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Há alguns dias, acompanhamos milhares de pessoas revendo o vídeo, gravado por uma câmera

de segurança, da policial Katia da Silva Sastre matando um assaltante prestes a agir em frente a
uma escola. Vimos especialistas discutindo a qualidade da reação da policial. O candidato a
governador de São Paulo, Marcio França, oferecendo uma premiação para ela. Bolsonaro
prestando uma homenagem. A policial participando do Datena. Agora, Kátia anuncia que disputará
o cargo de deputada federal pelo PR.

Inclusive, Kátia já está cotada a ser a campeã de votos deste ano. A lógica que certamente
consumará esta previsão é semelhante àquela que elegera Titica, também o mais votado em 2014.
Para além das pautas que tais candidatos por acaso defendem, o voto dos eleitores acontece pelo
teor de crítica à classe política. Kátia ao menos foi coerente quando disse que sua candidatura se
inspira em Tiririca.

Na Grécia Antiga, os governantes eram determinados de 3 maneiras: eleição, indicação e, olhem


só, via sorteio. Cidadãos comuns subiam assim à cena política pois os gregos acreditavam que uma
dimensão política deve ser exercida por aqueles que não desejam governar. Tiririca e Kátia também
são cidadãos comuns e não projetaram sua inserção na política, mas a situação é bem diferente. A
presença de ambos no Congresso não representa a entrada em cenas de sujeitos que não
precisaram se constituir como sujeitos políticos através da disputa e competição para alcançar o
cargo - este era o objetivo do sorteio na Grécia. Antes, ambos são resultados de uma lógica
perversa, resultados da big brotherização da sociedade em que, alguns segundos de hiper-
exposição, leva alguém a uma fama qualquer e assim candidato nas próximas eleições.

Diferente do que pode ter ocorrido na primeira eleição de Tiririca, em que o voto suportava esta
carga simbólica do protesto contra a classe política, a insistência em figuras como ele significa a
funcionalização deste protesto e neutralização dos seus efeitos simbólicos. Muito embora os efeitos
mais adversos - a eleição de candidatos obscuros pelos votos que um desses outsiders conquista
para o partido - não cessem tão rapidamente, demorando quatro anos para que dispute novamente
a dança das cadeiras..

É muito provável que o rapaz, caso revistasse a bolsa da cabo Kátia, realmente a matasse quando
encontrasse a arma ali e descobrisse era policial. Como também uma criança poderia ser ferida
caso a policial errasse o tiro ou o assaltante conseguisse atirar mesmo depois de baleado. A questão
não é discutir cada uma das opções, nem muito menos contrapô-las a dados estatísticos. A policial
ter reagido não significou que ela errou, nem teria errado caso não tivesse reagido. Situações
delicadas assim exigem uma resposta tão imediata que somente a própria pessoa, envolvida na
imediatez da situação, pode ter qualquer certeza de como agir. A reação que melhor revela a
intensidade incalculável da situação é de uma outra mãe, que ao fugir esquece a filha e volta para
puxá-la.

A candidatura de Kátia pelo PR e o estima que ela tem por Bolsonaro é sintomático. Anteriormente,
o populismo de esquerda unia polos divergentes em torno de pautas unificantes, impulsionando
políticas neste sentido até o ponto em que era impossível seguir adiante sem privilegiar algum dos
lados. Daí a fragilidade dessas políticas populistas, pois seu sistema de alianças impunha limites
imanentes, momento no qual a corda arrebentava para o lado mais fraco (quando seria diferente, o
golpe de 64 apareceu). Neste momento, o populismo de direita une pessoas de diferentes estratos
sociais de dois modos. Primeiro, pelo sentimento de indignação fiador de um desejo de política anti-
sistêmica, fundanda sobre um maniqueísmo entre classe política e os demais cidadãos. Segundo,
pelo ressentimento e espírito de vingança contra as próprias vítimas - ou seja, um ressentimento
que não é das vítimas, elas mesmas, mas um ressentimento daqueles que se indignam com o
tratamento dado à ela. Terceiro, pela ativação do afeto mais sensível das pessoas, o medo, insinsto
na hipótese de que, sem seu autoritarismo no poder, estaremos entregues à barbárie e aos
bandidos.

A combinação desses três fatores explica a ascensão de Kátia. Para estas pessoas, defender
bandido é a quintessência da boa consciência. A direita autoritária e conservadora então se vale do
medo para ridicularizar a boa consciência (“adote um bandido? leva pra casa!” Sheherazade) e,
através do ressentimento contra as supostas vítimas (protegidas direitos humanos, por exemplo),
elevam à condição de norma a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Por isso, a vibração
diante do gesto do policial quando matava o assaltante, a redução do mesmo à condição de mero
objeto e, em nome da política anti-sistêmica, a instrumentalização do fato como meio de angariar
votos ao alavancar Kátia ao posto candidata nas próximas eleições.

É certo que a esquerda também viveu momentos de perversão. Circulamos nas redes com
demasiado afã as imagens de Garotinho sendo levado preso na parte de trás da viatura, por
exemplo. Mas esse afeto é incapaz de mobilizar o nosso campo político. Pelo contrário, o que nos
mobiliza é a imaginação, o sentimento de solidariedade, a certeza de que o fracasso nenhum é
razão suficiente para a abdicação de nossa imaginação política.

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