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HISTORIA jJustiga Criminal’ MARIO SBRICCOLI A hist6ria do “penal” pode ser pensada como a hist6ria de uma longa fuga da vin- ganca. Chave de leitura simplificadora so- mente em aparéncia, se usada como pru- dente indicagdo de método, a perspectiva da fuga da vinganga (vinganga dos indivi- duos, das sociedades, dos Estados) 6 a que melhor revela 0 tortuoso processo civiliza- dor dos sistemas penais, dando sentido 4 sua reconstrucdo histérica e valorizando, de tais sistemas, a fungao de defesa juridica das pessoas, dos bens, das sociedades. Do mesmo modo, a histéria do proceso penal pode ser lida como a longa historia do fatigoso advento, cada vez obstaculiza- da nos fatos, de um aparato de protegao e garantias disposto em torno do acusado e de seus direitos. Esta € uma chave que re- mete, também, aos niveis de civilizagao dos ordenamentos punitivos. Enquanto tal, as- sim como a outra, deve ser utilizada com sapiéncia e com uma forte consciéncia do risco teleolégico que esconde. Porque a justiga penal, tomada como o fim onde di- reito e processo se consubstanciam, nao é historicamente representavel no esquema de um Constante progresso na direcéo da civi- lidade. Ela conheceu crises e regressdes, assim como fases onde foi submetida a es- tratégias tiranicas e a projetos de dominio politico. E pode voltar a conhecer-Ihes ain- da. Porque reaparecem, tenazmente, tam- bém nas sociedades modernas, a vontade de fazer dela um obtuso’ meio repressivo, ou a pretensdo de transformi-la em oca- sif'o de impunidade privilegiada. 1. A justica penal negociada Na primeira fase da experiéncia citadi- na medieval, entre os séculos XI e XIil, em rela a crimes de algum relevo, a vin- ganga da vitima, ou do seu entourage, é um direito. Como tal, ela acaba por absor- ver uma quota relevante da justia pratica- da: no se trata, entdo, de reprovaveis pre- tensdes privadas, nem mesmo de um ex- cesso tolerado, mas, ao contrario, de um modo reconhecido para restabelecer equi- libris violados, para conseguir um ressar- cimento e obter satisfagdo. Um meio ordi- nario de justica, entéio, que possui eviden- tes origens germanicas, se radicou nas men- talidades e no costume, e que repousa so- bre a convicgao de que os crimes que atin- gem as pessoas — na vida, na incolumidade, nos bens, na honra -- so assuntos priva- dos, a serem tratados entre os interessados, envalvendo familias e amigos, se necessi- rio, mas no os poderes piiblicos. Ou, ao menos, néo necessariamente. Motor e finalidade da vinganga € a sa- tisfagdo, coeficiente estratégico do penal nas suas origens. Mas a salisfacdo — com- plexo conjunto de elementos morais e materiais — parece estar, paradoxalmente, nas origens da prépria crise tardo-medic- val da vinganca, como pratica ordindria de justica. Diferentemente da faida, que, ritualizando e circunscrevendo o uso da violencia, cumpre uma de suas fungées de longa duragio no govemo das hostilidades persistentes, a vinganga nao & uma pratica privada de inconvenientes para a vida as- sociada (induz a desordens, faz pouco caso das normas, elude poderes, desvaloriza autoridades): os poderes publicos a com- baterao com dissuasdes e proibigées, ori- entando os cidaddos a modos de obtengaéo da satisfagdo diferentes daquele simplifi- cado e arriscado, que se resolve no fazer ao outro aquilo que ele fez a ti. Mediado- res € pacificadores so mobilizados para que a laceragao induzida por um delito venha sanada com reintegragées e ressarci mentos, com trocas, indenizagdes e recom- pensas. A negociagéo, porém, nao exclui absolutamente o recurso ao juiz: porque, se é verdade que somente a punigado do culpado nfo basta para a satisfag&o do ofen- dido, & verdade também que da abertura de um proceso ptiblico ele poderd tirar uma certa forga de negociagao, a investir na negociacao “privada”, que é aquela que conta. Uma vez alcangado 0 acordo, o pro- cesso podera sempre ser interrompido. A ideia de que 0 delito é, em primeiro lugar, uma ofensa (injuria) que importa an- tes reparar do que punir, que a reparagdo consiste na satisfacdo e que a satisfacdo deve passar por uma negociacdo, esta solidamen- fe instalada na cultura daquelas primeiras comunidades citadinas e condiciona de maneira constitutiva a sua concepgao de 460 justiga, Uma concepgao que funda a justi- Ga sobre 0 pertencimento e sobre a prote- ¢40, “teservando-a" aos membros da co- munidade, sujeitos reconheciveis, e, en- quanto tais, garantidos. Os cidaddos, fos- sem eles os tltimos por condigao e classe, gozam de uma forma de tutela ou “salva- guarda” que faz da justica (negociada) co- munitaria um assunto de coassociados ¢ que opera, por assim, dizer, embaixo. Ela exclui 0s forasteiros, os vagabundos, os sans aveu, e todos aqueles que, mesmo mem- bros da comunidade, foram separados dela por terem sido colocados contra ela (ban- didos, latrones, incendiarios, delinquentes habituais, inner foes, mas também distur- bers tidos como incorrigiveis ou desviantes considerados perigosos): esses sto intracta~ biles, e por isso submetidos a procedimen- tos piiblicos sumérios, frequentemente ex- peditos, finalizados com a pena e ditados por um espirito de eliminacao. £ outra ideia de justiga: aquela que combate o crime do alto, usando aparatos e buscando obedién- cia, aquela que assegura a vinganca pabli- ca e pune para retribuir, mas também para dissuadir, com a inexorabilidade e exem- plaridade da pena; que nao esta na lagica da reparacao tratada em relagio a ofensa, mas na da repressdo unilateral da violagdo e da remogao do perigo. A justiga negociada repousa sobre o con- senso, antes e mais do que sobre a certeza. Somente I4 onde a aprovacéo da comuni- dade é presumida, se da preeminéncia a certeza: 6 assim para as acées criminais de quem nao tem protegdo ou € tide como incorrigivel, e 6 assim para os crimes sem vitima, que compreendem muitos crimina enormia como a heresia, a apostasia, 0 sa- crilégio, a lesa-majestade nas suas nume- rosas manifestacSes ou as praticas sexuais consensuais reunidas sob o nomen generale de crimen sodomiticum. Aqui a resposta repressiva se declara inexoravel, néo admi- te negociagio, nao da subterfagio, nem concede garantia. Digo “se declara” por- que os documentos que encontramos nos arquivos nos mostram que, na presenga de. protagonistas de estatura adequada, as so- lugées negociadas encontram, frequente- mente, uma janela por onde voltar: em particular naquilo que diz respeito a efetiva execucao das penas, ainda assim irrogadas, Pertencimento, protecio, consenso e, acrescento, oralidade, remetem ao carater comunitario da justiga negociada. E aque- la parcela de negociacao ou consensual que a justiga penal conservaré em seguida re- pousar constantemente sobre o principio da comunidade, deixando em poder das jurisdigdes focais os conflitos entre vizinhos que assumem a forma penal. Mas as transformagées constitucionais nao deixam de se refletir no carater do pe- nal, determinando-lhe modificagées. A ob- servacio dos pactos constitucionais das for- magées politicas tem fundamental impor- tancia no estudo do penal, porque ele ten- de a conformar-se naturalmente as légicas constitucionais dos poderes que o expri- mem. E entdo, é indubitavel que entre os séculos XII e XV uma transformacao radi- cal investiu 0 sistema citadino italiano, le- vando-o de uma fase “comunitaria”, gerida com regras consuetudinarias, a uma “auto- ritaria”, dominada por partidos e assemblei- as, que vai desaguar nos regimes senhori- ais e depois em Estados territoriais estrutu- rados, atentos a garantir para si formas efi- cazes de jurisdigdo. Novas formas de go- verno se impdem, mudando totalmente a relagéo entre senhores e stiditos, entre di- reito e poder. Tudo isso induz progressiva- mente a ajustes no regime punitivo, que inicia justamente a partir do enfraquecimen- to da autonomia da fungao de justiga e do questionamento do seu carater negociado. A vinganga, praticada nas origens como um direito, entraré em conflito com a légi- 461 ca constitucional da Comuna madura, mas salvaré o seu niicleo distintivo (a satisfa- ao} conferindo-lhe a negociagdo e enrai- zando, por assim dizer, 0 seu espjrito na esséncia profunda do penal histérico; do mesmo modo, a justica negociada se tor- nar cada vez mais incompativel com as ordens constitucionais dos regimes centra- listas nascidds da crise das cidades. Ela, preservaré o seu nicleo distintivo escon- dendo-o nas praticas que presidiam o novo modo de fazer justiga, enquanto o seu es- pirito continuard a condicionar os sistemas penais, até o fim dos antigos regimes, 2. A justica hegeménica de aparato® Um novo modo de fazer justiga. Entre o fim do século XIII e os inicios do século XIV imprime-se ao penal um forte carater de publicizagdo. Os governos citadinos se dao conta de que a justiga penal é um decisivo meio de governo e que néo ha sentido deix4-la somente a iniciativa das vitimas. Os juizes dos podesta comegam a agir de oficio na persecucao de todos os delitos de qualquer relevancia. Fazem inquisicdes gerais, indagam em vastos rai- os para descobrir se foram cometidos cri- mes; encorajam as acusaces para que os delitos no fiquem impunes; abrem pro- cessos depois de dentncias ¢ os levam a cabo, condenando o culpado, mesmo quando a vitima, satisfeita negocial- mente, se “repacificou” com ele e nao tem mais nenhum interesse no praces- so. Incidem, portanto, de modo decisi- vo sobre a praxis de transacao e acomo- dacao, desacreditando o seu fundamen- to consuetudindrio, enquanto alguns ju- ristas*, sensiveis as renovadas légicas constitucionais, inauguram uma critica “cultural”, que opde a desordem da au- tonomia comunitaria uma ordem nova feita de normas, de interesse geral, de paz publica e de justiga distributiva. Impde-se o principio no qual quem co- mete um delito lesa a sua vitima, mas ofen- de também a respublica, a qual temo di- reito de obter satisfagao infligindo uma pena.’ E para levar a cabo tal principio, ao juiz outorgarn-se afiados instrumentos bas- janie penetrantes: vigorosos meios de in- terrogatéria (incluindo o uso da tortura) e poderes “arbitrrios” (isto é, conferidos com a concessdo de um arbitrium, entendido coma um poder vasto mas regulado} no que tange as acusagdes a mover, ao modo de proceder, 4 coleta das provas e a pena apli- cavel. A partir desses elementos nasce um processo, que, por comodidade, chamamos inquisitério, destinado a conotar a propria ideia de justiga por um longuissimo tempo, que chega praticamente até nés. © novo modo de fazer justiga assume rapidamente tracos hegeménicos, Reduz enormemente os espacos da riegociagéo em matéria penal, impondo como principio a oficiosidade da acao ptiblica, a indisponibi- lidade do processo ea sua diregao conferida ao juiz; enfraquece o papel da mediagao social na solucao dos conflitos nascidos de crimes, porque impée a ideia de que nado ha justica sem a puni¢ao do culpado. En- fim, promove um madelo processual (que recolhe as provas através de inquisitio) que marginaliza progressivamente o tipo proces- sual acusatério (jugar ideal da mediagao ¢ da justica negociada, aberta 8 querela, ge- rida pelas partes, decidida por um juiz ter- ceiro que nado tem poderes de investiga- Gio), reduzindo-o A negociacio de crimes menores, a conflitos locais, as justicas bai- xas e periféricas. A hegemonia que a justiga penal “auto- ritdria” consegue sobre a justica “consuetu- dindria e estiputativa” se favorece (mas po- der-se-ia dizer que deriva desta) das trans- formagées que investiram as ordens consti- tucionais dos Estados da primeira Idade Moderna. Dirigida em primeiro lugar a re- 462 pressao, ela 6 fundada sobre a submissao, regulada por normas fegistativas e doutri-~ nais, administrada por aparatos cada vez mais articulados e difusos, progressivamente formalizadas num ambito onde domina a escritura. A justica que indico como hegeménica* se orienta sobre quatro pressupostos técni- cos: a tei, a agao, a prova, a pena. Os juris- tas compSem estes pressupostos nas practi- cae, realizando um intrincado mas enge- nhoso sistema, til para os juizes e produ- tor, aa mesmo tempo, de um direito penal novo. Por tiltimo, os aparatos, produzidos pelos Estados para administrar pessoas, re- cursos, relagSes, e, portanto, justica, sero, juntos, o contexto forte da justica hegend- nica € um vetor dessa hegemonia. 2.1A fei Bem se compreende como a lei (designo com este termo equivoco as normas postas por uma autoridade) constitua o fundamento primario para uma justiga que, cuidando menos do consenso, privilegia a certeza. Efa tem o cardter de evidéncia, garante fir- meza ¢ possui o vigor necess4rio para con- seguir a obediéncia. A diccgao da lei nao é passivel de negociagSo: pode ser ignorada, élidida ou evitada, mas representa um ele- mento de qualquer forma antag6nico a {6- gica do negociado. Ha que se falar que, por um longo tem- po, a “legislacao” restara esparsa e setori- al: até o fim do século XV, oscilara entre raras constituicées imperiais e decretais pontificias, estatutos, ordenagées, provi- sdes, capitdlias, bandos, destinados a co- brir pequenas reas do direito penal subs- tancial e zonas apenas um pouco mais ge~ tais do processual. No mais, também la onde sera organicamente e intencionalmen- te produzida, nado se impord tio facilmente nos termos nos quais nds pensamos uma lei © 0 seu vigor. Permanecera subordinada a “justia”, atributo do poder do principe, e se imiscuira nas praticas dos tribunais, pri- meiro desfiada e depois “digerida” dentro da légica anti-imperativista do direito co- mum. No panorama normativo emerge, entéo, o trabalho da doutrina. Os juristas filtram, interpretando-a e organizando-aem. sistema, as normas produzidas pelas auto- ridades politicas, e, no entanto, aproveitan- do muito do direito romano, produzem outras, muito mais numerosas, extensas € organicas, que se voltam aos juizes, com o efeito de disciplinar e orientar a pratica da justiga. O seu prestigio assegura a esta ope- ragdo completamente cultural (mas com extraordinarios efeitos politicos) sucesso e duragao, enquanto a sua adeséio as logicas constitucionais e politicas dos ordenamen- tos nos quais operam garante aos gover- nantes coeréncia de entendimentos e orga- nicidade nos projetos. 2.2 A agio ea prova Sao 0s dois pilares do pracesso ptiblico de carter inquisitivo, substancia da justiga de tipo hegemsnico. {4 alertei que os tipos processuais ditos “acusatérios” e “inquisi- torios” correspondem substancialmente a duas maneiras diferentes de recolher a pro- va. As suas estruturas distintas, os meios diferentes de que so dotados, o poder que t8m de determinar, cada uma seu modo, a propria natureza da justica praticada repou- sam sobre 0 diferente método empregado para alcangar a prova. Do mesmo modo, a acdo (privada e discricionaria, ou piblicae obrigatoria) orienta para diferentes formas processuais a que se podem dar inicio. A justica de tipo hegemonico se vale de um processo prevalentemente por agao pdbli- ca (com © tempo cada vez mais invasivo), em que a Coleta da prova é confiada ao poder de investigagdo do juiz e é baseada num amplo ieque de meios intrusivos & coercitivos, contra os quais parece fragil 463 querer opor a precaria disponibilidade dos débeis meios de defesa 4 disposicio do acusado. 2.3 Apena A justiga hegeménica se afirma gragas a um aparato penal e processual orientado principalmente a irrogacdo da pena. Norma, ag4o, processo padronizado, coleta de provas convergem para um mes- mo ponto: colocar 0 juiz em condigées de punir aqueles que provocaram um dano com dolo. A pena assume, nesse quadro, uma centralidade especial: é signum imperi seu potestatis, dispositivo de justiga, meio. de exemplo e dissuasao, objeto e ocasiao de arbitrium, expediente retributivo, mas também lugar e ocasido para o resgate da dimens&o “negociada” do juizo, fundada sobre o costume, sobre a equidade, sobre a misericérdia. O seu temperamento tem viva a imagem do bonus iudex ¢ introduz na justica praticada elementos sofisticados de valoragdo penal: a responsabilidade penal, aculpabilidade, 0 elemento psicolégico, as circunstancias encontram o seu lugar na elaboracao de uma doutrina da dosimetria da pena, que tem larga parte na elabora- cdo das practicae. 2.4 Os aparatos A justica assim construida e praticada desenvolve uma inevitavel fungao de “mo- delo” e gradualmente invade estilos e mo- dos da justica negociada tradicional, que, com 0 tempo, ganha as cores, caracteristi- cas ¢ formas da justiga hegeménica, até ser de fato absorvida na sua tipologia. A pré- pria ideia de justica sofre uma torsao rele- vante (do distributivo ao retributive, do con- senso & imposicéo, da negociagao possivel repressdo inevitével), porque a natureza dos poderes hegemdnicos implica um des- locamento de todos os pontos de referén- cia da periferia para o centro, de baixo ao alto, do vinculo horizontal a sujeicao ver- tical, da praxis relacional como contexto do juizo ao aparato como matriz dele. A justiga entendida como modo de re- solver contflitos (também de carater penal) com praticas compartilhadas, dentro de lé- gicas comunilarias e sobre o principio da compensacdo, mostra abertamente o seu lugar secundario com respeito as exigénci- as dos novos sistemas de poder. Em termos fato sensu constitucionais, a verticalizagao dos processos de poder em que pouco a pouco investem os Estados da Idade Mo- derna, e a produgdo normativa que se liga a esta, tornam-se fontes necessdrias de um sistema judiciério modelado sobre os tra- cos do penal hegemdnico. Segue-se, assim, a gradual instauracao, nos Estados nacionais ¢ em alguns dos anti- gos Estados italianos, de uma justica funda- da sobre ordenagées (0 advento da profis- sionalizaco, um inicio de burocratizacéo ea ideia de controlar 9 territ6rio junto com 05 juizes), hierarquizada, com centros do- minantes e periferias delegadas, confiada a tribunais supremos que exercitam fungées de apelo e difundindo os argumentos de suas decis6es, promovem a integracao das poli- ticas judiciérias, a uniformidade dos estilos ea progressiva homologagdo das praticas consuetudinarias locais, Vale a pena repetir que, apesar de tudo, somente uma pequena parte da cultura da -composigao morrera para sempre, nem se- cardo de uma s6 vez as raizes da vinganga. Ainda em pleno século XVI florescem as negociagées de paz, as tréguas e as con- cérdias, a criminalidade baixa continua quase inteiramente apandgio de procedi- mentos fundados na accusatio, a composi- Gao extrajudicial mantémo seu espaco. A atitude de negociagao e a ideia de represd- lia sero banidas do campo penal somente 464 com a chegada das codificacées, depois da grande virada histérica da Revolugdo Francesa: mas também o absolutismo dos codigos devera prestar contas com a longa duracao e adaptar o seu passo aquele, mui- to mais lento, da cultura dos povos e das pessoas. Pequena, eu dizia, no curso dos antigos regimes, a parte de cultura da composi¢ao que se perdera. O gross permanecer4, ain- da que enfraquecido por uma progressiva marginalizacao, e flanqueara a justiga he- gemonica de aparato mantendo um grau quantitativo de todo respeito. F ndo so. En- tre os dois niveis parece realizar-se uma yerdadeira osmose de estilos de conduta, no sentido de que se a cultura da negocia- 4a sofre a hegemonia da justiga de apara- to e a essa imperceptivelmente se confor- ma, essa Gltima termina por adotar mais de uma das caracteristicas da primeira. Fm particular, a propensdo a acomodagio pa- rece abandonar a fase de abertura do pro- cesso e do seu desenvolvimento, para refu- giar-se no momento de execucdo penal. Sao a sentenca emanada e a pena estabelecida que reabrem a bargaining, segundo uma logica que € perfeitamente simile aquela que inspirava a justica negociada d’antan: voltam 4 cena novamente os niveis de integracdo e protecio, o intuitus personae, a mediagao dos poderosos, o papel da co- munidade, a influéncia da Igreja, os recur- 508 utilizAveis e, por que nao, o arbitrio de quem tem o poder de decidir’ . 3. As “practicae criminales” e a autonomia do direito penal As practicae criminales séo o pilar dou- trinal da justica de aparato ¢ a razio “nao Gltima” da sua hegemonia.* Asseverativa e prescritiva ao mesmo tempo, procedem sobre um duplo registro: legitimar com a consuetudo practicandi 0 procedimento fal como ele é, ¢ ditar ao juiz o que ele deve decidir — sobre punir ou nao, sobre como e quanto — defronte 4 infinita casuistica que se pode apresentar: crime por crim hipétese por hipdtese, circunstdncia por cir- cunstancia, sem deixar variantes, teorias alheias, argumentos contrarios a evitar, pre- caugées a tomar e limites, sobretudo limi- tes, a ndo transpassar. Com as practicae 0 processo é governado, ¢ delas pouco a pou- co se desenvolvera, partindo da realidade dos fatos, um direito penal atualizado, tec- nicamente mais rigoroso e, sobretudo, autd- nomo. A realidade dos fatos. Ippolito Marsili ovaciona a practica, “rerum magistra”, fonte da vera interpretatio, porque o uso pratico, junto com a experigncia, torna expedito ¢ frutifero o trabalho de quem tem o encargo de administrar os interesses piblicos dos diversos principes e lugares. “Parum prodest habere theoricam ipsarum causarum criminalium sine practica”®. O jurista se socorre, entdo, fundindo ciéncia e experi- éncia numa obra Gnica, destinada aos artifices iustitiae, aqueles que “fazem con- cretamente” a justica. Praxis processuais ¢ percursos judiciarios (formae inquisitionis) compdem uma espécie de tessitura sobre a qual se dispde uma trama de figuras delituosas, imbricada com uma espessa rede de casos, tipos e circunstancias; de defini- ¢6es, principios juridicos, maximas e opi- nides comuns, quaestiones et dubia; de tipologias indictarias, modos e graus de pro- va, técnicas de exclusdo, madelos e formu- las de procedimento de interrogatério e sen- tenga. Tudo com o escopo principal de mensurar sobre cada figura particular 0 an, © quomado e o quantum da pena a aplicar. © proprio pilar do proceso é 0 efeito pratico de agées sucessivas que partem da notitia criminis e aproam na sentenga. A Practica prescreve ao juiz de certificar-se, antes de ir adiante, que o delito tenha real- mente acontecido, e depois de prosseguir 46! com as vistorias, coleta de indicios mate- — riais, busca por testemunhas, interrogaté- rios. Depois, uma vez identificado 0 sus- peito, seguirdo a inculpatio, a procura por provas ou indicios a encargo do juiz, a ten- tativa de obter uma confissao :(inclusive através de tortura, se necessdtia e possi- vel), ou de qualquer forma a convictio,'® para depois encerrar com uma sentenca correlata os resultados do processo. H4 que se acrescentar que as practicae ndo se ocu- pam da execucao da pena, campo deixado a esfera administrativa e completamente tomado pela negociacao, O jurista theoricus-practicus, gracas ao juiz que o aplica, produz entio um direito que tem sua origem na pratica e que perpe- tua aquela pratica convertendo-a em tus. juiz que se deixa guiar segue as suas in- dicagées e as estabiliza numa consuetudo iudicandi que se torna logo norma agendi. Daqui, a Practica sucessiva nao fara mais referéncia a certas operacées como aquilo que acontece de facto, quamvis conira ius, mas Aquilo que de iure fieri debet. O penal que se depreende das practicae constitui, entéo, a base de abertura para praxis posteriores, que realizarao ulteriores deslocamentos e ajustes, que, por sua vez, seréo corrigidos e incluidos no sistema de outras practicae. E assim que os juristas governam a formagio e a gestao do penal, afinados com os aparatos, expressao direta das exigéncias politicas dos 6rgdos citadi- nos e dos Estados. A finalidade politica da justiga se entrelaga com as teorizagées dos juristas, que na persecucdo desse fim con- ferem racionalidade, base técnica, credibi- lidade e consenso, além do necessario las- tro de legitimidade. A intervencéo do juris- ta tem, entdo, ao menos duas valéncias. Por um lado, racionaliza, governa, corrige, mativa e coloca conforme 0s principios ju- ridicos as praticas de justiga dos aparatos, com isso desenvolvendo uma fungao de consolidacdo, que 6, ao mesmo tempo, operacao de controle e ocasionalmente de modera¢io; por outro lado, vem constru- indo do interior das practicae, segundo a légica que indiquei e que procurarei escla- recer posteriormente, um direito penal subs- tancial que mostre a regula recti a um po- der de punir naturalmente inclinado ao abu- so. Um direito que se apresente imediata- mente como critério de referéncia, para depois se constituir como conjunto de prin- Cipios gerais que sejam moderadores da lei por um lado, disciplina da justiga adminis- trada por outro. Timao, rédea e freio, diri- am aqueles juristas, assim como hoje po- deriamos dizer garantia. As practicae, enquanto “iudicibus male- ficiorum, advocatis vel causadicis, cance- Haris et aliis versantibus in palatio, tironi- bus ac veteranis, perutiles ac necessariae’”" , sio sim orientadas ao proceso (seria me- Jhor dizer “pensada para os juizes”), mas incubam principios ¢ dogmatica no campo do direito penal substancial muito mais do que no que tange ao processo. Porque do ponto de vista estritamente processual as practicae sio, na realidade, - e paradoxal- mente — pobres. Partem do pressuposto de que 0 juiz “tem poderes”, ou melhor, deve- res, e legam a esta Gnica precondigdo a construcao das figura judicii. De resto, pou- co cuidando dos direitos do acusado, aque- les juristas nfo podiam fazer outra coisa sendo construir uma doutrina processual “reduzida”, quase inteiramente absorta na questao das fimiti (“iudex debet, potest, an debeat, na possit, non debet, nequit”'?). As practicae de maior (lego (a de Giulio Cla- ro, por exemplo, ou a poderosa Praxis ¢ thearica de Prospero Farinaccio") enfren- tam em termos doutrinais — além das ques- tOes comuns a todos, accusatio, denuncia- tio, inquisitio ou as regras da tortura ~, tam- bém alguns nés de natureza estritamente processual (competéncia, recusa, excepti- ones, nulidade), mas 0 empenho na identi- 466 ficagdo do mussen e do sollen se sobrepde a qualquer aprofundamento teérico. Diferente & 0 discurso quanto ao direito substancial, porque grande parte dos posse e dos necesse encontram raramente a sua raz&o em alguma regra processual (6 0 caso da doutrina da prova), mas em um princi- pio de direito penal. O juiz se encontra conduzido pela mao em matéria de respon- sabilidade penal, culpa, imputabilidade e causas de justificacao, de dolo e de culpa, de tentativa, Concurso de pessoas, circuns- tancias, reincidéncia, dosimetria da pena, além de tudo 0 que concerne a individuagao das condutas que integram cada crime e as suas dificeis definigdes. Nessa obra, que ainda continua a construir-se a partir da Pratica, a cognicdo dos principios penais se afina," as nogées vém submetidas a uma crescente racionalizacao, e um principio de sistematicidade comega a mostrar-se na re- flexao de alguns penalistas mais conscien- tes da necessidade de dar autonomia ao direito penal, fazendo da norma substanci- al um prius em relacdo a verificagdo pro- cessual da sua violagao." E, de fato, na inversdo da relagdo entre norma e processo o ponto nadal que cons- titui a fragilidade das practicae e do siste- ma de justiga que elas nutrem, expondo-o as infiltragdes da negociagdo e tornando dificita emerso de um processo penal, por sua vez, auténomo e, nessa medida, mais bem garantido. £ o ponto que vai determi- nar, entre os séculos XVI e XVII, a degene- ragao do hegeménico gerido pelos juizes e centrado no processo como maquina de produzir justiga, manifestagao, entre outras, do poder absoluio do principe. Na nossa perspectiva de modernos, o processo penal é subordinado as normas do direito penal material. Nao se d4 proceso sem violacdo, endo se da violagdo se antes nao estéo bem estabelecidos os principios, os Ambitos, as condigées e os limites da- quilo que {pela lei) é previsto como puni- vel. Isso porque as normas substanciais, se observadas, exaurem em si todo o siste- ma penal: nenhuma violacéo, nenhuma justica “a fazer”. E a légica de uma con- cep¢do imperativista de direito. Mas nao & assim no aparato hegeménico do Anti- go Regime, para quem a justica, se as- sim posso dizer, “preexiste”, e emana do Poder (concepgao absolutista), nao diver- samente daquilo que sucedera a lei na experiéncia dos Estados liberais de direi- to. A maneira “pragmatica” com a qual aquela justica € aplicada implica (e in- duz) uma concepgao sui generis das nor- mas substanciais: nao prioritéria, no pres- suposta, mas enderecadas ao juiz como re- feréncia para juizos interpretativos sobre 0s atos dos justiciaveis, dos quais importa principalmente valorar a pravitas, a nocividade, e 0 grau de desobediéncia que exprimem. 4. O paradigma da infracao p a expansae do penal entre os séculos XVI e XVII Uma nova concepgao do penal, i da h4 muito tempo, mas que amadureceu lentamente, se impée na Italia e em gran- de parte da Europa ao longo de todo o arco do século XVI. As suas consequéncias so- bre as ideologias penais se projetario numa longa duracgaéo que atravessara, inclusive, © divisor de Aguas da Revolugao Francesa. Tai concepgdo repousa sobre o des- locamento da relevancia penal de um ato ou de um comportamento do plano do dano ao da desobediéncia, que corresponde a extens4io do esquema da infracdo politica a toda violacao penal de qualquer relevo. A base dessa concepgio € 0 vinculo sem- pre cada vez mais estreilo que ancora a justica a lei, que cresce na opiniao geral, até fazer-se ideologia e senso comum, se- 467 gundo a qual qualquer violagéo de uma obrigagaéo penal pode ser assimilada a uma perigosa forma de indisciplina. Quando digo que nesta passagem se lé a forma paradigmatica do crime politico, pretendo referir-me a dois aspectos. a) O primeito, te6rico e de fundo, esté na assungao de toda transgressdo penal ao esquema da “ofensa a res publi- ca”, segundo o antigo racioc{nio que servira a Alberto da Gandino para le- gitimar a agio de oficio do juiz “de quolibet mateficio”: 0 poder piblico pune porque ndo pode consentir que se ofenda-o, ainda que o dano atinja em concreto qualquer outro, Consoli- da-se o principio do parere legibus et praeceptis superiorum’®, que passa de preceito moral a obrigagao juridica penalmente sancionada, e se enrafza progressivamente um severo desfavor pela infragao. A simples desobedién- cia a lei penal se toma motivo de pu- nico: algo que parece absolutamen- te dbvio aos nossos othos, mas que ndo era uma novidade pequena, e custou a afirmar-se, no contexto da- quelas sociedades habituadas a uma relagio diferente com a dimenséo normativa e a um outro modo de fa- zer justiga. b) O segundo, por assim dizer histéri- co, repousa sobre o fato de que todos os crimes comuns de qualquer relevan- cia sio tratados num proceso penal que foi pensado e construido, olim, para a persecugio da heterodoxia religiosa e da oposicio politica radical. Esta ca- tacteristica origindria teve consequén- cias enormes sobre a configuragao dos sistemas penais da Idade Moderna: nao somente no que tange a justica pratica~ da, mas também na fisionomia impres- $a a08 tragos normatives do direito pe- nal substancial. Aquele era 0 proces- so pensado para o inimigo. Em ter- mos juridicos, vém dali os enormes poderes inquisitives do juiz e os pre- cérios direitos de defesa dos imputa- dos, 0 exercicio conjunto da fungao investigativa e judicante, o segredo das acusagées e do inquérito, a possibi- lidade de negar a defesa aos acusa- dos (sobre os quais incumbe, con- tudo, a obrigagao de dizer a verda- de), a possibilidade de usar a tortura e excluir a apelagio. Nada surpreendente, entéo, se o empre- go secular daquela ldgica processual, com- binada com o advento de uma legislagao bastante severa (e evasiva em relacdo aos costumes penais estranhos ao “paradigma. da infracao politica"), fara amadurecer a conviccao, primeiro combatida, depois, en- fim, dominante, que “fazer justiga” consis- te em reprimir, que a tarefa dos aparatos judiciarios é “combater 0 crime”, que os criminosos so inimigos e que os Fstados, tendo pretendido o monopélio da justiga penal, tém o dever de “representar” saditos e sociedade no exercicio de uma eficaz vin- ganga contra aqueles. E dbvio que o direito penal substancial nao se furta a essa logica. Tomemos o pe- nal alto, aquele monopolizado pelos apa- ratos, que avocou a sua justiga e submeteu as suas praticas a quase totalidade dos con- flitos de formato penal: 0 que vemos é um sistema no qual a identificacdo entre justi- ae repressio produz um verdadeiro fall out de efeitos secundarios de indubitavel relevo. Indico trés deles: a) A transfusio dos princfpos doutrind- rios elaborados nas practicae em gran- des Leis gerais emanadas por principes, que enrijecem seriamente o sistema de incriminagao e do juizo. Os dois prin- cipais exemplos sio a Constitutio Cri- 468 minalis Carolina, promulgada por Car- los V em 1532 para os territérios do Império, e a Ordonnance Criminelle emanada para a Franga em 1670 por Lufs XIV. Destinada a modificar e tor- nar confidveis as politicas penais atra- vés de uma rigorosa ressisternatizagao do proceso, procurario impor um nove estilo de conduta aos aparelhos de jus- tiga. Ao mesmo tempo em que lembram ‘0 sistema das practicae (primariedade do proceso e “processualidade” do di- reite penal substancial), por outro lado reduzem muito a flexibilidade desse sis- tema, diminuindo, assim, a negoci lidade, subtraindo mais um arbitrium do juiz e, sobretudo, excluindo o re- CUSO aos Costumes Normativos ou pro- cessuais, gracas as quais sobreviviam negociagdes ¢ justicas comunitérias. Explicam-se, assim, as furiosas resistén- cias das populagées e das comunida- des locais ao advento da Carolina e, na Grea francesa, a difusa elusdéo a Ordon- nance Criminelle e, bem antes dela, as Ordonnances di Tours (1493) e Blois (1498) além da de Villers-Cétteret de 1539. As grandes leis vém em procura de certeza e eficdcia e, portanto, im- pdem um processo inquisitério muito penetrante, produzem (e reforgam} apa- ratos, obtém um relevante efeito de ad- moestag’o e terrificagio, reduzem ao minimo a relevancia das justigas comu- nitdrias e das jurisdigdes locais, dio ao hegemdnico uma extraordinaria acele- ragio e mostram com toda a clareza que a furisdictio in poenalibus ¢ intei- ramente do principe. b) O sistema penal se orienta 4 preven- do geral. O complexo das criminali- zagées se alarga, tende a assumir tons pedagégico-moralistas que mal distin- guem o pecado do crime e concorre, assim, para um geral proceso de disci- plinamento da sociedade. Aos mesmos fins contribui o agravamento do siste- ma sancionatério introduzido pelas grandes leis e © persistente uso que se faz do processo como expediente para ‘esmagar os crimes mais graves, ou mais temidos, através de procedimentos ex- peditos, ad modum belli — como se faz na guetta, se dizia —, que assegu- ravam em primeiro lugar, e de qual- quer modo, a punigio dos culpados. Entre os séculos XVI e XVII assiste-se, entdo, a um crescimento da pressio do penal sobre a sociedade e a um surpreendente increment da crimina- lizagao prim4ria’”, Manifestam-se emergéncias inesperadas que fazem a represso penal recair sobre a diver- géncia religiosa ¢ o desvio moral, ¢ a perseguir de maneira organizada su- jeitos e comportamentos borderline, postos num esquema de criminaliza- cio completamente sui generis, espe- cialmente se vistos pelo referencial daquela (nao irracional, nao inconsci- ente} ciéncia juridica. Refiro-me a per- seguico da bruxaria, crimen malefi- ii, sortilegii vel magiae, conduzida, em surpreendente pentiria de diividas, com um refinamento extenuado de ra- cionalidade probatéria (a ponto de chegar 4 prova certa de fatos inexis- tentes), € com um inimagindvel abuso da tortura e da confisséo. Tanto que a historia, que dizem ser astuta, seria refeita, dali h4 nao muito tempo: o nexo de causalidade entre ago e evento faria o seu ingresso na valoragao da responsabilidade penal, a tortura judi- cléria teria logo um descrédito mortal, a confissdo perderia, em relacdo as outras provas, a sua coroa de rainha, ©) Emergem, em termos que podemos chamar de “modemos", as exigencias da ordem publica. O deslocamento de foco do dano a desobediéncia, que con- tamina a resposta penal com a matca 469 da infrago politica, limpa o caminho para a légica da prevengao, com o seu cortejo de suspeitos € prejulgamen- tos. A “pequena legislagio” (éditos, bandos, ordens, notificagées, regula- mentos) torna-se pletérica, invasiva, “disciplinante”. Entre os séculos XVII e XVIII comega a ganhar forma um outro nivel penal, gerido ad arbitrium pelas policias, inspirado no critério da periculosidade, baseado igualmente sobre prejulgamentos e sobre informa- Ges, nada estranho; nos estilos ado- tados, a alguns aspectos do modelo. da Inquisigao romana, sobre o qual vou acenar dentro em pouco. Desti- nado a crescer enormemente como “penal do cotidiano dos pobres”, dara vida a um segundo nivel de legalida- de, subtraido da jurisdigao e por isso provisto de uma especial autonomia: serd um dos héspedes inapresentiveis que sentargo 4 mesa dos futuros Esta- dos liberais de direito. 5. A justica ordindria e 0 modelo da Inquisicao romana Uma atengao ha de ser dada ao modelo processual adotado pela Inquisicéo romana, e, sobretudo, aos modoas (organizacao, con- dutas, astticias) que caracterizaram a sua aco. © processo praticado pela Inquisigéo romana nao é diferente do seu contempo- raneo processo ordinario, comumente uti- lizado para os grandes criminosos nos Esta- dos italianos (¢ nao somente eles). Mes- mas fontes originarias, mesmas regras, mes- ma doutrina de base como referéncia. O rito da Inquisigéo e 0 iudicium publicum ordinario tam em comum as suas longin- quas origens normativas"®, usam as mes- mas regras fundamentais,'? fazem-se gover- nar pela mesma doutrina, que sirva de pro- va 0 fato de que os manuais inquisitoriais, que dirigem a ago de inquisidores e juizes eclesidsticos, sio construidos com as re- correntes fontes de direito comum: juris- tas civilistas e canonistas, direito romano e candnico, as escrituras, alguns tedlogos, exatamente como as practicae criminalis que 0s juizes ordinarios tinham sobre a mesa. O processo inquisitorial € estruturado do mesmo modo que © pro- cesso penal pablico: a mesma agao (movi da por acusagao, dentincia, fama ou notitia criminis), as mesmas regras da inquisitio (geral e especial}, as mesmas praxis e cau- telas para os interrogatérios, as mesmas regras para a tortura, os mesmos critérios para a valorac4o das provas e dos indicios, a mesma relaco entre o processo informa- tivo ¢ a repeticéo dos testemunhos,” 0 mesmo arbitrium concedido ao juiz na irrogagéo da pena: de onde vem a amplissima gama de sancoes figurativas, simbélicas ou alusivas, medicinais, penitenciais ou autenticamente penais que 05 juizes da Inquisic&o aplicam caso a caso. O sistema processual da Inquisigéio mos- tra, todavia, tracos peculiares, nas formali- dades, no estilo de conduta, na organiza- cao do aparato. Alguns desses tragos se apresentam como especificages de incli- nagdes que o processo hegeménico pabli- co da sua parte também conhece. Penso na centralizagao e hierarquizagao da ativida- de judiciaria, que, porém, a Inquisigado re- aliza em escala italiana, produzindo uma “unificagdo” judiciaria que ignora os con- fins das jurisdigées estatais, avoca compe- téncias dessas jurisdicdes ¢ as recompée, prescrevendo aos inquisidores periféricos critérios uniformes e exercitando um con- trole bem organizado, muito atento ¢ efi ente, sobre as suas atividades. Penso na forte legatizacao da a¢ao dos juizes, vinculados ‘a textos normativos certos e direcionados nGo a partir de interpretagdes proprias, mas de um intenso e continuo afinamento das regras, as quais prové a Congregacio do Santo Oficio sobre a base da experiéncia e 470 da casuistica que chega a Roma de toda a Itdlia: o juiz que tem dividas deve dirigir- se aos superiores, com questées escritas, definidas, circunstanciadas. Penso, por Gl- timo, numa certa atengdo ao profissiona- lismo do pessoal judiciario, que transpare- ce nas instancias da Congregacao. Mas a Inquisig&o se caracteriza também por peculiares inflexdes de estilo, e por pra- ticas sui generis, que sio somente suas. Por exemplo, a mobilizagao de sinergias exter- nas ao aparato de justiga, a comecar pelos 6rgios ptiblicos de cada Estado, chamados frequentemente a colaborar, para terminar na espessa rede de religiosos seculares e regulares difusos do modo que conhecemos em todo o pais; além disso, uma estavel linearidade de conduta que a justiga pabli- ca no possui, porque a justiga pablica con- tinua estruturada no pressuposto de que deve articular-se ¢ adaptar-se aos casos, as situagGes, as circunstancias, mesmo quan- do se trata de justiga penal. Nao que a Inquisigdo, eventualmente, n&o faga o mes- mo, mas ela parece fazé-lo no interior de um estatuto de conduta que surte efeitos lineares mesmo na eventual variedade de solugdes adotadas. Para além das aparén- cias, creio que se possa dizer que a Inquisiggo ndo negocia e nao é laxista: as suas “concérdias” € as suas indulgéncias sao ritualizadas, direcionadas aos seus escopos, no extempordneas. A Inquisi¢éo € muito atenta ao rigor das formas e tem, ao mesmo tempo, as calite- las que garantem resultados, e as cautelas que mostram prudéncia com o acusado. Neste espirito era dada grande importancia ao respeito pelos procedimentos, as verbalizacdes (que sejam integrais e escru- pulosas), 4 conservacao dos documentos, 4 formagao de uma acurada rede de arqui- vos. No procedimento informativo se asse- gura o segredo dos movimentos do juiz, dos motivos e das intencdes, para incrementar

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