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DA FÍSICA QUÂNTICA

AO REENCANTAMENTO DO MUNDO*

Por Basarab Nicolescu


Tradução Rogério Fonteles Castro

Se falamos do "reencantamento do mundo", isso significa que existe um "desencanto


do mundo", uma expressão famosa (Entzauberung der Welt, em Alemão) introduzida
por Max Weber¹, que é o título de um livro conhecido de Marcel Gauchet².
O desencanto do mundo é o resultado da ideologia cientificista, que surgiu como uma
ideologia vanguardista que teve uma expansão extraordinário no século XIX. No plano
espiritual, as consequências do cientificismo foram consideráveis. De acordo com o
cientificismo, um conhecimento digno do nome só pode ser científico, objetivo, e a única
realidade digna do nome é a chamada realidade "objetiva", regida por leis objetivas.
Todo o conhecimento que não seja científico é empurrado de volta ao inferno da
subjetividade, tolerado no máximo como um ornamento ou rejeitado com desprezo
como fantasia, ilusão, regressão, produto da imaginação. A própria palavra
"espiritualidade" tornou-se suspeita e seu uso foi praticamente abandonado. No final,
além da imensa esperança que levantou, a ciência nos legou uma ideia persistente e
tenaz: a existência de um ÚNICO NÍVEL DE REALIDADE, na qual não pode haver vida,
nem liberdade, nem criação de coisas novas. Ao cientificismo se segue toda a "morte" e
o "fim": a morte de Deus, a morte do homem, a morte da Natureza, as ideologias, o fim
da história e do futuro, talvez o fim das religiões.
Como chegamos a essa situação?
O cientificismo não é ciência. É uma ideologia que se baseia arbitrariamente na física
clássica.

*Conferência sobre os encontros astrofísicos "Questões básicas de homens


confrontados com o cosmos ", Lazaret Ollandini, Ajaccio, 25 de julho de 2007.
¹ Max Weber, O cientista e a política, Paris, Plon, 1959, texto de uma palestra entregue
em 7 Novembro de 1917 em Munique, prefácio de Raymond Aron e tradução de Julien
Freund.
² Marcel Gauchet, O desencanto do mundo. Uma história política da religião, Gallimard,
Coleção "Biblioteca das Ciências Humanas", Paris, 1985.1
1

A ciência moderna baseia-se na ideia de uma separação total entre o sujeito cognitivo e
a Realidade, que é suposta ser completamente independente do sujeito que a observa.
Mas, ao mesmo tempo, à ciência moderna se deram três postulados fundamentais que
se estendiam a um grau supremo, no plano da razão, na busca das leis e da ordem:
1. A existência de leis universais de caráter matemático;
2. A descoberta dessas leis através da experiência científica;
3. A reprodutibilidade perfeita dos dados experimentais.
Os extraordinários sucessos da física clássica, de Galileu, Kepler e Newton a Einstein,
confirmaram a correção desses três postulados. Ao mesmo tempo, eles contribuíram
para o estabelecimento de um paradigma de implicação, que se tornou predominante
no início do século XIX.
A física clássica baseia-se na ideia de continuidade, de acordo com a evidência fornecida
pelos órgãos dos sentidos: não se pode passar de um ponto para o outro do espaço e do
tempo sem passar por todos os pontos intermediários.
A ideia de continuidade está intimamente ligada a um conceito-chave da física clássica:
causalidade local. Todo fenômeno físico pode ser entendido por uma cadeia contínua
de causas e efeitos: cada causa em um determinado ponto corresponde a um efeito em
um ponto infinitamente próximo e cada efeito em um determinado ponto corresponde
a uma causa em um ponto infinitamente próximo.
O conceito de determinismo é central na física clássica. As equações da física clássica
são tais que, se as posições e velocidades dos objetos físicos forem conhecidas em um
determinado momento, suas posições e velocidades podem ser previstas em qualquer
outro momento. Como os estados físicos são funções de posições e velocidades, segue-
se que, se alguém especifica as condições iniciais (o estado físico em um determinado
momento), pode-se prever completamente o estado físico em qualquer outro instante
dado.
A objetividade da física clássica está fundamentalmente ligada ao conhecimento de um
objeto que evolui numa dimensão temporal e no espaço tridimensional.

2
O cientificismo toma posse dessa objetividade, resultado de um realismo clássico que
agora desatualizado.
Não é surpreendente, então, que o homem ocidental tenha transformado a Natureza
de parceira em escrava. A Natureza é feita, segundo tal filosofia cientificista, para ser
dominada, possuída, manipulada.
A Filosofia Natural alemã tentou, sem sucesso, resistir a esse movimento. O romantismo
não poderia fazer nada contra a força bruta da crescente tecnociência.
O grande evento que pulverizou os fundamentos do cientificismo foi a revolução
quântica³ que ocorreu explorando o mundo infinitamente pequeno e infinitamente
breve.
A mecânica quântica está em total violação com a mecânica clássica.
De acordo com a descoberta de Planck, a energia possui uma estrutura discreta e
descontínua. A descontinuidade significa que entre dois pontos não há nada, nem
objetos, nem átomos, nem moléculas, nem partículas, nada. E até mesmo a palavra
"nada" é demais.
Uma quantidade física tem, de acordo com a mecânica quântica, diversos valores
possíveis, atribuídos a probabilidades bem definidas. Mas, a partir de uma medida
obtida experimental, se obtém, obviamente, um resultado específico para a quantidade
física em questão. Esta abolição abrupta da pluralidade de valores possíveis de um
"observável" físico pelo ato de medida tem uma natureza obscura, mas indicou
claramente a existência de um novo tipo de causalidade.
Sete décadas após o nascimento da mecânica quântica, a natureza desta novidade da
causalidade foi esclarecida por um teorema teórico rigoroso de Bell e por experimentos
de grande precisão. Um novo conceito assim se introduziu na física: a não-
separabilidade.
As entidades quânticas continuam a interagir independentemente da sua distância.
Aparentemente, surge um novo tipo de causalidade - uma causalidade global que diz
respeito ao sistema de todas as entidades físicas, como um todo.
As entidades quânticas – os quanta – são corpúsculos e ondas ou, mais precisamente,
não são nem partículas nem ondas.
_________________________
³ Basarab Nicolescu, Nós, a Partícula e o Mundo, Edições Rocher, Monaco, Coleção
"Transdisciplinaridade", 2002.
3

As célebres relações de Heisenberg mostram, sem qualquer ambiguidade, que é


impossível localizar um quantum em um ponto preciso do espaço e em um ponto preciso
do tempo. Em outras palavras, é impossível atribuir uma trajetória bem definida a uma
partícula quântica. O indeterminismo que prevalece na escala quântica é um
indeterminismo constitutivo fundamental e irredutível que não significa acaso ou
imprecisão.
Os chamados paradoxos quânticos (como o famoso paradoxo do "gato de Schrödinger")
são falsos paradoxos, pois revelam contradições exclusivamente em relação à linguagem
natural e comum do realismo clássico; e deixam de ser paradoxos quando o idioma
próprio da mecânica quântica é usado.
A verdadeira questão é a incompatibilidade entre realismo clássico e realismo
quântico.
O objeto clássico é localizado no espaço-tempo, enquanto o objeto quântico não está
localizado no espaço-tempo. Este evolui num espaço matemático abstrato, governado
pela álgebra dos operadores e não pela álgebra dos números. Na física quântica, a
abstração não é apenas um meio de descrever a realidade, mas uma parte constituinte
da própria realidade.
O objeto clássico se submete à causalidade local, enquanto o objeto quântico não cede
a essa causalidade. É impossível prever um evento quântico individual. Só podemos
prever probabilidades de ocorrência de eventos. A chave para entender esta situação
aparentemente paradoxal e mesmo irracional (do ponto de vista do realismo clássico) é
o princípio da superposição quântica: a superposição de dois estados quânticos é
novamente um estado quântico.
A revolução quântica nos mostra que devemos mudar radicalmente nossa concepção
da realidade se quisermos sobreviver, pois é muito evidente que a nossa concepção
da realidade determina a vida social e individual e também a política e a economia.
Paradoxalmente, tudo está concorrendo para a nossa auto-destruição, como também
tudo está colaborando para uma mutação positiva, comparável aos grandes momentos
decisivos da história. O perigo da autodestruição tem sua contrapartida na esperança
do autoconhecimento. A ameaça planetária de dizimação da espécie humana tem sua
contrapartida em uma consciência visionária, transpessoal e global, alimentada pelo
fabuloso crescimento do conhecimento. Mas não sabemos de que lado vai pender a
balança.

4
Para muitos pesquisadores, a transdisciplinaridade, baseada no realismo quântico, é
hoje uma forma de reencantar o mundo através da interação de todas as áreas do
conhecimento. Concerne à transdisciplinaridade, como o prefixo "trans" indica, o que é
ao mesmo tempo entre as disciplinas, nas diferentes disciplinas e além de toda
disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo presente, dos quais um dos
imperativos é a unidade do conhecimento.4
A palavra "mundo" deve ser especificada, pois há muitos significados dessa palavra.
Na terminologia transdisciplinar, a palavra "mundo" significa o universo interior do
homem, o universo externo e a interação entre esses dois universos.
Por mais paradoxal que possa parecer, é a física moderna que contém em si a luz da
renovação. A transdisciplinaridade captura esse germe transformando-o em uma árvore
do conhecimento.

O conceito-chave da transdisciplinaridade é o de nível de Realidade. O principal impacto


cultural da revolução quântica é certamente o questionamento do dogma filosófico
contemporâneo da existência de um único nível de Realidade.5

Procuremos estabelecer o significado pragmático e ontológico da palavra "realidade".


Por Realidade, afirmamos, antes de tudo, pragmaticamente, o que resiste às nossas
experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas. Mas,
também, temos uma dimensão ontológica relativa à noção de Realidade, na medida em
que a Natureza participa do Ser do mundo.
Queremos dizer, pela Realidade, um conjunto de sistemas invariantes à ação de uma
série de leis gerais: por exemplo, entidades quânticas sujeitas a leis quânticas, que estão
em ruptura radical com as leis do mundo macrofísico. Isso significa que dois níveis de
Realidade são diferentes se, ao passar de um para outro, há uma ruptura de leis e uma
quebra de conceitos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade local do mundo
clássico em relação à causalidade global do mundo quântico). A existência de diferentes
_________________________

𝑜4 Basarab Nicolescu, A transdisciplinaridade, manifesto, Edições Rocher, Mônaco,


Coleção “Transdisciplinaridade”, 1996.

𝑜5 Basarab Nicolescu, Nós, a partícula e o mundo, op. cit.

5
níveis de realidade foi afirmada por diferentes tradições e civilizações, mas essa
afirmação baseou-se em dogmas religiosos ou na exploração do universo interior.
O surgimento de pelo menos três níveis diferentes de Realidade no estudo dos sistemas
naturais - o nível macrofísico, o nível microfísico e o espaço cibernético (ao qual
devemos adicionar um quarto nível, no momento puramente teórico, as supercordas,
consideradas pelos físicos como a última textura do universo) -, é um evento importante
na história do conhecimento. Isso nos leva a repensar nossa vida individual e social, a
dar uma nova leitura ao conhecimento antigo, a explorar de outro modo o
conhecimento de nós mesmos aqui e agora.
No campo dos sistemas sociais, podemos distinguir os seguintes níveis: nível individual,
nível de comunidades geográficas e históricas (família, nação), nível de planeta, nível de
comunidades no ciber-espaço-tempo e nível cósmico.
Na presença de vários níveis de realidade, o espaço entre disciplinas e além das
disciplinas é cheio de informações, já que o vácuo quântico está cheio de todas as
potencialidades: da partícula quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados que
condicionam a aparência da vida no universo.
A unidade que liga todos os níveis de Realidade, se existir, deve ser necessariamente
uma unidade aberta. É assim que entendemos hoje o antigo princípio da
interdependência universal. De fato, uma vasta autoconsistência parece governar a
evolução do universo, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, do
infinitamente curto ao infinitamente longo.
Este é um fato fundamental para o encantamento do mundo. Num mundo governado
pela auto-suficiência universal, tudo é um sinal. Deste modo, encontramos a nossa
conexão matricial não só com a Terra, mas com todo o cosmos.
Existe, naturalmente, uma coerência de todos os níveis da Realidade, mas essa
coerência está orientada: uma flecha está associada a qualquer transmissão de
informações de um nível para outro. Para que haja uma unidade aberta, devemos
considerar que o conjunto de níveis de Realidade é estendido por uma área de não
resistência às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou
formalizações matemáticas. A não resistência desta zona de transparência absoluta é
simplesmente devido às limitações de nossos corpos e nossos órgãos dos sentidos,
independentemente dos instrumentos de medida que prolongam esses órgãos dos
sentidos.

6
O conjunto de níveis de realidade e sua zona de não-resistência complementar
constituem o OBJETO transdisciplinar.
Os Níveis de Realidade podem ser explorados através da existência dentro de nós dos
diferentes NÍVEIS DE PERCEPÇÃO.
O conjunto de níveis perceptivos e sua zona de não-resistência complementar
constituem o SUJEITO transdisciplinar.
O conhecimento não é externo nem interno: é externo e interno. O estudo do UNIVERSO
e o estudo do ser HUMANO se apoiam mutuamente. A experiência de si mesmo têm
tanto valor cognitivo quanto a experiência da Natureza tem para o conhecimento
científico.
A zona de não-resistência desempenha o papel de TERCEIRO OCULTO, que permite a
unificação, na sua diferença, do sujeito transdisciplinar e do Objeto Transdisciplinar.
Permite e exige a interação entre o sujeito e o objeto. A zona de transparência, ou de
não-resistência, corresponde ao SAGRADO, ou seja, o que não se submete a qualquer
racionalização.
Vale lembrar a importante distinção feita por Edgar Morin entre racional e
racionalização.6 O sagrado é racional, mas não é racionalizável. O sagrado não se opõe
à razão: na medida em que garante a harmonia entre o sujeito e o objeto, o sagrado é
parte integrante da nova racionalidade. O sagrado é o que conecta. Não é, por si só, o
atributo de uma religião ou outra: "O sagrado não implica a crença em Deus, em deuses
ou espíritos. É ... a experiência de uma realidade e fonte da consciência de existir no
mundo ", escreve Mircea Eliade.7 O sagrado é antes de tudo uma experiência, expressa
em um sentimento, o da presença do Nós, daquilo que conecta seres e coisas e
consequentemente induz nas profundidades do ser humano respeito absoluto pelas
alteridades unidas pela vida comum em uma mesma Terra. O sagrado, como uma
experiência de um real irredutível, é de fato o elemento essencial na estrutura da
consciência e não um mero estágio da história da consciência.
A realidade engloba o sujeito, o objeto e o terceiro oculto, que são as três facetas de
uma e mesma realidade. Sem uma dessas três facetas, a Realidade não é mais real, mas
uma fantasmagoria destrutiva.
_______________________
𝑜6 Edgar Morin, Método III - Conhecimento do Conhecimento / 1. Antropologia do
conhecimento, Seuil, Paris, 1986.
𝑜7 Mircea Eliade, O teste do labirinto, entrevistas com Claude Henri Rocquet, Rocher,
coleção "Transdisciplinaridade", Monaco, 2006, p. 176.
7

O problema sujeito/objeto estava no centro da reflexão filosófica dos fundadores da


mecânica quântica. Pauli, Heisenberg e Bohr, como Husserl, Heidegger e Cassirer,
refutaram o axioma fundamental da metafísica moderna: a separação total entre o
sujeito e o objeto. A partição binária {Sujeito, Objeto}, que define a metafísica moderna,
é substituída, na abordagem transdisciplinar, pela partição ternária {Sujeito, Objeto,
Terceiro Oculto}. O terceiro termo, o terceiro oculto, não é redutível ao objeto ou ao
sujeito.
A nova relação entre o sujeito e o objeto no conhecimento transdisciplinar poderia, a
longo prazo, permitir uma transformação radical na tecnociência.
A unidade aberta entre o Objeto Transdisciplinar e o Sujeito Transdisciplinar se traduz
na orientação coerente do fluxo de informação através dos níveis de Realidade e do
fluxo de consciência que passa pelos níveis de percepção. Essa orientação coerente dá
um novo significado à verticalidade do ser humano no mundo. É essa verticalidade que
constitui, na visão transdisciplinar, a base de qualquer projeto social viável.
A transdisciplinaridade traz uma nova perspectiva sobre a Natureza.
Desde o início dos tempos, o homem mudou constantemente sua visão da Natureza. Os
historiadores da ciência concordam que, apesar das aparências, não há uma e a mesma
Natureza ao longo dos tempos8 . O que pode haver em comum entre a Natureza da
humanidade "primitiva", a Natureza dos gregos, a Natureza do tempo de Galileu, do
Marquês de Sade, de Laplace ou Novalis? Nada, além do próprio HOMEM. A visão da
Natureza em determinado momento depende da imaginação que prevalece naquele
momento, que por sua vez depende de uma multiplicidade de parâmetros: o grau de
desenvolvimento da ciência e tecnologia, organização social, arte, religião. Uma vez
formada, a imagem da Natureza atua em todas as áreas do conhecimento. A passagem
de uma visão para outra não é progressiva, continua, mas por rupturas bruscas, radicais
e descontínuas. Várias visões conflitantes podem até coexistir. A extraordinária
diversidade das visões da Natureza explica por que não podemos falar da Natureza, mas
apenas de uma certa natureza de acordo com o imaginário da época considerada𝑎9 .
____________________________
𝑜8 Robert Lenoble, História da ideia da Natureza, Albin Michel, Paris, Coleção "A
evolução da humanidade", 1990.
𝑜9 Jacques Hadamard, Ensaio sobre a psicologia da invenção no campo matemático,
Gauthier-Villars, Coleção « Discurso do Método, Paris, 1978. A primeira edição deste
livro foi publicada em 1945, em inglês, pela Princeton University Press, Nova York.
8
Apesar da abundante e fascinante diversidade das imagens da Natureza, podemos
distinguir três grandes estágios: a natureza mágica, a natureza-máquina e a morte da
natureza.
Para o pensamento mágico, a Natureza é um organismo vivo, dotado de inteligência e
consciência. O postulado fundamental do pensamento mágico é o da interdependência
universal: a Natureza não pode ser concebida para além das suas relações com o
homem. Tudo é sinal, traço, assinatura, símbolo. A ciência no sentido moderno da
palavra é inútil.
No outro polo, o pensamento mecanicista do século XVIII e especialmente do século XIX
(que ainda hoje predomina) concebe a Natureza não como um organismo, mas como
uma máquina, que é suficiente desmontá-la peça por peça para possuí-la inteiramente.
O postulado fundamental do pensamento mecanicista é que a Natureza pode ser
conhecida e conquistada por metodologias científicas, definidas de maneira
completamente independente e separada do homem. A visão triunfalista da "conquista
da Natureza" tem suas raízes na formidável eficiência tecnológica deste postulado.
O fim lógico da visão mecanicista é a morte da Natureza, o desaparecimento do conceito
de Natureza do campo científico. A Máquina da Natureza, com ou sem um Deus
relojoeiro, desde o início da visão mecanicista divide-se em um conjunto de peças
sobressalentes. A partir daí, não havia necessidade de um todo coerente, de um
organismo vivo ou de uma máquina que, apesar de tudo, tivesse um eflúvio finalista. A
Natureza está morta. Resta a complexidade. Uma complexidade incrível que invade
todas as áreas do conhecimento, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.
Mas essa complexidade é percebida como acidental, sendo o próprio homem
considerado um acidente de complexidade. Visão agradável, que nos devolve ao nosso
próprio mundo tal como o vivemos hoje.
A morte da natureza é incompatível com a interpretação coerente dos resultados da
ciência contemporânea, apesar da persistência da atitude neo-reducionista, que atribui
importância exclusiva aos blocos de construção fundamentais da matéria e às quatro
interações físicas conhecidas. De acordo com a atitude neo-reducionista, todo recurso
à Natureza é supérfluo e até mesmo desprovido de significado. Mas,
independentemente de quão resistentes sejam as atitudes retrógradas, chegou o
momento da ressurreição da Natureza. Para dizer a verdade, a Natureza está morta
apenas para uma certa visão do mundo - a visão clássica.
Na visão transdisciplinar, a Natureza se mostra viva.

9
Para dizer a verdade, "a natureza viva" é um pleonasmo, porque a palavra "natureza"
está intimamente relacionada a de "nascimento". A palavra latina natura tem como raiz
nasci (nascer) e designa a ação de nascer, bem como os órgãos femininos da geração. A
Natureza Viva é a matriz da autoconsciência do homem.
Galileu teve a visão da Natureza como um texto em linguagem matemática que ele
poderia decifrar e ler. Esta visão, que atravessou os séculos, provou ser uma grande
eficiência. Mas hoje sabemos que a situação é muito mais complexa. A natureza nos
parece muito mais um pré-texto: o livro da Natureza não é para ler, mas para escrever.
Um extraordinário, inesperado e surpreendente Eros cruza os níveis de Realidade e os
níveis de percepção. Artistas, poetas, cientistas e místicos de todas as idades
testemunharam a presença deste Eros no mundo.
O cruzamento dos níveis de Realidade pode ocorrer graças a uma nova lógica, uma lógica
quântica, a do terceiro incluído10 , que nos diz que existe um terceiro termo T que é ao
mesmo tempo A e não-A. Daí, o terceiro incluído está inscrito no próprio coração da
física quântica pelo postulado fundamental da superposição de estados quânticos.
Se permanecemos em um nível de Realidade, cada manifestação aparece como uma
luta entre dois elementos contraditórios (exemplo: onda A e partícula não-A). A terceira
dinâmica, a do estado T, é exercido em outro nível de realidade, onde o que parece ser
desunido (onda ou corpúsculo) estão na verdade unidos (quanton), e o que parece
contraditório é percebido como não contraditório. A lógica do terceiro incluído é uma
lógica da complexidade e até, talvez, sua lógica privilegiada na medida em que permite
a travessia, de forma coerente, nos diferentes domínios do conhecimento. A
transdisciplinaridade é verdadeiramente um conhecimento do terceiro.
Mas hoje vivemos uma escabrosidade completa do pensamento binário. A lógica binária
da verdade absoluta e da falsidade absoluta age com um descaso que deixa qualquer
um intrigado. "A luta do bem contra o mal", "Deus está conosco!" - tantos slogans que
tornam a multidão feliz com aprovação e culminam com essa incrível afirmação que,
inconscientemente, repete um conhecido slogan leninista: "Quem não está conosco
está contra nós!" O assassinato da transcendência é o ponto culminante do pensamento
binário. O relativo se torna um absoluto de tal maneira que se pode afirmar qualquer
coisa e seu oposto. Os adversários agem cada "em nome de Deus"? Qual Deus? Haveria
tantos deuses como religiões?
______________________

𝑜10 Stéphane Lupasco, O Princípio do Antagonismo e a Lógica da Energia –


Prolegômenos para uma Ciência de Contradição, Hermann, Série "Notícias Científicas e
Industriais", nº 1133, Paris, 1951; 2ª edição: Rock, Coleção "O Espírito e a Matéria",
Mônaco, 1987, prefácio de Basarab Nicolescu.
10

Na visão transdisciplinar, a pluralidade complexa e a unidade aberta são duas facetas da


mesma Realidade. A estrutura de todos os níveis de Realidade é uma estrutura
complexa: cada nível é o que é porque todos os outros níveis existem ao mesmo tempo.
Níveis de Realidade e Percepção, o terceiro incluído e a complexidade definem a
metodologia da transdisciplinaridade𝑜11 . Eles induzem um isomorfismo entre os
diferentes domínios do conhecimento, determinando assim uma estrutura fractal da
Realidade.
Esses três pilares do conhecimento transdisciplinar são, portanto, a fonte de novos
valores, graças ao caráter Gödeliano da Natureza e do conhecimento.
A estrutura aberta de todos os níveis de Realidade está de acordo com um dos
resultados científicos mais importantes do século XX: o teorema de Gödel, relativo à
aritmética e, consequentemente, a qualquer matemática que inclua a aritmética e que
nos diz que um sistema de axiomas suficientemente rico leva inevitavelmente a
resultados indecidíveis ou contraditórios. O teorema de Gödel expressa um apofatismo
matemático e lógico, como um eco do apofatismo religioso12 .
Em nosso livro, “Nós, a partícula e o mundo”, cuja primeira edição foi publicada em
1985, cheguei à conclusão, com base no teorema de Gödel, que, na medida em que a
teoria unificada das interações físicas seja axiomática e inteiramente formalizada, será
necessariamente incompleta13 . Portanto, o ambicioso projeto de uma Teoria do Todo,
sonho de unificação, compartilhado pela grande maioria da comunidade de físicos
teóricos, nunca poderia ter sucesso. Fiquei satisfeito por notar que Stephen Hawking
chegou em 2002, em sua palestra "Gödel e o Fim da Física", apresentado na celebração
do centenário do nascimento de Paul Dirac, chegou à mesma conclusão14 .
_____________
𝑜11 Basarab Nicolescu, Transdisciplinaridade, op. cit.
𝑜12 Basarab Nicolescu, Rumo a uma metodologia apofática do diálogo entre ciência e
religião, Ciência e Ortodoxia, um diálogo necessário, Curtea Veche, Bucareste, 2006,
editado por Basarab Nicolescu e Magda Stavinschi, p. 1929.13 Basarab Nicolescu, Nós,
a partícula e o mundo, op. cit.

𝑜13 Basarab Nicolescu, Nós, a partícula e o mundo, op. cit.


𝑜14 Hawking, "Gödel e o fim da física",
http://www.damtp.cam.ac.uk/events/strings02/dirac/hawking/
11
Um novo Princípio da Relatividade emerge da convivência entre pluralidade complexa e
unidade aberta: nenhum nível de Realidade constitui um lugar privilegiado a partir do
qual se pode entender todos os outros níveis da Realidade. Este Princípio da
Relatividade é o fundador de uma nova perspectiva sobre cultura, religião, política, arte,
educação, vida social. E quando nossa visão do mundo muda, o mundo muda. Ele nos
diz que nenhuma cultura ou religião é o lugar privilegiado a partir do qual outras culturas
e outras religiões podem ser julgadas. É o ser humano, em sua totalidade aberta, que é
o lugar sem lugar do transcultural e transreligioso, isto é, do que atravessa e excede as
culturas e as religiões. O transcultural e o transreligioso dizem respeito ao tempo
presente da transistoria, que é ao mesmo tempo o domínio do impensável e da epifania.
A atitude transcultural e transreligiosa não é um simples projeto utópico: está inscrito
nas profundezas do nosso ser. Através do transcultural, que leva ao transreligioso, a
guerra das civilizações, ameaça cada vez mais presente no nosso tempo, não teria razão
para ser.
O autoconhecimento do universo e o autoconhecimento do homem são inseparáveis.
A ciência e a consciência, os dois pilares da futura democracia universal, se apoiam. A
ciência sem consciência é a ruína do ser humano, mas a consciência sem ciência também
é sua ruína. A responsabilidade pela auto-transcendência - nossa responsabilidade - é o
terceiro incluído que une ciência e consciência. O homo sui transcendentalis está
nascendo. Ele não é um "homem novo", mas um homem que nasceu de novo. Este novo
nascimento é uma potencialidade inscrita em nosso próprio ser. Ninguém e nada podem
nos forçar a evoluir. Temos a escolha entre mudar ou desaparecer. Nossa evolução é
uma autotranscendência. É todo o problema da relação entre o despertar individual e o
despertar coletivo, que é o centro da nossa possível evolução. E a evolução hoje só pode
ser a consciência. Criar as condições para atualizar esta evolução torna-se assim uma
responsabilidade política. A revolução de hoje só pode ser uma revolução da
inteligência, transformando nossa vida individual e social em um ato estético, bem como
ético, como forma de revelar a dimensão poética da existência. Uma vontade política
efetiva hoje só pode ser uma vontade poética. Assim, a era da fraternidade pode ser
aberta, depois da igualdade e da liberdade.
Não muito tempo atrás, as pessoas proclamavam a morte do homem e o fim da história.
A abordagem transdisciplinar nos permite descobrir a ressurreição do sujeito e o início
de um novo estágio em nossa história.

12
Estamos no limiar de uma nova era de iluminação? Estou convencido disso. A luz em
questão é sempre a mesma: a da razão. Mas uma razão ampliada, aberta, em diálogo
permanente com aquilo que a transcende. O pensamento dos limites está intimamente
ligado ao conhecimento dos limites da razão. Este pensamento de limites, que irá
integrar razão e mistério, é o novo horizonte do conhecimento no século XXI.
Quando a caixa de Pandora se abriu, os males que escaparam ameaçaram os humanos
que povoavam a Terra. No fundo da caixa desejamos encontrar, escondida, a esperança.
Esperança, esta, por sinal, que a transdisciplinaridade pretende testificar.

Basarab NICOLESCU

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