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Gonçalves, T.R.; Silva, R.N.

“Encontro com Ciborgues no hospítal: cartografias de um campo cirúrgico”

ENCONTRO COM CIBORGUES NO HOSPITAL:


CARTOGRAFIAS DE UM CAMPO CIRÚRGICO
Tonantzin Ribeiro Gonçalves
Rosane Neves da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: O presente trabalho é fruto da consultoria em psicologia do trabalho realizado com trabalhadores
da unidade de bloco cirúrgico de um hospital geral em Porto Alegre. Pretendeu-se discutir a relação constitutiva
entre trabalho e subjetividade no contexto da enfermagem cirúrgica, buscando mapear modos particulares de
fazer, sentir, sofrer e subjetivar, além de descrever e problematizar a organização do trabalho e as relações
desejantes entre trabalhadores e hospital. Por fim, debate-se atravessamentos da contemporaneidade na ativi-
dade cirúrgica, tais como, a ciborguização, a biotecnologia, a engenharia genética, o questionamento do “eu”
e a reconstrução da noção de corpo.
PALAVRAS-CHAVE: subjetivação; trabalhadores cirúrgicos; ciborgues.

MEETING WITH CYBORGS IN THE HOSPITAL: CARTOGRAPHIES OF A SURGICAL WARD

ABSTRACT: The present work is the result of the consultancy in psychology related to a work accomplished
with workers in a unit of a surgical ward at a General Hospital in the city of Porto Alegre. The work intended
to discuss the constitutive relation between work and subjectivity in the context of the surgical nursing, looking
for the outline of peculiar manners of doing, feeling, suffering and making subjective. Moreover, the article
describes and problemizes the organization of the work and the desirable relationships among the workers and
the hospital. Finally, it discusses contemporary issues which permeate the surgical activity, such as, robotization,
biotechnology, genetic engineering, the questioning of “me” and the reconstruction of the body notion.
KEY-WORDS: subjectivity, surgical workers, cyborgs.

O surgimento do hospital tal como hoje o co- tal e de seus objetivos, a partir da revolução indusrial,
nhecemos, espaço onde se imbricam avançadas confunde-se “com uma dupla ordem de técnicas: as
tecnologias médicas e digitais tem como marco da técnicas do poder disciplinar – disciplinando o coleti-
transformação de suas funções o final do século XVIII vo dos corpos em desarranjo social; e as técnicas de
(PITTA, 1990). O hospital, em seus primórdios, perí- cuidados médicos – introduzindo seus ritos e saberes
odo que compreende a pós-revolução industrial, ser- instrumentalizados pela Clínica enquanto tecnologia
via como uma instituição-depósito de mendigos, po- individual” (p.43). Assim, já no século XIX, a preocu-
bres, vadios, doentes e loucos com uma função social pação com a saúde coletiva parece surgir como uma
de higiene e disciplina (FOUCAULT, 2002). Essa “no- primeira tentativa de controle sobre o corpo - sede da
bre” tarefa de acolher os mais necessitados e levar os força de produção e trabalho - e não mais somente
doentes a uma morte mais tranqüila estava muito ali- intentando a exclusão social dos indigentes e vadios.
nhada com o ideal cristão de caridade (FOUCAULT, No entanto, o hospital para além de regular
1981). As marcas da união entre saúde pública e reli- somente seus pacientes e assear o cotidiano de toda a
gião, perduram até os dias de hoje nos corredores hos- doença e sofrimento, exerce forte influência sobre seu
pitalares, apesar da transformação da cura em mer- contingente de trabalhadores, operando nestes um
cadoria de consumo tecnológico. modo particular de lidar com seu objeto de trabalho.
Pitta (1990) aponta outro aspecto interessan- Hoje em dia os avanços tecnológicos na área
te a respeito do hospital como instituição social. Se- informacional e dos equipamentos de análises bioló-
gunda a autora, o hospital passa a servir como uma gicas, químicas e de imagens inserem, no âmbito dos
espécie de ferramenta de isolamento e esconderijo para processos de trabalho no hospital, a precisão, a
a doença e para o morrer, afastando do cotidiano, e automatização, o aumento da velocidade e também a
por que não, da concepção de normalidade, proces- diminuição do número de trabalhadores necessários
sos que ainda faziam parte do convívio social na Ida- para a realização das mesmas atividades. O traba-
de Média. Ainda conforme a autora, a partir do sécu- lhador tornou-se dispensável em função da perda de
lo XIX, o princípio da transformação social do hospi- um saber que o qualificava, ao mesmo tempo em que
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lhe é exigido cada vez mais atenção na regulação e ca, o questionamento do “eu” e a conseqüente
manejo das tecnologias. ressignificação e reconstrução da noção de corpo.
A partir deste panorama sobre a história dos
hospitais, fica patente que os processos de subjetivação CARTOGRAFANDO A ECOLOGIA VERDE:
do trabalhador, neste contexto, são atravessados, de O AR DE ENCANTADO
maneira cortante por noções histórica e socialmente Buscando mapear o território do bloco cirúr-
contextualizadas de saúde, doença e morte. Os gico, mundo pertencente aos seus trabalhadores e ha-
tensionamentos produzidos entre essas categorias de bitantes transitórios (pacientes), utiliza-se o método
análise, e outras, trazidas pela contemporaneidade e cartográfico. Com relação à constituição do objeto de
pelas novas tecnologias, engendram formas de traba- pesquisa, Mairesse (2003) afirma que o conhecimen-
lhar e subjetivar no âmbito das relações de trabalho e to se produz na construção deste, processo que impli-
dos modos de viver no hospital (GUATARI, 1997). E, é ca inevitavelmente em “engolir” o objeto fazendo-o
nesse cenário que se inserem a particularidade do tra- tornar-se parte de nós mesmos e deixando-se atraves-
balho em bloco cirúrgico, campo onde se imbricam sar e redesenhar por ele. Neste sentido, Regina
de maneira bastante explícita as relações dos traba- Benevides de Barros (citada em MAIRESSE, 2003)
lhadores com as novas tecnologias e as exigências define território como uma construção espacial subje-
daí advindas. O presente trabalho tem como objetivo tiva a qual permite a montagem e desmontagem de
relatar experiências e reflexões realizadas a partir de modos de ser dos sujeitos envolvidos. Rolnik (1989)
atividades implementadas pela psicologia do traba- também se utiliza da figura do antropófago para ca-
lho junto a um grupo de trabalhadores de enferma- racterizar o cartógrafo. Pensamos que a figura desse
gem em centro cirúrgico1 . A afecção causada pela antropófago, no âmbito do bloco cirúrgico, precisou,
vivência com o trabalho e com os trabalhadores deste além de engolir também se permitir digerir passiva-
tipo de unidade e pelas excursões observatórias ao mente, isto é, deixar cortar sua carne, sangrar, reme-
local, serviram como motivadores iniciais, para as xer suas entranhas, implantar objetos estranhos. Des-
reflexões aqui apresentadas. As visitas exploratórias te modo, entender a paisagem, as belezas e os aciden-
à unidade cirúrgica atuaram, em certa medida, como tes do centro cirúrgico, não significou explicar ou
dispositivos desterritorializantes. Expurgados da mol- descobrir algo sobre este objeto de pesquisa - ou será
dura protegida dos departamentos e serviços de um do desejo? - mas mergulhar em meio às suas intensi-
hospital, lugar tradicional de intervenção da psicolo- dades, estabelecendo conexões lingüísticas que per-
gia, deparar-se cruamente com a vida pelos fios das mitam ao pesquisador integra-se em uma história e
máquinas, dos corpos expostos e entregues, convoca- na constituição de territórios existenciais.
nos a elaborar alguma âncora de entendimento que As vivências nesse contexto, repletas de te-
dê conta deste encontro. mores e surpresas, iniciaram-se nos contatos com o
A partir desta afecção provocadora, preten- grupo de técnicos e enfermeiros dessa unidade. O en-
deu-se discutir a tessitura da relação constitutiva en- contro com uma ecologia verde, o nicho dos podero-
tre trabalho e subjetividade no contexto de trabalha- sos cirurgiões, ao mesmo tempo execrados da medi-
dores da enfermagem cirúrgica, buscando assim cina2 , exigiu, primeiramente, despir-se das próprias
mapear modos de fazer, sentir, sofrer e subjetivar. roupas, dos próprios saberes; ali se fala outra língua
Neste sentido, se demarca aqui o referencial da psico- e se veste roupas e toucas verdes. O centro cirúrgico
logia social, o qual diz respeito à indissociabilidade se alimenta de elementos do exterior, dos instrumen-
entre mundo e sujeitos e tomando-se como método, a tos esterelizados, dos pacientes que chegam, dos fun-
cartografia (FONSECA, 2003; ROLNIK, 1987). Num cionários que se paramentam no vestiário. Comuni-
primeiro movimento, intenta-se situar o leitor quanto ca-se intensamente com seus diversos exteriores atra-
ao objeto de pesquisa, oferecendo algumas imagens vés dos expurgos, das televisões de evolução das ci-
deste nicho e conduzindo-o também a experimentar rurgias, as quais informam os parentes, do elevador
certas afecções. Num segundo momento, se desliza interno que leva os “óbitos” ao morgue, do elevador
para a temática central a qual diz respeito aos modos do Arsenal de Instrumentos. Esse último setor supre os
de subjetivar e trabalhar em unidade cirúrgica quan- trabalhadores de cortantes e ligantes imprescindíveis
do se procura descrever e problematizar a organiza- para o arranjo de novas formas de agenciamentos bi-
ção de trabalho e as relações desejantes entre traba- ológicos de manutenção da vida.
lhadores e hospital. A seguir, discute-se alguns Além destes espaços, as intervenções de ou-
atravessamentos instituintes da contemporaneidade os tros setores, como a psicologia do trabalho e os re-
quais parecem incidir diretamente sobre a atividade cursos humanos na unidade, aparecem como disposi-
laboral em cirurgias, como, por exemplo, a tivos estrangeiros e, por vezes, experimentados como
ciborguização, a biotecnologia, a engenharia genéti- invasores ou inimigos. As perturbadoras e vertigino-
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sas discussões que emergiram a partir das visitas nual de tesouras, fios, gases, bisturis e aparadores. A
observatórias na consultoria em grupo3 foram com- técnica de enfermagem deve poder prever o próximo
batidas como germes com ausências glaciais aos en- movimento, o próximo corte, a quantidade do fluxo
contros. Os uniformes protegem o ambiente asséptico, de sangue e as gases necessárias ao estancamento.
das bactérias que carregamos e porque não dizer tam- Isolado no campo cirúrgico, o instrumentador não é
bém de nossas diferenças. O ar que se respira tam- de maneira nenhuma autônomo em seu trabalho, de-
bém deve ser filtrado pelas máscaras, assim com o pende do circulante, das mãos infectadas e dos pés
chão protegido de nossos calçados. Assim, são deste4 . A enfermeira passa pela sala supervisionando,
recepcionados os de “fora”, de maneira brutalmente organizando, mas o poder sobre o paciente e os movi-
indiferente, metamorfoseando-se, e sendo neutraliza- mentos dos técnicos e médicos permanece sendo o
dos para não serem expulsos como invasores: silenci- imprevisível andar do próprio procedimento, por ve-
osamente, os forasteiros são devorados. zes, ritualístico, por vezes, furação impetuoso. A vida
Neste ínterim, pode-se apresentar duas ima- pulsa em desatino, transborda.
gens, as quais são úteis para a visualização da paisa- Máquinas e humanos parecem se entrincheirar
gem afetiva do centro cirúrgico contemplado por este lado a lado no centro cirúrgico. O limite entre a natu-
estudo. A primeira é de uma mulher levada em uma reza humana, tão “divinamente” constituída, e a na-
cadeira de rodas pelo corredor por dois residentes em tureza fabricada artificialmente está por um fio. Alta
direção a uma das salas cirúrgicas. Ela está visivel- exigência de perfeição, de nunca esquecer de qual-
mente abalada pela situação que se aproxima. As lá- quer detalhe, não pode haver erros de movimentos,
grimas escorrem pelo seu rosto, transfigurado pelo passos infalsos, não há tempo para treinar, aprender
medo. A residente é inevitavelmente perturbada pelos ou corrigir. As cirurgias que utilizam o recurso do
soluços, mas os rebate afirmando friamente: “Não vídeo, as quais são cada vez mais freqüentes e aplicá-
precisa chorar”. A mulher, inconformada, continua veis a diversas patologias, mostram, na televisão, os
chorando. Uma anciã faz parte de uma segunda ima- movimentos, incisões e aplicações de laser. As câmeras
gem a qual pode ser figurativa. Ela entra na sala dei- tornam-se os olhos da equipe cirúrgica a qual se guia
tada na maca e olha suplicante, com ar de pavor, agora pela realidade das imagens produzidas digital-
para a técnica que a arrasta para a mesa cirúrgica mente e não mais pela realidade da carne do pacien-
sem dizer palavra. Os residentes despem seu peito velho te. Na realização de transplantes de córnea e cirurgi-
e branco, sem pudor, dos panos verdes que lhe colo- as oftálmicas em geral, o olho do cirurgião se acopla
caram, colando-lhe os adesivos de monitoração car- literalmente ao olho do microscópio, que, por sua vez,
díaca. A anciã olha suplicante para o também velho se acopla à lente da câmera e juntos operam verda-
médico professor como que para abster-se da vergo- deiras proezas em diminutas dimensões. Quem assis-
nha sentida no momento. Alheio, ele folheia distrai- te, pode sentir-se, por instantes em um cinema, pois
damente o prontuário da paciente. Por um instante, o as luzes da sala ficam apagadas e há somente um
professor lembra da paciente, quando então coloca- ponto de luz sobre o olho do paciente. A televisão
lhe a máscara de oxigênio com anestésico: “-De onde exibe, para a equipe, os fantásticos e milimétricos
tu és?”; “-De Encantado, Doutor”; “-Então, agora faz movimentos do cirurgião e de sua instrumentadora
de conta que tu vais respirar um arzinho de Encanta- que despeja, ritmicamente, ínfimas quantidades de
do”. líquido para lubrificar o olho, ao mesmo tempo em
que alcança os instrumentais. A vida sendo remodela-
CAPTURAS SUBJETIVANTES E da vira mídia em tempo real! Mas isso ainda não bas-
FUGAS DE SINGULARIZAÇÃO ta ao ímpeto tecnológico dos humanos e à vontade de
Erros? Quais erros? Eles não existem, não aproximar-se das máquinas. Recentemente, o Institu-
podem existir, reza a enfermeira, a lei do bloco cirúr- to Nacional de Prótese Neurológica dos Estados Uni-
gico. Para os trabalhadores da enfermagem, o limite dos anunciou o desenvolvimento de um olho de vidro
está bem posto: o médico é dono do paciente e a uni- com uma minúscula câmera embutida, a qual capta-
dade como um todo, por sua vez, parece ser dona das ria as imagens para chips eletrônicos implantados no
subjetivações, dos ritmos, das expressões, das máqui- córtex cerebral (NOVAES, 2003).
nas, dos membros, barrigas e corações. O cirurgião Os transplantes, outra atividade bastante co-
comunica-se com sua instrumentadora por códigos de mum, inserem no âmbito das cirurgias a avançada
sinais, indicando instrumentais extremamente especí- tecnologia da substituição de órgãos e implementam,
ficos, aparentemente indistinguíveis. Do paciente só ao mesmo tempo, a necessidade de novas técnicas de
se vê a região alvo da operação, o resto também está cuidado e aplicação de novas aparelhagens. Os tra-
invisível por baixo dos lençóis verdes. Nada de pala- balhadores de enfermagem precisam estar constante-
vras, o entendimento dá-se através de um ballet ma- mente atualizando-se e refazendo treinamentos rela-
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cionados aos materiais, instrumentais e procedimen- melancólicos pelos corredores, quando a realidade é
tos trans-cirúrgicos. Foucault (1997) nos oferece uma tão bruta que não é possível negá-la: “Os doutourandos
perspectiva política sobre o assunto. Dentre outras fizeram chacota com a paciente, ficavam chamando
tecnologias, o autor considera o transplante de ór- ela de gorda e ‘banha’, rindo e pegando no corpo dela.
gãos um indício do intento biopolítico de causar a Foi horrível, achei que nunca mais ia conseguir voltar
vida coletiva, utilizando-se da morte individual. Esta (ao trabalho)”.
mentalidade para a manutenção da vida é bem pre- De um modo geral, a arquitetura hospitalar
sente na formação médica moderna, a qual assume, também se encarrega de distribuir e dividir o espaço
por vezes, uma visão maquínica e coisificada do cor- rigorosamente, favorecendo o controle disciplinar so-
po, ao mesmo tempo em que passa a entender as bre seus habitantes e o mapeamento de subjetividades
tecnologias em saúde como ferramentas reguladas por códigos profissionais distintos
mercadológicas (VAYSEE, 1995; NOVAES, 2003). Que (FOUCAULT, 2002). Assim, a disposição dos setores e
o digam as mais avançadas técnicas de cirurgia plás- das salas cirúrgicas, facilita a administração e o con-
tica e escultura corporal. trole exercido, basicamente, pela posição funcional
Além destas tecnologias da vida e da morte das enfermeiras. As salas cirúrgicas são constituídas
acima explanadas, as quais atravessam a rede das por ante-salas e portas principais com janelas de vi-
relações na ecologia verde, outros analisadores mos- dro as quais dão para o corredor, de onde também
traram-se importantes para o entendimento dos mo- fica bastante fácil a vigilância. A divisão das salas
dos de trabalhar e constituir-se trabalhador no bloco por especialidades também parece favorecer a orga-
cirúrgico. Dentre esses, pode-se destacar, primeira- nização e o controle do que ocorre no bloco cirúrgi-
mente, a peculiar sensibilidade do tempo experimen- co, ao mesmo tempo em que, preserva/aprisiona iden-
tado pelos sujeitos e as formas de apropriação do es- tidades profissionais (SILVA, 1998). A demarcação de
paço de trabalho legitimadas, muitas vezes, pelas re- campos profissionais também se alia à delimitação
lações saber-poder. Expressões como “o tempo passa de valores distintos a cada um deles. As diferentes
muito depressa aqui” denotam algo da exigência de especialidades ocupam salas específicas e competem
uma aceleração intensa do ritmo de trabalho a qual pelo lugar mais alto e importante na corrida pela
provoca modos peculiares de experimentar a passa- manutenção de vidas. Revela-se também uma espécie
gem do tempo. A atenção aos detalhes, beirando a de “zoologização” de certos procedimentos cirúrgicos.
obsessividade, a conferência interminável dos materi- O estranho e o novo cintilam diante de nossos olhos e
ais e uma memória rápida também são outras exi- se tornam, neste caso, motivo de grande curiosidade,
gências feitas ao trabalhador contribuindo para a estupefação e até de diversão, como no caso da cirur-
aceleração dos movimentos e do pensamento. Na gia de troca de sexo, por exemplo. De certa maneira,
mesma medida em que se parcela as tarefas e se exi- o imperativo da vigilância, da observação, do exame
ge certa velocidade na sua execução, isto parece pro- e da classificação, perpetua-se nesta ilustração, deno-
porcionar ao trabalhador a possibilidade de um tando a clínica do olhar, fundante da ciência e, con-
distanciamento afetivo do seu objeto de trabalho. seqüentemente, permeando a formação médica e das
Nesta direção, Silva (1998) propõe em relação aos áreas de apoio como a enfermagem (FOUCAULT,
trabalhadores de hospitais que “o fazer mais rápido é 1994).
também fazer menos da coisa, deixar-se envolver me- As “maravilhas” realizadas e profetizadas pela
nos por ela” (p.29). A fragmentação e a parcelização medicina e o esquadrinhamento, pretensiosamente
das tarefas, além da aceleração destas são instrumen- absoluto sobre os corpos e suas anomalias demons-
tos da organização do trabalho responsáveis pela su- tram o poder conferido, historicamente, a esta disci-
pressão da dimensão intelectual deste, os quais, por plina a qual nasceu confundida com a própria noção
sua vez, são elementos comuns ao modo de produção moderna de ciência (FOUCAULT, 1994). Em função
taylorista/fordista (ANTUNES, 1999). disto, não é sem motivo o interesse das outras disci-
Num lugar como um centro cirúrgico, esse plinas em se aproximar e aliar-se ao saber médico.
tipo de relação com o objeto de trabalho acena vanta- No âmbito da unidade cirúrgica, a qual foi objeto
gens tentadoras, pois enxergar o risco de vida que deste estudo, o vocabulário medicalizado utilizado
muitos procedimentos oferecem e olhar para o paci- pela enfermagem e a atitude servil e obediente dos
ente indefeso e totalmente entregue às mãos da equi- técnicos de enfermagem para com os médicos podem
pe, parece expor os trabalhadores a uma angústia di- demonstrar suas intenções de proximidade com este
ária insuportável. Muitas vezes, aprender a lidar rá- campo de saber. Talvez por isso, também seja tão di-
pida e friamente com os corpos, instrumentos e má- fícil dirigir-se ao médico, lhe fazer esperar, lhe dizer
quinas, é uma questão de sobrevivência em um hospi- não ou discordar de alguma prescrição ou impressão
tal. Mesmo assim, freqüentemente, ouvem-se suspiros diagnóstica.
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No entanto, o que na verdade pode parecer, à o técnico aprender a operar com e não mais somente
primeira vista, simples submissão, revela algumas ter conhecimento geral do instrumental. Deste modo,
possibilidades de subversão. Neste sentido, podemos se potencializa a construção de redes externas de tra-
referir a idéia foucaultiana a respeito da bilateralidade balho autônomo, pois alguns cirurgiões contratam
dos fluxos de poder (FOUCAULT, 1995). No bloco ci- instrumentadoras particulares para realizar procedi-
rúrgico, os vetores de resistência da equipe de enfer- mentos eletivos. Constituem-se, desta forma, os cha-
magem parecem estar intimamente relacionados à mados times cirúrgicos.
construção de pequenos nichos de saber altamente Na sala de preparo dos pacientes, por exem-
especializados e acoplados de forma similar aos dife- plo, os técnicos que mais se identificam com o paci-
rentes âmbitos do saber médico. Desta forma, antes ente ainda acordado têm a possibilidade de produzir
de implementar uma espécie de caça às bruxas à área um espaço de tranqüilização e ambientação. Em re-
médica, é preciso vislumbrar outras nuanças e lação a estes momentos pré-cirúrgicos, Sant’Anna
permeabilidades nesse tecido de relações entre sabe- (2001) faz um paralelo interessante entre a experiên-
res e fazeres. Assim, os movimentos de mudança e cia da cirurgia e as viagens aéreas, pois em ambas o
alteração de qualquer técnica cirúrgica ou na apare- paciente fica como que em suspenso de sua própria
lhagem das equipes médicas são sincronizados com vida, entregue a mãos alheias, sujeito a
movimentos de apropriação e pesquisa por parte dos descontinuidades, à fragmentação das atividades e a
técnicos e enfermeiros. As diferentes especializações sensações inusitadas. Deste modo, percebemos que o
médicas e as relações com cada equipe cirúrgica na trabalhador da sala de preparo precisa de uma sensi-
rotina da unidade servem, neste contexto, como arti- bilidade afinada sobre as expressões afetivas dos pa-
fícios para a circunscrição de um saber próprio à equi- cientes além de habilidades quase maternais para cri-
pe de enfermagem e de movimentos de singularização ar um clima que inspire a este viajante, confiança,
(GUATARI & ROLNIK, 1997). Ao mesmo tempo, e, conforto e segurança. Neste sentido, autores como
estrategicamente, mantém-se publicamente um discur- Antonio Negri (2001) e Lazzaratto (2001) apontam
so de uma generalidade funcional essencial e impera- para a vigência hegemônica do trabalho imaterial na
tiva, se negando, através disto, as preferências ou força de produção social. O trabalho imaterial esta-
habilidades específicas. Neste sentido, podemos lem- ria ligado primordialmente, ao trabalho doméstico
brar que a reestruturação produtiva impõe a exigên- da mulher, o qual engendra primariamente a subjeti-
cia de uma maior flexibilidade funcional, participa- vidade capitalista. Assim, os trabalhadores atuais pre-
ção, qualificação, responsabilização individual, além cisam saber reproduzir as relações de mercado, cons-
das mudanças temporais e, até mesmo, espaciais, nas tituir seus consumidores, encarnar uma interface de
relações de trabalho provocadas pelas tecnologias decisões e escolhas autônomas (LAZZARATO & NEGRI,
digitais (ANTUNES, 1999; LAZZARATO & NEGRI, 2001). Frente a este cenário, os técnicos de enferma-
2001). gem do preparo precisam conhecer seus pacientes
Mesmo diante do quadro sócio-econômico e desde o primeiro momento, respeitar suas demandas
político contemporâneo, Guatari e Rolnik (1999) apon- particulares e elaborar um tipo de atendimento per-
tam que as formas de resistir e criar não exigem grande sonalizado para cada um. Recentemente, a sala do
sofisticação. O dispositivo da singularização permi- preparo foi totalmente reestruturada, climatizada e
te, segundo estes autores, a criação de modos de or- decorada por reivindicação desses trabalhadores. O
ganização do cotidiano a partir da experiência e do espaço destinado às crianças também recebeu deco-
conviver e não a partir de uma cultura de massa. Nes- ração especial e a consultoria de terapeutas ocu-
te caso, podemos pensar as alianças quase fraternas pacionais.
entre equipes cirúrgicas e técnicos de enfermagem Outra peculiaridade marcante do trabalho em
altamente especializados como dispositivos de sub- bloco cirúrgico parece ser a invisibilidade literal dos
versão e singularização com relação à atmosfera da trabalhadores uns em relação aos outros. Seja pelo
ecologia verde, aparentemente, tão inebriante quanto ritmo e característica das atividades em cirurgia, as
dominadora. Sedimentam-se processos subterrâneos quais certamente exigem uma atenção redobrada, seja
de especialização profissional, resultando em técni- pelos modos de gestão e organização do trabalho, ser
cos que se especializam em instrumentais bastante invisível parece estar associado a um modo particu-
específicos e tornam-se essenciais e intercambiáveis lar e necessário de fazer profissional. Ser invisível,
em determinadas equipes. Aprender as “manhas” de por vezes, significa não errar, já que o acerto nunca é
cada cirurgião, as suas preferências e cada detalhe de apontado ou mesmo percebido. Com relação à
sua forma de operar fazem parte de uma estratégia invisibilidade, Foucault (2002) nos explica que os dis-
de sobrevivência e, principalmente, de recriação do positivos disciplinares invertem a economia da visibi-
próprio trabalho. Às vezes, torna-se interessante para lidade no exercício do poder, tornando este invisível
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enquanto expõe os assujeitados. Neste caso, estamos sendo desligados e a pessoa morrendo. Estamos acos-
entendendo ser invisível como estar de acordo com a tumados a participar de cirurgias que são para curar e
norma disciplinar, pois, sem seguir a norma o traba- na retirada de órgãos, a gente tem que acompanhar a
lhador estará exposto. Ao mesmo tempo, as forças pessoa para a morte. Depois ninguém quer ‘fechar’ a
contrárias aos estatutos impostos pela organização pessoa: é o serviço sujo”.
do trabalho, os fluxos desejantes, cooperativos e de Cortes e extirpações comunicacionais também
autonomia também precisam ser invisibilizados, ou fazem parte do clima tropical do centro cirúrgico,
melhor dizendo, neutralizados. Aquilo que se enxer- sujeito à trovoadas e chuvas torrenciais e repentinas.
ga está ligado àquilo que é pré-ditado. Algumas operações comunicacionais precisam ser re-
Espreitados pela eminência do encontro com alizadas para que se consiga estabelecer discursos e
robôs cirurgiões, os trabalhadores da enfermagem entendimentos no contexto das cirurgias. Num verda-
também se esforçam por anular os limites ergonômicos deiro telefone sem fio, as informações e as mudanças
de seus corpos e das condições de trabalho impostas que chegam tornam-se, da mesma forma com que se
pela realidade de um hospital universitário que so- introduzem veias, válvulas, pinos de aço e órgãos es-
brevive com os atrasados recursos do SUS. Os braços trangeiros em corpos de acolhimento, procedimentos
e tendões precisam ser consertáveis como máquinas e delicados e prolongados até que possam ser totalmente
robôs. Nestas tentativas, são utilizadas diversas ferra- digeridos. Os acontecimentos estão em total exposi-
mentas farmacológicas para invisibilizar, para si ção: se alguém da equipe comete um erro, está sendo
mesmo e para o setor, a dor física e o sofrimento psí- visto por pelo menos dez ou doze pessoas e, em pouco
quico trazido pela ameaça da incapacidade. Os paci- tempo, toda unidade saberá. As relações são cortan-
entes serão também invisíveis, opera-se um braço, um tes, há um modo agressivo e radical de comunicar-se,
coração, um ovário? Às vezes, isso parece ser verda- e isso não inclui somente gritos e xingamentos, mas
deiro, o que implica que o parcelamento maciço do também olhares fuzilantes. As caricaturas de cirurgi-
processo de trabalho da enfermagem produz também ões perseguidores e perversos também fazem parte de
um parcelamento do paciente. um cotidiano brutalizado. Sem dúvida, a solidão es-
Por outro lado, as afecções provocadas pela corre de cada sala cirúrgica onde duplas de técnicos
natureza dos procedimentos e das práticas engendra- de enfermagem sentem-se abandonadas, entregues à
das no centro cirúrgico podem constituir uma interes- vontade soberana das equipes médicas, assim como
sante problematização da trama das dinâmicas, vi- os próprios residentes, apartados de seus professores
brações e intensidades dos modos de relacionar-se e enfermeiros, estes últimos encontrando-se, por sua
(Rolnik, 1989). Podemos definir essas afecções como vez, afogados em exigências administrativas e
vertigens, algo de um medo provocado pelo encontro gerenciais cada vez mais extenuantes. No entanto, para
com os fantasmas monstruosos de nossas criações tudo deve haver um remédio e sendo assim, nos espa-
tecnológicas, como bem se pode ilustrar com a estó- ços que restam preenchem-se com bolos, festas de
ria do Dr. Frankenstein, o qual afrontou a aniversário, chás de panela, comemorações de
terminalidade e a natureza divina da criação, através efetivação e tantos outros motivos que se inventam e
de artifícios equilibristas de manutenção da vida (LE se reproduzem para dar conta deste isolamento.
BRENTON, 1995). Deste modo, o bloco cirúrgico pa-
rece funcionar de forma radical e perfurante, impon- CORPOS E MÁQUINAS EM CAMPO CIRÚRGICO:
do, constantemente, a necessidade de abrir, expor as O SURGIMENTO DOS CIBORGUES
entranhas, trazer à tona o escondido, o tumor, a veia Até aqui vimos de que modo os trabalhado-
entupida, a hérnia, para que sejam consertados. O res da área cirúrgica parecem camuflar-se dentre as
processo de transplante de órgãos, tanto com doado- paisagens tecnológicas e afetivas que compõem o hos-
res com morte cerebral como com doadores vivos, pital e, especificamente, no centro cirúrgico. Este ca-
torna-se vertiginoso para os trabalhadores envolvidos. muflar-se desvela a tentativa do trabalhadores de en-
O pavor imemorial da contaminação da vida com a trelaçar originalmente seus modos de existir à missão
morte se personifica neste monstro cultural explícita da instituição, isto é, fazer viver. No entan-
frankensteiniano, explicitando a instabilidade da iden- to, poderíamos também aqui apontar um segundo tipo
tidade dos corpos e do próprio sujeito no contemporâ- de análise relativa ao contexto dos trabalhadores em
neo (SILVA, 2000). Os relatos dos trabalhadores da bloco cirúrgico e em hospitais em geral colocando-os
enfermagem expressam sentimentos de em confronto com o cenário da reestruturação das
desterritorialização e sofrimento diante da participa- relações produtivas. Trata-se de poder debater os
ção na retirada de órgãos: “Os médicos parecem uns atravessamentos políticos, tecnológicos e sociais que
urubus em cima da pessoa. Cada equipe tira um ór- constituem intrinsecamente os sujeitos contemporâneos
gão e sai correndo. É horrível ver aqueles aparelhos enquanto seres produtivos e se, ao invés de somente
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Gonçalves, T.R.; Silva, R.N. “Encontro com Ciborgues no hospítal: cartografias de um campo cirúrgico”

servirem para produzir massificação e domínio sobre ergonômicas das condições de trabalho. Os sujeitos
os sujeitos, estes não podem ser vistos como dispositi- são desafiados pelos limites de suas próprias máqui-
vos potencializadores da construção de narrativas sub- nas no seu embate, por vezes, competitivo, com ou-
jetivas e singulares. Assim, mesmo introduzindo aqui tras. O grande problema está em que o homem teima
a dimensão sociológica da análise, talvez pessimista, em aceitar seus limites, ao passo que as máquinas
se pretende problematizar as possibilidades dos sujei- podem ser facilmente superadas por outras melhores
tos enquanto agentes de singularização. e aceitam submissas a substituição, pelo menos por
Assim, partindo da perspectiva da enquanto.
reestruturação produtiva, Antunes (1999) discute ar- Neste sentido, para além do cenário imbrica-
gumentos teóricos, filosóficos e fenomênicos que apói- do da germinação das implacáveis dores físicas ou-
am a centralidade do trabalho na sociedade contem- tras paisagens puderam ser alinhavadas junto aos tra-
porânea, mas indica uma profunda alteração da rela- balhadores em bloco cirúrgico. Por exemplo, a possi-
ção trabalho-capital. Dentre estas alterações, figura- bilidade do domínio tecnológico dos robôs cirurgiões
ria-se o fato do desemprego estrutural e do neste meio, ao mesmo tempo em que amedronta com
sucateamento das condições de trabalho e dos direi- a perda de empregos, esconde também a chance de
tos do trabalhador estarem gerando outras formas de uma relação mais igualitária dos técnicos com os
produtividade que não somente aquela imposta pela médicos, já que com isto, estes deixarão de ser os
fórmula capitalista. Sob este aspecto, alguns traba- agentes principais das cirurgias e se alinharão ao lado
lhadores do bloco cirúrgico nos mostram que suas da equipe de apoio a qual, por sua parte, pode tor-
teias produtivas estão estendidas também sobre o quin- nar-se uma espécie de apoio de medicina e enferma-
tal do trabalho autônomo e terceirizado, no sentido gem mecatrônica. Esta ironia foi verbalizada por uma
de que podem estabelecer conexões de trabalho fora funcionária que confrontada com a responsabilidade
do espaço protegido de seu trabalho formalizado. Tal- pelo funcionamento das máquinas de controle cardio-
vez se possa pensar que a instabilidade contemporâ- respiratório e de RX disse: “Quero ver o que vai ser
nea do laço empregatício formal lance sobre todos deles (médicos) quando tiverem os robôs, eles tam-
uma certa necessidade de buscar garantias simultâ- bém vão ter que se desdobrar como nós ao redor des-
neas em outras formas de trabalho, sejam elas, na tas máquinas”.
maior parte das vezes, mantidas na clandestinidade Assim, percebe-se que a inserção das
pelo temor da demissão ou ousadamente assumidas tecnologias digitais, dos computadores e a centralidade
como atividades liberais. Ao mesmo tempo, a inser- da mídia informacional parece ter ecos para além da
ção em massa da produção científica, através das cadeia produtiva, também na vida social como um
máquinas inteligentes, também solidifica a todo e na própria vivência do corpo e de si como su-
reestruturação do processo produtivo, na medida em jeito. Le Brenton (2003) nos alerta para a tendência
que, atua, em certa medida, a transferência das capa- atual da negação do corpo, o qual é dispensado na
cidades intelectuais humanas às máquinas, tornando existência integral oferecida pelo ciberespaço. Segun-
o trabalho do homem mais imaterial e menos físico. do o autor, o corpo como fronteira identitária do su-
Considerando que o emprego sofre uma enor- jeito sofre sérios riscos de dissolver-se frente à
me crise e que o trabalho passa a, paralelamente, digitalização das interações, pois este está sendo pro-
terceirizar-se, acoplar-se mais intimamente ao das gressivamente substituído pelo corpo eletrônico, o qual
máquinas e tornar-se mais intelectualizado, podemos é vantajosamente imune à doenças, ao envelhecimen-
dizer que o trabalho não produz mais somente rique- to e a deficiência física. Neste sentido, podemos pen-
zas materiais, se é que algum dia ele se restringiu a sar que a engenharia genética, a inteligência artifici-
tais limites. Antes, o trabalho contemporâneo produz al e os avanços da medicina em geral e da cirurgia
modos de vida, linguagens e sentires próprios, impul- plástica, especificamente, trazem consigo problemas
sionando a própria reprodução da força de trabalho da ordem do pensamento, da ética, da política e da
(NEGRI, 2001). Nesse sentido, a noção de trabalho cultura, já que põem em questão, filosofias e teorias
imaterial pode nos proporcionar algumas reflexões a sociais a respeito da noção de humanidade e de sua
respeito das relações que os trabalhadores do bloco relação com suas próprias formas corporais. O corpo
cirúrgico tramam com a sua própria máquina huma- do homem, por sua vez, vem sendo progressivamente
na, em sua sanguínea rotina, e com as outras máqui- desvendado a partir do paradigma positivista e utili-
nas. No encontro também repetitivo das relações tário do renascimento assim como o desenvolvimento
imateriais que se colocam através das exigências de da mecânica aponta para o desenvolvimento do ho-
produtividade e das relações saber-poder, muita mem artificial e a reparação de seus defeitos. Neste
materialidade dolorida toma espaço garantido nas caso, podemos nos perguntar como os trabalhadores
cabeças, nos braços e colunas com a ajuda das falhas do campo cirúrgico se defrontariam com essas inevi-
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Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

táveis questões éticas e até mesmo filosóficas. Partin- dução-consumo e às máquinas que o compõem. De-
do da perspectiva destes, poderíamos colocar essa vem ser afinados? Se por um lado os sujeitos parecem
questão em outro nível. No bloco cirúrgico, a relação ser carregados sem reação por este fluxo reprodutivo
do homem com as máquinas, passa a ser capitalista, por outro, linhas de fuga são insistente-
dimensionada a partir da relação deste com a pró- mente desenhadas por estes sujeitos, apontando as
pria vida na sua busca ancestral pela sobrevivência. bidirecionalidades das relações de poder.
Ali corpos abertos esperam simplesmente por remen- Assim, tornar-se um trabalhador-ciborgue de
dos que lhe permitam continuar produzindo-se. Ins- enfermagem parece, em alguns casos, ser uma espé-
taura-se a ética da sobrevivência, a lei do viver acima cie de solução de compromisso entre a competição de
de qualquer conseqüência. Por vezes, isto custa a per- futuro dolorido com as máquinas e a rejeição magoa-
da de alguns valores a alguns sujeitos ou sensibilida- da às tecnologias. Alguns trabalhadores e pequenos
des alteradas. grupos dentre eles parecem conseguir incorporar sin-
Diante deste cenário, Foucault (1997) nos ofe- gularmente características e práticas técnicas e
rece uma análise das formas de controle e poder da afetivas, as quais por sua vez, os possibilitam deslizar
sexualidade na contemporaneidade as quais contri- por outras interfaces através da sua relação com as
buem para forjar o que ele chama de biopolítica. Para máquinas e com o seu corpo tornado também máqui-
ele a sociedade disciplinar foi atravessada pela possi- na. Neste sentido, podemos relembrar a busca pelas
bilidade de um poder de causar a vida, invertendo a especializações, por redes mais solidárias de traba-
premissa da sociedade medieval a qual preconizava o lho e amizade, bem como as estratégias festivas e bem-
poder de causar a morte e deixar viver. Foucault indi- humoradas de disfarce e subversão da competição e
ca que vivemos um tempo em que a morte está sendo do isolamento. Os trabalhadores ciborgues dos cam-
desvitalizada e, mesmo a ameaça da morte funciona pos cirúrgicos parecem estar incessantemente em busca
como um pretexto para buscar desesperadamente a do redesenhamento de fronteiras entre o artificial e o
manutenção da vida, como no caso dos transplantes humano, entre a saúde e a doença, e por que não,
de órgãos. Segundo ele, o controle da natalidade/ entre a massificação e a singularização. Deste mes-
mortalidade, a anticoncepção, a regulação da pró- mo modo, Haraway (2000) propõe a possibilidade de
pria sexualidade e todo aparato da clínica médica inclinação subversiva dos ciborgues frente à premissa
são tecnologias de controle da vida e constituem esse de um mundo com regras unívocas e rígidas. Estes
biopoder. seres ciborguianos habitantes de um mundo em parte
A partir do encontro do artificial com o ho- ficção, em parte realidade, se encontrariam no cerne
mem no engendramento da biopolítica, Haraway do questionamento atual sobre as fronteiras entre ani-
(2000), nos interpela com uma afirmação provoca- mal-humano, máquina-humano e físico/não-físico,
dora: o mundo contemporâneo está povoado por tendo o poder de definir novas possibilidades e limi-
ciborgues e não mais antagonicamente por homens e tes políticos, a partir de sua posição provocadora e
máquinas. Haraway afirma que o conceito de irônica: “Nossos corpos são nossos eus; os corpos são
biopolítica foucaultiano, acima citado, nada mais é mapas de poder e identidade. Os ciborgues não consti-
do que a premonição da política-ciborgue, diante da tuem exceção a isso (...). A máquina não é uma coisa
relação cada vez mais íntima entre as pessoas e as a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina
tecnologias biológicas, genéticas, digitais, eletrôni- coincide conosco, com nossos processos; ela é um as-
cas e mecânicas. O corpo está em constante mutação pecto de nossa corporificação. Podemos ser responsá-
e sua hibridização com as máquinas torna-se eviden- veis pelas máquinas; elas não nos dominam ou nos
te no contexto tecnológico dos trabalhadores de hos- ameaçam. Nós somos responsáveis pelas fronteiras;
pitais. O percurso aqui apresentado em relação à nós somos estas fronteiras” (p.105-106).
imposição de ritmos e cadências, à demarcação de
espaços e tempos específicos e à aproximação NOTAS
1
perturbadora entre o trabalho das máquinas e o tra- Este trabalho foi fruto da experiência de estágio
balho dos humanos nos leva a apontar um processo curricular da primeira autora no serviço de Psicologia
intenso de ciborguização do trabalho e dos próprios do Trabalho de um hospital geral de Porto Alegre.
2
trabalhadores da equipe da enfermagem. Estes preci- Diz-se pelos corredores do hospital que os médicos
sam assumir posturas, por vezes robotizadas, apren- que têm como função somente as cirurgias não são
der movimentos mecanizados, regular as expressões considerados médicos pelos próprios colegas, pois suas
do próprio corpo em prol da produção e ajustá-lo ao intervenções seriam puramente técnicas e pontuais.
funcionamento das máquinas. Ao mesmo tempo, a Coincidência ou não, Rouanet (2003) acrescenta que
experimentação afetiva, as vertigens e ímpetos devem já no século XVIII os cirurgiões eram “assimilados aos
ser afinados às exigências imperiosas do ciclo de pro- barbeiros” da época, havendo uma separação ferrenha
45
Gonçalves, T.R.; Silva, R.N. “Encontro com Ciborgues no hospítal: cartografias de um campo cirúrgico”

entre os médicos clínicos e os cirurgiões.


3
A consultoria em grupo da psicologia do trabalho LE BRENTON, D. A Síndrome de Frankenstein. In:
no bloco cirúrgico era realizada semanalmente, SANT’ANNA, D. Políticas do Corpo. São Paulo: Esta-
funcionando como um grupo aberto a todos os técnicos ção Liberdade,1995. p. 49-67.
e enfermeiros da unidade. Esta consultoria teve a
duração de três anos, tendo a participação dos diversos LE BRENTON, D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, A. O
regimes de turno em diferentes momentos. homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São
4
As duas funções distintas que podem ser exercidas Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 123– 137.
pelo técnico de enfermagem em sala cirúrgica dizem
respeito à circulação e à instrumentação. O circulante MAIRESSE, D. Cartografia: Do método à arte de fazer
está fora do campo cirúrgico esterelizado e é pesquisa. In: FONSECA, T. G. et. al. Cartografias e
responsável pela substituição dos materiais, baixa dos Devires. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p. 260
instrumentais e por buscar medicamentos e – 275.
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instrumenta a cirurgia. NEGRI, A. Exílio: Seguido de valor e afeto. São Paulo:
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46
Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

Tonantzin Ribeiro Gonçalves é


Psicóloga formada pela UFRGS. O endereço
eletrônico da autora é: tonanrib@yahoo.com.br.

Rosane Neves da Silva é professora do Insti-


tuto de Psicologia da UFRGS e orientadora no Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Institucional da mesma Instituição. O endereço ele-
trônico da autora é: roneves@cpovo.net

Tonantzin Ribeiro Gonçalves e


Rosane Neves da Silva
Encontro com ciborgues no hospital:
cartografias de um campo cirúrgico.
Recebido: 25/11/2004
1ª revisão: 14/03/2005
Aceite final: 4/04/2005

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