.).

27
BROWN, Peter. Enjoying the saints in late antiquity. Early Medieval Europe, 9 (I). p. 01-24, 2000.
28
Assim é definida a análise semântica pela professora Andréia Frazão. Cf.: SILVA, Andréia C. L. Frazão da.
Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade,
santidade e gênero. Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, 194-223, 2002.

25
1.5) Objetivos e Hipótese

Nossa hipótese é a de que a narrativa hagiográfica Vita Desiderii teria sido elaborada

com o propósito de difundir, por meio da caracterização dos personagens Teodorico e

Brunequilda, um ideal de conduta política calcado na idéia da responsabilidade do rei sobre a

salvação de seus súditos, no exercício de uma justiça voltada para a paz e na retidão e

obediência aos preceitos cristãos por parte dos monarcas. Partimos do pressuposto de que o

reinado de Sisebuto se caracteriza pelo alinhamento ao projeto de fortalecimento político da

monarquia visigoda que entra em curso a partir dos reinados dos reis Leovigildo e Recaredo,

baseado este na aproximação com a elite hispano-goda e da sua própria associação à

autoridade religiosa, representada pelo episcopado.

Nesse sentido, o principal objetivo deste trabalho é demonstrar a inserção do ideal de

conduta política presente na Vita Desiderii no contexto de busca de fortalecimento político da

monarquia visigoda. Para tal fim, apresentaremos primeiramente as conclusões da

historiografia acerca das questões políticas que repercutiram na elaboração da hagiografia,

escrita em 615. Em seguida identificaremos referências no texto de Sisebuto que estejam

relacionadas ao ideal de conduta política presente na obra de Isidoro de Sevilha, principal

autor eclesiástico do período; desse modo, podemos relacionar a difusão de um ideal de

realeza por parte do rei Sisebuto e a ratificação do pacto político entre a monarquia e a elite

hispano-visigoda.

26
CAPÍTULO 2: O contexto político franco-visigodo nos séculos VI

e VII

27
Consideramos que os objetivos que o rei Sisebuto visava atingir com a elaboração de

sua obra, bem como a existência de um ambiente que permitisse a adoção de uma estratégia

dessa natureza, possuem estreita relação com a teia de disputas e alianças políticas construída

nos reinos franco e visigodo a partir da segunda metade do século VI.

Iniciaremos essa contextualização com algumas considerações, a partir das conclusões

da historiografia recente, sobre as transformações que denotam o processo de

institucionalização da monarquia visigoda, com destaque sobre os reinados de Leovigildo e

Recaredo. A seguir, apresentaremos os entrecruzamentos existentes entre as disputas políticas

que ocorriam no reino visigodo e os conflitos internos ao vizinho reino dos francos, de cuja

interdependência a produção de um texto como a Vita Desiderii constitui um dos

desdobramentos.

2.1) O processo de fortalecimento da monarquia visigoda a partir de Leovigildo e


Recaredo

Santiago Castellanos assume que a ascensão de Leovigildo ao trono, em 572, marca

uma nova etapa do processo de transferência do eixo político do reino visigodo da Gália para

a Hispania iniciado em 507, ano da derrota dos visigodos para os francos na Batalha de

Vouillé, em que os primeiros são obrigados a abandonar a cidade de Toulouse, que até então

tinham como sua capital.1

Os primeiros registros da presença dos visigodos na Península Ibérica datam de

princípios do século V, quando, a serviço do Império Romano, estes vêm combater alanos,

suevos e vândalos, cujos ataques assolavam os centros urbanos locais. O choque dos

visigodos com os demais grupamentos germânicos não chega a repercutir em uma ocupação,

1
CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz: Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. p.
69-108.

28
logo, apenas ap•s o rev‰s sofrido diante das tropas francas lideradas por Cl•vis em 507, eles

iniciam uma transfer€ncia de fato. At‰ entƒo, o foco dos reis visigodos consistia na busca de

estabiliza‚ƒo de sua autoridade na GŠlia, o que se deu por meio de sua pr•pria associa‚ƒo ‹

estrutura pol‡tica, administrativa e jur‡dica imperial. A derrota em Vouill‰ assinala nƒo s• o

in‡cio de uma reorganiza‚ƒo territorial, mas tamb‰m o fim de uma primeira e relativamente

duradoura linha dinŠstica da monarquia visigoda, inaugurada por Teodorico I (418-451).2

O processo de transfer€ncia do eixo pol‡tico visigodo para a Pen‡nsula Ib‰rica ‰

primeiramente marcado pela influ€ncia ostrogoda, representada principalmente pelos

governos dos reis Teodorico, o Grande (511-526), Amalarico (526-531) - respectivamente,

sogro e filho de Alarico II, rei visigodo morto na Batalha de Vouill‰ - e Teudis (531-548), que

ao casar-se com uma rica aristocrata hispana, obt‰m acesso a importantes recursos que

colaborariam com a sua elei‚ƒo ao trono. A a‚ƒo dos generais ostrogodos, Teudis e Teudiselo

(548-549), p•e freio ‹ expansƒo franca e permite a consolida‚ƒo dos visigodos na Hispania.

Mas a monarquia visigoda ainda possu‡a frŠgeis bases institucionais.3

A ascensƒo de Agila em 549 inaugura um novo per‡odo de instabilidades, uma vez que

este reinado ‰ marcado pela disputa com o grupo nobiliŠrquico liderado por Atanagildo. Este,

apoiado pelos bizantinos, obt‰m o trono em 555 ao pre‚o de ceder ‹queles uma faixa

territorial no sul da Pen‡nsula da qual s• se retirarƒo em 625, expulsos pelo monarca Suintila

(621-630). Um outro dado significativo do reinado de Atanagildo – para os fins de nosso

estudo – ‰ o casamento de suas filhas Galsvinta e Brunequilda com os reis francos Chilperico

e Sigeberto, respectivamente, o que consistiu em uma das tentativas da monarquia visigoda no

sentido de estabilizar suas rela‚•es pol‡ticas com os francos, como veremos adiante.

Com a morte de Atanagildo, ascende ao trono Liuva (568-572), que divide o governo

com seu irmƒo Leovigildo, que se torna o Žnico soberano ap•s a sua morte. Liuva ‰

2
DIAZ, Pablo C. Rey y Poder en la Monarquia Visigoda. Iberia, Logro’o, n. 01. p. 180-184, 1998.
3
Ibidem. p. 77-80.

29
proclamado rei em Narbonne, cidade localizada na pequena por‚ƒo da GŠlia que os visigodos

conseguiram manter sob seu dom‡nio. O fato de o sucessor de Atanagildo ter sido escolhido

entre os aristocratas dessa regiƒo demonstra o peso que ela ainda possu‡a na dinŒmica pol‡tica

visigoda. Enquanto Liuva optava por permanecer na GŠlia, coube a Leovigildo o governo dos

territ•rios a oeste dos Pirineus.

Embora a historiografia tradicional tendesse a acentuar a conversƒo de Recaredo (587-

601) ao cristianismo niceno como um marco inicial da alian‚a entre os visigodos e a elite

hispano-romana,4 estudos atuais destacam que o monarca em questƒo foi um continuador da

pol‡tica de seu pai, Leovigildo (572-586), em um grande nŽmero de aspectos. Catherine

Navarro Cordero considera que ‰ Leovigildo o responsŠvel pelo rompimento, por parte da

realeza visigoda, com o conceito germŒnico de monarquia, em que o rei era antes de tudo um

chefe militar eleito entre seus pares por seu valor como guerreiro e pertencimento a uma

estirpe ilustre. Em outras palavras, o reinado deste monarca marca o in‡cio a estrutura‚ƒo da

monarquia visigoda toledana como institui‚ƒo.5

Um primeiro elemento que deve ser apresentado em rela‚ƒo ao reinado de Leovigildo

‰ a busca de reconhecimento por parte da sociedade hispana, por meio da ado‚ƒo de prŠticas

imperiais romanas. Ela permitiria aos reis visigodos descolar de si, a partir da‡ e em

definitivo, o r•tulo de “bŠrbaros”.6 Seu irmƒo Liuva fizera uso desse recurso ao associŠ-lo ao

trono em 568. Tƒo logo o poder pol‡tico foi reunido em suas mƒos, em 572, ele repetiu a

4
Citemos como exemplo o trabalho de Jos‰ Orlandis que tende ainda a p•r a pol‡tica de Recaredo em oposi‚ƒo a
de Leovigildo. Cf.: ORLANDIS, Jos‰. Historia del Reino Visigodo Español. Madri: Rialp, 1968.; Idem. Sobre
las relaciones entre la Iglesia Cat•lica y el poder real visigodo. Hispania y Zaragoza en la Antiguedad Tardia.
Estúdios Vários. Zaragoza, 1984. p. 37-50.; e Idem. La doble conversi•n religiosa de los pueblos germŠnicos
(siglos IV a VIII). AHIg, Pamplona, n.09. p. 69-84, 2000.
5
NAVARRO CORDERO, Catherine. El Giro Recarediano y sus implicaciones pol‡ticas: el catolicismo como
signo de identidad del Reino Visigodo de Toledo. Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones, Madrid, n.05. p.
97-118, 2000.
6
Ibidem. p. 101.

30
prŠtica entregando aos seus dois filhos, Hermenegildo e Recaredo, a administra‚ƒo da B‰tica

e da Narbonense/Septimania, respectivamente.7

Essa nƒo seria a Žnica prŠtica imperial que Leovigildo adotaria. Isidoro de Sevilha

narra que Leovigildo come‚ou a aparecer diante da corte usando vestes assemelhadas ‹s

roupagens imperiais,8 embora haja exagero na afirma‚ƒo de que ele foi o primeiro rei visigodo

a faz€-lo. Mas, de fato, ele foi o primeiro rei visigodo a cunhar moedas com a sua pr•pria

ef‡gie, ao inv‰s da do imperador bizantino, al‰m de ter fundado ao menos duas cidades. O

passo seguinte foi a realiza‚ƒo de uma recopila‚ƒo das leis visigodas, cujo fruto foi o

chamado Codex revisus, mimetizando obras de recopila‚ƒo efetuadas por imperadores como

Teod•sio II e Justiniano.9

O casamento com Gosvinta, viŽva de seu antecessor, por ocasiƒo de sua ascensƒo ao

trono, consistiu numa tentativa de atrair para si as antigas bases de apoio de Atanagildo entre

a elite da regiƒo ao sul da Pen‡nsula Ib‰rica, com a aristocracia visigoda hispana de uma

forma geral.10

Al‰m dos significativos sucessos militares que estenderam consideravelmente o

territ•rio sob dom‡nio da monarquia, jŠ centralizada na cidade de Toledo – incluindo aqui a

conquista do reino suevo, em 585 – partem de Leovigildo as primeiras iniciativas efetivas no

sentido de reduzir as fronteiras entre as elites goda e hispano-romana ou de dar aval jur‡dico

‹s intera‚•es que jŠ ocorriam, como ocorreu no caso dos casamentos mistos,11 embora a

7
FRIGHETTO, Renan. Aspectos Te•ricos e PrŠcticos da Legitimidade do Poder R‰gio na Hispania Visigoda: o
Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de Espa‡a. Buenos Aires, v.79, p. 237-245, 2005. Dispon‡vel em:
http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008.
8
ISIDORUS HISPALENSIS. Historia de regibus gothorum, wandalorum et suevorum. 51. In: MIGNE, Jean-
Paul (ed.). Patrologia Latina. Paris: Migne, 1844-1855, vol. 83, col. 1057.
9
CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la cruz…, op. cit.. p. 100-103.
10
Ibidem. p. 92.
11
Leovigildo aboliu uma antiga disposi‚ƒo da legisla‚ƒo, promulgada por Alarico II, que mantinha proibidos os
casamentos entre romanos e germanos, como determinara um decreto romano da ‰poca dos imperadores
valentinianos. Mais do que abrir a possibilidade de uniƒo entre godos e hispano-romanos, a decisƒo de
Leovigildo converteu em lei o que se tornou uma regra na prŠtica: jŠ nƒo eram tƒo grandes as barreiras entre os
dois grupos, e os casamentos mistos eram comuns. Cf.: VALVERDE, Maria R. El reino visigodo de Toledo y los
matrimonios mixtos entre godos y romanos. Gƒrion, Madrid, v.20, n.01. p. 511-527, 2002.

31
diferencia‚ƒo tenha sido mantida no que se refere ‹ possibilidade de acesso ao poder

pol‡tico.12 O fisco foi outro meio de que o monarca lan‚ou mƒo para conseguir o apoio das

aristocracias locais, e ampliar a presen‚a da monarquia visigoda junto ‹ sociedade.13

A pr•xima questƒo que Leovigildo visaria solucionar era a da separa‚ƒo religiosa que

dividia as elites da Hispania: o principal elemento de diferencia‚ƒo entre godos e hispano-

romanos residia no fato de aqueles serem adeptos do arianismo e estes da ortodoxia nicena.

Para Luis A. Garc‡a Moreno, a abertura do episcopado ariano ‹ interfer€ncia da monarquia fez

com que o rei considerasse conveniente uma unifica‚ƒo religiosa da sociedade hispano-

visigoda sob a ‰gide do arianismo,14 nem que para tal fossem necessŠrias mudan‚as no dogma

ariano.15 Navarro Cordero defende, no entanto, que Leovigildo nƒo visava unir o reino sob o

arianismo, e sim dar condi‚•es para que a Igreja ariana fizesse frente ao poder e ‹ influ€ncia

do episcopado niceno, e se mantivesse como elemento distintivo da fides gothica.16

Isidoro de Sevilha apresentou Leovigildo como um perseguidor de cat•licos.17 Mas

essa questƒo teve uma natureza mais complexa do que os cronistas da ‰poca quiseram fazer

parecer. Em fins da d‰cada de 570, Hermenegildo, filho mais velho de Leovigildo e rec‰m-

convertido ao cristianismo niceno por influ€ncia do bispo Leandro de Sevilha, rebelou-se

contra a autoridade paterna e, apoiado por parcela bastante representativa da elite, incluindo a

12
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 112. Tivemos oportunidade de observar que a Lex Visigothorum
tamb‰m dŠ tratamento diferenciado aos dois grupos no que se refere ‹ propriedade de terras. Cf.: SOUSA,
Adriana C. de; COSTA, Edilaine V. Leovigildo e a revisƒo do C•digo de Eurico. In: SEMANA DE
INTEGRAš›O ACADœMICA DO CENTRO DE FILOSOFIA E CIœNCIAS HUMANAS, 1, 2006. Atas... Rio
de Janeiro: CFCH/UFRJ, 2007. (CD-Rom)
13
CASTELLANOS, S. The political nature of taxation..., op. cit.. p. 211-212.
14
Tal abertura, no entendimento do autor, era devida ‹ falta de recursos da Igreja ariana, se comparada ‹ riqueza
do episcopado niceno, o que a tornava mais dependente do favorecimento do poder pol‡tico. Cf.: GARCIA
MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Barcelona: Cr‡tica, 1989. p. 126.
15
Leovigildo convoca um conc‡lio de bispos arianos em 580, durante a rebeliƒo de seu filho Hermenegildo.
Neste conc‡lio, prop•e-se uma forma mitigada do arianismo, que aceitava a divindade do filho, mas negava a do
Esp‡rito Santo, como fizera o chamado “macedonianismo”, heresia condenada pelo I Conc‡lio de Constantinopla.
Para facilitar a ado‚ƒo desse novo dogma pelos cristƒos ortodoxos, o conc‡lio determina que para o “rebatizado”
bastaria a imposi‚ƒo de mƒos do bispo e a cita‚ƒo do credo ariano. Cf.: ORLANDIS, Jos‰. La doble
conversion…, op. cit.. p. 81.
16
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 110.
17
“Denique Arianae perfidiae furore repletus, in catholicos persecutione commota, plurimos episcoporum
exsilio relegavit.” Cf.: ISIDORUS HISPALENSIS. op. cit., 50.

32
rica aristocracia da B‰tica, reivindicou o trono para si, autorizando-se inclusive a cunhar

moedas com a sua ef‡gie. Sufocada a rebeliƒo, em 584, Leovigildo, de acordo com os

referidos autores, teria iniciado uma pol‡tica de persegui‚ƒo ao clero nice‡sta. Castellanos,

entretanto observa que as pris•es e ex‡lios que o monarca empreendeu contra membros do

episcopado provavelmente nƒo tiveram motivos religiosos. Bispos como Joƒo de Biclaro e

Masona de M‰rida teriam sido perseguidos em fun‚ƒo de seu envolvimento pol‡tico com a

rebeliƒo de Hermenegildo.18

Tanto o carŠter cat•lico da rebeliƒo de Hermenegildo, como as iniciativas de

Leovigildo contra a parcela do episcopado que o apoiou, acabaram ofuscadas pela guinada

pol‡tica protagonizada por Recaredo, que com a morte do irmƒo, passa a ser o Žnico candidato

a sucessƒo de Leovigildo, morto em 586. Apenas alguns meses ap•s subir ao trono, Recaredo

se converte ao cristianismo niceno. Depois de um per‡odo de sufocamento de revoltas e

negocia‚•es com o restante da elite goda, o monarca convoca o III Conc‡lio de Toledo, em

589, que deveria reunir os principais representantes da aristocracia visigoda e os bispos do

reino, nice‡stas e arianos.

A conversƒo de Recaredo representa o reconhecimento do poder e da influ€ncia

institucional da Igreja e da hierarquia eclesiŠstica nicenas, em que os pr•prios visigodos se

faziam cada vez mais presentes. Nesse sentido, o III Conc‡lio de Toledo teria na verdade

sancionado uma situa‚ƒo de fato: era crescente, desde antes de 589, o movimento de

conversƒo de visigodos ‹ ortodoxia cristƒ.19

18
CASTELLANOS, Santiago. La Hagiografia visigoda…, op. cit.. p. 187. Catherine Navarro Cordero, por
outro lado, afirma, em artigo publicado em 2000 – antes, portanto, do trabalho de Castellanos, que a persegui‚ƒo
se dirigiu a visigodos convertidos ‹ f‰ nicena. Ela tamb‰m acredita, opostamente ao que viria a defender aquele
autor, que a rebeliƒo de Hermenegildo foi supervalorizada pela historiografia do per‡odo apenas por se tratar de
uma guerra entre pai e filho, e sem ter tido qualquer implica‚ƒo de maior alcance. Cf: NAVARRO CORDERO,
C. op. cit.. p. 108. Optamos pela tese de Castellanos porque consideramos que o trabalho de Navarro Cordero,
embora traga muitas contribui‚•es relevantes em rela‚ƒo a outras quest•es, neste caso em particular possui uma
leitura mais restrita dos textos da ‰poca em rela‚ƒo ao supracitado historiador.
19
NAVARRO CORDERO. Ibidem. p. 113-114.

33
A importŒncia do III Conc‡lio no que se refere ‹ institucionaliza‚ƒo da monarquia ‰

que ela demonstra que Recaredo, em consonŒncia com a pol‡tica de seu pai, buscava uma

monarquia territorial, e nƒo uma monarquia ‰tnica. A id‰ia da monarquia visigoda como a

leg‡tima herdeira do Imp‰rio cristƒo nƒo deixa de ser evocada. Joƒo de Biclaro compara

Recaredo a Constantino e Marciano, imperadores que presidiram, respectivamente, Nic‰ia e

Calced•nia.20

O sentido triunfal que cerca a conversƒo oficial dos visigodos acaba por reverter

completamente a visƒo dos autores eclesiŠsticos sobre a rebeliƒo do irmƒo cat•lico de

Recaredo, Hermenegildo, ocorrida poucos anos antes. Este, descrito por Greg•rio Magno

como um mŠrtir da f‰ cat•lica,21 acaba reduzido a um “filho rebelde”, um tyrannus, pelos

autores hispanos que escrevem ap•s 589, inclusive Joƒo de Biclaro.22 Com a conversƒo de

Recaredo, a amea‚a que Hermenegildo representou ‹ unidade do reino passa a ter mais

destaque que o discurso que legitimara o seu reinado, que atribu‡ra a ele a fun‚ƒo de defensor

da ortodoxia cristƒ contra a heresia de Leovigildo. O III Conc‡lio de Toledo, presidido por

Leandro de Sevilha – lembremos, um dos principais aliados de Hermenegildo – sequer o

menciona. 23

• Recaredo, portanto, que acaba transformado no emblema de uma nova monarquia

visigoda, protegida por Deus e apoiada pela Igreja. Isidoro de Sevilha afirma que Recaredo

reŽne em si as qualidades ideais do pr‡ncipe cristƒo: pax, pietas e justitia.24 A ado‚ƒo do

cristianismo niceno como religiƒo oficial leva ‹ cristianiza‚ƒo das rela‚•es e concep‚•es de

poder no reino visigodo. O rei ‰ rex, rector ecclesiae – o que nƒo impediu fac‚•es

20
DIAZ, Pablo C. op. cit.. p. 185-186.
21
GREGžRIO MAGNO. DiŠlogos. 3.31.7. apud CASTELLANOS, Santiago. La Hagiografia visigoda..., op.
cit.. p. 175.
22
Cf.: ARIAS, Irene A. (trad.). Cr•nica de Juan, abad del monasterio biclarense. Cuadernos de Historia de
España. Buenos Aires, n.10, p. 129-141, 1948. p. 135-137.
23
CASTELLANOS, Santiago. Ibidem.. p. 165-179.
24
Isidoro afirma na sua História dos Godos que Recaredo restaurou as propriedades dos alvos da persegui‚ƒo
empreendida por seu pai, garantiu a paz do reino e das prov‡ncias al‰m de, em dadas ocasi•es, ter isentado os
sŽditos de tributos mesmo quando estes eram leg‡timos. ISIDORUS HISPALENSIS. Historia de regibus
gothorum, wandalorum et suevorum.... op. cit. 55-56

34
aristocrŠticas dissidentes de se colocarem contra o monarca. As revoltas que ocorrem ap•s a

ascensƒo de Recaredo ao trono, antes e depois da conversƒo, t€m uma caracter‡stica em

comum: representam a rea‚ƒo de bispos arianos descontentes com a perda de espa‚o para o

episcopado niceno, e de grupos aristocrŠticos contrŠrios ‹ pol‡tica centralizadora e ao

fortalecimento do poder da monarquia toledana.25

A sacraliza‚ƒo da autoridade r‰gia, e a conseq™ente atribui‚ƒo ‹ monarquia do papel

de defensora da ortodoxia cristƒ, permite que o rei se apresente como representante do

conjunto da sociedade frente a opositores internos (fac‚•es da nobreza) e tamb‰m a

adversŠrios externos; desse modo, a heterodoxia religiosa se torna definitivamente um r•tulo

pol‡tico. Com o catolicismo substituindo a antiga fides gothica como fator de coesƒo da

popula‚ƒo hispano-visigoda, heterodoxos religiosos – categoria em que sƒo inclu‡dos pagƒos,

judeus e hereges – se tornam inimigos do poder pol‡tico: ao nƒo aderir ‹ f‰ oficial que define a

autoridade r‰gia, esses grupos seriam considerados mais propensos a nƒo reconhec€-lo.26

Renan Frighetto, por exemplo, aponta para uma transforma‚ƒo no conceito de barbŠrie na

Hispania visigoda, em que barbŠrie, ferocitas (oposta a ciuilitas), heresia, paganismo, trai‚ƒo

e tirania passam a estar estreitamente associados nas fontes do s‰culo VII.27

A importŒncia das alian‚as pol‡ticas para a manuten‚ƒo do trono no reino visigodo ‰

evidenciada pela deposi‚ƒo do filho de Recaredo, Liuva II (601-603). Segundo Isidoro de

Sevilha, o jovem rei era filho de uma mulher nƒo-nobre,28 e, portanto, carecia de bases

pol‡tico-dinŠsticas junto ‹ aristocracia goda.

O golpe ‰ liderado por Witerico (603-610) que, em 587, havia tra‡do um movimento

liderado pelo bispo ariano Sunna, em M‰rida, contra Recaredo.29 Provavelmente, ele ainda

25
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 115-116.
26
Ibidem. p. 98-99; 118.
27
FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbŠrie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01, 2002. p. 509.
28
Nas palavras de Isidoro, Liuva II seria “ignobili quidem matre progenitus”. Cf.: ISIDORO DE SEVILHA.
Historia..., op. cit., 57.
29
NAVARRO CORDERO, C. op. cit.. p. 114.

35
possu‡a liga‚•es com grupos pol‡ticos adversŠrios deste rei,30 e conseguiu finalmente ascender

ao trono, diante da falta de apoio de que sofria Liuva II. Isidoro o descreve como um grande

guerreiro, mas que na vida cometeu muitos atos il‡citos, e acabou perdendo o poder da mesma

forma como o conquistou: pela viol€ncia.31 Choques com a aristocracia e sua pol‡tica

centralizadora descontenta setores que o haviam apoiado na obten‚ƒo do trono, e o monarca

acaba assassinado.32

Gundemaro (610-612) o sucede e, a fim de evitar os choques com grupos

aristocrŠticos locais que resultaram na morte de seu antecessor, publica um decreto em que

limita os poderes do soberano. O rei pro‡be-se de nomear bispos na Cartaginense – prov‡ncia

em que se localizava Toledo – contrariando os interesses da Igreja e do metropolitano. • no

reinado de Gundemaro tamb‰m que a BurgŽndia franca e o reino visigodo ficam a beira de

uma guerra, em fun‚ƒo de epis•dios envolvendo a prisƒo de embaixadores e ocupa‚ƒo

visigoda, em represŠlia, de terras que Recaredo havia cedido ‹quele reino.33 Tendo realizado

algumas campanhas militares contra os bascos e os bizantinos, morre em Toledo ap•s dois

anos de reinado,34 passando o trono a Sisebuto (612-621), cuja obra ‰ objeto de nosso

trabalho.

Entendemos que ‰ em meio ao processo de institucionaliza‚ƒo e sacraliza‚ƒo do poder

r‰gio anteriormente descrito, que podemos compreender a obra e a pol‡tica do monarca

Sisebuto. Como jŠ mencionamos no primeiro cap‡tulo, a pol‡tica de Sisebuto de combate ao

juda‡smo ‰ uma das mais contundentes da hist•ria do reino visigodo.35 O rei tamb‰m escreveu

30
Nƒo hŠ evid€ncias, entretanto, de que este monarca empreendeu uma pol‡tica pr•-ariana. GARCIA MORENO,
L. A. op. cit.. p. 145.
31
“Vir quidem strenuus in armorum arte, sed tamen expers victoriae. [...]Hic in vita plurima illicita fecit, in
morte autem, quia gladio operatus fuerat, gladio periit.”. Cf.: ISIDORO DE SEVILHA. Historia…, op. cit., 58.
32
GARCIA MORENO, L. A. Ibidem.
33
Ibidem. p. 146-147.
34
ISIDORO...Ibidem, 59.
35
CORDERO NAVARRO, Catherine. El problema judio como visi•n del “otro” en el reino visigodo de Toledo.
Revisiones historiogrŠficas. En la España Medieval. v.23. p. 09-40, 2000.

36
cartas em que censura o mau comportamento de bispos,36 além de ter enviado à corte

lombarda, que prosseguia ariana, uma longa admoestação contra a heresia, em que as idéias

de humanitas e christianitas praticamente se fundem.37 Embora este não tenha convocado

nenhum concílio de caráter geral, seu governo e sua obra epistolar e literária evidenciam a

preocupação, por um lado, com o apoio e o reconhecimento da elite episcopal, e, por outro,

em colocar a si mesmo como o defensor da fé cristã e da disciplina eclesiástica, segundo o

ideal de monarca encarnado em Recaredo a partir do III Concílio de Toledo.

Figura 1: Hispania
visigoda na época de
Leovigildo.

36
SISEBUTO. Epístola VI. apud JIMENEZ SANCHEZ, J. A. Un testimonio tardío de ludi theatrales..., op. cit..
p. 372.
37
FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade tardia
ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, jan/dez, 2004. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/.
Acesso em: 08/09/2008.

37
2.2) As relações entre o reino franco e o reino visigodo (século VI-VII)

As relações entre francos e visigodos no século VI também foram influenciadas, direta

ou indiretamente, pelas conseqüências da Batalha de Vouillé, em 507. Este evento é

significativo não apenas porque marca o início da transferência do eixo político visigodo da

Gália para a Hispania, mas também porque várias iniciativas seriam tomadas pelos reis

visigodos em relação aos reis merovíngios nas décadas seguintes, visando firmar laços de

interdependência política e dinástica entre os dois reinos. Tais laços teriam o propósito tanto

de garantir a perpetuação de dados grupos políticos visigodos e francos no poder, como

também de frear o impulso expansionista franco em direção ao território visigodo.

As trocas matrimoniais foram o principal recurso de que as duas monarquias lançaram

mão para fins de aproximação mútua.38 O casamento entre Amalarico(526-531), filho de

Alarico II, e Clotilde, filha do rei merovíngio Clóvis, resultou do ponto de vista diplomático

em um grande fracasso, desencadeando mais uma invasão franca ao invés de evitá-la. 39 Uma

nova tentativa de aproximação ocorre com Atanagildo, que une suas duas filhas, Galsvinta e

Brunequilda, com os reis francos Chilperico da Nêustria e Sigeberto da Austrásia,

respectivamente, na década de 560.40 Nenhum dos dois casamentos tem o resultado esperado:

Galsvinta é encontrada morta pouco tempo depois de seu casamento, em 567, e a atuação que

a rainha Brunequilda passa a ter no cenário franco não seria nem um pouco favorável aos

interesses visigodos.

38
WOOD, Ian. The merovingian kingdoms. Nova York: Longman, 1994. p. 169.
39
Conforme os relatos de Gregório de Tours e Procopio, os constantes maus-tratos que Clotilde sofria por parte
do marido, por ser ela católica e ele ariano, provocaram a ira de seu irmão Childeberto I, que em represália,
invade o reino visigodo, provocando um combate que resultaria na morte de Alarico II em 531. Cf.:
CASTELLANOS, S. Los Godos y la cruz..., op. cit.. p. 78-79.
40
Uma das possíveis finalidades de Atanagildo foi a de se aproximar de Nêustria e Austrásia e, desse modo,
isolar a Burgúndia do rei Gontrão, constante ameaça ao território visigodo na Gália, a Septimania. Cf.: ISLA
FREZ, Amancio. Las relaciones entre el reino visigodo y los reyes merovíngios a finales del siglo VI. En la
España Medieval, Madrid, n.13, p. 11-32, 1990. p. 12.

38
Deve-se destacar aqui o papel desempenhado pelas guerras civis travadas pelos quatro

netos de Cl•vis – Chilperico (N€ustria, 561-584), Cariberto (AquitŒnia, 561-567), Sigeberto

(AustrŠsia, 561-575) e Gontrƒo (BurgŽndia, 561-592) – na defini‚ƒo da conjuntura pol‡tica

franca da segunda metade do s‰culo VI e de princ‡pios do s‰culo VII. Ap•s a morte de

ClotŠrio I (511-561), o reino franco ‰ repartido entre seus quatro filhos ainda vivos, que

passam a lutar entre si com o fim de ampliar os seus pr•prios territ•rios. Marcelo CŒndido da

Silva assinala que as partilhas do reino franco, longe de seguir uma l•gica puramente

patrimonial como defendia a historiografia tradicional, obedeciam a crit‰rios bem objetivos,

tais como, por exemplo, a proporcionalidade do potencial econ•mico/tributŠrio das cidades e

as particularidades pol‡ticas das aristocracias de cada prov‡ncia.41 Chilperico, que embora

tenha tomado posse de Paris, termina por receber o menor dos reinos, inicia uma pol‡tica

externa agressiva em dire‚ƒo aos territ•rios governados pelos seus irmƒos, atitude que, para

Edward James, seria fruto, dentre outros aspectos, da necessidade que o monarca em questƒo

tinha de manter a fidelidade dos guerreiros a ele subordinados e da posi‚ƒo de seu reino,

comprimido entre os outros tr€s e, logo, sem outras possibilidades de expansƒo (vide Figura

2). A morte de Cariberto em 567, e a subseq™ente divisƒo da AquitŒnia entre os seus irmƒos,
42
nƒo encerra o conflito, que se prolongaria at‰ 613, ano em que o filho de Chilperico,

ClotŠrio II, conquista a BurgŽndia, entƒo governada por Brunequilda e seus descendentes, e

unifica todo o Regnum Francorum sob sua autoridade.

• em meio a esses conflitos que devemos situar as alian‚as e conflitos entre francos e

visigodos na segunda metade do s‰culo VI.

41
SILVA, Marcelo CŒndido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. Sƒo Paulo: Alameda, 2008. p. 142-
163.
42
JAMES, Edward. Frankish kings and their subjects. In: _______. The Franks. Nova York: Blackwell, 1988.
p. 169-172.

39
O assassinato de Galsvinta, segundo Greg•rio de Tours,43 teria sido obra de pessoas a

servi‚o de Fredegunda, uma das concubinas de Chilperico que passa ‹ posi‚ƒo de esposa

oficial ap•s o incidente. A primeira conseq™€ncia dentro do reino franco teria sido o aumento

das hostilidades entre Chilperico e Sigeberto – este, casado com a irmƒ de Galsvinta,

Brunequilda.

Liuva e, principalmente, Leovigildo, os reis visigodos que sucedem Atanagildo, morto

em 568, ficam em uma posi‚ƒo delicada: mais do que antes, era agora praticamente

imposs‡vel buscar estabelecer rela‚•es amistosas tanto com a N€ustria quanto com a

AustrŠsia. Em meados da d‰cada de 570, Leovigildo une seu filho mais velho, Hermenegildo,

‹ Ingunda, filha de Brunequilda e irmƒ de Childeberto II, que ‰ elevado ao trono da AustrŠsia

em 575, ap•s o assassinato de seu pai. Na d‰cada de 580, ‹s voltas com a rebeliƒo liderada por

Hermenegildo, Leovigildo planeja unir Recaredo ‹ Rigunta, filha de Chilperico e Fredegunda,

mas o casamento nƒo chega a acontecer, por conta do assassinato do soberano da N€ustria em

584.

AliŠs, uma das motiva‚•es da rebeliƒo de Hermenegildo, no entendimento de

Amancio Isla Frez, seria justamente a aproxima‚ƒo de Leovigildo a Chilperico. Vale lembrar

que a esposa de Leovigildo, a rainha Gosvinta, sendo tamb‰m viŽva de Atanagildo, era mƒe

de Brunequilda e de Galsvinta, esta assassinada na corte da N€ustria. Um dos objetivos que

Leovigildo tinha ao casar-se com a viŽva de seu antecessor era o de conquistar a adesƒo da

aristocracia da B‰tica, prov‡ncia ao sul da Pen‡nsula Ib‰rica, grupo que apoiara fortemente

Atanagildo na sua ascensƒo ao poder. Esta tamb‰m foi a regiƒo que o monarca confiou a

Hermenegildo, ap•s o casamento deste com Ingunda, neta de Gosvinta. Os acordos entre

Leovigildo e Chilperico se deviam a aproxima‚ƒo que se operava na ocasiƒo entre a AustrŠsia

de Childeberto II e Brunequilda e a BurgŽndia de Gontrƒo, que fragilizaria a situa‚ƒo da

43
GREGžRIO DE TOURS. Historia Francorum, IV, 28. apud ISLA FREZ, A. op. cit. p. 12

40
Septimania visigoda. Tais contatos, entretanto, não foram bem-vistos por Gosvinta e seus

aliados, que teriam então instigado Hermenegildo a assumir a posição de rei, em detrimento

do pai, em 578, contando com o apoio de Austrásia, Burgúndia e Bizâncio.44

Ao iniciar-se a década de 580, no entanto, as relações de força no reino franco se

alteram, e o quadro político no reino visigodo se modifica na mesma proporção. A morte de

Chilperico, em 584, e o apoio que Gontrão, temeroso diante da possibilidade de um

fortalecimento excessivo de Childeberto II, dispensa à viúva Fredegunda e a Clotário, na

época com 2 anos de idade, apesar dos protestos de Brunequilda e seu filho, dentre outros

problemas, acabam por colocar Burgúndia e Austrásia em lados opostos novamente. Esses

fatos, somados à falta do apoio das tropas bizantinas, fazem com que Hermenegildo termine

por perder a guerra travada contra Leovigildo e acabe morto, em 585.45 Seu filho Atanagildo,

tomado como uma espécie de refém pelos bizantinos, passa a ser utilizado pelo imperador

para forçar Brunequilda e Childeberto II a apoiar Bizâncio nos conflitos em que o Império se

encontrava envolvido, na Itália.46 Gontrão, a partir de então, inicia uma política dúbia em que

se coloca como firme aliado de Brunequilda e Childeberto II, mas mantendo contatos com a

rainha Fredegunda, que seria a maior inimiga dos dois, por conta de seu suposto envolvimento

nas mortes de Galsvinta e Sigeberto. Após uma nova tentativa de aproximação entre a

monarquia visigoda, já representada por Recaredo, e a Austrásia, os contatos entre o reino

visigodo e o reino franco escasseiam por algum tempo.

A morte de Gontrão, em 592, abre caminho para novas tentativas de pacificação da

fronteira entre os reinos na região próxima aos Pirineus. Na primeira década do século VII, o

monarca visigodo Witerico (603-610) envia sua filha Ermemberga para casar-se com

Teuderico II, neto de Brunequilda e governante formal da Burgúndia. Segundo a Crônica de

44
ISLA FREZ, Amancio. op. cit.. p. 14-24.
45
Santiago Castellanos ressalta que o apoio dispensado por Gontrão a Hermenegildo ainda pautaria por bastante
tempo a argumentação entre os reis de Toledo e o rei da Burgúndia em torno do controle da província
Narbonense/Septimania. Cf.: CASTELLANOS, S. Hagiografia visigoda. Dom•nio Social…, op. cit.. p. 231.
46
ISLA FREZ, A. Op. cit.. p. 25-27.

41
Fredegar, por instiga‚ƒo da av• e da irmƒ, Teuderico acaba devolvendo a princesa ‹ corte

visigoda, retendo consigo o dote trazido por ela.

A oposi‚ƒo da rainha ao matrim•nio, no entendimento de Ian Wood, deveu-se ‹ frŠgil

situa‚ƒo pol‡tica em que ela se encontrava: fortes segmentos das aristocracias de AustrŠsia e

BurgŽndia trabalharam no sentido de reduzir ao m‡nimo a influ€ncia de Brunequilda sobre seu

filho e seus netos – o que fica demonstrado pelo fato de seu filho Childeberto ter sido afastado

dela, ao assumir o trono, logo ap•s a morte do pai (575) e por ela ter sido exilada da AustrŠsia

assim que seu neto Teudeberto alcan‚ou a maioridade, o que teria ocorrido entre 599 e 602.47

A pol‡tica de molde constantiniano adotada pela rainha em rela‚ƒo aos assuntos eclesiŠsticos

certamente desagradou significativa parcela do episcopado da BurgŽndia, tradicionalmente

habituado a uma maior autonomia em rela‚ƒo ao poder r‰gio.48 Nƒo parecia nada conveniente,

entƒo, a presen‚a de uma outra rainha na corte, o que poderia levar a um enfraquecimento

ainda maior da sua posi‚ƒo.49

No lado visigodo, a devolu‚ƒo da princesa obrigou a estrat‰gia diplomŠtica dos reis de

Toledo a se voltar para a N€ustria de ClotŠrio II. Santiago Castellanos menciona o papel do

governador da Narbonense, Bulgar, que intermediava durante do reinado de Gundemaro (610-

612) as rela‚•es entre francos e visigodos e mantinha a corte toledana informada sobre a

movimenta‚ƒo pol‡tico-militar na AustrŠsia e na BurgŽndia governadas pelos dois netos de

Brunequilda os quais, na ocasiƒo, encontravam-se em guerra. Possivelmente, as cartas de

47
WOOD, Ian. Op. cit. p. 127-132. e CASTELLANOS, S. Hagiografia visigoda..., op. cit.. p. 241.
48
A id‰ia de uma tradi‚ƒo de independ€ncia e autonomia do episcopado da BurgŽndia em rela‚ƒo ao poder real ‰
uma das teses defendidas por Marcelo CŒndido da Silva. Este grupo, na interpreta‚ƒo do autor, teria inclusive
influenciado uma rea‚ƒo organizada pelo episcopado franco contra o excesso de interfer€ncia dos monarcas nos
assuntos eclesiŠsticos, a partir da segunda metade do s‰culo VI. Os principais alvos dessa rea‚ƒo seriam o rei
Chilperico da N€ustria e a pr•pria rainha Brunequilda, cujas pol‡ticas seriam orientadas por uma concep‚ƒo de
inspira‚ƒo constantiniana sobre o papel da realeza no interior da Igreja. Cf.: SILVA, Marcelo CŒndido da. Op.
cit. p. 99-100; 117-126.
49
Problemas que nƒo impediram, entretanto, que o papa Greg•rio Magno (540-604) a tivesse entre seus
principais interlocutores no reino franco. WOOD, Ian. Op. cit. p. 130.

42
Bulgar serviram como fonte para a reconstituição que Sisebuto, sucessor imediato de

Gundemaro, faz dos eventos ocorridos na Burgúndia em sua Vita Desiderii.50

Demonstramos assim, a partir dos eventos aqui apresentados, a maneira como as

relações políticas no reino franco e no reino visigodo se entrelaçam principalmente a partir da

segunda metade do século VI até pelo menos 613, ano da derrota da rainha Brunequilda

diante de Clotário II. É no contexto anteriormente descrito que podemos situar a elaboração

de uma narrativa com as características da Vita Desiderii. Tanto a vitória de Clotário II no

reino franco,51 quanto a reorientação política do reino visigodo após a conversão de Recaredo

em 589, marcam o início de um processo de transformação na forma de conceber o exercício

do poder régio, que passaria a estar profundamente marcada pela influência crescente do

episcopado na definição dos deveres e obrigações do monarca.

Figura 2: Reino Franco


nos séculos VI e VII

50
CASTELLANOS, S. Hagiografia visigoda..., op. cit.. p. 243. Referimo-nos, já no capítulo 1, à funcionalidade
que o discurso de Sisebuto adquire no contexto de institucionalização da hegemonia de Clotário II sobre todo o
Regnum francorum, no sentido de sobrepor-se aos grupos que até 613 apoiaram a rainha Brunequilda, e que
poderiam eventualmente originar dissidências nos anos que se seguiriam.
51
SILVA, Marcelo Cândido da. Op. cit. p. 262-272; 285-303.

43
CAPÍTULO 3: A Vita Desiderii

44
3.1) Considerações sobre a teoria política isidoriana

Nesta se‚ƒo do cap‡tulo, teceremos algumas considera‚•es sobre o bispo Isidoro de

Sevilha (570-636), e o papel pol‡tico de sua produ‚ƒo intelectual, que conhece seu auge

durante o reinado de Sisebuto (612-621) e na d‰cada seguinte. Temos como objetivo, dessa

forma, destacar sua rela‚ƒo com o ideal de conduta pol‡tica presente na Vita Desiderii, a cuja

anŠlise nos dedicaremos na se‚ƒo seguinte.

No entendimento de J. Fontaine,1 o bispo Isidoro de Sevilha, um dos principais

ide•logos do reino visigodo, foi um autor que buscou incessantemente conciliar em suas obras

o resgate da tradi‚ƒo intelectual clŠssica com a a‚ƒo pastoral exigida por seu papel como

eminente membro do episcopado. Seus escritos estariam voltados, primeiramente, a um

projeto de reforma da Igreja hispana, projeto que tinha a sua dinŒmica pautada por uma

“busca das origens”, a qual viria a orientar tamb‰m a constru‚ƒo de seu ideŠrio pol‡tico. Sua

teologia moral e espiritual, exposta nos livros II e III das Sententiae, teria sido bastante

influenciada pela leitura de textos escritos pelo papa Greg•rio Magno (540-604), os quais

haviam sido dedicados ao grande amigo deste, Leandro, bispo de Sevilha e irmƒo mais velho

de Isidoro. Assim, Isidoro buscaria estabelecer, por meio de seus textos, uma media‚ƒo entre

os saberes antigos e as demandas culturais, pol‡ticas e intelectuais de uma sociedade latina em

transforma‚ƒo.2

Seu ideŠrio pol‡tico, por sua vez, esteve bastante marcado pela filia‚ƒo para com o

pensamento clŠssico constru‡do sobre os valores caros a civitas Romana. Nutrido por esse

pensamento, Isidoro esbo‚ou algo que se poderia chamar de um “projeto global de sociedade”

para a Hispania romano-visigoda, projeto calcado em quatro princ‡pios: patria Gothorum, rex

1
FONTAINE, Jacques. Isidoro de Sevilla, padre de la cultura europea. In: CANDAU, J. M., GASCž, F.,
RAM˜REZ DE VERGER, A. (eds.). La Conversión de Roma. Cristianismo y Paganismo. Madrid: Ed.
ClŠsicas, 1990. p. 259-286.
2
Ibidem. p. 260-267.

45
rectus, civitas Dei peregrinans (lema agostiniano) e, por fim, romanitas.3 Para Isidoro, o

fundamento do poder r‰gio ‰ a retidƒo, baseada nas virtudes cristƒs, tal com se entende a

partir da cita‚ƒo do prov‰rbio de HorŠcio, nas Etimologias isidorianas: “rex eris si recte

facias, si non facias non eris”4 . Na visƒo de Fontaine, o livro III das Sententiae deve ser lido

como um “programa de responsabiliza‚ƒo” para todas as hierarquias da sociedade, tanto as

clericais quanto as leigas. 5 Desde os seus primeiros escritos at‰ o IV Conc‡lio de Toledo,

presidido pelo hispalense em 633 - tr€s anos antes de sua morte - Isidoro demonstra uma

grande preocupa‚ƒo em assegurar, ideologicamente, o equil‡brio de poderes entre Igreja e

reino, equil‡brio em que o rei teria a fun‚ƒo de fazer cumprir por for‚a os mandamentos que

os sacerdotes nƒo eram capazes de defender por meio de palavras.

Ab‡lio Barbero de Aguilera,6 tratando do conceito isidoriano de tirania, aponta que

Isidoro de Sevilha, filiando-se aos posicionamentos de C‡cero e Agostinho, apresenta a justi‚a

e a piedade como as principais virtudes do bom rei, por oposi‚ƒo ao tirano que oprime o seu

povo.7 O autor discorda de estudiosos, como por exemplo Jos‰ Orlandis, 8 que defendem que a

acep‚ƒo de Isidoro possui da tirania se restringe a reis que ascendem ao trono por vias

ileg‡timas, sem que seja agregado ao conceito qualquer tipo de ju‡zo de valor negativo em

rela‚ƒo ‹ atua‚ƒo do governante.

Barbero de Aguilera destaca ainda que Isidoro, bem como outros bispos no IV

Conc‡lio de Toledo, atua nƒo s• como representante da alta hierarquia eclesiŠstica, mas

tamb‰m como representante da elite hispano-goda e que, portanto, nƒo haveria uma

3
Ibidem. p. 271-272.
4
“•s rei se age retamente, se nƒo age, nƒo o ‰.” Tradu‚ƒo livre.
5
Ibidem. p. 274.
6
BARBERO DE AGUILERA, A. La formaci•n de la doctrina pol‡tica visigoda. La teoria pol‡tica en San Isidoro
y en los concilios. Las bases sociales de la doctrina pol‡tica visigoda. Su significaci•n en la prŠctica. In: ______.
La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo XXI, 1992. p. 16-56.
7
Ibidem. p. 21.
8
Os trabalhos em que Jos‰ Orlandis trata do conceito de tirania no reino visigodo sƒo ORLANDIS, J. Algunas
observaciones en torno a la “tiran‡a” de San Hermenegildo. Temis, Zaragoza, v. 02, 1957. p. 67-75.; e ______.
En torno a la noci•n visigoda de “tiran‡a”. Anuaria de Historia del Derecho Español, v. 29, 1959. p. 05-43.

46
verdadeira dualidade de interesses entre episcopado e aristocracia.9 Desse modo, entende-se

que o discurso isidoriano tanto sobre a inalienabilidade do poder dos monarcas, quanto sobre

os deveres dos mesmos para com os seus sŽditos, refletem os anseios de uma aristocracia

preocupada com a estabilidade pol‡tica do reino, mas tamb‰m em inibir a ado‚ƒo de posturas

“pouco convenientes” por parte dos pr•ximos monarcas. “Reger retamente”, nesse sentido,

significa fundamentalmente agir levando em considera‚ƒo os interesses da alta nobreza do

reino e dos grandes eclesiŠsticos.10

As Sententiae de Isidoro de Sevilha, escritas entre os anos de 604/614,11 correspondem

a um conjunto composto por um total de tr€s livros, em que o bispo reŽne suas concep‚•es a

respeito do dogma e da moral cristƒos. T€m um importante papel na constru‚ƒo do ideal de

realeza cristƒ no reino visigodo,12 principalmente o livro III, no qual Isidoro apresenta

orienta‚•es que deveriam guiar a conduta de todos os setores da sociedade.13 As disposi‚•es

relativas diretamente ao poder pol‡tico se encontram nos cap‡tulos 47 a 51.14 Apresentaremos

aqui alguns pontos contidos nos cap‡tulos 47, 48, 49, 50 e 52 que consideramos significativos

tendo em vista a forma como os mesmos princ‡pios encontram-se expostos na Vita Desiderii

de Sisebuto.

9
BARBERO DE AGUILERA, A. Ibidem. p. 27.
10
Barbero de Aguilera cita diversos exemplos envolvendo reis visigodos derrubados ao longo do s‰culo VII
(desde Suintila a Wamba), e cuja deposi‚ƒo foi justificada sob o pretexto de encerrar com pol‡ticas que
prejudicavam pessoas e bens da alta nobreza e dos bispos mais influentes do reino. Cf. BARBERO DE
AGUILERA, A. Ibidem. p. 43.
11
Segundo data‚ƒo proposta por Jos‰ Carlos Mart‡n. Cf.: MARTIN, Jos‰ Carlos. Une nouvelle ‰dition critique
de la • Vita Desiderii – de Sisebut, accompagn‰e de quelques r‰flexions concernant la date des • Sententiae – et
du • De uiris illustribus – d’Isidore de Seville. Hagiographica, Firenze, v.07. p. 127-180, 2000.
12
O conceito de “realeza cristƒ” de que aqui nos utilizamos ‰ tomado da obra de Marcelo CŒndido da Silva, que
assim o define: “Essa Žltima pode ser definida, de maneira preliminar, como uma forma de governo na qual a
realiza‚ƒo de um objetivo exterior ao mundo, isto ‰, o bem da coletividade entendido como sua salva‚ƒo, ‰
associada ao exerc‡cio do poder pol‡tico supremo, a ponto de se tornar seu principal fundamento.”. Cf.: SILVA,
Marcelo CŒndido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. Sƒo Paulo: Alameda, 2008. p. 40.
13
Embora o autor discorra sobre os deveres dos reis tamb‰m em outras obras, como, por exemplo, as
Etymologiarum ou as atas do IV Conc‡lio de Toledo, de 633, por ele presidido, privilegiaremos as Sententiae em
nossa anŠlise porque ela foi elaborada durante o reinado de Sisebuto, e, ainda de acordo com o supracitado
estudo de Jos‰ Carlos Mart‡n, foi a principal refer€ncia do monarca na reda‚ƒo de sua Vita Desiderii no que se
refere ‹ caracteriza‚ƒo da conduta dos reis.
14
O livro III das Sententiae possui, no total, 62 cap‡tulos contendo prescri‚•es de ordem moral dirigidas a
diversos setores da sociedade e da Igreja.

47
No cap‡tulo XLVII, dedicado aos sŽditos (De subditis), Isidoro apresenta a exist€ncia

de hierarquias na sociedade como obra divina para que “la licencia para obrar mal de los

siervos sea reprimida con el poder de los que dominam”. 15 Mas sem deixar de lembrar que “el

Se’or Žnico igualmente trata a los se’ores que a los siervos”. 16 Coibir o pecado com a for‚a,

se preciso, no entendimento de Isidoro, ‰ a fun‚ƒo primeira do poder r‰gio. Aqui se percebe

que, se por um lado existe a justifica‚ƒo da domina‚ƒo de uma pessoa sobre as outras, por

outro, isto nƒo implica na isen‚ƒo, por parte de servos ou senhores, de obriga‚•es de ordem

moral.

No cap‡tulo XLVIII, dedicado aos prelados (De praelatis), Isidoro ‰ bastante direto

com rela‚ƒo ‹s conseq™€ncias do mau uso do poder. Para ele, bom e Žtil ‰ o poder que vem de

Deus, e ele vem para que o mal seja reprimido e nƒo fomentado pela temeridade.17 Aqui

tamb‰m ele ‰ ainda mais objetivo em rela‚ƒo a um princ‡pio que se tornarŠ conhecido em uma

obra posterior, as Etimologias: “Los reyes se llaman as‡ a recte regendo, y por tanto si obran

rectamente conservan el t‡tulo de Rey, pecando lo pierden.”. Em outras palavras, dignos de

serem chamados de reis seriam aqueles que fossem capazes de melhorar a conduta dos sŽditos

governando bem.18

No cap‡tulo XLIX, dedicado ‹ justi‚a dos pr‡ncipes (De iustitia principum)

Isidoro afirma que os Pr‡ncipes devem se inspirar no exemplo de humildade de Davi, nunca

deixando de reconhecer que ‰ ‹ gra‚a de Deus que ele deve o seu poder, mais do que aos seus

pr•prios m‰ritos.19 Seu governo deveria ser norteado por virtudes como dilig€ncia,

15
Sententiae. 3.47.1: “ut licentia male agendi seruorum potestate dominantium restringatur”. Edi‚ƒo em
castelhano: ISIDORO DE SEVILHA. El libro 2º y 3º de las Sentencias. Trad. D. Juan Oteo Uru’uela,
presb‡tero. Sevilha: Apostolado Mariano, 1991. p. 125.
16
Sent. 3.47.3: “unus enim Dominus aequaliter et dominis fert consultum et seruis”. ISIDORO DE SEVILHA.
Idem.
17
Sent. 3.48.5: “Potestas bona est quando Deo donante est, ut malum timore coerceat, non ut temere malum
committat”. ISIDORO DE SEVILHA. Ibidem. p. 126.
18
Sent. 3.48.7: “Reges a recte agendo uocati sunt, ideoque recte faciendo regis nomen tenetur, peccando
amittitur [...]Recte igitur illi reges uocantur qui tam semetipsos quam subiectos, bene regendo, modificare
nouerunt”. ISIDORO DE SEVILHA. Ibidem. p. 127.
19
Sent. 3.49.1.

48
temperan‚a, humildade, caridade, generosidade, justi‚a, clem€ncia, e bondade, como

percebemos nesta passagem:

“Quien hace recto uso de la potestad regia establece la norma de la justicia mŒs
que con las palabras con los hechos. No se engr•e en la prosperidad, no se turba en
la adversidad, no descansa en sus propias fuerzas y no aparta su corazŽn de Dios:
en la cumbre del poder preside con Œnimo humilde; no ama la iniquidad, no se
abrasa de codicia; de un pobre saca un rico sin defraudar a otro, y lo que por
justicia pod•a exigir de los pueblos, muchas veces condena por misericordia y
clemencia.” (Sentencias, 3.49. p. 128)20

A reafirma‚ƒo da importŒncia da humildade e a id‰ia de que os Pr‡ncipes deveriam se

preocupar menos com demonstra‚•es de poder e superioridade e, ao inv‰s disso, buscar serem

Žteis aos seus sŽditos assim se apresenta:

“En provecho del Gobierno de los pueblos ha dado Dios a los pr•ncipes la dignidad
de jefes y quiso que ellos presidan a los que en el nacer y morir son iguales con
ellos. Luego debe la dignidad de pr•ncipe aprovechar a los pueblos, no
perjudicarles; no oprimirlos dominando, sino procurar por ellos condescendiendo:
de suerte que sea verdaderamente •til la insignia del poder y que se emplee el don
divino para seguridad de los miembros de Cristo. […]” (Sentencias, 3.49. p. 128)21

Na conclusƒo do cap‡tulo, Isidoro acrescenta, ainda, que o Pr‡ncipe deve estar sempre

comprometido com a verdade.

No cap‡tulo L, intitulado “Sobre a paci€ncia dos pr‡ncipes” (De patientia principum)

percebemos a estreita liga‚ƒo que Isidoro estabelece entre a paci€ncia e o exerc‡cio da Justi‚a

pelos reis. O rei deve dissimular os erros dos maus, nƒo por consentir com a maldade, mas

para poder aplicar-lhes a devida puni‚ƒo no momento oportuno. Os crimes de conjura‚ƒo

contra os Pr‡ncipes seriam, por sua vez, uma das maneiras de que Deus lan‚a mƒo para

20
Sent. 3.49.2: “Qui recte utitur regni potestatem, formam iustitiae factis magis quam uerbis instituit. Iste nulla
prosperitate erigitur, nulla aduersitate turbatur, non innititur propriis uiribus, nec a Domino recedit cor eius;
regni fastigium humili praesidet animo, non eum delectat iniquitas, non inflammat cupiditas, sine defraudatione
alicuius ex paupere diuitem facit et, quod iusta potestate a populis extorquere poterat, saepe misericordi
clementia donat”.
21
Sent. 3.49.3: “Dedit Deus principibus praesulatum pro regimine populorum, et illis eos praeesse uoluit cum
quibus una est eis nascendi moriendique conditio. Prodesse ergo debet populis principatus, non nocere, nec
dominando premere, sed condescendendo consulere, ut uere sit utile hoc potestatis insigne, et donum Dei pro
tuitione utantur membrorum Christi [...]”

49
permitir que os monarcas tenham oportunidade de demonstrar a sua clem€ncia.22 Em outras

palavras, o bom monarca se distingue do tirano e do homem comum, especialmente, pela

capacidade de perdoar manifesta‚•es de oposi‚ƒo, ao inv‰s de buscar a vingan‚a. Neste

cap‡tulo, Isidoro tamb‰m aponta para a propensƒo que os reis t€m para o pecado, uma vez

que:

“los pueblos que pecan temen al juez y por las leyes estŒn cohibidos de obrar mal;
pero los Reyes como no est‚n cohibidos por el sŽlo temor de Dios y por el miedo del
infierno, libremente caen en el precipicio y por lo abrupto de la licencia se dejan
deslizar en toda clase de vicios.” (Sentencias. 3.50.4. p. 129)23

O hispalense conclui este cap‡tulo apontando para a influ€ncia que o comportamento

do monarca tem na conduta dos sŽditos, para o bem ou para o mal,24 e afirmando que as penas

devem ser proporcionais aos pecados, e nƒo variar conforme a pessoa, pois “no serŠ desigual

en el suplicio quien no es desigual en el vicio”25 .

O cap‡tulo LII ‰ dedicado aos ju‡zes (De iudicibus). Embora nƒo se refira diretamente

ao monarca, entendemos que alguns elementos complementam a visƒo sobre o exerc‡cio da

justi‚a pelos reis que Isidoro apresenta nos cap‡tulos XLIX e L, como ‰ o caso da condena‚ƒo

dos ju‡zos emitidos por influ€ncia da Ira:

“Algunos cuando empiezan a jugar, se a•ran y convierten la sentencia judicial en un


acto de locura. De ‚stos bien dice un Profeta: y ‚stos convierten el juicio en un
ataque de furor. Pues quien estando airado juzga, muda el juicio en furor, y antes
de conocer la sentencia, ya la profiere.
El furor en un juez no sirve para alcanzar la investigaciŽn de la verdad porque su
mente turbada por la pasiŽn anda lejos de inquirir la justicia.
El juez iracundo no puede examinar plenamente el proceso del juicio, porque con la
niebla del furor no ve. […]” (Sentencias, 3.52.14-16. p. 132-133)26

22
Sent. 3.50.2.
23
Sent. 3.50.4: “Populi enim peccantes iudicem metuunt, et a malo suo legibus coercentur. Reges autem, nisi
solo Dei timore metuque gehennae coerceantur, libere in praeceps proruunt, et per abruptum licentiae in omne
facinus uitiorum labuntur.”
24
Sent. 3.50.7.
25
Sent. 3.50.9: “Cuius peccatum quisque sequitur, necesse est ut eius poenam sequatur. Neque enim erit inpar
supplicio, cuius errore quisque par est ac uitio”. ISIDORO DE SEVILHA. Ibidem. p. 130.
26
Sent. 3.52.14-16: “Quidam, dum iudicare incipiunt, irascuntur, ipsamque iudicii sententiam in insaniam
uertunt. De quibus recte per prophetam dicitur: Qui conuertunt in furorem iudicium. Qui enim iratus iudicat, in

50
Percebemos, assim, que Isidoro de Sevilha opta por uma concep‚ƒo de exerc‡cio da

justi‚a que privilegia a prud€ncia e a clem€ncia, em detrimento da inflexibilidade e da

viol€ncia por parte do soberano.

Ap•s estas considera‚•es sobre a obra isidoriana, passaremos ‹ anŠlise da narrativa

hagiogrŠfica Vita Desiderii, objeto central de nossa pesquisa. Buscaremos principalmente

identificar de que maneira os princ‡pios que Isidoro de Sevilha exp•e em suas Sententiae com

rela‚ƒo ao papel dos pr‡ncipes na manuten‚ƒo da paz, no exerc‡cio da justi‚a e na salva‚ƒo de

seus sŽditos, influenciaram a imagem que Sisebuto constr•i do governo tirŒnico dos

personagens Teuderico e Brunequilda.

3.2) A tirania na Vita vel Passio Sancti Desiderii, de Sisebuto

A hagiografia se define como o conjunto de escritos concernentes aos santos ou ‹

santidade, bem como a Šrea da teologia dedicada ao estudo da santidade – esta conhecida

tamb‰m como hagiologia.27

Os escritos hagiogrŠficos podem pertencer a g€neros literŠrios diversos – narrativas,

serm•es, poemas, ep‡grafes etc. – sendo que o aspecto que os define como textos

propriamente hagiogrŠficos ‰ o prop•sito de perpetuar a mem•ria dos santos e de edificar

moralmente o pŽblico leitor/ouvinte, estimulando os cristƒos a imitar o exemplo dos santos e

mŠrtires. Assim, a literatura hagiogrŠfica constituiu-se em um important‡ssimo ve‡culo de

difusƒo de modelos de conduta cristƒ durante a Antiguidade Tardia e a Idade M‰dia.28

furorem iudicium mutat et ante profert sententiam quam agnoscat./ Furor in iudice inuestigationem ueri non
ualet adtingere, quia mens eius turbata furore ab scrutatione alienatur iustitiae./ Iracundus iudex iudicii examen
plene contuere non ualet quia caligine furoris non uidet.”
27
GOULLET, Monique. Introduction: saints et hagiographie. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et
l’histoire : sources hagiographiques du haut Moyen ‰ge. Paris : Br‰al, 2004. p. 14.
28
VELAZQUEZ, Isabel. op. cit.. p. 23-32.

51
Ela guarda proximidades com vŠrios estilos literŠrios da Roma pagƒ como as

historiae, os paneg‡ricos, e as biografias.29 O historiador Peter Brown aponta que umas das

caracter‡sticas mais peculiares do mundo clŠssico tardio (tamb‰m chamado por ele de

Civilização da Paidéia) ‰ o fato de que a exemplaridade costumava ser buscada muito mais

em indiv‡duos do que em institui‚•es e outras entidades mais gen‰ricas, o que fica

comprovado pela for‚a ret•rica que possu‡a a refer€ncia a her•is, hero‡nas ou a grandes

intelectuais e governantes do passado.30

A recorr€ncia destes t•picos em um grande nŽmero de textos produzidos entre os

s‰culos IV-VIII e, ‹s vezes, tamb‰m em textos posteriores pode ser associada a outro aspecto

salientado por Peter Brown. O autor destaca a “inova‚ƒo” do discurso hagiogrŠfico cristƒo em

rela‚ƒo ao pensamento clŠssico: a santidade, sendo concebida como imitatio Christi e/ou

repraesentatio Christi, difere-se do discurso pagƒo tradicional na medida em que os santos e

mŠrtires cristƒos contemporaneizam os exemplos do passado; em outras palavras, o

santo/mŠrtir ‰ visto e cultuado como o pr•prio Cristo tornado presente por meio da vida de

um fiel.31 Cristo era eterno, o que permitia a ele ser enviado a todas as eras e todos os lugares

por meio de seus eleitos, eles mesmos exemplos da grande potencialidade do primeiro modelo

de humanidade: o Adƒo antes da queda, natureza humana perfeita porque criada “‹ imagem de

Deus”.32 Tal “inova‚ƒo”, entretanto, pode ser relativizada, jŠ que a “antiguidade” permanece

como refer€ncia, comprovando a exist€ncia de simbiose entre a cultura clŠssica e a teologia

judaico-cristƒ.

Os santos sƒo distribu‡dos pelos historiadores entre algumas categorias. A primeira

forma de santidade a ser reconhecida pelas comunidades cristƒs ‰ a dos mártires, que surgem

inicialmente no per‡odo das persegui‚•es aos cristƒos pelo Imp‰rio romano (s‰culos II e III);

29
Ibidem. p. 33-40.
30
BROWN, Peter. The Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations, Berkeley, n.02, 1983. p. 02-03.
31
Ibidem. p. 06-08.
32
Ibidem. p. 07, 19.

52
com o fim da hostilidade oficial, o martírio passa a ser associado a outros tipos de ação

religiosa, como às missões de evangelização ou a conflitos protagonizados por bispos e

líderes laicos.33 É nesta categoria que podemos inserir a Vita Desiderii.

A Vita Desiderii se encontra conservada em seis manuscritos, que se encontram

distribuídos entre diversos arquivos espanhóis, entre os quais o da Biblioteca Nacional, em

Madrid (códices 590, 1346, 13085, 18735/29), o do El Escorial (códice b.III.14), e o da

Biblioteca Capitular de Toledo (códices 27-24). Todos os manuscritos, produzidos ao longo

dos séculos XVI-XIX, têm como base, direta ou indireta, um manuscrito que pertencera ao

famoso códice ovetense, pertencente ao bispo Pelayo, datado do século XII, e atualmente

perdido. O manuscrito do códice ovetense é o mais antigo, até o ponto que conhecemos, que

incluía a Vita Desiderii. Entre as edições existentes, encontramos três, a saber: a de E. Flórez,

de 1751; a de B. Krusch, de 1896; e duas de J. Gil, de 1972 e 1991, respectivamente.34

Em nossa monografia, utilizaremos uma tradução da Vita Desiderii para o castelhano,

elaborada em 1993 pelo professor Dr. José Carlos Martín Iglesias, do Departamento de

Filologia da Universidade de Salamanca. Para observações mais apuradas, contaremos com o

apoio da edição latina presente na Monumenta Germaniae Historica, de B. Krusch.

O texto compõe-se de 22 parágrafos, e contém uma trama que pode ser dividida em

quatro partes.

A primeira (parágrafos 1-3) corresponde à apresentação do santo, suas obras e virtudes

desde a infância prodigiosa até a sua nomeação para a sede de Vienne que, segundo a

narrativa, acontece após apelos da população local.

Do quarto ao nono parágrafo inicia-se a narração das primeiras atribulações porque

passa o santo: o demônio, tendo falhado em dominar Desidério, se lança sobre um

determinado homem, fazendo-o difamar o bispo entre a nobreza. O indivíduo em questão não

33
Ibidem. p. 08-09.
34
MARTIN, José Carlos. Una revisión de la tradición textual de la Vita Desiderii de Sisebuto. Emerita, 64, n.
02, 1996. p. 239-248.

53
‰ nomeado – Sisebuto se refere a ele apenas como pestiferae mentis hominem – mas dŠ-se a

entender que ele seria ligado aos reis Teuderico e Brunequilda.35 O rei ‰ apresentado como

um homem “digno de toda necedad”36 , e sua av•, como “la favorecedora de las peores

prŠcticas, la mŠs ‡ntima amiga de los malvados”37 . Eles instruem uma mulher aristocrata

casada chamada Justa – que apesar do nome, ‰ descrita como tendo um p‰ssimo carŠter – a se

queixar perante um conc‡lio de ter sido violentada por Desid‰rio em dada ocasiƒo. Embora os

presentes nƒo tenham dado cr‰dito ‹ acusa‚ƒo, os presidentes, em virtude de articula‚•es

pr‰vias, acabam por condenar Desid‰rio ao ex‡lio em uma ilha, nƒo localizada na narrativa.

Um bispo chamado Domnolo ‰ designado para substitu‡-lo em Vienne, o qual ‰ apresentado

como um homem tƒo polu‡do por atos abominŠveis quanto Desid‰rio seria abundante em

virtudes.38

Os planos dos inimigos de Desid‰rio nƒo t€m o resultado esperado, a partir do

momento em que o santo, em seu local de ex‡lio, realiza numerosos milagres de cura.39 As

not‡cias que recebem sobre os milagres realizados pelo santo, provas de seu favorecimento

por Deus, fazem com que Teuderico e Brunequilda fiquem tomados de pavor, mais ainda

depois que o rei v€ seu protegido ser morto e despeda‚ado por uma turba de burgŽndios

indignados com a sua sede de riqueza e suas calŽnias,40 e que Justa morre depois de ser

35
Jos‰ C. Mart‡n fornece vŠrias indica‚•es de que o personagem em questƒo ‰ fict‡cio, mas inspirado em dois
personagens reais, a saber, o aristocrata Protadius – que Fredegar apresentaria em sua cr•nica como um amante
de Brunequilda – e o bispo Aridius de Lyon – tamb‰m segundo Fredegar, um inimigo pol‡tico de Desid‰rio e
principal responsŠvel pela condena‚ƒo do prelado de Vienne ao ex‡lio, e que ainda se encontrava vivo em 613.
Mart‡n aponta para a grande probabilidade de o personagem an•nimo da Vita Desiderii ter sido constru‡do a
partir de uma mescla entre eventos selecionados das biografias de Protadius e Aridius. Teria sido esse o modo
encontrado por Sisebuto para ater-se minimamente aos fatos e garantir aos leitores e ouvintes de sua hagiografia,
para fins de exemplifica‚ƒo, que todos os perseguidores do santo foram devidamente punidos pela justi‚a divina.
Cf.: MARTIN, Jos‰ Carlos. Qvendam pestiferae mentis hominem, un personaje sin nombre de la Vita Desiderii.
In: PEREZ GONZALEZ, Maurilio (org). In: I CONGRESO NACIONAL DE LATIN MEDIEVAL. Actas….
Leon: Universidad de Leon, 1993. p. 307-313.
36
VD, 4.14: “totius hominem stultitiae dignum”. Edi‚ƒo em castelhano: SISEBUTO DE TOLEDO. Vida y
pasi•n de San Desid‰rio. Trad. Jos‰ Carlos Mart‡n. In: CORDOŸER, Carmen (org.). CD ROM Escritores
Visig„ticos y Moz…rabes Digital, Fundaci•n IgnŠcio Larramendi, s/d. (no prelo)
37
VD, 4.15: “fautricem pessimarum artium, malis amicissimam Bruniguildem”.
38
VD, 4.16-28.
39
VD, 5-7.
40
VD, 8.

54
possu‡da por dem•nios que a fazem confessar seus crimes e predizer a puni‚ƒo que

Brunequilda receberŠ do “onipotente vingador”41 por t€-la arrastado para a perdi‚ƒo.

Nos parŠgrafos 10-14, ‰ apresentado o triunfo de Desid‰rio. Aterrorizados com o fim

que tiveram seus aliados, Teuderico e Brunequilda decidem anular a condena‚ƒo do bispo e

suplicar por perdƒo.42 O santo decide esquecer os males que lhe foram feitos, e retorna a

Vienne, dando fim a uma s‰rie de catŠstrofes naturais que atingiram a cidade durante a sua

aus€ncia, 43 e realizando novos milagres.44

Nos parŠgrafos 15-18, Sisebuto narra todo o processo do mart‡rio de Desid‰rio. Ap•s

terem a sua conduta criticada publicamente por Desid‰rio,45 Teuderico e Brunequilda

ordenam que ele seja apedrejado at‰ a morte.46 Os subordinados responsŠveis pelo

cumprimento das ordens sƒo descritos com termos que os aproximam da barbŠrie.47 A

popula‚ƒo de Vienne protesta contra a condena‚ƒo, mas Desid‰rio se submete, sem oferecer

resist€ncia. Para ele, o mart‡rio seria uma vit•ria.48

Por fim, nos cap‡tulos 19-22, Sisebuto descreve o que ele mesmo apresenta como “la

ruina y la muerte de los depravados”49 . Demonstrando exulta‚ƒo ao receber a not‡cia da morte

de Desid‰rio, Teuderico acaba atingido por uma disenteria e morre50 . O autor da narrativa

omite aqui que pelo menos 5 anos se passam entre a morte de Desid‰rio e a do monarca.

Brunequilda declara guerra a um povo vizinho – refer€ncia aos reinos francos sob dom‡nio de

ClotŠrio II, N€ustria e AustrŠsia – mas Deus envia uma onda de terror ao ex‰rcito que estava a

41
VD, 9. 9: “omnipotens inventrici”
42
VD, 10.
43
VD, 11.
44
VD, 12-14.
45
VD, 15.
46
VD, 16.
47
VD, 18. Sobre o aspecto selvagem com que Sisebuto descreve os homens responsŠveis pela execu‚ƒo do
santo, Frighetto destaca que as caracter‡sticas f‡sicas desses indiv‡duos t€m um sentido espiritual. Cf.:
FRIGHETTO, Renan. Da antig™idade clŠssica ‹ idade m‰dia: a id‰ia da Humanitas na antig™idade tardia
ocidental... op. cit.
48
VD, 17.
49
VD, 19.29-30: “ut exitia perditorum obitumque”
50
VD, 19.

55
servi‚o da rainha, fazendo com que ele fuja do campo de batalha.51 Brunequilda acaba

supliciada e morta pelo ex‰rcito invasor.52 Sisebuto conclui a narra‚ƒo com uma breve

refer€ncia aos milagres que estariam acontecendo em torno das rel‡quias de Desid‰rio.53

Ao longo dos anos 90, o fil•logo Jos‰ Carlos Mart‡n buscou demonstrar em seus

trabalhos a correspond€ncia da Vita Desiderii aos parŒmetros temŠticos e formais do chamado

“g€nero hagiogrŠfico” – como a revelada em fun‚ƒo da omissƒo de dados cronol•gicos e

geogrŠficos exatos, com a finalidade de p•r em relevo o dados propriamente moralizantes na

narrativa.54

Esse autor nos ofereceu contribui‚•es relevantes tamb‰m com rela‚ƒo ‹ identifica‚ƒo

dos paralelismos e eventuais diverg€ncias existentes entre a Vita Desiderii e textos

hagiogrŠficos merov‡ngios elaborados posteriormente, tamb‰m dedicados ‹ trajet•ria do bispo

de Vienne e, principalmente, ‹ enumera‚ƒo de seus milagres p•stumos.55 Nestes trabalhos, o

autor analisa nƒo apenas a influ€ncia que a narrativa escrita pelo monarca visigodo teve em

terreno merov‡ngio e na propaga‚ƒo do culto ao santo em questƒo, como abre caminho para a

problematiza‚ƒo das diversas altera‚•es e o reposicionamento de eventos que podem ser

encontrados ao comparar-se o primeiro texto aos demais. Embora o autor opte por concordar

com Krusch e referir-se ‹s altera‚•es encontradas no texto merov‡ngio Passio Sancti

Desiderii, produzido por volta de 617, como tentativa deliberada de seu autor an•nimo de

ocultar a reprodu‚ƒo do texto de Sisebuto,56 n•s podemos nos interrogar quanto ‹ rela‚ƒo

entre as diferentes formas de organizar os eventos e milagres da vida/morte de Desid‰rio e as

51
VD, 20.
52
VD, 21.
53
VD, 22.
54
MARTIN, Jos‰ Carlos. Verdad hist•rica y verdad hagiogrŠfica em la Vita Desiderii de Sisebuto. Habis,
Sevilla, 29. p. 291-301, 1998; ____. Caracterizacion de personajes y t•picos del g‰nero hagiogrŠfico en la Vita
Desiderii de Sisebuto. Helmantica, 48, v. 145-146. p. 111-133, 1997.
55
MARTIN, Jos‰ Carlos. Una posible dataci•n de la Passio Sancti Desiderii BHL 2149. Evphrosyne, Lisboa,
23. p. 439-456, 1995.
56
MARTIN, Jos‰ Carlos. Un ejemplo de influencia de la Vita Desiderii de Sisebuto en la hagiograf‡a
merovingia. Minerva, Valladolid, 9. p. 165-185, 1995

56
finalidades distintas às quais os dois textos se destinavam, apesar de voltados a um mesmo

objeto.

Em trabalho publicado no ano 2000, Martín destaca a proximidade intelectual entre

Sisebuto e Isidoro de Sevilha, e que além das Sententiae e de outros textos do hispalense,

mais de 80 obras - desde as de Jerônimo, Agostinho e Eusébio de Cesaréia até alguns textos

de Gregório Magno - podem ser incluídas entre o aparato de fontes da Vita Desiderii como

possível origem de muitas passagens da narrativa de Sisebuto, o que nos fornece uma imagem

emblemática da rica cultura de um aristocrata laico no início do século VII na Espanha

visigótica e das obras que poderia conter a biblioteca do palácio de Toledo.57

Nosso objetivo aqui será não apenas identificar as marcas do paralelismo existente

entre Sententiae e a Vita Desiderii, já assinalado pelos estudiosos,58 mas também

problematizá-las, inseri-las no contexto da institucionalização da monarquia visigoda e da sua

aproximação com o episcopado nos anos que se seguem a conversão de Recaredo em 589.

Nossa metodologia, tal como antecipamos no primeiro capítulo, consistirá na análise

semântica do discurso hagiográfico. Definimos nossa temática em torno da tirania porque,

embora Sisebuto não utilize o termo na Vita Desiderii, a idéia da má realeza está presente, e o

governo tirânico também se definiria por características que se opunham àquelas associadas

ao bom governo dos reis. E será a partir dessas características, tal como expostas na Vita

Desiderii, que desenvolveremos nosso estudo.

A análise se estruturará sobre os três princípios da realeza ideal isidoriana que teriam,

segundo a narrativa de Sisebuto, sido negados na atuação política de Teuderico e Brunequilda,

a saber: o dever de garantir a obediência, por parte de seus súditos, às normas cristãs, com

57
MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut...op. cit.. p. 132-134.
O autor apresenta a Vita Desiderii como uma resposta literária de Sisebuto às Sententiae de Isidoro de Sevilha,
tal como o poema astronômico também produzido pelo monarca foi também uma resposta ao De natura rerum,
escrito pelo bispo. Ibidem. p. 140.
58
Além do citado estudo de José C. Martín, temos, por exemplo, Luis A. García Moreno e Santiago Castellanos.
Cf.: GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda..., op. cit.. p. 148. e CASTELLANOS, S. La
Hagiografia visigoda..., op. cit.. p. 251-252.

57
vistas à salvação; o exercício de uma justiça prudente e voltada para a paz; e, por fim, a idéia

de que a própria autoridade dos reis deve ser dotada de virtudes cristãs como bondade e

humildade.

Primeiro princípio: a obrigação dos monarcas em assegurar a boa conduta dos seus súditos

Indicamos na seção anterior que, para Isidoro, o que justifica o domínio dos reis sobre

os seus súditos é a responsabilidade dos primeiros na correção e na condução dos seus

governados para o Bem.

E podemos perceber que um dos primeiros elementos caracterizadores da ação tirânica

de Teuderico e Brunequilda na Vita Desiderii não são os atos perpetrados por eles, mas por

dois subordinados seus: Justa e o aristocrata sem nome.

O homem é influenciado diretamente pelo demônio em suas ações,59 mas em seguida

Sisebuto deixa claro que ele era protegido por Teuderico, apesar de seus crimes contra a

população.60

No caso de Justa, é evidenciada em dois momentos a dependência que seus atos têm

para com a má influência exercida sobre ela pelos monarcas. A primeira no ponto em que ela

é instruída a acusar Desidério perante o concílio:

“•sta, tras ser aleccionada, se quejŽ en un concilio de haber sido violada en una
61
ocasiŽn por el sant•simo Desid‚rio…”

Na segunda em que ela, possuída pelo demônio, denuncia seus próprios crimes e os de

Brunequilda:

59
VD, 4. 9-12.
60
VD, 8. 23.
61
VD, 4. 19-20. “Quae instructa in concilio quaesta est, a beatissimo vi stuprum Desiderio esse sibi quondam
in latum...”. Grifo nosso.

58
“Reconozco la falsedad de la acusaciŽn tramada contra el siervo de Dios, juzgo el
pleito, comprendo tambi‚n, y es de lo que mŒs consciente soy, la pena que se debe
pagar. Que de esto el Omnipotente Vengador haga responsable a Brunequilda, que
lo tramŽ, que estas penas las vuelva contra ella, que sobre ella haga recaer los
sufrimientos del tormento su diestra vengadora, sobre ella cuya vana persuasión
me ha arrastrado a la perdición, un servicio ‚ste digno de ser maldecido hasta la
muerte, una promesa que ha de perecer sin proporcionar ning•n beneficio.”62

O que notamos ‰ que Teuderico e Brunequilda se destacam por, ao inv‰s de conduzir

seus sŽditos para o Bem, proteg€-los e instru‡-los no caminho do Mal.

Entendemos que a afirma‚ƒo de tal princ‡pio por Sisebuto ‰ significativa no sentido de

que ele afirma a importŒncia do papel da monarquia para a salva‚ƒo – ou a perdi‚ƒo – dos

sŽditos. Nƒo podemos deixar de ressaltar novamente que Sisebuto, ao descrever a tirania na

sua hagiografia, busca associar-se ‹ conduta contrŠria.63 Neste caso, o monarca visigodo visa

ratificar a sua posi‚ƒo como aquele que zela pela retidƒo de seus governados.64

Segundo princ‡pio: Justi‚a X Ira

Isidoro de Sevilha, nas suas Sententiae, estabelece uma estreita rela‚ƒo entre o

exerc‡cio da justi‚a, a prŠtica da prud€ncia e a garantia da paz no reino, e assim como entre a

ira dos ju‡zes e a realiza‚ƒo de julgamentos injustos.

62
VD. 9. 8-12. “Cognosco crimen Dei famulum machinatum, cognosco causam, cognosco magis sentien et
debitam poenam. Haec ultor ominipotens inventrici Brunigildi respondeat, has poenas restituat vindex, ac
tormentorum dextera passiones conferat ultrix, cuius persuasio me ad interitum fumea traxit: munus
execrandum ad mortem, promissio ad nullam peritura salutem.”. Grifo nosso.
63
CASTELLANOS, S. La Hagiografia visigoda..., op. cit.. p. 262.
64
Prerrogativa de que o mesmo se utiliza na sua reprimenda ao bispo Eus‰bio de Tarragona em fun‚ƒo do apre‚o
deste pelo teatro. Cf.: JIMENEZ SANCHEZ, J. A. Un testimonio tardio de ludi theatrales..., op. cit.. p. 372.

59
Identificamos que Sisebuto representa esta última relação na sua Vita Desiderii no

momento em que Brunequilda e Teuderico recebem agressivamente as críticas de Desidério à

sua conduta:65

“Pero los vasos de la ira, el pŒbulo de los vicios y el arbusto de la condenaciŽn le


correspondieron con amarguras en pago a su dulzura, con asperezas en pago a su
ternura, en pago a la salud que intentaba otorgarles con ung‘entos mort•feros. Y el
cruel enemigo asediaba el corazŽn de ‚stos y los ten•a cautivos bajo su poder la
astut•sima serpiente, y no pod•an alcanzar libremente por su propio pie el puerto de
la salvaciŽn dado que el funesto saqueador los hab•a sujetado con cadenas
especialmente macizas. Saciados con los mort•feros brebajes de ‚ste, comenzaron a
lanzar iracundos ladridos contra el siervo de Dios y con sonoros t‚rminos a
vomitar amenazantemente inmund•simas palabras.” 66

A conseqüência é a condenação de Desidério à morte por apedrejamento. Podemos

perceber aqui que a atitude de Teuderico e Brunequilda no sentido de rejeitar as exortações do

bispo, e a ira pela qual eles se deixam levar, aparecem como causa da facilidade com que o

demônio controla o seu comportamento dali em diante.

Mais que isso, o que Sisebuto aponta é também para a necessidade de o rei submeter

suas ações ao crivo dos bispos, porque é a autoridade e o conhecimento deles sobre os

assuntos sagrados que a sociedade e, mais particularmente, a comunidade dos fiéis, reconhece

como o que permite definir o que é justo e o que não é.

Deve-se lembrar que o projeto de centralização da autoridade política no reino

visigodo e fortalecimento da monarquia que entra em vigor a partir dos reinados de

Leovigildo e Recaredo encontrou resistências no seio da elite hispano-goda, que ficam

evidenciadas pelas revoltas ocorridas ainda durante o domínio destes monarcas. O peso de tais

resistências levou ao enfraquecimento e à conseqüente deposição de dois governantes e

65
De acordo com a versão merovíngia da vida de Desidério, o tema das críticas do bispo seria o status marital de
Teuderico, que tinha vários filhos de casamentos não-legítimos. Cf.: WOOD, Ian. The merovingian
kingdoms..., op. cit.. p. 132-133.
66
VD, 15. 7-14: “Sed vasa ira fomesque salute medicamenta mortifera, obsidebatque pectus eorum truculentior
hostis, et captiuos in sua dictione tenebat callidissimus serpens; nec poterant liberis gressibus ad portum
pervenire salutis, quos addixerat praedo funestus arctioribus vinclis. Satiati tamen de eius labilibus poculis,
coeperunt contra Dei famulum rabidos latrare sermones et verbis strepentibus comminantes sporcissimas
evomere voces”. Grifo nosso.

60
obrigaram o antecessor imediato de Sisebuto, Gundemaro, a adotar medidas de concilia‚ƒo

com os setores da nobreza e do episcopado receosos em rela‚ƒo aos riscos que um poder

central excessivamente forte poderia representar para a manuten‚ƒo do seu pr•prio status.

A aproxima‚ƒo com o episcopado e a apropria‚ƒo de seu discurso por parte de

Sisebuto pode ser entendida como uma forma encontrada por este monarca de fazer frente aos

anseios de autonomia da aristocracia, que jŠ haviam sido responsŠveis pelas quedas de Liuva

II e Witerico.67 A defesa do ideal isidoriano de justi‚a por Sisebuto corresponderia, pois, ‹

justifica‚ƒo do monop•lio do poder central sobre a manuten‚ƒo da paz e da unidade do reino,

em detrimento da vingan‚a, caracter‡stica da viol€ncia exercida pelos grupos privados.68

Terceiro princ‡pio: Reis conservam o t‡tulo de reis enquanto agem retamente; pecando o

perdem

A retidƒo dos costumes, para Isidoro de Sevilha, ‰ o elemento que diferencia os bons

dos maus reis. O destino inexorŠvel destes Žltimos seria a perda de seu poder.

Assim, o v‡cio e a perversƒo sƒo os elementos que mais constantemente aparecem

associado a Teodorico e Brunequilda, como podemos ver nas passagens seguintes:

“Brunequilda, la favorecedora de las peores prŒcticas, la mŒs •ntima amiga de los


malvados”69

“Y cuando este mismo sant•simo varŽn llegŽ a presencia de los dos malvados, se
apresuran a caer postrados a sus pies, y se esforzaban por ganarse su favor despu‚s
de que tiempo atrŒs lo hab•an desterrado con un castigo basado en falsedades…”70

“Como se ve•a que tanto Teodorico como Brunequilda por sus odiosos vicios no
supon•an un beneficio, sino un perjuicio, y mŒs bien causaban la ruina que
reinaban y, entregŒndose a la ruina del perjurio y faltando con mente sacr•lega a

67
GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda, op. cit. p. 145.
68
GAUVARD, Claude. Justi‚a e Paz. In: LE GOFF, Jacques et SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Sƒo Paulo/Bauru: Imprensa Oficial do Estado/EDUSC, 2002, v. 01. p. 55-56.
69
VD, 4.15: “fautricem pessimarum artium, malis amicissimam Bruniguildem”.
70
VD, 10.23-26: “At ubi vultibus infelicium idem beatissimus patuit, provoluti eius ad vestigia coruunt, sibique
eum propitium nitebantur efficere, quem fraudulenta dudum religarant damnatione...”. Grifo nosso.

61
las promesas de su juramento, llenos de perfidia se dirig•an a su perdiciŽn, y como
no les quedaba ning•n tipo de infamia o crimen por cometer, a causa de estos males
el mŒrtir de Dios, su inspector y pont•fice, seg•n su costumbre, ciertamente, levantŽ
su voz semejante al resonar prof‚tico de una trompeta y se entregŽ por entero a
erradicar las faltas de ‚stos para acercar a Dios a aqu‚llos a los que el diablo
hab•a alejado…”71

“Cuando Teodorico, apartŒndose de Dios, es mŒs, abandonado por Dios, al recibir


la noticia sobre el siervo de Cristo, se mostraba exultante, afectado de disenter•a
perdiŽ su perversísima vida y se ganŽ como amiga perpetua a la muerte.”72

“PerdiŽ todo consuelo la depravada Brunequilda, destinada a la perdiciŽn […]


cuando vagaban sin rumbo ante el rostro de sus enemigos, fue capturada en primer
lugar por sus enemigos la enemiga de la doctrina cristiana y la autora de todo tipo
de crímenes.”73

Percebemos aqui que Sisebuto associa a Teodorico e Brunequilda características que

se opõem diametralmente ao ideal de realeza que Isidoro de Sevilha apresenta em suas

Sententiae. Os reis prejudicam o reino, ao invés de beneficiá-lo; perjuram, ao invés de se

apoiar na verdade; se deixam dominar completamente pela ira, ao invés de agir com a

temperança e a paciência que encontramos nos princípios expostos na obra isidoriana.

A associação de toda atitude dos monarcas ao vício, à perversidade e ao pecado,

reforça a ilegitimidade de suas ações frente ao bispo Desidério e também o seu governo de

modo geral. A morte inesperada de Teuderico e a derrota dos exércitos a serviço de

Brunequilda e sua captura por Clotário II são apresentados como produtos diretos de uma vida

e de um exercício do poder régio alheio aos preceitos cristãos.

Assim, os reis Teodorico e Brunequilda, na Vita Desiderii, são apontados como os

antípodas do ideal isidoriano de realeza e justiça. Eles têm o seu exemplo instrumentalizado

pelo poder político visigodo, representado por Sisebuto, que por meio deles visa expressar, do

ponto de vista ideológico, a consciência das conseqüências do mau exercício da autoridade

71
VD. 15.3-8: “Cum non prodesse, sed obesse, et magis perdere quam regere Theudericus pariter et Brunigildis
vitiis cernerentur infestis, atque labem periurii reserati et foedera sacramenti deserti, mente sacrilega perfidi ad
non esse pertenderent, nec quippiam de flagitiis vel facinus remaneret, his Dei martyr malis inspector et pontifex
more nempe prophetico clangore tubae personuit seseque totum pro depellendis erroris eorum invexit, quatenos
Deo faceret proprios quos fecerat diabulus alienos...”
72
VD. 19.30-33: “Cum Theudericus deserens Deo, immo derelictus a Deo, percepto nuntio, Christi de famulo
exultaret, desinterico morbo correptus, vitam foedissimam perdidit et amicam sibi mortem perpetuam
acquisivit.”. Grifo nosso.
73
VD. 20: “Amissit perdita Brunegildis peritura solatia [...] sic passim ante faciem hostium evagan primum, ab
hostibus hostis regulae christianae et totius criminis artifex capta est.”. Grifo nosso.

62
régia, e assim ratificar a sua fidelidade ao acordo estabelecido, desde 589, com o episcopado e

os vários setores da aristocracia hispano-goda. Ao mesmo tempo, Sisebuto também visa

justificar o predomínio do poder central visigodo sobre o conjunto da sociedade, em

detrimento dos poderes locais, ao assumir diante dessa sociedade a responsabilidade de

manter a paz no reino e garantir a disciplina dos membros da Igreja e a salvação de seus

súditos.

Ao levarmos em consideração que a Gália merovíngia, sob domínio de Clotário II, via

a autoridade monárquica passar por um processo de institucionalização de características

semelhantes, entendemos que a difusão do culto de Desidério pelo monarca franco74 visa

manifestar a adequação dele próprio às expectativas alimentadas pela aristocracia e pelo

episcopado que apoiou o destronamento de Brunequilda e seus netos.

74
WOOD, Ian. op. cit.. p. 133.-136.

63
CAPÍTULO 4: Conclusão

64
Nosso trabalho teve como objetivo maior demonstrar a inserção do ideal de conduta

presente na Vita Desiderii contexto de institucionalização e fortalecimento da monarquia

visigoda.

Nossa primeira hipótese era a de que a Vita Desiderii teria sido elaborada com o

propósito de difundir, por meio da caracterização dos personagens Teuderico e Brunequilda,

um ideal de conduta política calcado na justiça, na paz e na obediência aos preceitos cristãos

por parte dos monarcas. Demonstramos nossa hipótese ao identificarmos os paralelismos

existentes entre a narrativa de Sisebuto e o ideal de realeza presente em uma obra

contemporânea, as Sententiae, de Isidoro de Sevilha, um dos prelados mais influentes do

período, sinal da apropriação por parte do monarca de elementos essenciais da ideologia

episcopal referente ao poder político.

Ao escrever um texto hagiográfico com as características da Vita Desiderii, isto é, um

texto que visava difundir não apenas um modelo de conduta cristã, como é próprio dos textos

hagiográficos, mas um modelo de conduta política cristã, Sisebuto dava continuidade ao

projeto de legitimação e fortalecimento da monarquia visigoda iniciado com Recaredo e que

no início do século VII ganhava novos tons, ao fazer surgir a necessidade de os reis levarem

em consideração os interesses das aristocracias que governava. Recaredo inaugurou no reino

visigodo uma concepção de poder em que os interesses da monarquia e da Igreja se

encontravam totalmente atrelados. Tal atrelamento, entretanto, obrigava o monarca a ter em

vista um dado conjunto de expectativas em relação a sua conduta e a sua forma de conduzir os

assuntos do reino, alimentadas pelo episcopado e pela elite aristocrática na qual o mesmo se

inseria.

Os conflitos entre a monarquia e a aristocracia que eclodem após a deposição do filho

de Recaredo, Liuva II, e marcam os reinados de seus sucessores, Witerico e Gundemaro,

obrigam a concepção do exercício do poder régio que associava a autoridade política à

65
religiosa a incluir princípios que valorizavam o papel do rei na garantia da paz interna do

reino, da justiça, e da salvação de seus súditos, o que dependia da retidão do próprio monarca.

A linha que separava a boa realeza da tirania era determinada, fundamentalmente, pela

capacidade do rei afirmar as suas prerrogativas e, concomitantemente, satisfazer os anseios de

seus súditos. O princípio essencial da teoria isidoriana, que a Vita Desiderii vem ratificar, é o

de que o poder régio deveria ser entendido pelo monarca eleito não como um privilégio, mas

como um serviço a sociedade.

Ao associar a Teuderico e Brunequilda a negação desses valores, Sisebuto contribui

também para o selamento de acordos semelhantes no reino franco unificado sob a autoridade

de Clotário II, onde o reconhecimento e o apoio das aristocracias e do episcopado também se

tornariam progressivamente mais fundamentais para a estabilidade do poder régio. Denegrir a

memória daqueles monarcas aparecia como uma estratégia essencial para impedir que os

grupos que apoiaram aqueles no passado viessem a representar uma ameaça ao pacto recém-

estabelecido.

Tanto no caso visigodo como no franco vemos reis assentarem sobre o apoio da

aristocracia laica e do episcopado as bases de seu poder. A contrapartida de tal opção política

seria a necessidade de se adequar às expectativas desses grupos em relação ao caráter cristão

de sua conduta e modo de governar.

66
ReferŠncias

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