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©2017 Elena C. Palmero Gonzalez Stelamaris Coser Revisao Fabiola Castro de Oliveira Capa Marta Loguércio Projeto grafico Ronaldo Machado | Letra Diagramacao Luis Gustavo Schuwarsteman Impress3o Printstore Letral www.editoraletral.com.br CNPJ 12.062.268/0001-37 letral@editoraletral.com.br (52) 3372 9222 PORTO ALEGRE ~ BRASIL DADOS INTERNACIONAIS DE PUBLICACO BIBLIOTECARIA KETLEN STUBBIR CRB: 10/2221 Em torno da meméria: conceitos ¢ relacdes J organizacio de Elena C. Palmero Gonzalea ¢ Stelamaris Coser . ~ Porto Alegre : Editora Letral, 2017. 398 p. ASBN 978-85-63800-27-5 1, Meméria: conceitos. 2. Discurso literario das Américas. 3. Arte, cultura e sociedade no espaco. das Américas. I. Gonzalez, Elena Palmero. II. Coser, Stelamaris, IIL. Titulo. CDU 82.09 (7/8) Memoria cultural Zila Bernd A.expressio “Memoria cultural” acompanha o movimento de releitura de disciplinas como Historia e Antropologia, que foram repensadas no sentido da incorporacie do oral, das sensibilidades, dos residuos memoriais e de manifestacées consideradas “menores” no Ambito da historiografia tradicional, representado pelo ponto de vista dos desfavorecidos. Surge, assim, entre os anos 1960 e 1980, com a escola dos Annales, na Franga, uma visio da Histéria que avanca para os dominios do cultural, “buscando ver como as praticas e experiéncias, sobretudo dos homens comuns, traduziam-se em valores, ideias €conceitos sobre o mundo” (PESAVENTO, 2012, p. 32). Em. 1978 Jacques Le Goff batiza esta tendéncia de Nova Historia, sendo que Hayden White e Paul Ricoeur ampliam o conceito no sentido de valorizagdo do papel da narrativizacao e da ficcionalizacdo da histéria aproximando-a do fato literario, no sentido da valorizacao do simb6lico, dos vestigios memoriais ¢ da representacao. Conforme Sandra Pesavento, autores como. Paul Ricoeur, Hayden White, Michel Foucault e Roland Barthes, ao discutirem os distanciamentos e as aproximagées entre narrativa histérica e literaria, constroem o que ela chama de arqueologia da Histéria Cultural, que aos poucos incorpora algumas dessas ideias que passam a ser introduzidas no Brasil a partir des anos 1980. Os teéricos que hoje introduzem nos estudos da Meméria social e coletiva, a denomina¢So de Meméria cultural, tais como Aleida e Jan Assmann e Andreas Huyssen, valorizam os estudos da memoria nado apenas em termos de armazenamento de dados em arquivos, mas de tudo aquilo que escapa ao registro oficial, como o residual, o que foi obliterado ou o que se tentou apagar. Enfim, a assim chamada Memoria cultural incorporaria os elementos que pertencem & esfera do sensivel e do simbélico e que escapam ao registro hegeménico do poder e sua tentativa DOI 10.21826/9788563800282245. Zila Bernd de construgao de uma identidade nacional em termos de totalizacao. Ha, portanto, um carater politico inegavel na utilizac3o do conceito de Meméria cultural. Evidentemente que os ensinamentos de Walter Benjamin esto na base desse revisitar da extensissima bibliografia que compreende os estudos sobre a Memoria. Ian Assmann (2010, p. 41) aborda a questao do imbricamento das denominacées: Memoria individual e coletiva (Halbwachs); Memoria social (Warburg) e Meméria cultural, explicitando que Meméria coletiva seria a denominacao genérica, enquanto ele se preocupa, no livro intitulado Mémoire culturelle; écriture, souvenir et imaginaire politique dans les civilisations antiques (versao do original em alemao 2002), em distinguir meméria comunicacional e meméria cultural, que seriam aspectos da meméria coletiva. Afirma o mesmo autor que cultura da lembranca e meméria cultural podem ser descritas em termos de “tradic4o” e “transmiss4o” (2010, p. 31). Se Maurice Halbwachs admitia a dificuldade em distinguir com nitidez memria individual e memoria coletiva na medida em que o individuo incapaz de rememorar fora do ambito dos quadros sociais da meméria, ou sef do ambiente social em que foram vividos os acontecimentos, J6 Gondar (2008) em artigo na revista eletrénica Morpheus, problematiza a separa¢o estanq entre memé6ria individual, coletiva e social. Nao aceita a argumentac: tradicional que fala em meméria coletiva referindo-se aos tempos anteriort a escrita (comunidades orais), enquanto memoria social seria a denomina, utilizada nas comunidades onde a escrita ja havia se fixado. Como acabame de referir, Jan Assmann argumenta que a memoria cultural remete a das dimensGes externas da memria humana. Nessa medida a mem6i cultural, segundo Assmann, seria uma das quatro dimensdes da memé externa, a saber: 1. meméria mimética (indicacées escritas como livros cozinha, bulas, manuais, etc.); 2. memdria dos objetos (méveis, qua utensilios domésticos que despertam lembrangas de nossos ancestrais); meméria comunicacional (a linguagem e a capacidade de comunicar-se seria interna, mas desenvolve-se no contato com os demais); 4. mem cultural ou transmissao do sentido (ritos e comemora¢ées sao transmitis os préprios objetos quando se tornam icones transbordam o sentido: memoria dos objetos para se tornarem “memoria cultural”). (ASS! 2010, p. 18-19) Ja para Andreas Huyssen, o sentido de meméria cultural est asso A meméria geracional: para algo se transformar em memériaé preciso que transmitido de geracao em geracao. O tempo do ato de memériaéo pri endo 0 passado, embora toda memoria dependa de alguma experiéz que ocorreu no passado (HUYSSEN, 1995, introducdo). Valendo-se de aria cultural issima metafora — 0 ocaso ou creptisculo—para definir a meméria, o autor menciona que € neste periedo intervalar, que ainda nao é noite, mas jA nao é s dia, que as memdrias emergem. “Ocaso (twilight) 60 momento do dia antecede a noite do esquecimento; um entre-lugar em que a ultima luz o dia ainda pode efetuar maravilhas. E o tempo privilegiado da meméria” fp. 19-21). A memoria cultural esta constituida nao apenas por dados de quivo ou pela historiografia tradicional, mas também pela meméria contida 0s vestigios, no que foi reprimido. A maioria dos autores ja citados ¢ que trabalham com o conceito de peméria cultural insistem na relagao entre o imagindrio urbano e as memérias uumdticas (exterminios, deporta¢ées, shaa, etc.), pois ambos tém um papel- chave na transformacdo das sociedades contemporaneas. Nesse sentido, = emprego do conceito meméria cultural imprime um sentido politico & neméria. Régine Robin, num saboroso livre que é ao mesmo tempo ensaio e autobiografia, Le roman mémoriel; de \’histoire al écriture du hors lieu (1989), bematiza em ensaios e em contos ficcionais, as narrativas de vida de grupos populacao que foram obrigados a silenciar, a esquecer ¢ a reprimir para sobreviver, com énfase para a comunidade judaica a qual ela pertence. Essas embranc¢as constituiriam a meméria cultural que, segundo a autora, nao se confunde com memoria de grupo, no sentido identitario do terme (1989, p. tural “é o que nés conhecemos de melhor” (p. 56) *. Para melhor explicitar a formula, ela insere uma citacao de seu romance La Québécoite no qual a personagem recém-chegada da Franca para o Quebec, rememora com nostalgia 9 que ela ea familia, que exilou-se na Franga durante a ocupacao nazista da Polénia, faziam: os livros que liam, os poemas que recitavam, os exercicios piano, os fragmentos de filmes assistidos, os objetos que decoravam a ‘casa bem come fotos amarelecidas. Assim, a personagem elabora listas de nes, misicas, objetos, nomes préprios para n‘io esquecé-los. Essa meméria tural seria polifénica e, segundo Robin, seria aquela que se desenvolve "melhor em narrativas ficcionais do que na escrita da Historia: Passado fixado, conservado, magnificado, comemorada; pasado odiada qué queremos esquecer, que reprimimos; contra-memoria que opomos a meméria nacional, a meméria oficial, tirando nossa identidade do “nds” que € oposta a “cles”, passado opressivo. (p. 59)? As traducdes das citagses sio de minha autoria: “est c2 que nous avons conmude meitteur” "2 “Passé fixe, conserve, magnifié, commémoré passé hai que l'on veut oublier, que l'on refoule : mémoire qu’on oppose 3 la mémoire nationale, la mémoire officielle, en sortant son identité du ‘nows autres’ opposé & ‘eux’. passé pesant’ 247 Zila Bernd Régine Robin associa meméria cultural e romance memorial ou romance familiar. Para a autora, 0 romance memorial seria aquele em que “um individuo, um grupo ou uma sociedade pensa seu passado modificando-o, deslocando-o, deformando-o, inventando lembrangas, um passado glorioso, ancestrais, genealogias ou, ao contrario, lutando pela exatidao factual, para a reconstituicao do acontecimento ou sua ressurreicao” (ROBIN, p. 48, traducéo nossa). Esse romance seria necessariamente hibrido porque nao separa mito e fato cientifico, nem o legendario do histérico. Resumidamente, a meméria cultural, expressa através do romance memorial ou parental, desencadeia afetos e pode ser definida como a rememoracio dos “fantasmas pelos quais sujeito modifica imaginariamente seus lagos com seus pais”. (FREUD apud ROBIN, 1989, p. 47) Dominique Viart, em alentado estudo sobre a Literatura francesa na contemporaneidade, aponta como uma das caracteristicas do romance atual na Franca a preocupasae com a tematica da ascendéncia, da ancestralidade, projeto este que faz parte de um projeto mais amplo conhecido come as “escritas de si”, onde se induem as autobiografias e as obras autoficcionais. Observa o autor que, a partir dos anos 1980, o carater de interioridade, que caracteriza as escritas de si, evolui para o cardter de anterioridade, que define as chamadas escritas da filiacdo (escrever sobre o pai ou a mae). (VIART, 2008, p. 79-101) Falar dos pais ¢ um subterfugio para falar de si préprio, apontando para um desejo de conhecer melhor a heranca deixada pelos pais. Na verdade trata-se do autobiogrdfico descrito através de outro ponto de vista. O filho deseja saber o que aconteceu em momentos da vida dos pais em que ele nao esteve presente. Na verdade esse tipo de romance da meméria familiar rende tributo aos pais e avés, salientando o quanto o narrador herdou de ses ancestrais, estabelecendo um continuum familiar. Como explicitaremos a seguir, citando um estudo de Anne Muxel, essa narrativa que se alicerca na memé6ria cultural da familia esta voltada para as origens e para os modos de transmissao. Esse tipo de romance familiar ou memorial, que Viart chama de romance de filiacao, articula-se a partir de vestigios (objetos da casa paterna, cartas, fotos) ou da falta (pais ausentes, transmissdo imperfeita). O autor supre 08: elementos da falta, do esquecimento, com sua imagina¢ao, rendendo em muitos casos, homenagem aos pais. Anne Muxel, em Individu et mémoire familiale (2007), desenvolve o tema das funcdes da memoria familiar (p. 13): ria cultural A funcio de transmissdo: “a meméria é mobilizada para restituira histéria do individuo no conjunto dos lacos genealdgicos e simbélicos que o unem aos membros de uma familia” (MUKEL, 2007, p. 14) # a repetigio que opera a transmissio e é a socializacao que propicia a reproducao (p. 19); A funco de revivescéncia afetiva: a narrativa de filiacdo tenta reviver a afetividade, apds a perda ou a separacao da familia: A fungao de reflexividade (avaliar sua vida): memaéria negociada; mais do que trace (traco), a meméria é um tracade. Tendo desaparecido os lugares de memoria familiar, a lembranca deve ser fixada em um lugar, voltar a enraizar-se. Objetos, cartas, fotografias que restam so transmitidos aos descendentes em memoria dos ascendentes desaparecidos; a transmissio tem, assim, um papel de reparacao. (MUXEL, 2007, p. 191) Aleida Assmann é outro nome incontornavel quando se fala ou se tende conhecer melhor o conceito de Memédria cultural. Em Espagos de -cordacdo; formas e transformacées da meméria cultural (2011), a autora yoxima a importancia da transmissao de grandes obras através dos tempos e geracées com a importancia que tém as anotagées de nossos avés e bisavés, que chegam até nés através das histérias de familia recontadas oralmente. Ha entao um paralelo entre a meméria cultural, que supera épocas € é guardada em textos normativos, e a meméria comunicativa, que normabmente liga trés geracdes consécutivas e se baseia nas lembrancas legadas oralmente. Selibne diagnostics a dimimuacto da mernéria vos dois niveis - memoria cultural e comunicativa. (ASSMANN, 2011, p-17) A autora fala em “reanimacdes” no sentido de que com o trauma (deportacao, exilios forcados, permanéncia longa em campos de concentracao, guerras, ete.), as experiéncias ficam “encapsuladas”, bloqueadas, impedindoas lembrangas recuperadoras. A volta a determinados lugares reativa a recordacao, assim como a recordacao reativa o lugar. E importante notar que Aleida Assmann fala em crise da meméria cultural por tentativas da sociedade de apagamento de determinadas passagens da histéria. Nesses momentos criticos ela salienta o papel da arte, da arquitetura que ird projetar monumentos para fazer aflorar reminiscéncias. “A memoria artistica nao funciona como armazenador, mas estimula os armazenadores ao tematizar os processos delembrar e esquecer” (p. 16). Em varios capitulos desse livro acima citado de 2011, a autora evocaaimportincia da arte que, ao tematizar a crise da meméria cultural, encontra “novas formas 243 Zila Bernd para a dinamica da recordagio e dos esquecimentos culturais” (p. 16). Nessa medida, obras artisticas como o Museu Judaico de Berlin, do arquiteto Daniel Libeskind, sao tentativas de preservar os resquicios, os restos, uma vez queo lixo ou residuos sao estruturalmente tao importantes para o arquivo quanto © esquecimento o é para a lembranga. (cf. ASSMANN, p. 17) E interessante observar nesse video do Museu Judaico de Berlim, a sala em que os visitantes caminham sobre rostos esculpidos dos mortos nes campos de exterminio alemies. Resumindo, nao é s6 através da memoria cultural que rememorames mitos, rituais e celebragées, obras artisticas e textos literdrios, que povoaram nosso imagindrio, mas também através da tradicao, da vivéncia compartilhada de grandes traumas como o Holocausto eda comunica¢ao no ambito familiar e social. A meméria voluntaria e a involuntaria desencadeiam a memoria cultural, j4 que elementos memoriais traumaticos podem voltar a superficie depois de longo periodo de amnésia, siléncio e temor ou impossibilidade psiquica de rememora-los, Em um mundo marcade pela extrema mobilidade de informacoes, pode-se assegurar o fluxo entre passado e presente e a preservacao de patriménios culturais — que de outra forma se perderiam — através do trabalho da memoria cultural. (cf MARSHALL, 2008, p. 16) Ver também: Vestigios/rastros memoriais, p. 375 Referéncias ASSMANN, Jan, La mémoire culturelle: éeriture, souvenit et imaginaire politique dans les civilisations antiques. Trad. alemao para francés de Diane Meur. Paris: Flammarion, 2010. ASSMANN, Aleida. Introdugio (p. 15-27) ¢ A crise da Meméria cultural. (p. 437-442). In: Espacos de recordacéo: formas e transformacoes da memoria cultural. Paulo Soe (trad. e coord.). Campinas: Editora UNICAMP, 2011. BERND, Zilé, Estratégias memoriais nas sociedades contemporaneas. In: GRAEBI Cleusa M. SANTOS, Nadia M.W. (Org,) Meméria social: questdes tedricas e metodolégicas Canoas: editora UnilaSalle, 2013. p. 45-66. Série Memoria e Patrimonio, 5 BERND, Zild. Por umaestética dos vestigios memoriais: releitura das literaturas das Améri Belo Horizonte: Fino trago, 2013. 250 ria cultural , Pierre. Epistémologie du concept de transmission (p. 19-23). In: RODET, Chantal .). La transmission dans la famille:secrets, fictions etidéaux. Paris: LHarmattan, 2003. IDAR, J6. Meméria individual, meméria coletiva e meméria social. Morpheus - asta eletrénica em Ciéncias Humanas. Ano 8, ntimero 13, 2008. 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