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ÉTICA E EDUCAÇÃO FISCAL:

Construindo uma ponte para a cidadania no Brasil

Maria do Carmo Martins1

RESUMO

Buscou-se discutir a relação entre a Educação Fiscal e a Ética a partir da análise do contexto
atual buscando encontrar as pontes que inter-relacionam os conceitos filosóficos de Ética com
o modelo de cidadania que a Educação Fiscal pretende estimular ao fomentar a participação
social. Partindo da constatação do individualismo e relativismo que imperam nesses tempos
de pós modernidade e de preponderância dos modelo econômico liberal a questão que se
propõe é como construir uma ponte, por meio da Educação Fiscal no Brasil que ajude a
promover a transformação da sociedade para que saia do individualismo consumista e da
apatia diante das injustiças sociais para uma atitude responsável e comprometida com a
promoção do bem comum.

Palavras-chave: Ética.Educação Fiscal. Cidadania. Normalização – NBR6022

1
Pós-graduanda em Educação Fiscal e Cidadania. Trabalho apresentado na disciplina Ética e Cidadania do
Curso de especialização em Educação Fiscal e Cidadania – ESAF, sob a orientação do Prof. Luís Sérgio de
Oliveira Lopes em Janeiro de 2010.
Email: maria-do-camo.martins@receita.fazenda.gov.br
1 Introdução

A partir da constatação do crescente individualismo que toma conta de nossa

sociedade atual e do contingente humano crescente que se vê excluído do acesso ás conquistas

do progresso humano no campo cultural, científico e tecnológico, uma multidão de famintos

que não têm sequer suas necessidades básicas atendidas o presente trabalho pretende dialogar

com esta realidade a partir dos conceitos da Ética filosófica e do modelo de Educação Fiscal

preconizado no âmbito do Programa Nacional de Educação Fiscal – PNEF.

Primeiramente é feita a análise filosófica de que tipo de homem2 seria necessário para

construção de um país justo, onde o Estado cumpra seu papel de prover o cidadão das

condições para o seu desenvolvimento humano pleno e onde o cidadão também participa

ativamente das decisões que afetam a sociedade como um todo.

Depois, adentrando os meandros do contexto socioeconômico atual e vai se aprofundar

sobre as origens do atual estado de coisas, tanto das desigualdades quanto da apatia que

parece tomar conta da sociedade brasileira, onde os contrastes são tão acentuados e as

desigualdades além de se perpetuarem abrangem um rol maior de excluídos.

A partir das constatações referentes ao contexto parte-se para a análise dos objetivos

do Programa Nacional de Educação Fiscal e o modelo de Educação por ele preconizado a fim

de se buscar uma relação possível entre o homem ético que se precisa para construção de uma

sociedade justa e a possibilidade de que ele possa emergir do processo de Educação Fiscal.

2
O termo homem no presente trabalho será utilizado no sentido de pessoa humana, homem e mulher.
2 Ética e Educação Fiscal : construindo uma ponte para a cidadania no Brasil

Gostaria de iniciar esta reflexão sobre a Ética e a Educação Fiscal com uma frase
de Monteiro Lobato, que ouvi ainda criança, veiculada na década de 70 como slogan de uma
propaganda televisiva da Biblioteca do Exército Editora: “Um país se faz com homens e
livros.” Em plena ditadura militar, que tipo de país se desejava construir? Com que tipo de
homens? E a partir de que tipo de livros, ou melhor, de que modelo de educação?
Em que pese que os objetivos dos financiadores dessa campanha publicitária
específica possam ter desejado alcançar, o fato é que podemos assumir como verdadeira a
frase de Monteiro Lobato, desde que nos detenhamos em buscar em nossa prática cotidiana as
respostas às questões: Que tipo de país desejamos construir? Com que homens? A partir de
qual modelo de educação?
Que tipo de homem devemos ser para construir um país?
Na síntese do pensamento ético de Aristóteles feita por Adams e Dyson (2006), o
fim último do ser humano é a realização do estado de eudaimonia, mais frequentemente
traduzida por „felicidade‟, que alcançaremos se vivermos corretamente ao longo de nossa
existência, o que depende de uma atividade racional bem conduzida. Para Aristóteles, a
atividade moralmente virtuosa é “uma disposição para agir, de modo deliberado, em relação a
nós mesmos conforme um “meio termo” entre a atividade do pensamento filosófico puro e
simples – mais sublime – e a prática das virtudes morais. Esse meio termo determinado pela
razão e de modo possível de ser determinado conforme a sabedoria prática de um homem...
“meio termo” entre dois vícios, o do excesso e o da carência.
De fato, não podemos viver sempre no mundo da abstração filosófica, que, para
Aristóteles, era a maneira mais perfeita de se alcançar a eudaimonia. Então, no cotidiano
normal de uma pessoa essa felicidade pode ser encontrada por meio do agir moral, baseado no
exercício e no desenvolvimento das virtudes.
Ainda sobre o pensamento de Aristóteles, os autores lembram,
também, que „o homem é por natureza um animal político.‟ [...] Este é um fato
natural: nenhum indivíduo pode proporcionar a si mesmo a satisfação de todas as
necessidades da existência. Assim, todas as formas de associações humanas são
naturais na medida em que cada uma delas responde a um nível particular de
necessidade material: a família é natural; a aldeia também; e portanto a pólis. A
pólis, no entanto, é de todas a mais completa em termos de suficiência; portanto, é a
comunidade mais completamente natural. Diferentemente das formas menos
desenvolvidas de associação, a pólis permite que todas as nossas necessidades sejam
inteiramente satisfeitas. Nesse ponto, Aristóteles considera não apenas as
necessidades econômicas, mas também todo o conjunto de necessidades de natureza
moral que experimentamos pelo fato de sermos criaturas racionais (ADAMS;
DYSON, 2006, p. 20).
Como não nos bastamos a nós mesmos, nos unimos em sociedade e na polis a
satisfação de nossas necessidades é mais completa dado que as carências de um são supridas
pelos excessos de outro.
Nessa linha, Aristóteles vai propor uma idéia de Estado que pressupõe que
onde os cidadãos estiverem reunidos sob uma boa constituição, governados por leis
justas e imparciais, com todos tomando parte na realização do bem da comunidade
inteira, a virtude do homem reto e a do bom cidadão devem ser as mesmas. O
propósito moral da comunidade deve ser realizado por completo (ADAMS;
DYSON, 2006, p. 23).

Neste sentido, para alcançar seu fim último, a eudaimonia, a „felicidade‟, homem
deve pautar seu agir livre na busca do exercício das virtudes morais, visando o bem comum,
pois sozinho é incapaz de realizar plenamente suas necessidades e satisfazer seus anseios.
Desta forma, o progresso dos homens no exercício das virtudes morais
corresponde ao progresso da polis, donde se tem que “a ética é a arte do aperfeiçoamento dos
homens, juntamente com o aperfeiçoamento das cidades. Ética confunde-se, então com a arte
política. Por isso, para o estagirita, o homem é um animal político enquanto um animal ético.”
(LOPES, 2005, p.16)
Uma outra abordagem que se poderia fazer em busca do tipo de homem
necessário para a construção de um país justo poderia ser buscado na idéia do agir étido do
homem, baseado na idéia de liberdade proposta por Kant. Segundo Lopes (2009) no
pensamento de Descartes e Kant, a liberdade humana é posta como antítese do mundo causal,
podendo, por meio de seu livre-arbítrio comportar-se de modo diferente daquele estabelecido
pelas normas que regem o mundo da causalidade.
No pensamento de Kant, o ser humano é regido por dois reinos: o da liberdade,
incondicionado, o mundo dos homens e o da causalidade, condicionado, o mundo das coisas.
Assim,
Segundo Kant, [...], pertencemos aos dois mundos, mas enquanto ser inteligível, o
homem não deve determinar suas ações pela série de causas e efeitos do mundo
sensível, mas agir autonomamente, como ser livre, determinando-se a si próprio pela
razão. Podemos ser afetados pela nossa animalidade, mas não determinados por ela
(LOPES, 2009, p. 20).

Na medida em que avança no conhecimento e na abertura para o mundo em que


vivee que amplia o olhar, saindo de suas necessidades pessoais, o homem torna-se mais
humano. Torna-se homem na medida em que reflete sobre a realidade que o cerca e consegue
enxergar para além dela, fazendo seus próprios questionamentos, tirando suas próprias
conclusões e tomando suas próprias decisões cada vez mais livremente e menos presa das
influências das forças da causalidade.
Desta forma, o homem que buscamos formar para fazer um país condizente com a
dignidade humana é um homem livre, que tenha condições de agir autonomamente, com
responsabilidade, em busca do bem comum, onde se encontra seu fim último, sua
eudaimonia, sua „felicidade‟.
Busca-se, portanto, no exercício de uma cidadania plena, que para Bittar (2004)
não se resume somente no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho
de seus deveres para com este. Não basta apenas ser parte de um Estado soberano, poder votar
e ser votado para ser cidadão.
Este conceito precisa ser ampliado para abranger a da evolução da própria noção
dos direitos humanos, uma vez que essa definição de cidadania não é suficiente como
condição para a paz entre a maioria e minoria.
Exercitar cidadania não significa, em momento algum, delegar ao Estado a tarefa de
gerenciar políticas públicas, ações estratégicas ou investimentos adequados em
justiça social. Isso, sem dúvida, é a condição si ne qua non para que a política se
exerça de modo salutar em prol de uma sociedade. No entanto, na linha de raciocínio
que se está desenvolvendo, não se pode considerar a cidadania uma atitude passiva,
e muito menos representativa, que delega a representantes políticos investidos de
poder para mandato eletivo que escolhem por voto periódico. Se isso é ser cidadão,
então a definição de cidadania encontra-se um tanto restrita e apegada à tradição.
Mais do que isso, essa linha de pensamento está ainda eivada por um profundo
assistencialismo e por concepções paternalistas de Estado (BITTAR, 2004, 11-12).

O exercício desse tipo de cidadania envolve uma mudança de comportamento da


sociedade, a fim de que passe de uma atitude de passividade e de conformidade com o atual
estado de coisas em que se encontra, para uma atitude ativa, que não se conquista sem a
mobilização social, sem a busca por abertura de espaço na arena política que move as
decisões relativas à elaboração e implementação de políticas públicas. É preciso despertar as
consciências para serem protagonistas das transformações que desejam ver em seu cotidiano.
Esta tarefa torna-se tanto mais difícil no atual momento em que vive a sociedade
moderna, marcado por contrastes cada vez maiores. No mundo atual fortemente regido pela
lógica de mercado liberal, da “livre” iniciativa, do não intervencionismo estatal, do Estado
mínimo, da maximização dos lucros a qualquer preço e da globalização proporcionada pelas
conquistas tecnológicas ampliam-se as distâncias entre os que têm acesso às conquistas da
modernidade e aqueles condenados a viverem à margem desses benefícios.
De um lado temos territórios, países, fronteiras, todos ancorados na história e na
geografia. De outro, temos verdadeiros no man’s lands, sem legitimidade, sem
soberania, sem responsabilidade, como o ciberespaço ou como a “bolha”
especulativa mundial. [...] O bom funcionamento do mercado não tem a mínima
necessidade dos países e até mesmo de continentes inteiros, julgados inúteis, porque
não rentáveis. O mercado pode, sem problema algum, sem responsabilidade alguma,
ignorar bilhões de homens (QUÉAU, 2002, p.468).

A globalização mascarada em progresso passa ao largo do que seja propriamente


digno de ser considerado humano. Em nome do “desenvolvimento” milhões de pessoas são
excluídas de qualquer acesso a essa evolução, sem a garantia das condições mínimas de
sobrevivência.
A hegemonia do poder econômico potencializa as desigualdades e amplia o
universo dos excluídos.
O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do
mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente
se optarmos, na verdade, por um mundo de gente (BAUMAN, 1997 apud BITTAR,
2006, p. 39).

Essa ética de mercado está impregnada nas relações sociais podendo-se falar de
uma crise da consciência ética, “na medida em que o outro (alter) foi expulso do campo de
visão/previsão do indivíduo (ego). [...] O que se percebe, contemporaneamente, são práticas
de conduta bastante orientadas para a expulsão do outro (alter) do universo e do espectro de
vivência individual.” (BITTAR, 2004, p. 6-7)
Reduzido à condição de coisa, todo aquele que não se apresente como “rentável”,
produtivo, pode ser descartado e substituído por outro que atendas às exigências do mercado.
Além disso, a falência das ideologias que sustentaram a modernidade, trouxeram-
nos ao estado de relativização em que nos encontramos na pós-modernidade. Neste contexto,
Deve-se perceber, portanto, que as zonas limítrofes entre os valores não se definem
com precisão, de modo que produzem nos espíritos os sentimentos mais
estremecedores da indecisão, da falta de definição, da perda de sentido. Percebe-se
que uma espécie de doença se espalhou pela sociedade, contaminando as mentes, as
intenções, os sentimentos, o comportamento e a educação dos jovens: nada é feito
sem um cálculo escrupuloso de vantagens e desvantagens, lucros e recompensas
materiais. Cada indivíduo é valorizado pelo que produz, e não pelo que é (BITTAR,
2004, p. 35).

Desse modo, podemos concluir que a “ética” que rege o mundo da pós
modernidade não se trata, de forma alguma, daquela preconizada por Kant, para quem o agir
ético é essencialmente o agir livre, em vista do bem comum, que difere o ser humano das
demais criaturas.
O homem assim tolhido por uma lógica de mercado que coloca o lucro acima dos
seres humanos, encontra-se na situação de coisa, e acaba subjugado pela causalidade, não
sendo, portanto, agente autônomo e responsável pelo seu próprio agir.
“Enquanto a dimensão do ser for definida com base na dimensão do ter, então
não haverá espaço para nenhuma política, sociedade ou solução econômica viável à
construção da real identidade ético-cidadã entre os indivíduos.” (BITTAR, 2006, p. 19)
O homem que faz um país que respeite a dignidade humana deve ser capaz de
exercer uma reflexão crítica sobre o contexto em que vive e, usando de sua razão, deve ser
capaz de promover as transformações necessárias para que o dever-ser seja.
Pensando no país que o homem ético deveria construir, põe a questão: que país
desejamos? Que Brasil é esse que devemos construir?
Não se fala em construção sem se pensar nas bases sobre as quais se manterá
firme a obra. Em que medida devem ser reforçadas as bases sobre as quais nosso país tem
sido construído ao longo de sua história?
Falamos de um país construído sobre a destruição. Destruição das riquezas,
destruição de povos. Tomemos o exemplo dos indígenas:
[...] quando chegaram os colonizadores portugueses, havia 1.200 povos com mais de
5 milhões de indígenas. Cada povo tinha seu território, sua língua, sua cultura, sua
religião, seus costumes, sua identidade. Na atualidade, existem, no Brasil, apenas
200 povos, falam 170 línguas e sua população está reduzida a 330 mil indígenas! E
muitos desses povos não contam mais com um território garantido e livre. Pelo
contrário: em mais de 88% das Terras Indígenas já demarcadas há exploração do
patrimônio natural por não índios (CNBB, 2007, p.38).
A construção da situação de exclusão social e do nível de desigualdade social
alarmante que assistimos atualmente no país não é resultado apenas do atual modelo
econômico neoliberal. O que o capitalismo faz, nos moldes atuais, é aumentar o fosso que
separa os mais ricos, que concentram cada dia mais renda e os mais pobres, cujo rol de
excluídos amplia cada dia mais. Trata-se de um legado histórico, que vem de longe, de nossos
tempos coloniais.
A exclusão social constitui uma marca inquestionável do desenvolvimento
capitalista brasileiro. Com a abolição da escravatura, os negros deixaram de ser
formalmente excluídos, ainda que o país não tivesse sido capaz de oferecer nenhuma
política pública de inclusão social. Dessa forma, o precário acesso dos negros aos
direitos civis, no último quartel do século XIX, bem como as ocupações inferiores
no mercado de trabalho, não se mostraram suficientes para a inclusão social
(CAMPOS, et al., 2003 apud BITTAR, 2004, p.24).

Nascido sob a égide de uma colonização extrativista, baseada na mera exploração


de riquezas, que destrói o diferente, condena à escravidão, o Brasil, mesmo com os avanços
inegáveis no exercício da democracia carrega a triste herança da Coroa Portuguesa interessada
apenas nas riquezas que a colônia lhe proporcionaria, perpetuada nos senhores de engenho,
nos Barões do Café, na política paternalista e clientelista, nos generais, coronéis e marechais
da ditadura militar, nas elites econômicas atuais sob a mesma lei: acumular riquezas em
benefício próprio. Fazer da res publica coisa particular.
O que é público deve servir ao público, e não às malhas que sustentam o próprio
poder. E o que se vê, não incomumente, é exatamente o contrário. Uma sucessão de
atropelos, desentendimentos, falta de encaminhamento, não cumprimento de deveres
elementares, corrupção, desordem administrativa, empecilhos burocráticos,
mecanismos ultrapassados de gerenciamento de esquemas de trabalho, carência de
estrutura e dinamismo, desorientação intelectual, entre outros fatores, interferindo
diretamente nos modos pelos quais o Estado presta contas de sua utilidade à
sociedade (BITTAR, 2004, p. 61).

Enfim, a ética da exclusão dos não rentáveis afeta o Brasil duplamente: pela
submissão às regras ditadas pelo mercado internacional comandado pelos países centrais da
economia atual que reduzem a autonomia estatal e pelo aprofundamento das desigualdades
originárias de nosso processo histórico ampliando o rol dos excluídos.
Aliado a este quadro e talvez alimentado por ele, assistimos no país ao
crescimento das práticas de corrupção, apropriação privada dos recursos públicos, aumento
das práticas de sonegação, sobrecarga de impostos indiretos que mascaram o peso que a
tributação impõe sobre a renda dos mais pobres.
Junte-se a isso a péssima distribuição de renda em nosso país que nos coloca entre
os de menor índice de desenvolvimento humano do mundo, mesmo tendo o 8º PIB3 do
mundo.
Num cenário de tal desigualdade
Há situações de desrespeito à dignidade humana e de violência que ocorrem de
forma aberta, sem subterfúgios, “à luz do sol”. A maior parte do povo brasileiro é
vítima cotidiana de um verdadeiro massacre em suas condições de vida.
Estão aí, diante de todos, as escandalosas condições de atendimento às necessidades
de saúde da população – nos hospitais ou nos postos médicos... O mesmo o corre
com transporte coletivo dentro das cidades, um gigantesco drama cotidiano, com as
longas filas de espera, a insegurança, a superlotação, a falta de limpeza... E no
campo são freqüentes os desastres com ônibus e caminhões que transportam
trabalhadores das favelas das cidades do interior ao trabalho rural, como bóias-frias
e volantes.
[...] O povo brasileiro conhece o sofrimento até mesmo para conseguir o
cumprimento de seus direitos óbvios, pelo que se vê continuamente nas imensas
filas angustiantes como, por exemplo, para atendimento à saúde, vaga na escola,
receber aposentadoria, procurar emprego ou obter o modesto seguro-desemprego em
épocas de crise... (CONIC, 2000, p.69).

Diante do panorama anteriormente delineado não é de se estranhar que uma apatia


generalizada parece ter tomado conta dos indivíduos. Num mundo cada vez mais
individualista a atitude mais simples talvez fosse mesmo a de fechar os olhos, tentar se manter
entre os incluídos e ignorar a enorme massa em situação de exclusão social. Mesmo o mais a-

3
Segundo classificação do Banco Mundial relativa ao ano de 2008. Disponível em:
<http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/GDP.pdf>
ético dos homens, ainda que visando apenas os próprios interesses em acumular riquezas
reconheceria que esta lógica não funciona por muito tempo, pois, para se manter, mesmo a
economia precisa de uma certa estabilidade e paz social.
Se a desintegração desintérica parece ser a característica desse momento de
transição, uma vez instaurada a crise, deve-se enfrentá-la pensando nos modos de
resistência ao esquematismo que, modernamente, orientou a identidade entre Estado
e política. Nem só o Estado é agente político, e a sociedade não deve ser somente o
agente passivo receptor de políticas legislativas criadas pelo legislados, esta que já
foi a grande forma de controle social.
[...] Uma nova teoria de democracia [...] deve caminhar para tornar-se a alternativa
possível ao modo pelo qual os paradigmas modernos liberais e capitalistas
respondiam ao esquematismo da distribuição do poder. A idéia de partilha do poder,
pela difusão, vem, necessariamente, em substituição às idéias de centralização e
dominação vertical (BITTAR, 2006, p. 66-67).
Para que tal mudança possa ocorrer há que se dotar de poder a sociedade. Há que
se buscar vencer a apatia generalizada que toma conta dos indivíduos como se as políticas
públicas não lhe dissessem respeito e fossem “assim mesmo” pois, afinal “sempre foi assim”.
Um passo enorme já foi dado com a promulgação da Constituição Federal de
1988, batizada de Constituição Cidadã, onde encontram-se garantidos, como dever de Estado,
os direitos fundamentais dos cidadãos, tanto os da primeira geração, os direitos individuais
civis e políticos quanto os da segunda geração, os direitos sociais.
Em seu artigo 37, a Constituição Federal estabelece também os princípios que
devem nortear o exercício das funções públicas: “a administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”
Por esta breve incursão em nossa Constituição, que é a base de todo o
ordenamento jurídico nacional e pela qual toda legislação deve se pautar podemos perceber o
quão distantes ainda nos encontramos dos elevados padrões de ética que ela nos propõe.
É preciso, portanto, fazer com que o dever-ser seja. Fazer com a Constituição
Federal não se torne letra morta. É papel do Estado desenvolver Políticas Públicas que
garantam efetivamente o pleno exercício dos direitos humanos. Neste sentido, é preciso que o
cidadão seja visto não apenas como beneficiário (assistencialismo) mas como agente
(protagonismo) na formulação das políticas públicas.
Para que isso aconteça o cidadão tem que ser capacitado para exercer esse
protagonismo e assim será possível que os direitos saiam do papel e sejam materializados nas
leis e no orçamento (Figura 1).
Figura 1. Modelo de participação no desenvolvimento de Políticas Públicas

O papel da educação para a transformação dessa realidade é essencial. Deve-se


partir de uma concepção de educação que busque
Romper com as amarras que guardam o indivíduo sob a condição opressora. Libertá-
lo da vigilância e dos grilhões que se impôs desde quando foi convencido por
poderes exteriores de sua condição subalterna, de sua inferioridade, da inconsciência
de sua própria autonomia. Produzir o parto libertador em que da inconsciência se
possa alcançar a consciência, do niilismo ideológico mortal a pessoa se encontre
como ser produtivo e produtor de cultura (BITTAR, 2006, p. 98-99).
Para tanto é necessário que o processo de educação proposto promova a reflexão
crítica da sociedade e eleve o indivíduo à condição de ser pensante, capaz da autocrítica
necessária à promoção das transformações.
Dentro desse contexto, a formação do homem é muito mais ampla do que apenas
aprender os conhecimentos acadêmicos ou familiares, ultrapassa o seu individual
chegando ao social, em que exerce e do qual sofre influência. Sua atuação como
cidadão é fundamental para as transformações sociais desejadas (PNEF, 2005, p.
25).

Deve-se buscar um modelo de educação cidadã, que tenha como base nos
seguintes princípios:
 Princípio ético, da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do
respeito ao bem comum;
 Princípio estético, da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de
manifestações artísticas e culturais e
 princípio político, dos direitos e deveres da cidadania, do exercício da
criticidade e do respeito à ordem democrática (PNEF, 2005, p.33).

É nesse contexto que se insere o grande desafio de se promover a Educação


Fiscal, que tem como missão “estimular a mudança de valores, crenças e culturas do
indivíduo, na perspectiva da formação de um ser humano integral, como meio de possibilitar
o pleno exercício da cidadania e propiciar a transformação social (PNEF, 2005, p. 38).
As ações de Educação Fiscal, inseridas no âmbito do Programa Nacional de
Educação Fiscal (PNEF)4, devem “contribuir permanentemente para a formação do
indivíduo, visando ao desenvolvimento da conscientização sobre seus direitos e deveres no
tocante ao valor social do tributo e ao controle social do Estado democrático.” (PNEF, 2005,
p.38)
Educação Fiscal pode ser entendida como uma nova prática educacional que tem
como objetivo o desenvolvimento de valores e atitudes, competências e habilidades
necessárias ao exercício de direitos e deveres na relação recíproca entre o cidadão e
o Estado, a partir de melhor entendimento da vida em sociedade; da estrutura e do
funcionamento da Administração Pública; da função socioeconômica dos tributos;
da aplicação dos recursos públicos; das estratégias e dos meios para o exercício do
controle social (PNEF, [2003?], p. 5)

4
Origem do Programa Nacional de Educação Fiscal: No seminário do CONFAZ sobre “Administração
Tributária”, realizado na cidade de Fortaleza – CE, no período de 27 a 30 de maio de 1996, foi inserido o tema
Educação Tributária. Nas conclusões constou como item de destaque: “a introdução do ensino, nas escolas, do
programa de consciência tributária é fundamental para despertar nos jovens a prática da cidadania, o respeito ao
bem comum e a certeza de que o bem-estar social somente se consegue com a conscientização de todos.”
No dia 13 de setembro de 1996, celebrou-se o Convênio de Cooperação Técnica entre a União, os estados e o
Distrito Federal. No anexo ao texto do acordo, entre as inúmeras atividades cooperativas, constou a elaboração e
a implementação de um programa nacional permanente de conscientização tributária, para ser desenvolvido nas
unidades da Federação.
Na mesma época, foi criado o Programa Nacional de Apoio à Administração Fiscal para os Estados Brasileiros –
PNAFE, com recursos financeiros oriundos de empréstimo junto ao BID, e com a Unidade de Coordenação do
Programa – UCP vinculada à Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda. Em seu Regulamento Operativo,
aprovado pela Portaria n.º 36 , de 3 de fevereiro de 1997, do Secretário Executivo do Ministério da Fazenda, o
PNAFE estabeleceu: “o objetivo geral do programa consiste em melhorar a eficiência administrativa, a
racionalização e a transparência na gestão dos recursos públicos estaduais”. Para alcançar esse objetivo, previu-
se o apoio a projetos de modernização fiscal destinados a:
I. Aperfeiçoar os mecanismos legais, operacionais, administrativos e tecnológicos com que contam os
distintos órgãos responsáveis pela administração fiscal dos Estados;
II. Fortalecer e integrar a administração financeira e consolidar a auditoria e o controle interno dos
Estados;
III. Aperfeiçoar o controle do cumprimento das obrigações tributárias por parte do contribuinte, mediante a
implantação de novas técnicas e metodologias de arrecadação e fiscalização tributárias; e
IV. Agilizar a cobrança coativa da dívida tributária e fortalecer os processos de integração entre as
administrações tributárias e os órgãos de cobrança judicial.
Entre os projetos de modernização fiscal foi incluído o que previa a elaboração e implementação de um
programa nacional permanente de educação tributária, para ser desenvolvido pelos estados.
Em reunião de 25 de julho de 1997, o CONFAZ aprovou a criação do Grupo de Trabalho Educação Tributária –
GET, constituído por representantes do Ministério da Fazenda (Gabinete do Ministro, Secretaria da Receita
Federal, Escola de Administração Fazendária – ESAF), das Secretarias de Fazenda, Finanças ou Tributação dos
estados e do Distrito Federal.
A Portaria n.º 35, de 27 de fevereiro de 1998, do Ministério da Fazenda, que oficializou o grupo de trabalho,
formulou seus objetivos como sendo “promover e coordenar as ações necessárias à elaboração e à implantação
de um programa nacional permanente de educação tributária” e “Acompanhar as atividades do Grupo de
Educação Tributária nos Estados – GETE”.
Em março de 1999, passam a integrar o grupo representantes da Secretaria do Tesouro Nacional e do Ministério
da Educação.
Em julho de 1999, tendo em vista a abrangência do programa que não se restringe apenas aos tributos, mas que
aborda também as questões da alocação dos recursos públicos e da sua gestão, o CONFAZ aprova a alteração de
sua denominação que passa a ser Programa Nacional de Educação Fiscal – PNEF. (Programa nacional de
Educação Fiscal. Versão 8. Disponível em:
http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/biblioteca/Arquivos/PNEF_versao_8.doc )
Em outras palavras poderíamos definir a Educação Fiscal como um processo de
formação permanente dos indivíduos para assumirem seus direitos exercendo uma cidadania
ativa e, portanto, efetiva, deixando de lado os padrões de passividade historicamente herdados
e perpetuados pelas elites dominantes.
O modelo de educação proposto no âmbito da Educação Fiscal é concebido como
“um processo de formação do ser humano que objetiva prepará-lo para a vida, dotando-o de
conhecimento e habilidades que o tornem capaz de compreender o mundo e intervir
conscientemente para modificar a realidade em que vivemos, de modo a edificar uma
sociedade livre, justa e solidária” (PNEF, 2005, p.36).
Trata-se aqui de uma educação para a participação. “Segundo Pedro Demo,
„participação é conquista social‟. A Educação Fiscal é uma ponte que nos liga a essa fonte de
saber, uma porta que se abre para a construção de um verdadeiro processo de participação
popular” (PNEF, 2005, p. 15).
Segundo Ciconello (2007), a participação democrática que tem sido desenvolvida
no Brasil possui as seguintes características:
 é um processo educativo voltado para o exercício da cidadania
 contribui para aproximar o poder público dos cidadãos/ãs e para o
enfraquecimento das redes de clientelismo, trazendo alianças e conflitos de
interesses para esferas públicas de decisão;
 permite maior grau de acerto no processo de tomada de decisões;
 aumenta a transparência administrativa e pressiona os governos por resultados;
 produz maior integração social, na medida em que produz um sentimento de
pertencimento de cada cidadão isolado à sua comunidade ou grupo organizado
(associação, sindicato, movimento social).
Podemos perceber a convergência de objetivos do PNEF com o modelo de
participação social que se deseja construir no Brasil, ao compararmos as características desse
tipo de participação com a linha de atuação do PNEF, que se propõe a
 ser um instrumento de fortalecimento permanente do Estado democrático;
 contribuir para fortalecer os mecanismos de transformação social por meio da
educação;
 difundir informações que possibilitem a construção da consciência cidadã;
 ampliar a participação popular na gestão democrática do Estado;
 contribuir para aperfeiçoar a ética na administração pública e na sociedade;
 harmonizar a relação Estado-Cidadão; desenvolver a consciência crítica da
sociedade para o exercício do controle social;
 aumentar a eficiência e a transparência do Estado;
 aumentar a responsabilidade fiscal;
 obter equilíbrio fiscal a longo prazo;
 reduzir a corrupção; promover a reflexão sobre nossas práticas sociais;
 melhorar o perfil do homem público
 e atenuar as desigualdades sociais (PNEF, 2005, p. 43).

Desta forma a atuação no âmbito do PNEF aproxima-se das diversas iniciativas da


sociedade organizada na luta pelos direitos humanos e pode se tornar um espaço de
interlocução importante no cenário brasileiro, ao atuar como elemento catalisador de diversos
movimentos sociais que visam a promoção humana a partir da gestão social das políticas
públicas, ou na capacitando cidadão para o protagonismo, dotando a sociedade de
ferramentas para exercer o seu papel na geração e justa aplicação dos recursos públicos.
Outra vertente em que a Educação Fiscal pode contribuir é na conscientização dos
agentes de Estado, principalmente os integrantes do PNEF quanto à necessidade de
formulação e execução de Políticas Públicas que garantam os direitos constitucionais a todos
os cidadãos, principalmente o direito ao desenvolvimento.
Apesar de ter sido concebido no âmbito da Administração Pública, mais
precisamente da Administração Tributária, e ter sido originalmente, enquanto Programa de
Educação Tributária, focado na necessidade de aumento da aceitação social dos tributos como
forma de aumento de arrecadação, o PNEF, ao abranger a vertente da necessidade da
participação social no controle da utilização dos recursos públicos com vistas à
implementação de políticas públicas que efetivamente garantam os direitos fundamentais da
sociedade brasileira, deu um passo significativo no caminho das transformações que se fazem
urgentes.
3 Conclusão

Pelo exposto, concluímos que a Educação Fiscal, se conduzida dentro de


princípios éticos, a partir de um modelo de educação libertadora, pode ser um dos elementos
transformadores de nossa sociedade, atuando em conjunto com outras instâncias de
participação.
A Educação Fiscal, na forma proposta e que está sendo construída é, sem dúvida
um dos caminhos para a formação da consciência ético-cidadã que desejamos para construir
nosso país.
Não podemos perder de vista que
O mundo precisa de uma visão, de um projeto que possa levar em conta todos,
especialmente os mais pobres e mais deserdados. São eles, de fato, que detém a
chave do futuro. Se não levarmos isso em conta, iremos coletivamente em direção à
nossa perda e eles conosco. Mas, caso lhes atribuamos seu verdadeiro lugar,
enquanto pessoas humanas e por isso mesmo seres infinitamente preciosos, então
eles farão com que sejamos nós mesmos mais ricos devido às diferenças deles e a
seu desenvolvimento. São eles que criarão as condições de uma paz durável. Eles é
que nos revelarão o que não podemos ver, o que não somos capazes de confessar
sobre nós mesmos, os limites estreitos em que nos encerramos, nossos egoísmos e
nossas miopias. Como escreveu Ricardo Petrela, „o bem comum é representado pela
existência do outro.‟ E aquele que é o mais desfavorecido é ainda mais „outro‟,
exatamente porque ele é o mais desfavorecido. Ele é, portanto, aquele que melhor
representa o bem comum. É essa ética de que precisamos e essa deve ser a finalidade
da verdadeira cultura: fazer com que o outro exista (QUÉAU, 2002, p.479).

É real e urgente, portanto, a necessidade de se promover o questionamento ético-


filosófico da realidade que nos cerca a fim de buscarmos saídas para a eliminação das
desigualdades e para construção de um mundo mais humano, no sentido kantiano da palavra.
A Educação Fiscal é um dos elementos que podem ajudar a fazer este país com
homens e livros, formando cidadãos por meio da educação.
REFERÊNCIAS

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Paulo: Manole, 2004.

2. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>

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democracia no Brasil. Oxfam International, 2007. Disponível em: <www.fp2p.org>.
Estudo de caso escrito em setembro de 2007 como subsídio para o desenvolvimento do
livro de publicação da Oxfam International From Poverty to Power publicado em 2008.

4. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB. Manual da


Campanha da Fraternidade 2007. São Paulo: Salesiana, 2007

5. CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL - CONIC. Dignidade


Humana e Paz: novo milênio sem exclusões. São Paulo: Salesiana, 2000

6. LOPES, Luís Sérgio de Oliveira. Ética e Cidadania. Brasília: ESAF, 2009. Apostila da
disciplina Ética e Cidadania do Curso de especialização em Educação Fiscal e Cidadania
da Escola de Administração Fazendária – ESAF.

7. PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO FISCAL - PNEF. Educação Fiscal no


contexto social. 2ª Ed. Brasília: [s.n.], 2005. Caderno 1.

8. ______.Plano Estratégico 2004-2007.Brasília, 2004. Disponível em: <


http://www.esaf.fazenda.gov.br/esafsite/educacao-fiscal/arquivos/Plano_estrat.pdf>

9. ______.Planejamento Estratégico 2008-2011. Brasília, 2008. Disponível em: <


http://www.esaf.fazenda.gov.br/esafsite/educacao-fiscal/Edu_Fiscal2008/PDF/
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10. ______. Programa Nacional de Educação Fiscal. Versão 8. Brasília,[2003?]. Disponível


em: <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/biblioteca/ Arquivos/PNEF_versao_8.doc>

11. QUÉAU, Philipe.Cibercultura e Info-ética. In: MORIN, Edgar. (Org.). A Religação dos
Saberes. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002. p. 460-480.

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