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O Tempo

e o Vento

5 0 a n o s
Projeto O TEMPO E O VENTO: 50 ANOS

Elaboração Flávio Loureiro Chaves


Coordenação Robson Pereira Gonçalves

UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Reitora Ir. Jacinta Turolo Garcia


Vice-reitora Ir. Alice Garcia de Morais

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Coord. Editorial Ir. Jacinta Turolo Garcia


Ass. Administrativa Ir. Teresa Ana Sofiatti
Ass. Comercial Ir. Áurea de Almeida Nascimento

Ass. Editorial Luiz Eugênio Véscio


Coord. Executiva Luzia Bianchi

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

Reitor Paulo Jorge Sarkis


Vice-reitor Clovis Silva Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

Diretor Vitor Otávio F. Biasoli


Ass. Editorial Luiz Eugênio Véscio

Conselho Editorial Andrey Rosenthal Schlee


Aguinaldo Médici Severino
Fabrício Frizzo Pagnossim
José Newton Cardoso Marchiori
Leris Salete Bonfanti Haeffner
Maria Luiza Furtado Kahl
Marli Hatje
Pedro Brum Santos
Valeska Maria Fortes de Oliveira
Valter Antonio Noal Filho
Vitor Otávio F. Biasoli (Presidente)
R obson pereira gonÇALVES (or g.)

O Tempo
e o Vento

5 0 a n o s

IlustraçÕES:

João Luiz R oth


Copyright © 2000 by Edusc

Ficha catalográfica

T288
O Tempo e o Vento : 50 anos / organização Robson Pereira
Gonçalves ; ilustrações João Luiz Roth. - - Santa Maria, RS :
UFSM ; Bauru, SP : EDUSC, 2000.
320 p. : il. ; 23 cm

ISBN 85-7460-016-4 (Edusc)

“Edição comemorativa dos 50 anos de lançamento de O


Continente, primeira parte da trilogia O tempo e o vento.”

1. Literatura brasileira - Romance - História. 2. Literatura


brasileira - Romance - Interpretação. I. Gonçalves, Robson
Pereira. II. Título.

CDD B869.309

Edusc – Editora da Universidade do Sagrado Coração


Rua Irmã Arminda, 10-50
17044-160 – Jardim Brasil – Bauru – SP
Fax (0XX14) 235-7219 – Tel. (0XX14) 235-7111
e-mail: edusc@usc.br

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Camobi – 97105-900 – Santa Maria – RS
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e-mail: editora@ctlab.ufsm.br
www.ufsm.br/editora

Direitos reservados à Editora da Universidade do Sagrado Coração

Printed in Brazil 2000


SUMÁRIO

No Galope do Tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Robson Pereira Gonçalves

Erico Verissimo, um escritor de vanguarda? . . . . . . . . . . 21


Luiz Fernando Verissimo

Saga Familiar e História Política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25


Regina Zilberman

O Continente: um Romance de Formação?


Pós-Colonialismo e Identidade Política . . . . . . . . . . . . . 45
Maria da Glória Bordini

O Narrador como Testemunha da História . . . . . . . . . . 69


Flávio Loureiro Chaves

Num Território de Figuras Femininas . . . . . . . . . . . . . . 75


Lélia Almeida
O Tempo e o Vento: Cinqüenta Anos Depois . . . . . . . . 85
Paulo Hecker Filho

O Tempo e o Vento: “O Continente” como Obra Síntese . 91


José Aderaldo Castello

O Tempo e o Vento: um Diálogo entre


Ficção e História . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Marilene Weinhardt

O Tempo e o Vento como Romance Histórico . . . . . . 105


Pedro Brum Santos

O Retrato e a Identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117


Orlando Fonseca

A Imigração Alemã em O Tempo e o Vento . . . . . . . . 149


Lúcio Kreutz

Olhai o que o Tempo não Levou.


A Literatura de Erico Verissimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Maria Helena Camara Bastos & Maria Teresa Santos Cunha

O Ciclo de Vargas segundo Verissimo . . . . . . . . . . . . . 199


René E. Gertz

A Identidade Sul-rio-grandense no Imaginário de


Erico Verissimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Heloisa Jochims Reichel

A Abolição da Escravatura a Serviço da República –


Leitura Política do Episódio Ismália Caré . . . . . . . . . . 219
Teófilo Otoni V. Torronteguy
A Representação do Espaço na Obra de Erico Verissimo:
O Tempo e o Vento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
Celia Ferraz de Souza

Almanaque Municipal de Santa Fé


para o Ano de 1899 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
Andrey Rosenthal Schlee

Breve Crônica duma Editora da Província . . . . . . . . . . 287


Erico Verissimo

Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315
José Mindlin
“Naquele mesmo dia, cerca de três da tarde, armou-se um desses rápidos mas violentos temporais de
verão. O céu cobriu-se de nuvens cor de ardósia, a atmosfera se tornou opressiva e, sob o calor que
a umidade agravara, não só as pessoas como também a cidade inteira parecia ter adquirido uma
flacidez de papelão molhado.”
O Arquipélago - Encruzilhada
No Galope do Tempo

Robson Pereira Gonçalves*

O vento batia-lhe na cara, revolvia-lhe os


cabelos, fazia-lhe ondular a camisa como
uma bandeira. “Amo, zaino velho!” – gri-
tava ele acicatando o animal com esporas
imaginárias. O zaino galopava e Rodrigo
aspirava com força o ar, que cheirava a ca-
pim e distância.

Erico Verissimo

Do vento

A presente edição comemorativa dos 50 anos de lançamen-


to de O Continente, primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento,
representa mais do que uma homenagem ao grande escritor
que foi Erico Verissimo. É, antes de tudo, uma reflexão de gaú-
chos e brasileiros sobre o Rio Grande, principalmente o retra-
tado na obra fundamental de Verissimo. Nessa medida, o que se
buscou, além dos fundamentos estéticos e literários, foi uma
discussão sobre a identidade do estado d’alma gaúcho e de
como a história vem reafirmando aqueles valores que contribuí-
ram para estabelecer esse território tão denso e pleno de símbo-
los e significações. Esse estatuto crítico, principalmente o dos
10 O tempo e o vento • 50 Anos

autores deste livro, tem como missão filtrar o silvo das ventanias
e, com certeza, apostar no galope das idéias. Vale dizer, a gesta e
a saga que fundam a formação do povo rio-grandense ainda con-
tinuam a fecundar a meditação sobre o vir-a-ser desta província.
O projeto deste livro também tem uma história. A virtualida-
de dessa narrativa aponta para identificações, para nomes e para
desejos. Reza a lenda que a paternidade não seja jogada ao ven-
to, sintoma do que não permanece, do que é levado ao léu. Essa
lembrança aponta para um poema de Alberto Caeiro, de resto
uma ficção de Fernando Pessoa, em seu livro O Guardador de Re-
banhos, que indicava a mentira como sucedâneo do diálogo com
o vento. Caeiro, o poeta renovador do paganismo moderno, con-
diciona a sensação da Natureza como de ordem sígnica de prazer
e de sentido. Nessa esteira, o vento, parte integrante da natureza,
é colocado no mesmo patamar daquele que tem as sensações ver-
dadeiras: o guardador de rebanhos. Assim, a sensação da nature-
za é parte integrante e fundante de todo o ato poético. Na obra
de arte pode-se perceber, com uma certa claridade, essa constru-
ção de gozo, mas de um gozo de um saber insabido, por isso a
construção de sentido, pela falsidade do diálogo com o vento,
não aponta para a constituição de um sujeito. Trata-se do Poema
X daquela obra, onde citamos: O vento só fala do vento./O que lhe
ouviste foi mentira,/E a mentira está em ti.1 Na condição de que é ne-
cessário afirmar que a efemeridade ou mesmo o esvanecimento
das ventanias, ou ainda, de uma rêverie inconseqüente, não foi o
planejado, é que se toma a metáfora para superar as coisas não

1. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1974, p. 213. Para se ter uma no-
ção exata do desassossego pessoano, transcrevemos o poema:

“Olá, guardador de rebanhos, “Muita cousa mais do que isso,


Aí à beira da estrada, Fala-me de muitas outras cousas.
Que te diz o vento que passa?” De memórias e de saudades
“Que é vento, e que passa, E de cousas que nunca foram.”
E que já passou antes, “Nunca ouviste passar o vento.
E que passará depois. O vento só fala do vento.
E a ti o que te diz?” O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”
No Galope do Tempo 11

ditas. Por isso, não se busca a mentira do vento pessoano, meta-


físico e panteísta, nem mesmo os presságios e os silvos de dor e
viração de Erico Verissimo, mas sim o vento ético que constrói
a responsabilidade.
Flávio Loureiro Chaves, professor visitante do Curso de
Mestrado em Letras da UFSM, me procurou, no segundo semes-
tre de 1998, para falar de um seminário que envolvesse a obra
de Erico Verissimo e, por conseguinte, que pudesse alavancar
uma discussão sobre a questão da identidade no RGS. Num pri-
meiro momento, a questão foi posta como uma discussão literá-
ria, envolvendo a área de letras tão somente. Num segundo mo-
mento, vislumbramos a idéia de estender a questão para outras
áreas – para um projeto institucional que privilegiasse as letras
como centro de um debate cultural, histórico, ideológico. Pro-
posta aceita pela Reitoria da UFSM, montamos o plano de um
seminário com a participação das áreas de história, educação,
arquitetura, comunicação social, ciências rurais, artes e letras.
O seminário previa uma ampla discussão sobre a identidade
gaúcha, suas origens e seus rumos, utilizando debatedores da-
quelas áreas de renome nacional e internacional. Seria a pro-
posta e intervenção da UFSM nos festejos do milênio que se
aproxima e uma homenagem maiúscula ao escritor que melhor
contou a saga deste Estado.
As calhas do tempo e a conjuntura das instituições oficiais
não ofereceram abrigo à idéia. A mal dita globalização econô-
mica, assim como a escolha de ações culturais que não privile-
giam o saber, o conhecimento, mas o efêmero e o descartável,
sucumbiram com o projeto original. Mas a invenção é forte, e o
que se podia fazer para desfazer o mal-estar seria a publicação
de um livro: o testemunho de vários autores, convidados daque-
le seminário inicial, para narrar a contribuição d’O Tempo e o
Vento na história e na estrutura da sociedade do Rio Grande. A
viabilização do projeto, edição deste livro, começou com o con-
12 O tempo e o vento • 50 Anos

vênio de publicações entre a UFSM e a Universidade Sagrado


Coração de Bauru, principalmente com o apoio de Luiz Eugê-
nio Véscio, nosso editor full time e de Vitor Otávio Biasoli, o re-
visor de todas as narrativas que compõem a obra.
O resultado, como no provérbio latino scripta manent, verba
volent (a escrita permanece e as palavras voam), é a reunião dos
textos que compõem este livro, como re-afirmação inicial da
junção de áreas que pudessem debater a identidade gaúcha. Na
aposta e na riqueza destas contribuições, fica a tecelagem de mi-
tos e de gestas da obra fundamental de Erico Verissimo, como
o ritual de passagem mais profícuo para a virada do milênio.

Das marcas e inscrições

A marca primeira é a escrita de Luiz Fernando Verissimo


que, escritor-inventor como seu pai, introduz a tese de que Eri-
co seria um “escritor de vanguarda”, usando como argumentos
a feitura de uma literatura urbana, o despojamento anglo-sa-
xão, a informalidade e a experiência com estilos e técnicas da
narrativa, além de seu conhecimento sobre teorias do romance.
Seu depoimento, deveras esclarecedor para todos nós estudan-
tes da obra de Erico Verissimo, também aponta para Incidentes
em Antares, como sendo o quarto volume d’O Tempo e o Vento.
Esse depoimento-crônica, antes de ser uma constatação fami-
liar, afirma-se como o olhar de um criador sobre outro, onde o
estatuto poético toma efeito.
A estrutura deste livro tem como fio condutor imagens de
João Luiz Roth. Tratam-se de pinturas e infogravuras que ates-
tam a leitura e interpretação d’O Tempo e o Vento, feitas pelo ar-
tista especialmente para esta edição. No primeiro caso, a pintu-
ra da capa (Bibiana, o vento e a costura do tempo) traz à considera-
No Galope do Tempo 13

ção o estatuto feminino como guardião-mor da saga familiar, na


constituição social. A postura do artista, na invocação de ele-
mentos clássicos – figuras e composição pictórica – é a de sus-
tentar pelas imagens o lado epopéico da narrativa. Nessa medi-
da, surge Baco para ilustrar o legado de prazer daquela cultura
e como símbolo da subjetividade, aparecem as ninfas que po-
voam os imaginários provinciais (A chegada do juiz Nepomuceno),
a reunião dos intelectuais (O contador de histórias) e a construção
do herói pampeano Capitão Rodrigo, numa re-leitura da pintu-
ra imperial. Essa fusão de elementos conhecidos da história da
pintura com signos tropicais (a lagartixa, o ovo frito, a banana)
fundamentam o eixo da dramatização carnavalizada de Roth.
No segundo caso, as ilustrações sugerem, pela sépia, a passagem
do tempo. A invocação aqui é de uma realidade dada, serzida
na experiência fotográfica e que modela, exemplarmente, a
narrativa de Erico e as referências ambientais.
Após o entreato, a ordem e o encadeamento dos textos se-
gue a seguinte seqüência: autores da área de literatura, depois
os textos da área de educação, arquitetura e história e, por fim,
o texto, inédito em livro, de Erico Verissimo.
Para iniciar a piéce-de-résistance desta edição, foi escolhido,
por unanimidade dos editores, o texto de Regina Zilberman,
Saga Familiar e História Política. A autora desenvolve, com maes-
tria, a tese de que O Tempo e o Vento inclui-se na vertente do ro-
mance histórico que, partindo do passado, atualiza o presente
para seus contemporâneos numa posição crítica que une mito
e realidade. Esse modelo de operacionalidade que trabalha
tempo e cronologia, mito e entidades históricas, no posiciona-
mento ético e moral do poder familiar, tem seu arquétipo na
Orestéia, de Ésquilo. Mas como afirma a autora, a obra de Erico
Verissimo não pode ser considerada um sucedâneo do mito tra-
tado por Ésquilo, porém sua estrutura mantém traços comuns
com aquela narrativa clássica. O legado da história familiar
14 O tempo e o vento • 50 Anos

como estrutura de poder social, do chefe de família ao chefe de


estado, invoca, ao mesmo tempo, o mundo dos acontecimentos
e a ficção, como tecelagem virtual para a narração do interdito.
A laboriosa contribuição de Maria da Glória Bordini, Dire-
tora do Acervo Literário de Erico Verissimo, é centrada no cons-
tructum da obra de Verissimo, com a tonificação dos anteceden-
tes do projeto da narrativa, os modelos que serviram de referên-
cia até a sedimentação ideológica do autor, sua visão literária e
da história. Daí ser o seu O Continente: um Romance de Formação?
– Pós-Colonialismo e Identidade Política um texto esclarecedor
quanto ao posicionamento de Erico Verissimo frente às formas
identitárias do Rio Grande.
N’O Narrador como Testemunha da História, Flávio Loureiro
Chaves aponta para a obra de Erico Verissimo como modelo de
romance histórico, onde a ficção se dobra si mesma, estabele-
cendo espaços para a discussão política e ideológica na forma-
ção da sociedade gaúcha. Ao advogar que O Tempo e o Vento não
se constitui numa “epopéia guasca”, o autor desenha a figura de
Erico como “testemunha da História” que visa menos a crono-
logia dos acontecimentos e mais a representação de suas fic-
ções, agentes da “tensão entre destruição e preservação”(sic).
Seguindo a orientação de oposição, o texto de Lélia Almeida –
Num Território de Figuras Femininas – intenta em sustentar que a
oposição masculina versus feminina instaura no romance uma
divisão de forças de poder. Nessa medida, sua linha de raciocí-
nio é a de privilegiar a “força” feminina como guardiã da moral
familiar e, de contraponto, a de sustentação da luta política. O
escritor Paulo Hecker Filho estabelece, em O Tempo e o Vento:
Cinqüenta Anos Depois, a importância do veio crítico de Erico Ve-
rissimo, notadamente quando destaca passagens ditas moraliza-
doras da narrativa. Sua admiração pelo personagem dr. Winter
advém da revelação de que o mesmo seria e funcionaria como
No Galope do Tempo 15

um alter-ego do autor. Já José Aderaldo Castello – O Tempo e o


Vento: “O Continente” como Obra Síntese – situa Verissimo como au-
tor-síntese, juntamente com outros, do Modernismo. Sua tese se
sustenta na contribuição profunda que o autor gaúcho deu
para alargar a representação histórica e contemporânea do Bra-
sil. Para Marilene Weinhardt – O Tempo e o Vento: um Diálogo en-
tre Ficção e História – a obra de Verissimo está apoiada no estudo
de fatos e registros da crônica histórica, seus personagens de
destaque e o momento ficcional, onde a ação romanesca tende
a revigorar a história tradicional. A opção de Pedro Brum San-
tos – O Tempo e o Vento como Romance Histórico – é diferenciar a ca-
racterização entre romance social e romance histórico, privile-
giando este último como terreno fértil para a representação fic-
cional. Nessa esteira, sua posição sobre O Tempo e o Vento desta-
ca os acertos da estética ficcional em representar e dar sentido
aos rumos da História, realçando o humanismo liberal em de-
trimento da ideologia fechada e panfletária. Orlando Fonseca,
em seu O Retrato e a Identidade, propõe uma leitura dos eventos
ficcionais como matriz para a visualização e o julgamento da
História brasileira recente. Seu ponto de partida é o retrato de
Rodrigo Cambará, peça turística em Santa Fé, e a alegoria mon-
tada com o retrato de Getúlio Vargas. Nessa medida, o texto de
Fonseca, irônico e bem humorado, sugere pela ficção uma revi-
são da História.
Na área da educação, o texto de Lúcio Kreutz – A Imigração
Alemã em O Tempo e o Vento – situa-se no terreno do diálogo que
a ficção mantém com outros saberes. O ponto de partida do au-
tor é explicitar a concepção de Erico Verissimo sobre a questão
da imigração alemã, sua estruturação no romance e o papel
atribuído àquela etnia. Nesse sentido, o autor destaca a região
de colonização alemã como precursora de uma nova ordem po-
lítica e cultural, a partir da nacionalização em curso. Para Ma-
16 O tempo e o vento • 50 Anos

ria Helena Câmara Bastos e Maria Teresa Santos Cunha – Olhai


o que o Tempo não Levou. A Literatura de Erico Verissimo – a ênfase
é na ação pedagógica e cultural de toda a obra de Verissimo.
Por esse viés, a história da educação elege Solo de Clarineta como
exemplar nessa confissão de memórias, autobiografia e dimen-
são individual do sujeito Erico, local da fundação da discursivi-
dade do autor.
Para Célia Ferraz de Souza, em A Representação do Espaço na
Obra de Erico Verissimo: O Tempo e o Vento, pela perspectiva do
olhar de arquiteta, sublinha o espaço como o objeto princeps da
obra de Erico Verissimo. A dimensão do espaço, para a autora,
norteia o percurso do tempo, dos personagens e da arquitetura
no romance. Nessa medida, o espaço torna-se o ponto simbóli-
co na harmonização da ficção e uma dada realidade, principal-
mente na construção de um imaginário urbano.
N’O Ciclo de Vargas segundo Verissimo, René E. Gertz destaca
o nível da política como a mais contundente pesquisa histórica
feita por Erico. Porém, o autor assinala uma lacuna naquelas re-
ferências ao insistir que, talvez por decepção, Erico Verissimo
tenha dado pouca ênfase aos anos 30 da história gaúcha. A con-
tribuição de Gertz é a análise daquele período, onde no Rio
Grande há poucas referências sobre o ambiente gaúcho no Es-
tado Novo. Para Heloisa Jochims Reichel, A Identidade Sul-rio-
grandense no Imaginário de Erico Verissimo, a ênfase é trabalhar o
imaginário do autor em busca dos elementos fundantes de uma
identidade. No destaque da autora, a linha que perpassa o livro
é a “formação e delimitação de fronteira”, na busca de um espa-
ço para o eu e para o outro, como sucedâneo dos que perten-
cem ao continente e os “diferentes”, os de fora. Nessa esteira, a
autora descreve os diferentes tipos que, no congraçamento da
narrativa, concorrem para delimitar uma identidade gaúcha.
N’A Abolição da Escravatura a Serviço da República – Leitura Políti-
No Galope do Tempo 17

ca no Episódio Ismália Caré, Teófilo Torronteguy assinala que a


abolição da escravatura serviu como programa político em de-
trimento de uma ação social. Seu texto é uma descrição de
como a obra de Erico Verissimo, a partir das falas e da ação dos
personagens, reflete a ideologia social em relação à etnia negra.
A envergadura d’O Tempo e o Vento propicia, como inscri-
ção, a criação de um almanaque fictício para Santa Fé, datado
de 1899. Esta proposta de Andrey Schlee, sugere uma atualiza-
ção do texto original do Almanaque Municipal de Santa Fé,
mandado publicar pelo juiz de direito, Dr. Nepomuceno Garcia
de Mascarenhas, em 1853, conforme a narrativa de Verissimo.
Essa proposição tem o fito de, pelo romance, instalar uma linha
de convergência entre uma realidade inventada e as hiâncias
que a História não conta. O humor, a pesquisa histórica de do-
cumentos e outras publicações que remetem para a época, ins-
piram no texto de Schlee a condição da invenção sobre a inven-
ção, numa clara ironia das vicissitudes da realidade e pelas quais
o homem insiste em formatar o mundo.
Luiz Eugênio Véscio, no garimpo de uma edição que mar-
casse os 50 anos d’O Tempo e o Vento, aproveita sua amizade com
o bibliófilo José Mindlin, para descobrir que Erico Verissimo
ainda tinha um texto inédito em livro – Breve Crônica duma Edi-
tora da Província. Graças à grandeza de espírito e à generosida-
de de Mindlin, que cedeu os originais, podemos ter acesso ago-
ra a esta narrativa onde o autor gaúcho se reporta ao início de
carreira como escritor: Muitas coisas aconteceram naquele ano de
1931 (...) e um boticário falido, desempregado, sem dinheiro e com
grandes sonhos literários (mas sonhos controlados com os pés na terra,
em suma, sonhos de serrano) chegou a Porto Alegre. O sujeito tinha vin-
te e cinco anos e chamava-se Erico Verissimo e já havia batido em vá-
rias portas, pedindo emprego, mas sem resultado. O texto, escrito
quando Erico tinha 60 anos, trata do percurso do escritor, seus
vários empregos até a chegada na Livraria do Globo. Narra a
18 O tempo e o vento • 50 Anos

transformação da Editora e os vários papéis que desempenhou:


tradutor, revisor, editor. Sua ascensão como romancista é conta-
da através de suas publicações, até O Incidente em Antares.

Do tempo

Ao se tomar a categoria de sujeito, com o apoio da filosofia


e da psicanálise, nos dias de hoje, poder-se-ia afirmar que n’O
Tempo e o Vento eclode um novo sujeito. Esse sujeito seria aquele
que se fixa num evento, situação ainda indecidível mas que
marca o risco e a responsabilidade da decisão. É o sujeito do
evento. Sujeito marcado por um processo de verdade, não a do
saber instaurado, mas pela verdade do evento.
No caso do romance de Erico Verissimo, o que está narra-
do como verdade não é a História oficial, pedagógica e centra-
da num processo de repetição, mas aquela ficcionada e levada
à potência do sublime que é o evento marcado pela invenção.
O processo literário, criador dessas invenções, é o que torna
possível superar a luta de história e fato histórico, acontecimen-
to e verossimilhança, ideologia e verdade, pois carrega consigo
a tensão entre o saber e verdade, o que resulta na dissociação
entre sentido e verdade. Melhor dizendo, a obra de arte, como
é o caso de O Tempo e o Vento, é o acontecimento que supera a
História, pois que é mais elevada na acepção aristotélica, para
poder discerni-la pelo progresso dos eventos de seus aspectos
vazios e negativos.
A superação do tempo, no romance maior de Erico Verissi-
mo, é o comparecimento da verdade da arte, da ficção. Pois é
nessa narrativa que inventa a eclosão de uma saga, de uma vir-
tualidade histórica, que os sentidos e os significados para todos
No Galope do Tempo 19

nós leitores toma tento. A pulsão da narrativa, imperativo sim-


bólico que remete as faltas e as falhas para uma construção de
sentido, é o que doma aquele tempo na esperança de que o
evento nos forneça a grande representação.

* Doutor em Letras, Diretor do Centro de Artes e Letras, UFSM.


“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta
e deserta parecia um cemitério abandonado.”
O Continente – O Sobrado
Erico Verissimo,
um Escritor de Vanguarda?

Luiz Fernando Verissimo*

Dá para construir um bom argumento para a tese que nun-


ca é no centro que aparecem as vanguardas culturais, que a me-
trópole pode ser onde a cultura respira melhor mas é das mar-
gens que vêm as novidades. “Nunca” talvez seja um exagero,
mas no caso do modernismo europeu foi assim. Se você concor-
dar que França, Inglaterra, Alemanha e, vá lá, Itália eram o
“centro” cultural do mundo no começo deste século, a vanguar-
da vinha da Irlanda de Joyce, Yeats e Beckett, da Checoslováquia
de Kafka, da Viena de Musil, Wittgenstein, Schönberg e Freud,
da Espanha de Picasso e da Escandinávia de Strindberg - numa
definição algo arbitrária de vanguarda. Isso sem falar nos Esta-
dos Unidos de Dos Passos, Pound, Eliot, etc, e na Rússia de
Stravinski. No Brasil aconteceu coisa parecida e, descontada a
Semana de Arte Moderna e suas consequências, foi de fora da
metrópole Rio-São Paulo que chegou o novo. Do Nordeste, de
Minas e do Rio Grande do Sul, mesmo que em muitos casos a
novidade viesse disfarçada pelo regionalismo.
22 O tempo e o vento • 50 Anos

Erico Verissimo um escritor de vanguarda? Acho que sim.


Foi um dos primeiros a fazer literatura urbana no Brasil, a pre-
ferir o despojamento anglo-saxão à empolação ibérica e france-
sa e a escrever com uma informalidade que não excluía a expe-
riência com estilos e técnicas de narrativa. Talvez nenhum ou-
tro escritor brasileiro do seu tempo fosse tão bem informado so-
bre a teoria do romance, embora se definisse como apenas um
contador de histórias. Foi ingênuo e lírico na sua primeira fase,
até O Tempo e o Vento, mas mesmo nos primeiros romances, que
conquistaram um público inédito e fizeram sua reputação de
autor popular, há uma constante nem sempre reconhecida de
aguda observação social e construção de tipos aliada a um con-
trole de técnica pouco comum, na metrópole ou fora dela. Em
O Tempo e o Vento não se sabe o que é mais espantoso, a ambição
do autor ou o fato de que conseguiu realizá-la. É o único exem-
plo que eu conheço na literatura mundial de uma obra que se
dobra sobre si mesma, se olha e se desmistifica enquanto está
sendo feita. O terceiro volume da trilogia é uma repetição do
primeiro, com o épico sendo substituído pelo introspectivo, e o
admirável é que nem o épico é falso nem a introspecção que o
desmente é menos, bem, épica. Acho que nunca se deu a devi-
da atenção à carpintaria revolucionária de O Tempo e o Vento. O
Gabriel Garcia Marquez, lá de outra margem, a reconheceu, e
diz que foi um dos livros que o influenciaram na construção do
Cem Anos de Solidão. Nos livros que escreveu depois de O Tempo
e o Vento meu pai aprimorou seu domínio da narrativa. Na úni-
ca vez em que o ouvi se queixar de uma desatenção dos críticos,
comentou que ninguém notara o jogo com cores que fizera em
O Prisioneiro. Incidente em Antares, claro, é o quarto volume de O
Tempo e o Vento, a história agora contada com amargura.
Ao contrário dos seus co-“vanguardistas”, que convergiram
para o centro, Erico Verissimo ficou na margem. Não sei se isto
criou algum tipo de ressentimento. Ele nunca se sentiu excluí-
E r i c o V e r i s s i m o , u m e s c r i tor d e va n g u a r g a 23

do, que eu saiba, por qualquer tipo de “panelinha” literária e ti-


nha um ótimo relacionamento com escritores do centro do
país. Mas não participava da vida literária da metrópole e sua
condição de autor de boa venda, um dos dois únicos escritores
brasileiros da época que podiam viver só dos seus livros, tam-
bém o colocou numa espécie de periferia, vista do centro com
alguma desconfiança. Sei que o Graciliano Ramos detestava o
meu pai, embora nunca, acho eu, tenham se encontrado. Quan-
do conheci o Ricardo Ramos nos rimos muito desta implicân-
cia, à qual meu pai nunca deu maior importância. Se a distân-
cia do centro, além da popularidade, explica a falta de uma ava-
liação crítica mais perspicaz, digamos assim, da obra de Erico
Verissimo, não sei. Mas foi uma distância que ele preferiu, e que
nunca significou mais do que um apego ao seu chão e à sua
casa.

* Escritor, jornalista.
“Sentou-se no banco debaixo dum dos pessegueiros. O sol se havia escondido por trás da torre da
Matriz, e uma sombra morna e trigueira cobria o quintal. Temperava o ar a fragrância veludosa dos
pêssegos maduros, mesclada com a das madressilvas e dos jasmineiros.”
O Arquipélago - Encruzilhada
SAGA FAMILIAR E HISTÓRIA POLÍTICA

Regina Zilberman*

A estória não quer ser história. A estória,


em rigor, deve ser contra a História.

Guimarães Rosa1

Desde os gregos

As epopéias constituíram, para os gregos, as primeiras for-


mas de narrar. Reuniram histórias de guerras - a de Tróia é ma-
téria, pelo menos, da Ilíada, da Pequena Ilíada e do Saque de Tróia
[Iliupersis] - e de famílias - como nas desaparecidas Edipodia e Te-
baida, que passaram a responder pelo passado helênico, repre-
sentado por seus heróis, oriundos da aristocracia e capazes de
executar ações elevadas, conforme a expressão de Aristóteles,
na Poética.2
De todas as guerras, a mais famosa foi a de Tróia; de todas
as narrações da guerra de Tróia, a mais célebre foi a de Home-
ro, nome que pode encobrir um poeta assim denominado que
teria vivido no século VIII a. C., uma corporação de aedos pro-

1. ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Terceiras estórias. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 3.
2. Cf. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.
26 O tempo e o vento • 50 Anos

fissionais ou uma pessoa de talento excepcional, mas de identi-


dade ignorada. Mas nem a Ilíada, nem a Odisséia dão conta de
toda a guerra. Episódios esporádicos dela compõem o primeiro
poema, centrado na cólera de Aquiles, motivada pelo arbítrio
de Agamêmnon, que lhe roubou a escrava Briseida, e pela va-
lentia de Heitor, que roubou a vida de seu amigo e parceiro, o
bravo Pátroclo. Superados os motivos que desencadearam a ira
do primeiro dos mirmidões, a epopéia se fecha, até de modo
melancólico, apresentando os funerais de Heitor, cujo cadáver
é resgatado por seu pai Príamo, cedido por Aquiles, num raro
momento de piedade. A Odisséia aborda o day after, a partida de
Tróia após a destruição da fortaleza pelas tropas aquéias, a dis-
persão da frota vencedora, a diáspora de Ulisses até a chegada
desse, no final do canto XII, à sua ilha natal, cuja reconquista
ocupa os demais doze cantos, vale dizer, a metade do poema.
Os dois poemas centram-se nas proezas dos heróis, homens
superiores3 que se defrontam com iguais, outros nobres, ou então
com seres fantásticos e deuses que vão plantando dificuldades
ao longo da trajetória do protagonista, vencidas todas, mas aos
poucos, o que estende e protela a ação por 24 cantos, até che-
gar a um determinado ponto, nem sempre conclusivo, mas su-
ficientemente terminal para encerrar o relato.
A guerra de Tróia de Homero não tem princípio, nem cau-
sas. A ação da Ilíada começa in media res e não chega a acabar,
interrompida pelo narrador que, se retorna ao assunto na Odis-
séia, não é para contar o fechamento do conflito, e sim a aber-
tura do outro. A tomada e destruição de Tróia não é apresenta-
da nesse poema para concluir o primeiro, e sim para explicar o
começo da aventura de Ulisses na direção de casa. Portanto, a
guerra, que não teve início, também não finda, sendo apenas
transferida de lugar, já que uma das razões para o périplo de

3. Id. ibid.
saga familiar e histÓria política 27

Ulisses pelos mares e para seus infortúnios é a vingança de Po-


seidon, protetor de Tróia e desafeto do rei da Ítaca, responsável
direto pela queda da cidade onde o soberano dos mares deti-
nha seus templos.
É Ésquilo que, na Orestéia, vai narrar a história da guerra de
Tróia, articulando suas causas e conseqüências e apresentando-
a do começo até o final. Agamêmnon, a primeira tragédia da tri-
logia, é, por intermédio dos cantos corais e de alguns dos episó-
dios, quase toda dedicada a recuperar os principais aconteci-
mentos do conflito entre os aqueus e os troianos. O párodo, por
exemplo, centra-se na reunião da frota dos aqueus em Áulide e
no sacrifício de Ifigênia, a primogênita de Agamêmnon, que,
chefe do exército helênico, precisou imolar a filha para obter a
graça dos deuses e encaminhar seus aliados às praias de Tróia.4
No primeiro episódio, por sua vez, Clitemnestra, sabedora
da derrota da cidade inimiga, lamenta o destino dos vencidos,
imaginando a reação das mulheres após a perda de seus ho-
mens e da tranqülidade doméstica:5

Neste momento os Aqueus dominam Tróia.


Na praça capturada certamente ouve-se
o borborinho de mil vozes bem distintas,
.........................................................................
Mulheres desvairadas tentam descobrir
os corpos dos irmãos e dos esposos mortos;
sobre os cadáveres dos pais crianças choram
(são lábios antes livres lamentando males).6

O primeiro estásimo refere-se ao crime de Páris, que des-


respeitou o lar de Menelau, seduzindo e raptando Helena, es-

4. Esse tema é desenvolvido mais tarde por Eurípedes, em Ifigênia em Áulide.


5. Tema igualmente desenvolvido por Eurípedes, em Hécuba e As troianas.
6. ÉSQUILO. Agamêmnon. Trad. de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964. p. 13 - 14.
28 O tempo e o vento • 50 Anos

posa daquele. O segundo episódio, quando Clitemnestra rece-


be notícias atualizadas da tropa aquéia, apresenta a partida de
Tróia e a dispersão dos gregos, matéria tratada na Odisséia e na
epopéia, hoje desaparecida, os Regressos [Nostoi]. O segundo es-
tásimo completa o retrospecto, quando volta ao tema da des-
truição de Tróia, atribuindo a Páris a causa do destino funesto
da cidade.
Mais do que Homero, é Ésquilo que faz a crônica da guer-
ra de Tróia, atribuindo-lhe uma causa - a atitude de Páris, des-
respeitando o lar de Menelau, quando tinha sido recebido con-
forme as normas da hospitalidade - e conseqüências, quais se-
jam: a destruição da cidade e a dispersão dos gregos, já que nem
todos têm oportunidade de, como Agamêmnon, chegar sãos e
salvos a seu reino, providos de escravos, amantes (Cassandra, no
caso desse general grego) e despojos.
Essa crônica de guerra e de dois povos é, por seu turno,
uma crônica familiar. Histórias de família já tinham sido maté-
ria de epopéias, mas Ésquilo procede à articulação fundamen-
tal: a história dos Átridas fica embricada à história da própria
Grécia, pois, se o conflito entre Atreu e Tiestes têm causas inter-
nas - a rivalidade dos irmãos, o adultério e o crime -, os atritos
vivenciados entre seus respectivos descendentes - Menelau e
Agamêmnon, de um lado; Agamêmnon e Egisto, de outro - não
podem ser dissociados de um plano mais geral, de natureza po-
lítica e militar. Afinal, Agamêmnon vai à guerra, para defender
a honra de Menelau, maculada por Páris, tendo mesmo de imo-
lar a própria filha para dirigir os favores divinos no sentido dos
soldados aqueus, o que depois custa sua vida. É esse ato, de sig-
nificado religioso, militar e político (estava em questão a lide-
rança de Agamêmnon) que Clitemnestra entende como crime,
justificando, uma década depois, o assassinato do marido. O
mesmo acontece com Egisto: ele quer vingar a morte do pai,
Tiestes, apunhalando Agamêmnon enquanto este se banhava;
saga familiar e histÓria política 29

ao mesmo tempo, é cúmplice da amante, Clitemnestra. Mas o


crime e o adultério colocam-no no comando de Micenas, de
que se torna tirano até ser morto por Orestes, filho de Agamêm-
non que, vingando o pai, recupera o poder a que teria direito
enquanto herdeiro do rei.
A tragédia de Ésquilo ata a saga familiar à história política
de uma cidade-Estado, unidade administrativa fundamental
conforme o modelo de governo adotado pelos gregos no sécu-
lo V a. C., quando a Orestéia foi apresentada ao público atenien-
se pela primeira vez. A história política conta a passagem da ti-
rania à democracia, pois Orestes é inocentado pelo areópago
reunido sob a égide de Palas Atena, a deusa protetora da cida-
de de Atenas, que assim comemorava coletivamente a adoção
de um sistema que a diferenciava perante as outras pólis da Gré-
cia. Outra narração é a da instalação da justiça civil, exercida e
executada por um tribunal que ouve o réu, em vez de eliminá-
lo, e julga a partir dos argumentos favoráveis e contrários à sua
ação. Esse mundo é o do público e do coletivo, em vez do pri-
vado e individual, que moveu as atitudes de Egisto e Clitemnes-
tra, tendo se reproduzido na ação de Orestes e sua irmã, Elec-
tra, mas superado ao final da tragédia, quando os juízes de Ate-
nas submetem até as Fúrias, que querem beber o sangue do cri-
minoso, em vez de entender seus motivos.
Com esse nome, a trilogia confere o principal papel a Ores-
tes, o último descendente da família dos Átridas. Ésquilo con-
centra a ação na morte de Agamêmnon, matéria da primeira
tragédia, e na vingança armada por seus filhos, Orestes e Elec-
tra, que punem a mãe e seu amante, Egisto, com a morte, sen-
do depois o rapaz julgado pelo tribunal de Atenas. Nos diálogos
e cantos corais, a ação retrocede, voltando ao conflito entre os
irmãos Atreu e Tiestes, quando o primeiro atraiu o segundo, e
seus filhos, para uma armadilha mortal, sobrevivendo apenas
Egisto, que depois responderá na mesma moeda: tornar-se-á
30 O tempo e o vento • 50 Anos

amante da mulher de Agamêmnon, Clitemnestra, e juntos os


dois levarão o general à morte.
Entre esse evento passado e as ações contemporâneas apre-
sentadas em cena, outro acontecimento merece destaque por
Ésquilo: é a guerra contra Tróia, motivada pelo rapto de Hele-
na, sendo atingido Menelau, irmão de Agamêmnon. Assim, o
mito não ultrapassa o percurso de três gerações, formadas todas
elas pelos pares de irmãos: Atreu - Tiestes; Menelau - Agamêm-
non; Orestes - Electra. Ésquilo deixa de fora outros crimes ante-
riores da família: o do ancestral Tântalo, que tentou enganar os
deuses, oferecendo-lhes para comer a carne de seu filho Pélops,
e foi punido com a sede eterna que, no Hades, não consegue sa-
ciar (é assim que Homero o mostra, quando Ulisses, na Odisséia,
desce aos Infernos); e o de Pélops, que, para conquistar Hipo-
dâmia, engana o pai da moça numa corrida fatal.
Três gerações bastam para traçar uma rota de dissimula-
ções e enganos. Além disso, entre os pares Atreu/Tiestes, Aga-
mêmnon/Menelau e Agamêmnon/Egisto, predomina um tema
comum: o adultério, punido com a morte. A esse tema, soma-se
uma associação: as mulheres podem ter sido vítimas da sedução,
como Helena em relação a Páris, mas convertem-se em cúmpli-
ces, quando optam pelo amante em detrimento da família, pior
ainda quando ameaçam com o sacrifício dos filhos. Clitemnes-
tra exemplifica melhor que ninguém - e nem mesmo a Medéia
de Eurípedes faz sombra a essa sinistra rainha - o cinismo femi-
nino, que fascina para enganar, atrai para matar.
A saga familiar é feita de sangue e morte, legando aos des-
cendentes a tarefa de punir os culpados, vivendo à margem da
justiça. São Orestes e Electra que rompem o ciclo, porque se
particularizam em vários aspectos:
- constituem um par diferenciado pelo sexo; logo, não
competem pelo(a) mesmo(a) amante, como nos casos citados
antes;
saga familiar e histÓria política 31

- mantêm-se sexualmente castos, sendo de supor que per-


maneçam virgens;
- sua tarefa é vingar o pai, matando a mãe, logo o objeto de
sua ação pertence à geração anterior, e não contemporânea.
O que mais se salienta na composição dos dois príncipes é
a assexualidade de ambos, como se, para interromper o ciclo de
mortes e desforras, fosse preciso eliminar a causa principal: a li-
bido. Orestes é inocentado, e Electra deixa a cena ao final de As
coéforas, segunda peça da trilogia. Ambos são substituídos por
outra forma de governo, a democracia, e não se supõe que pu-
desse ser diferente: eles não têm descendentes, nem parece que
possam vir a ter. A saga familiar se encerra com a eliminação da
família, e sua substituição pelo Estado.
Na Orestéia, Ésquilo lida com algumas questões que podem
iluminar as relações entre poesia e história:
- a proximidade desse drama com a história advém do fato
de Ésquilo estar fazendo a crônica da Grécia, com seu berço na
guerra de Tróia e conseqüências que se estenderão até a insta-
lação do tribunal de Atenas; para tanto, ele se vale de uma for-
ma poética, exposta por meio do drama e da narrativa, estilo
esse adotado pelos cantos corais, que recuperam e resumem o
passado helênico, bem como articulam-no às ações presencia-
das pelos espectadores naquele momento na encenação;
- a articulação entre o passado e o presente pode ser reali-
zada porque o gênero literário escolhido é o dramático, que
manipula com a atualidade: o que está sendo visto está aconte-
cendo. Graças à fusão entre narrativa e drama, Ésquilo pode ex-
plicar aos atenienses sua própria história, iniciada quando do
conflito entre generais troianos e aqueus e concluída quando,
após as quizílias familiares que se arrastaram por gerações, o
areópago assumiu seu papel ordenador e pôs fim, em definiti-
vo, às rixas e desavenças;
- mas o encerramento das questões domésticas também se
deveu a um fator interno: a própria família se dissolveu enquan-
32 O tempo e o vento • 50 Anos

to entidade ordenadora. A incapacidade de controlar seus ins-


tintos sexuais, as rivalidades internas, a esterilidade de seus
membros mais moços levam-na ao desaparecimento enquanto
célula mater da sociedade, cabendo ser trocada por outra institui-
ção, no caso, o Estado, mais competente porque coletivo e anô-
nimo, independente das vontades particulares e idiossincrasias
individuais.
Com a Orestéia, Ésquilo dá uma lição de poética histórica:
mostra como operar com a temporalidade e a cronologia e
como, partindo do passado, chegar ao presente, interpretando a
atualidade para os sujeitos que fazem parte dela. Mais importan-
te: Ésquilo mostra como tratar, simultaneamente, de figuras mi-
tológicas e entidades históricas, como acontece ao final de As Eu-
mênides. Ali colocam-se frente à frente os austeros juízes atenien-
ses e as divindades olímpicas, Apolo e Palas Atena, bem como as
outrora rebeldes Erínias, convertidas ao final em pacíficas Eu-
mênides, deusas protetoras da poderosa cidade de Atenas.
Ninguém, antes de Ésquilo, ousara com tanta naturalidade
passar do mítico para o histórico e voltar, sem desfigurar ne-
nhum dos dois. Só o próprio Ésquilo, em Os Persas, drama isola-
do em que narra a vitória ateniense sobre os invasores coman-
dados por Xerxes. Mas, nessa obra, Ésquilo não recorre à mito-
logia, como que resguardando a esfera divina e mitológica do
panteão grego. A Orestéia revela que ele decidira ir mais adian-
te, reunindo tempos diversos e entidades de natureza distinta.
O resultado foi único, porque os gregos não tentaram de novo,
nem mesmo Aristófanes, que deixa o mítico, para se dedicar ao
histórico. Competiu à atualidade tentar renovar esse pacto, sen-
do Friedrich Nietzsche um de seus arautos, quando, em O Nas-
cimento da Tragédia, coloca a trilogia de Ésquilo no papel de mo-
delo da Gesamtkunstwerk, a obra de arte total. Cabe verificar a
que chegou a saga familiar, quando Erico Verissimo a retoma,
em O Continente.
saga familiar e histÓria política 33

Até os gaúchos

O romance histórico constitui provavelmente o projeto


mais antigo e contínuo da ficção brasileira. Os românticos ado-
taram-no porque correspondia a um gênero de vanguarda na
primeira metade do século XIX, criação exclusiva do período,
que cabia transplantar para o Brasil, pois o país em formação,
logo após se separar de Portugal, precisava de narradores de
seu passado. Tanto melhor que fossem romancistas, que pode-
riam recorrer à imaginação para conferir heroicidade aos epi-
sódios da conquista do território, nem sempre conhecidos, nem
sempre dignos de tratamento épico.
Num ensaio de de 1843, publicado na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro em janeiro de 1845, o botânico
alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, conhecido pelo tra-
balho de que se originou a obra Viagem pelo Brasil, publicada em
parceria com Johann Baptist von Spix entre 1817 e 1820, expli-
ca “Como se deve escrever a História do Brasil”. Depois de ana-
lisar o processo de formação do povo brasileiro, elege um mo-
delo para a redação da história que coincide com o projeto do
romance histórico, como se esse fosse o mais adequado para o
fortalecimento do sentimento nacional e de identidade entre os
habitantes de um país:

Como qualquer história que este nome merece, deve parecer-se


com um Epos! 7

Os romancistas, a começar por José de Alencar, acataram a


sugestão de Martius: procuraram no passado episódios que ti-
vessem conotação épica e estabeleceram os padrões nativistas

7. MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro 6 (24) : 389 - 411. Janeiro de 1845.
34 O tempo e o vento • 50 Anos

de escrita da história. De lá para cá, o projeto tomou vários ru-


mos, sendo rejeitado pelos naturalistas, que preferiam a crítica
à atualidade, e retomado pelos modernistas, de modo ufanista
ou paródico, mas dificilmente alcançando o efeito destacado a
propósito de Ésquilo: a capacidade de articular passado e pre-
sente, unindo figuras míticas e históricas, para refletir sobre a
atualidade e tomar posição diante dela.
Com O Continente, Erico Verissimo habilitou-se à realização
de tarefa similar e, como foi capaz, com esse romance e com o
todo da trilogia O Tempo e o Vento, de chegar a um resultado po-
sitivo, deu novo sentido ao romance histórico brasileiro, colo-
cando-o num patamar diante do qual outros aspirantes a efeito
parecido precisam se posicionar e eventualmente superar.
Nem O Continente, em particular, nem O Tempo e o Vento, no
conjunto, podem ser considerados reapropriações do mito tra-
tado por Ésquilo na Orestéia. De todo modo, alguns traços co-
muns são verificáveis:
- o romance narra a tomada do poder pelos Cambarás, e os
episódios dispersos nas várias cenas de O Sobrado mostram como
Licurgo chega ao governo de sua cidade, Santa Fé, por força da
luta e do morticínio;8
- a ascensão dos Cambarás consome três gerações, desde
sua associação aos Terras: Rodrigo Cambará disputa Bibiana
com Bento Amaral; seu filho Bolívar Cambará é assassinado pe-
los Amarais, ainda senhores da cidade; Licurgo Cambará, de-
pois de resistir dentro de sua casa ao cerco dos Amarais, sai vi-
torioso e Intendente da cidade, durante a revolução federalista
de 1893.

8. Em outro estudo, examinamos como a tomada de Santa Fé implica o sacrifício da própria des-
cendência de Licurgo, com a morte da filha, Aurora. V. ZILBERMAN, Regina. Do mito ao roman-
ce. Tipologia da ficção brasileira contemporânea. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul;
Porto Alegre: Escola Superior de Teologia, 1977. V. também ZILBERMAN, Regina. “O tempo e o
vento: história, mito, literatura”. Nova Renascença. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, XV
: 341 - 363. Primavera/Verão de 1995.
saga familiar e histÓria política 35

O aspecto em comum mais importante, contudo, situa-se


em outro lugar: também Erico Verissimo reflete sobre as rela-
ções entre família e Estado. O Continente narra em princípio a
história de um clã, os Cambarás, formados na confluência de vá-
rios ramos:
a) o primeiro Cambará é, na realidade, Chico Rodrigues,
aventureiro e, entre outros crimes, ladrão de gado, que toma
aquele sobrenome quando resolve constituir família e virar pro-
prietário. Como quer criar raízes, adota o nome de uma árvore:

Resolvi mudar de vida, requerer sesmarias, fazer casa, parar


quieto, ser um senhor estancieiro, ter mulher, gado, cavalos e fi-
lhos com a minha marca...
(...)
Olhou para uma árvore forte, que havia à beira da estrada.
De hoje em diante vou me chamar Francisco Nunes Cambará.9

b) seu descendente, Rodrigo Cambará, casa-se com Bibia-


na Terra, cujos avós tinham origem étnica distinta: Ana Terra
descendia de paulistas transferidos para o Sul, pequenos pro-
prietários rurais assolados pelos ladrões, de um lado, e, de ou-
tro, pela prepotência dos grandes latifundiários, como os Ama-
rais; Pedro Missioneiro, da sua parte, era mestiço, filho de um
bandeirante e uma índia, educado pelos jesuítas nas Missões
guaranis, até a derrocada dessas, com a vitória de Gomes Freire
de Andrade sobre as tropas nativas de Sepé Tiaraju;
c) ao mesmo tempo, cresce e se desenvolve a família dos
miseráveis Carés, representantes dos gaúchos pobres e desterra-
dos que vêm a se fixar no Angico, propriedade dos Cambarás,
até o surgimento de Ismália Caré, amante que Licurgo mantém
antes e depois do casamento.
A miscigenação e a diversidade étnicas são fatores podero-
sos na constituição do romance, pois estão ainda presentes

9. VERISSIMO, Erico. O Continente. Porto Alegre: Globo, 1949. p. 65. As demais citações provêm
dessa edição.
36 O tempo e o vento • 50 Anos

membros dos grupos de imigrantes alemães - como os colonos


que se localizam nas proximidades de Santa Fé ou o Doutor
Winter, o médico estrangeiro que atua como fino analista dos
comportamentos humanos no universo das personagens ficcio-
nais - e dos pretos, como Severino, o companheiro de infância
de Bolívar, enforcado por decorrência do depoimento do jovem
Cambará, na véspera do dia do noivado desse.
Também o recorte social é minucioso, estando representa-
das as diferentes camadas, desde os grandes proprietários - gru-
po a que os Cambarás se integram após o casamento de Bolívar
e Luzia Silva, herdeira do Sobrado e do Angico - até os miserá-
veis sem-terra, como os Carés, os escravos e os peões, exemplifi-
cados por Fandango.
A história da família concentra, portanto, os vários ângulos
de uma história social, revelando-se paradigmática. O Continen-
te sintetiza a história do Rio Grande do Sul, escolhendo um iní-
cio para ela - a guerra missioneira, com a integração do Conti-
nente de São Pedro ao território português depois da destrui-
ção dos Sete Povos pelo exército de Gomes Freire de Andrade -
e um elemento de agregação - a miscigenação étnica, que une
Pedro Missioneiro e Ana Terra, depois Bibiana Terra e Rodrigo
Cambará. Concluído o processo de miscigenação, o elemento
de agregação passa a ser a própria família, de onde sairão os sol-
dados para as guerras - Rodrigo, Bolívar, Florêncio, Licurgo - e
as mulheres para a sustentação do lar. A história narrada por
Erico não elege heróis individuais, sejam militares ou civis en-
volvidos em conflitos bélicos, como o romance histórico do Ro-
mantismo, e sim o grupo; também não destaca uma camada so-
cial, e sim o núcleo doméstico, responsável pelo aparecimento
e manutenção das gerações, num processo sem fim de que de-
pende o funcionamento da sociedade.
A família escolhida para paradigma, contudo, não é “mé-
dia” ou “exemplar”: ela vai, aos poucos, se elevando socialmen-
saga familiar e histÓria política 37

te. Dos marginais Pedro Missioneiro e Chico Rodrigues provêm


o acomodado Pedro Terra e o inquieto Rodrigo Cambará, estes
ainda despossuídos; mas o neto de um e filho de outro, Bolívar,
casa com a rica herdeira Luzia Silva, o que garante o futuro
tranqüilo de Licurgo, figura que, ao contrário de seus ances-
trais, não precisa ter preocupações financeiras ou profissionais.
A elevação social tem seu preço: os Cambarás chegam ao poder,
quando o Intendente Licurgo, parceiro dos republicanos e de
Júlio de Castilhos, suplanta os maragatos por ocasião da dispu-
ta de Santa Fé.
Licurgo, que tem nome de chefe de Estado,10 e Estado com
propensões guerreiras, chega ao comando de Santa Fé por ter
sido eleito Intendente e por ter sabido conservar a posse da cida-
de, diante do assédio dos rebeldes liderados por Gaspar Silveira
Martins. Quando o romance conclui, ele é o chefe vitorioso e res-
peitado, que certamente ocupará papel influente no processo de
repartição dos negócios públicos no Rio Grande do Sul. Assim,
ele muda de condição: o chefe de família torna-se chefe do Esta-
do, e o romance de família, narrativa do exercício do poder. As
demais etapas da trilogia desenvolverão essa idéia, quando a
questão familiar se transfere para um segundo plano, deslocada
pela discussão das relações entre o indivíduo e o governo.
Essa passagem, que Ésquilo narrara por meio dos Átridas,
é a matéria virtual de O Continente. Como na tragédia, o drama
doméstico toma a maior parte do texto, para contar a mudança
essencial: como o Estado se constitui, desde o mundo familiar
até sua substituição por outra entidade, mais distante e anôni-
ma, a democracia no caso do drama grego, a tirania no caso do
romance gaúcho. Eis por que, em Ésquilo, quando a transição
ocorre, Orestes sai de cena, cedendo o lugar para os deuses e os
juízes, estes colocados no mesmo plano daqueles, enquanto

10. Licurgo foi o lendário legislador de Esparta, tendo vivido supostamente no século IX a. C. Cre-
dita-se a ele o fato de ter organizado a cidade como uma nação de soldados. Plutarco, em Vidas
paralelas, conta sua biografia.
38 O tempo e o vento • 50 Anos

que, na saga de Erico Verissimo, Licurgo muda de um plano a


outro, sem desaparecer. Ao final, ele passa a se confundir com
o poder, e esse não é democrático. Portanto, sua vitória pessoal
é a imposição de um modelo administrativo personalista, como
o Rio Grande do Sul e o Brasil testemunharão por várias déca-
das no século XX.
O estabelecimento do Estado como entidade responsável
pelo funcionamento da sociedade corresponde ao enfraqueci-
mento do poder e influência da família, que abre mão da facul-
dade de arbitrar sobre os problemas tanto internos - domésticos
- como externos ao alcance de sua órbita de atuação. Essa pas-
sagem vai corresponder, na tragédia de Ésquilo, à transferência
do mundo mítico para o mundo histórico: Orestes, o herdeiro
que descendia longínquamente dos deuses e proximamente do
general que comandou os aqueus na guerra de Tróia, dá lugar
aos juízes anônimos, e Palas Atena gerencia a mudança. O Con-
tinente lida com essa transformação de modo peculiar.
Para se ocupar dela, cabia introduzir o mito na narrativa,
apesar do compromisso original com o romance histórico. Eri-
co resolve a questão, recuperando a cosmovisão mítica que pes-
soas vivendo num contexto tão primitivo e bárbaro, como o Rio
Grande no século XVIII, quando o relato inicia, e ainda no sé-
culo XIX, antes da influência dos positivistas (experimentada,
no plano ficcional, tão-somente por Licurgo e sua geração),
provavelmente compartilhariam.11 Assim, Pedro Missioneiro
tem visões premonitórias e acredita-se filho de Nossa Senhora,
constituindo-se o exemplo mais flagrante de um modo de ver o
real que sacraliza o espaço e anula a transformação do tempo.12
Mas igualmente o universo de Ana Terra é marcado pela ausên-
cia de cronologia e pela repetição, apontando para uma primi-
tividade que é a da criação do mundo:

11. Em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Laura de Mello e Souza indica como as condições em que se
deu a colonização no Brasil dos primeiros séculos favoreceram o fortalecimento de uma visão
mágica do mundo e da natureza. Cf. SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. 5.
reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
saga familiar e histÓria política 39

Mas na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos,


ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim-de-mundo não existia
calendário nem relógio. Eles guardavam de memória os dias da
semana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passa-
gem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspecto
das árvores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano.
(p. 72)

Além disso, Erico transplantou o modo de entender a rea-


lidade peculiar ao pensamento mágico para a composição da
estrutura narrativa, pois as seqüências de que se compõem o ro-
mance repetem, ritualisticamente, dois modelos de ação:
- os episódios protagonizados pelos homens (Pedro Missio-
neiro, em Ana Terra; Rodrigo Cambará, em Um certo capitão Ro-
drigo; Bolívar Cambará, em A Teiniaguá) se caracterizam por
apresentar a história de um homem jovem que é morto após
conquistar a mulher e gerar nela seu herdeiro, conforme um
processo de substituição, próprio aos ritos rurais, de um ser
mais velho pelo mais moço, capaz de fertilizar a terra com mais
vigor e robustez;
- os episódios protagonizados por mulheres (Ana Terra, em
Ana Terra; Bibiana Cambará, em Um certo capitão Rodrigo, A Tei-
niaguá e A guerra) se caracterizam pelo esforço delas de pereni-
zar a família e a sucessão, garantida à custa da castração sexual
(Ana e Bibiana não voltam a ter parceiros masculinos) e da de-
dicação obsessiva aos filhos.
A repetição das principais ações vivenciadas pelos protago-
nistas, sutilmente camuflada pela caracterização variada das
personalidades e pela diversidade de seres que povoam os acon-
tecimentos, indica a prevalência do modelo narrativo próprio
ao mito: como no ritual, reproduzem-se os processos, sugerindo
que, sob a capa da mudança, esconde-se o eterno retorno. A

12. Relativamente ao conceito de mito, v. ELIADE, Mircea. Mito y realidad. Madrid: Guadarrama,
1968. ___. El mito del eterno retorno. Madrid: Alianza, 1972. ___. Tratado de história das religiões.
Lisboa: Cosmos, 1977. ___. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d..
40 O tempo e o vento • 50 Anos

ruptura, contudo, é protagonizada num dado momento, sendo


Licurgo, o homem de Estado, responsável por ela: é ele quem
sobrevive ao cerco do Sobrado, quando seu pai morrera tentan-
do deixá-lo. Assim, o filho reitera o ato paterno, para suplantá-
lo, instaurando uma nova ordem.
Impõe-se outra situação, que rompe com o mundo do mito
e depara-se com o acontecimento, sempre diverso, impossível
de ser interpretado pelo padrão das igualdades e das repeti-
ções. Este é o mundo da história, cuja instalação Erico, como
antes dele Ésquilo, narra. Por isso, o encerramento da narrati-
va, em O Continente, coincide com o final de O Sobrado, e não
com a interpolação das vozes coletivas que faziam a passagem
de um episódio a outro.
Com efeito, O Continente, constituído de sete episódios,
quais sejam, A fonte, Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo, A Teinia-
guá, A guerra, Ismália Caré e O Sobrado, apresenta uma grande di-
ferença entre este último e os outros seis:
- O Sobrado é apresentado em partes que se fragmentam ao
longo de todo o romance, enquanto que os demais correm de
forma ininterrupta;
- após cada um dos seis episódios, segue-se uma narrativa
em itálico, enquanto que, mesmo depois de concluido O Sobra-
do, não aparece o trecho com tais marcas gráficas. A narrativa
em itálico desempenha dupla função:
a) faz a colagem cronológica entre os episódios, preen-
chendo as lacunas entre cada período histórico narrado pelo
ficcionista e o seguinte; assim, após A fonte, que mostra a forma-
ção do Rio Grande em meio às guerras missioneiras, são relata-
dos outros eventos da ocupação do território; após Ana Terra, a
instalação dos imigrantes alemães; após Um certo capitão Rodrigo,
a Guerra Farroupilha; e assim sucessivamente;
b) apresenta a perspectiva popular, que igualmente carrega
dupla face: o narrador expressa a vox populi, quando avalia os ma-
lefícios causados pela guerra e as perdas sofridas pelas familias:
saga familiar e histÓria política 41

Dei tudo que tinha pros Farrapos. Meus sete filhos. Meus sete ca-
valos. Minhas sete vacas. Fiquei sozinha nesta casa com um
gato e um pintassilgo. E Deus, naturalmente. (p. 299)

além disso, conta a história das classes populares, sumariadas na


família Caré, que ocupa a linha inferior da composição social
sul-rio-grandense:

João Caré anda sozinho, de pés no chão, quase nu, mal tapan-
do as vergonhas com um chiripá esfarrado. No inverno, quando
o minuano sopra, ele cava na terra uma cova e se deita dentro
dela. Quando a fome aperta e não há nada para comer, João
Caré mastiga raízes, para enganar o estômago. E quando o de-
sejo de mulher é muito, ele se estende de bruços no chão e refoci-
la na terra. (p. 149)

Já se vê que os trechos intercalados exercem, no romance, o


papel que os cantos corais desempenham na tragédia grega, es-
pecialmente no Agamêmnon, de Ésquilo: completam a crônica his-
tórica, empregando a voz coletiva e recuperando a ótica popular.
Mas esse sujeito plural desaparece ao final de O Sobrado.
Quando a família é suplantada pelo Estado, e este toma a forma
personalista representada pelo vitorioso e onipotente Licurgo,
o narrador que falava em nome do cronista popular se cala. Ao
se instaurar o mundo da história e do acontecimento, suplan-
tando o do mito, o que significa anunciar a realidade do pro-
gresso e da modernidade, não há lugar mais para o coletivo.
Tal qual o dramaturgo grego, o romancista sul-rio-granden-
se ensina uma lição sobre o presente. Pouco eufórica, ao con-
trário daquele, razão por que suas palavras finais são de desa-
lento, sob a égide da figura esclerosada de Bibiana:

A porta torna a fechar-se. Fandango suspira, aliviado. De re-


pente o sino cessa de badalar e ele fica com uma zoada nos ouvi-
dos, como se sua cabeça fosse um ninho de marimbondos.
Sem saber ao certo por quê, dirige-se para o quarto de Bibiana,
42 O tempo e o vento • 50 Anos

bate na porta e, como não obtém nenhuma resposta, abre-a deva-


garinho e entra. Lá está a velha sentada em sua cadeira de ba-
lanço, com o chale nas costas, mascando fumo, remexendo a
boca como uma vaca a ruminar. (p. 638 - 639)

Saga de uma ascensão política, O Continente elege o modo


de narrar do cronista grego, sugerindo que, nos intervalos da
História, coloca-se a ficção para enunciar, pela outra mão, o que
precisa ser contado.

* Doutora em Letras. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

da PUC-RS.
“Junho entrou com fortes geadas. Um velho morador de Santa Fé garantiu: Vamos ter um inverno
brabo.”
O Retrato - Chantecler
O Continente: um Romance de
Formação? Pós-Colonialismo e
Identidade Política

Maria da Glória Bordini*

O Continente, volume inaugural de O Tempo e o Vento, cujo


lançamento na edição completa ocorreu em 1949, chamou-se
assim depois de muitas hesitações do autor. Desde 1939 vinha
pensando num “massudo romance cíclico” a respeito da forma-
ção do Rio Grande do Sul, que retrataria o período de 1740 a
1940, com andamento “repousado, lento e denso” (VERISSI-
MO, 1944, p.126-127). O título inicial foi Caravana e o primei-
ro esboço deu-se em 1941, como consta no primeiro caderno de
notas do escritor dedicado ao plano geral da obra. Nesse cader-
no, há um roteiro das partes previstas: “A fonte” (20 p.), “O pu-
nhal”(20 p.), “O tempo e o vento”(50 p.), “O caudilho”(120 p.)
“Teiniaguá”(50 p.) “A guerra” (60p.) e “O sobrado”(200 p.). A
idéia era tratar cada seção como um conto ou novela, dando-lhe
um fechamento individual, de modo que a obra, mais lírica,
concentrada e panorâmica nos três primeiros episódios, mais
dramática e também idílica no quarto, no quinto e no sexto, se
encerraria elegiacamente no sétimo. O conteúdo deste ultra-
46 O tempo e o vento • 50 Anos

passaria a dimensão pessoal, para investir com maior intensida-


de na situação política1 (cf. ALEV 04a0033-41, p.ii).2
Entre esse nascedouro e o romance acabado, que realiza
essas propostas seminais, houve pelo menos um segundo rotei-
ro, de 1943, bem mais extenso, preocupado com a consulta a
fontes do folclore e da historiografia sulina, procurando especi-
ficar os eventos e cenários e coordenando vidas e fatos políticos.
Nesse esboço, salientam-se a importância das Missões, o papel
fundacional de Pedro Missioneiro, os confrontos entre liberais
e terratenentes, envolvendo Rodrigo Cambará, e a sabedoria de
Maria Valéria ante a guerra. Prefiguram-se os símbolos fortes do
romance, o vento e o punhal, e há a fixação das cronologias, a
fim de garantir a coerência da história, bem como a criação de
conflitos nas relações pessoais, para evitar a monotonia no rit-
mo da narrativa (cf. ALEV 04b0059-43).
O design da obra, em que ressoa a concepção goethiana de
símbolo, uma vez que se deseja auto-encerrar cada segmento do
texto e o texto em si, sem incoerências, e ao mesmo tempo per-
segue-se um sentido que extravase esses moldes limitativos, de-
safia à consideração desse primeiro volume da trilogia sob a len-
te dos estudos pós-coloniais. Pressupondo as noções derridianas
de différance e de gramatologia, a atividade crítica do pós-colo-
nialismo, ao lidar com as questões do nacionalismo, tem busca-
do encontrar uma idéia de totalização alternativa à do marxis-
mo, em que a instabilidade, a dispersão e as alteridades sejam
as forças de coalizão de um conceito de nação – a colonizada –
que se afirma a partir e contra outra nação – a colonizadora, em
resposta à acusação de Edward Said de que o discurso cultural
moderno estaria vinculado “às estruturas de acumulação, nega-

1. Noutra parte do esboço, acrescenta-se um oitavo episódio, tambérm elegíaco, politizado e mais
extenso, intitulado “A torre”.
2. A indicação se refere ao número de catálogo da Classe Esboços e Notas do Acervo Literário de
Erico Verissimo – ALEV), sediado no Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, endereço eletrô-
nico: www.pucrs.br/letras/pos/acersul/ericoverissimo.
O continente: um romance de formaçÃO? 47

ção, repressão e mediação que caracterizam a forma estética do-


minante”, colaborando com a autojustificação dos excessos do
Estado moderno (p.177).
Situando-se a partir do pensamento desenvolvido pelos
teóricos pós-modernos, avessos a quaisquer centramentos e nar-
rativas-mestre, cultores do regresso paródico ao passado, do
jogo dos significantes e recusando a noção de subjetividades ho-
mogêneas, o pós-colonialismo entretanto reage às idéias pós-
modernas de fim da história e das utopias, bem como ao redu-
cionismo da concretitude social ao plano meramente discursi-
vo. Não poderia, contudo, ignorar as mudanças de paradigma
ocorridas tanto na produção literária quanto na teorização pós-
moderna, o que tem levado seus praticantes a um exercício ino-
vador no estabelecimento de vínculos entre texto e extratexto,
entre o mesmo e o outro, através de mediações discursivas, con-
siderando os signos em sua intencionalidade social e política.
No seu fundamento, a teoria pós-colonial vem a existir a
partir do momento em que os povos colonizados interagem com
a cultura do colonizador e dela se apropriam criativamente. Se-
gundo Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, “assim que
os povos colonizados têm motivos para refletir a respeito da ten-
são que advém dessa mistura problemática e contestada de lin-
guagem imperialista e experiência local, eventualmente vibran-
te e poderosa e a expressam, nasce a `teoria’ pós-colonial” (p.1).
Segundo os autores, essa teoria discute aspectos tão heterogê-
neos como migração, escravatura, exclusão, culturas de resistên-
cia, representação, diferença, raça, gênero e respostas às narra-
tivas-mestras européias provenientes das culturas colonizadas,
assim como às práticas discursivas que as manifestam. O diferen-
cial reside no processo histórico de colonização – incluindo as
formas contemporâneas de globalização e de obliteração das di-
ferenças étnicas e culturais - e é isso que deve orientar a reflexão
sobre os produtos culturais dos povos colonizados.
48 O tempo e o vento • 50 Anos

No caso de O Continente, essa premissa se torna esclarece-


dora em primeiro lugar das decisões composicionais expostas
nos primeiros esboços do romance. Erico Verissimo não pode-
ria compor seu trabalho no vácuo, sem nenhum modelo pré-
existente. Quando fala em romance cíclico, já se inscreve numa
ordem arquitextual do Ocidente, a do romance que se caracte-
riza por um tempo circular, mítico, em geral associado ao eter-
no retorno, em que nada muda, apesar de haver peripécias na
aventura destinadas a alterar a ordem inicial. Para tornar viável
esse paradoxo, admissível no mito das sociedades primitivas, o
romance, arte burguesa e profana por excelência, se refugia no
plano narracional, em que seleciona um determinado ponto do
tempo, o qual se torna o núcleo do presente da narração e ao
qual todas as circunvoluções acabam retornando, provendo, as-
sim, a sensação de imobilidade.
Sendo o primeiro volume da trilogia aquele em que sobres-
sai um tratamento mítico, mas ao redor de uma estirpe, como
assinala Regina Zilberman (cf. 1981, p. 193), a opção composi-
tiva pelo romance cíclico em termos de gênero literário, anun-
ciada por Verissimo, contém uma pista falsa. Ao mesmo tempo
que remete sua obra a um fundo mítico, encaminha-a para uma
saga familiar, subgênero romanesco em que o tempo se divide
pela passagem de gerações, unidas a uma origem comum por
laços de sangue, cujo sistema circulatório lhes fornece a marca
de identidade. O romance de família é uma tradição heteróge-
na, que deságua, na modernidade, no Em Busca do Tempo Perdi-
do, de Marcel Proust, o paradigmático roman-fleuve da memória.
Todavia, a matéria histórica com que Erico Verissimo lida-
va – a formação do Rio Grande, com sua rudeza freqüentemen-
te bárbara - não era suscetível a jogos reflexivos e rememorati-
vos, exigindo outro tratamento, em que a memória das gera-
ções pudesse ser alcançada de fora e de longe, num procedi-
mento arqueológico, de coletar ruínas e remontá-las, como o
O continente: um romance de formaçÃO? 49

faz Floriano, ao iniciar a pesquisa de fontes para seu novo ro-


mance, aquele que seria “a saga duma família gaúcha e de sua
cidade através de muitos anos”, cujo tronco seria um menino
bastardo, filho de uma índia violada por um aventureiro paulis-
ta, romance no qual pretendia “traçar um ciclo que comece nes-
se mestiço e venha a se encerrar duzentos anos mais tar-
de”(ARQ3, p.747)3:

Depois de muitas hesitações e resmungos, a Dinda me confia a


chave do baú de lata em que traz guardadas suas lembranças e
relíquias. Encontro nele, de mistura com incontáveis bugigangas
(camafeus, medalhões com mechas de cabelo, frascos de perfume
vazios, lencinhos de renda, leques), importantes peças do museu
da família, como o dolmã militar do Cap. Rodrigo, um xale que
pertenceu a D. Bibiana, e uma camisa de homem, de pano gros-
seiro e encardido.(...) Todas essas coisas, naturalmente, me exci-
tam a fantasia pelas suas possibilidades novelescas, mas concen-
tro a atenção principalmente nas cartas, nos recortes de jornais
e nos daguerreótipos que descubro dentro de uma caixa de sân-
dalo, no fundo do baú.(ARQ3, p.748)

Se Floriano seleciona, do baú da madrinha Maria Valéria,


apenas certos objetos-testemunho de uma genealogia a ser re-
constituída, é, entretanto, por meio desse contato tátil com a ma-
terialidade de seu passado que consegue vencer seu bloqueio
criativo, dispondo-se à tarefa difícil de contar a história familiar
que surdamente o convoca e que sua educação e cultura cosmo-
politas, de extração primeiro-mundista, são incapazes de enfren-
tar. Figura das dificuldades de embocadura da escrita de O Tempo
e o Vento, essa sondagem arqueológica, que restaura coisas e gen-
tes soterradas pelo tempo, metaforiza igualmente a necessidade
de radicar a ficção na concretude de vida, credo estético que sem-
pre orientou a atividade criativa de Erico (cf. BORDINI, p. 32ss).

3. No Acervo Literário de Erico Verissimo, as obras do autor são mencionadas através de siglas.
Na Bibliografia final deste ensaio, após a referência aos textos do escritor, aparecem as respec-
tivas siglas.
50 O tempo e o vento • 50 Anos

O primeiro título cogitado, Caravana, indicia as erráticas


tentativas iniciais do escritor de abordar seu tema num ambien-
te colonizado pelo cinema norte-americano, filiando-se ao gê-
nero do western, uma das estratégias mais eficazes de dominação
da juventude mundial na década de 20 e 30. Sabendo-se que
Erico foi um entusiasta do cinema quando garoto (e também
depois), primeiro dos filmes franceses e italianos e, no auge da
adolescência, dos filmes norte-americanos, não admira que sua
primeira visão de O Continente evocasse as pradarias e os cavalei-
ros em correrias contra os índios na conquista do território a
oeste, um símile do que acontecera historicamente também no
Sul do Brasil. O modelo do épico de cavalaria medieval, que
subjaz a esse gênero cinematográfico, porém, não lhe daria es-
paço para a introdução gradativa dos caudilhos terratenentes,
cínicos e politiqueiros, em que o espírito de aventura e a noção
de honra se reduziam apenas à terra a conquistar ou a manter.
Assim, a herança européia e norte-americana, em termos geno-
lógicos, se interpunha às exigências da matéria a ser narrada, se
é que se pode chamar matéria o significante vazio da História
rio-grandense que Erico deveria preencher.
Como sugere Ligia Chiappini, Verissimo, quando escreveu
O Continente, não cortou de modo radical o fio condutor simbó-
lico de sua produção anterior, em que a representação da cida-
de metropolitana ou interiorana vinha imbuída de uma idéia de
regionalidade inspirada na dominante rural típica da economia
rio-grandense (cf. p. 301). Até 1949, ele evitara, como confessa
em Solo de Clarineta (p. 288), o regionalismo e o passado rio-
grandense, matéria dileta da literatura que se fizera e ainda se
fazia no Sul. O Estado já produzira trabalhos significativos de
ordem localista, impulsionado desde o Romantismo à busca de
uma identidade própria, que o singularizasse da gauchesca pla-
tina, de um lado, e, de outro, que defendesse os valores da vida
no Sul ante o cenário gradativamente tomado ou pelas agruras
O continente: um romance de formaçÃO? 51

nordestinas e sertanejas ou pelos dramas de consciência da pe-


quena burguesia ascendente nas grandes metrópoles do Sudes-
te. Desde o Modernismo, a prosa de ficção no Brasil se dividira
em romances regionalistas, de talhe realista, com ênfase no ce-
nário do Nordeste, e romances experimentais, em geral de
tema urbano, assimilando antropofagicamente, como queriam
os irmãos Andrade, o estilo das vanguardas européias do início
do século.
Erico Verissimo não fugiria à tradição modernista, por
mais que não se declarasse filiado às correntes que derivaram
do movimento inaugurado pela Semana de 22. Sua produção,
até 1948, percorrera os mesmos caminhos do romance burguês
da “perfeita culpabilidade”, como os designaria Lukács citando
Fichte (p.164) . Em Fantoches (1932), seu livro de estréia, os pe-
quenos contos e sketches dramáticos eram exercícios de uma
imaginação ora lírica, ora mórbida, socialmente crítica, embora
ainda ingênua, com toques darwinistas entremeados a experi-
mentos metanarrativos, que denunciavam as leituras européias
do escritor, da sátira de Voltaire ao metateatro de Pirandello,
passando pelo determinismo do primeiro Eça.
De Clarissa (1933) a O Resto é Silêncio (1942), investigara as
rotas de migração do campo à cidade, de uma perspectiva ino-
vadora, porque inversa, em que o ponto de fuga era a vida ur-
bana, mesmo que a base do cone fosse a rural. Não havia nesses
romances, que representavam realistica, mas também poetica-
mente, a luta pela sobrevivência na cidade grande, senão laivos
de nostalgia do ambiente agrário. Muito menos ocorria a exal-
tação das figuras já estereotipadas pela tradição regionalista,
como a do centauro dos pampas. Mesmo que personagens pro-
viessem da região da Campanha, cenário privilegiado da de-
manda pela identidade, desde o Romantismo de José de Alen-
car, com O Gaúcho (1870), tratava-se sempre de ex-estancieiros
arruinados, que se tornavam ou patéticas ruínas, como no con-
52 O tempo e o vento • 50 Anos

to Os Devaneios do General (1942) ou inescrupulosos negociantes


citadinos.
Nessa ficção urbana, os heróis já não eram os bravos e in-
domáveis peões, de espírito independente e coragem atestada
nas guerras com o Prata ou com a Federação, que amavam as li-
des campeiras e as paisagens abertas do pampa sulino - modelos
repetidos à exaustão pela literatura sulina até que os ventos sim-
bolistas e modernistas chegassem aos pagos. Os heróis de Erico
eram jovens arrancados de suas cidades natais no interior, ou
nascidos e criados na capital, todos com a mesma necessidade
de afirmação pessoal, de encontrarem-se a si mesmos e torna-
rem-se mais humanos num sistema sócio-econômico hostil, no
qual o ingresso significava ou a reificação ou a corrupção.
Dos autores de sua geração, que incluía tanto regionalistas
como Darcy Azambuja, Manoelito de Ornellas, Ivan Pedro de
Martins e Cyro Martins, quanto realistas como Dyonélio Macha-
do, Reynaldo Moura e Telmo Vergara e modernistas como Au-
gusto Meyer ou Raul Bopp, Erico se distinguia pelo experimen-
talismo formal, absorvendo e naturalizando os artifícios deses-
truturadores da linearidade narrativa do romance inglês e nor-
te-americano, com algumas incursões pelo francês. Utilizando
com desembaraço o contraponto de Huxley e de John Dos Pas-
sos, o discurso interior direto e a multifocalização de Faulkner,
as tomadas e cortes do estilo cinematográfico hollywoodiano,
aplicava-os à prática de um realismo à Balzac e Zola, prejudica-
do por um espírito crítico ainda ingênuo, pois acreditava nas
possibilidades do Iluminismo, enquanto seus colegas mais ido-
sos ou mais intelectualizados deixavam-se levar pelo desalento
típico dos grandes autores europeus do período.
Sua aventura pela História sulina, portanto, que se iniciava
com O Continente, vinha precedida do descrédito no legado re-
gionalista, tanto brasileiro quanto local, que dourara um passa-
do (e por vezes um presente) de guerras bárbaras e de opressão
O continente: um romance de formaçÃO? 53

no campo, e na desconfiança na História oficial do Estado, que,


ao gosto da época, dedicava-se a erigir heróis a partir de caudi-
lhos sanguinários e nem sempre esclarecidos. Entretanto, Erico
também provinha do interior, de uma região politicamente con-
turbada e de economia agrária, testemunhara ainda muito jo-
vem os desmandos dos próceres de Cruz Alta e conhecera inú-
meras figuras que transitavam entre o campo e sua cidade, tra-
tara de suas doenças e feridas e ouvira seus dramas primeiro do
dispensário de seu pai e depois ao balcão da Farmácia Central.
Em Solo de Clarineta (cf. p. 288), declara que começou a
sentir sua dívida para com sua cidade, sua família e suas origens
por ocasião das celebrações do primeiro centenário da Revolu-
ção Farroupilha em 1935, pensando em escrever algo que tra-
duzisse a História de seu Estado de um ângulo que não incidis-
se na visão que os livros escolares e também os textos regiona-
listas forneciam do passado sulino. Pesava-lhe o desprezo com
que até então contemplara o Rio Grande rural, ainda sofrendo
as conseqüências de uma economia feudalista, a partir de sua
vida num centro urbano de porte médio, que sua imaginação
pintava em cores mais cosmopolitas, em que o capitalismo co-
mercial e industrial emergente propunha desafios cada vez mais
espinhosos à auto-realização pessoal. Entretanto, a idéia, que
aflorara de novo quando acabou por tematizar a Segunda Gran-
de Guerra em Saga (1947), só veio a tomar corpo quando, ao
procurar um desfecho para O Resto é Silêncio, visualizou a cena
inaugural daquela que seria a saga da família Terra-Cambará,
com Tônio Santiago meditando sobre o peso da História que
redundara na platéia variegada do teatro, em que “remotos des-
cendentes de índios, portugueses, paulistas e espanhós escuta-
vam o allegro da Quinta Sinfonia”(p. 401):

Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convi-


davam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude mo-
notonia da rotina campeira - parar rodeio, laçar, domar, car-
54 O tempo e o vento • 50 Anos

near, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar colher.


Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pra-
gas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, os
horizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão,
o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tris-
tes e pacientes, esperando, vendo o tempo passar com o vento, e
o vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distân-
cias. (RES, p. 402).

Nessa passagem emblemática, metaforiza-se também a


cena de origem de O Tempo e o Vento, quando, assim como Tônio
Santiago, o autor procura, em meio ao clima tormentoso da Se-
gunda Grande Guerra, motivos para crer na humanidade e os
encontra, não na materialidade dos testemunhos históricos,
mas na imaginação fantasmagórica da bravura que teria sido re-
querida para que viessem a existir. Esse esforço imaginativo lhe
traz o alento para, reconciliando suas lembranças de gente
rude, simples e corajosa do interior com a vivência da cultura
mais sofisticada que se desenvolveu nos centros urbanos, tentar
expressar a fundação de seu Estado ficcionalizando as possibili-
dades que pressentia no horizonte de seu passado. Seu projeto
de imbricar vida e arte, todavia, leva-o a considerar mais os da-
dos da experiência do que os dos manuais de História (sabe-se
que a pesquisa para O Tempo e o Vento incluiu notícias de jornais
e depoimentos de pessoas que viveram a História do Rio Gran-
de do Sul e que Erico preferiu fontes primárias às narrativas dos
historiadores da época, embora não as afastasse de todo), a con-
fiar mais nas interpretações literárias do que nas historiográfi-
cas, tendo em vista sua reserva ante as manipulações da Histó-
ria oficial e o caráter lacunar dos testemunhos memoriais.
Regina Zilberman, da perspectiva da Estética da Recepção,
aponta as leituras prévias de Erico que, no plano da tradição li-
terária, igualmente permitiram sua vitória sobre as barreiras
que o vezo regionalista de substituir o realismo pelo exotismo
da cor local lhe havia imposto (cf. 1995, p.347). Lembra que em
O continente: um romance de formaçÃO? 55

Romance Antigo, de Darcy Azambuja (1940), e em Tiaraju, de


Manoelito de Ornellas (1945), tanto a questão de como repre-
sentar a História, denunciando-a ao longo da saga de uma famí-
lia, no primeiro exemplo, como a de iniciar essa representação
de forma verossímil, a partir da primeira conquista do território
pelos brancos, do ponto de vista mítico dos indígenas, no se-
gundo exemplo, já estão presentes. Erico e Manoelito eram
amigos desde Cruz Alta, e não é improvável que tivessem discu-
tido o assunto de longa data. Darcy Azambuja fazia parte do
grupo de autores - e amigos - que o próprio Erico publicou,
quando colaborava com seu amigo Henrique Bertaso na Seção
Editora da Livraria do Globo, mas há que lembrar também o
fato de que o escritor conhecia a forma do romance de família,
também chamado romance-rio, há mais tempo, em especial
através Jean-Christophe, de Romain Rolland (1912), e de uma de
suas predileções, Os Thibault, de Roger Martin Du Gard (1940).
Reportando-se à tradição literária herdada e percebendo-
lhe as potencialidades, Erico estava pronto para entregar-se à te-
mática histórica que seu compromisso ético com a época e o
povo lhe exigia. Pensando-se nas circunstâncias de produção
que cercaram o período de elaboração de O Continente, período
que vai de 1935 a 1948, além desses prováveis hipotextos, todos
de procedência européia, na biografia do autor, como exotex-
tos, há o registro do nascimento dos filhos em 1935 e 36, da pu-
blicação de toda a série de literatura infantil e juvenil, da pri-
meira tarde de autógrafos em São Paulo, em 1940, das duas via-
gens aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado,
onde em 1943 leciona Literatura Brasileira, e que fornecem ma-
téria para que publique duas exitosas narrativas de viagem. Tra-
ta-se de uma época de luta pela sobrevivência como escritor (é
o período em que Erico, além de Secretário da futura Editora
Globo, traduz a ficção de língua inglesa e escreve nos intervalos
do ofício de editor), e, com o êxito de Olhai os Lírios do Campo,
56 O tempo e o vento • 50 Anos

de alicerçamento da carreira, que atinge dimensões internacio-


nais, mas lhe traz problemas em seu País como acusações de
imoralismo, de anglofilia e de vender-se às tentações do merca-
do com textos fáceis, sentimentais e impregnados de ingenuida-
de ideológica. No seu novo empreendimento criativo, acumu-
lam-se experiências pessoais que o induzem a valorizar a idéia
de família e de descendência, num extremo, e, no outro, de tes-
tar os limites de sua arte, sob o risco de pôr a perder os espaços
penosamente conquistados ao longo de duas décadas sombrias
como as estado-novistas de que fugira, aceitando o convite nor-
te-americano.
Na cena política vigia o Estado Novo getulista, acontecera
a renúncia de Flores da Cunha, haviam sido nomeados vários
interventores para o governo do Estado, e a polícia política con-
trolava zelosa a atividade cultural, que o regime desejava fosse
antes de tudo nacionalista. É sintomático que, como também sa-
lienta Regina Zilberman, só em 1946, com a queda do regime
repressivo, Erico de fato se dispusesse a redigir O Continente (cf.
1995, p.344). Com a ditadura de Vargas, o País se industrializa-
ra, se haviam protegido os direitos trabalhistas, mas também se
combatera os inimigos do regime a ferro e fogo. Ao despertar
da Segunda Guerra Mundial haviam proliferado os movimentos
pró-Eixo e consolidara-se o partido comunista. Um intelectual
liberal como Erico Verissimo se sentia cercado por todos os la-
dos. Os rumos da modernização, que subjaziam como leitmotif
em sua ficção urbana, haviam se revelado traidores. O socialis-
mo brasileiro apoiava cegamente o stalinismo e sua política rea-
lista. Os valores do humanismo pareciam em derrocada. Sem
saída, o escritor se defronta com o passado, à busca de enten-
der o presente.
Assim, embora a idéia da obra possa ter lhe ocorrido em
1935 e retornado em 1939, com roteirizações de que se conhe-
cem as de 1941 e de 1943, como Erico diz no esboço de uma en-
O continente: um romance de formaçÃO? 57

trevista, foi em 1947 que de fato começou a escrever o roman-


ce, tendo em mente realizá-lo como “uma longa sinfonia dividi-
da nos clássicos movimentos e possivelmente com grandes mas-
sas corais” (ALEV 01i0047-?). O resultado foi uma história em
sete episódios: “O Sobrado I”, “A fonte”, “O Sobrado II”, “Ana
Terra”, “O Sobrado III”, “Um Certo Capitão Rodrigo”, “O So-
brado VI”, “A Teiniaguá”, “O Sobrado V”, “A Guerra”, “O Sobra-
do VI”, “Ismália Caré” e “O Sobrado VII”.
Como se pode notar, os prototextos ainda existentes já de-
lineavam essa matéria narrativa, embora sem o desdobramento
e intercalação de “O Sobrado”, que situa o tempo narrado em
1895 e o faz remontar a 1745, acompanhando-o cronologica-
mente até 1884. Essa composição de seqüências independentes
entre si, cuja sucessão temporal é interrompida por uma moldu-
ra que se intromete a cada passagem de uma a outra e que em
si mesma constitui uma unidade, afeta a representação do tem-
po histórico. O passado mais remoto, o da civilização das Mis-
sões Guaraníticas, e o passado mais recente, o período da Abo-
lição da Escravatura e da Campanha Republicana, é constante-
mente relido e atualizado pelo presente narrativo, que transcor-
re durante a Revolução Federalista de 93-95 e acaba com a vitó-
ria republicana, o lado defendido pelos Cambarás.
Assim, acentuam-se as dimensões mítico-fundadoras dos
primeiros episódios, “A fonte” e “Ana Terra”, e as implicações
histórico-políticas dos últimos, “A guerra” e “Ismália Caré”. Em
meio a esses, os episódios “Um Certo Capitão Rodrigo” e a “Tei-
niaguá” oscilam entre a mitificação e desmitificação dos heróis,
que, embora ainda sejam moldados como emblemas, humani-
zam-se em termos de ambigüidade moral. Percebe-se uma rigo-
rosa simetria na composição do texto, em que a duração dos epi-
sódios é equilibrada e o espaço narrativo concedido a cada vida
obedece mais a uma hierarquia tradicional do gênero (caracte-
rização e atuação maior para os heróis e menor para os compar-
58 O tempo e o vento • 50 Anos

sas ou vilões, venham eles de que extração social venham) do


que a uma equalização dos atores de um drama social injusto,
como requereria, por exemplo, o realismo socialista.
A alternância com os segmentos líricos que acompanham a
errância dos Carés, os párias dessa sociedade em formação, pro-
voca efeitos de estranhamento numa leitura que parece propor
um épico e gradativamente se transforma em romance históri-
co, perdendo a força impulsiva e encantatória de seus heróis
iniciais em favor de uma análise crítica das motivações materiais
e psicológicas de seus descendentes. A presença dos Carés nes-
sa estrutura cerrada, em que se consolida o regime do latifún-
dio, a desordena e perturba, com a face esquálida da miséria
camponesa e seu não-lugar social.
Erico trata a representação desses deserdados da fortuna
apenas como uma massa coletiva, sem direito a individualiza-
ção, ao longo de todo O Continente, mas quando sua trajetória
narrativa avança para o final, concede a Ismália o papel de ver-
dadeiro objeto do amor de Licurgo, o que deslegitima o casa-
mento de aristocratas rurais que esse mantinha a duras penas
com Alice. Os Carés, apesar de sua impotência e da sorte infaus-
ta a que se destina Ismália, são dignificados no modo de funcio-
namento que a narrativa lhes concede. Anônimos, peças deco-
rativas do cenário em que se movem os Terra-Cambarás e seus
adversários, têm sua dor silenciosa expressa no discurso lírico
do narrador, que os contempla também doloridamente. Sem
poderem participar das várias histórias que se desenrolam no
texto, pontuam-no, porém, com sua presença muda e eloqüen-
temente denunciadora das injustiças daqueles que os usam e os
descartam como gado.
A família Terra-Cambará, em contrapartida, encarna a dua-
lidade e é signo de contradição durante todo O Continente. Des-
de seu fundador primordial, Pedro Missioneiro, sofre a opres-
são dos poderosos da época, combate-os, vai à guerra pelos
O continente: um romance de formaçÃO? 59

ideais libertários, mas seu ânimo belicoso, em cujo cerne habi-


ta uma violência similar à que combate, gradualmente a insere
no quadro do poder, que no longo período que vai de 1745 a
1895, está nas mãos de caudilhos aguerridos e sanguinários, os
quais comandam como tiranos a peonada que lhes pertence e
vestem as cores políticas que mais lhes granjeiem a primazia
nessa sociedade em formação. Os Amarais, tradicionais adversá-
rios dos Terra-Cambarás, encarnam essa camada social explora-
dora e espoliatória. O Capitão Rodrigo, sintomaticamente qua-
se ao meio do texto, é o símbolo da luta pela liberdade tanto no
plano pessoal quanto no social e político, mas seu filho Bolívar
é moralmente incapaz de evitar a morte do amigo ex-escravo e
entrega-se a uma paixão mórbida, que o aniquila. Mais para o
final, o Licurgo seu descendente, que sustenta com a dureza de
um rochedo o cerco a seu Sobrado, torna-se, igualmente, um
prócer local, como dono de terras e líder republicano reconhe-
cido pela comunidade de Santa Fé. Seus filhos, Rodrigo e Torí-
bio, serão proprietários de estâncias e lutarão no lado político
mais progressista, mas não haverá, com eles, a emancipação dos
Carés, que desaparecem de O Retrato.
Na contramão desses heróis masculinos, as mulheres, que
se lhes opõem, também perdem sua potência vital na medida
em que o texto progride. Ana Terra, a jovem que enfrenta o pai
despótico pelo amor ao desconhecido e culto Pedro, que pre-
serva a vida da família ante os castelhanos que a violentam, que
se profissionaliza como parteira e ajuda a fundar Santa Fé, tem
por neta Bibiana, que se rende à sedução do bravo Rodrigo,
mas é a cabeça pensante que organizará a vida de seus descen-
dentes, jogando tão duro quanto os Amarais. Ela, entretanto,
acabará caduca, depois de ter desgraçado a vida do filho Bolí-
var ao forçá-lo a um casamento que o destruirá, a fim de tomar
posse do Sobrado. Luzia, a maga sedutora que se confronta
com a velha Bibiana na posse por seu filho, tem seus sonhos de
60 O tempo e o vento • 50 Anos

uma vida cosmopolita baldados pelos arranjos paternos e mor-


re exaurida de si, semi-enlouquecida, aterrorizando o filho Li-
curgo. Das mulheres desse, resta a Alice descolorida, que tolera
a amante Caré do marido para não perdê-lo e não decair na es-
tima social da cidade. Por último, sua irmã Maria Valéria substi-
tui em determinação de ânimo e coragem silenciosa e sofrida a
figura já remota de Ana, fechando um círculo feminino tam-
bém cindido pelo dualismo.
Homens e mulheres, portanto, trazem em si, nos últimos
episódios do texto, a debilidade e hesitação que os torna indiví-
duos problemáticos, ainda em busca de autenticidade num
mundo que não mais a acolhe, na conhecida definição de Lu-
cien Goldmann (cf. p.17). Diferem de Pedro e Ana, ou de Ro-
drigo e da jovem Bibiana, que, heróis fundadores de uma dinas-
tia, guardam em si o poder do direito, da vida justa e da luta
pela liberdade de espírito e de ação. Na caracterização do elen-
co como um todo, a ênfase não recai na psicologia ou na inte-
rioridade. As personagens são apresentadas como estampas,
surgem em breves traços, muito fortes, que lhes conferem sua
identidade e individualidade, não importa o lugar social que
ocupem. O autor evita os riscos da análise expressa das motiva-
ções dos caracteres, área delicada da criação literária, em que
Erico tendia a optar pelas dimensões éticas, preferindo investir
nos motivos composicionais, que abrem lacunas nos pensamen-
tos e ações dos protagonistas, de modo a que o leitor possa agir
e retirar daí suas próprias conclusões. De qualquer forma, essas
escolhas narrativas não diminuem nem a complexidade e diver-
sidade humana da sociedade sulina nem a força evocativa e alu-
siva desses heróis, que se tornaram patrimônio do imaginário
brasileiro.
Daí por que o cenário, pièce de resistance da literatura regiona-
lista em geral, em O Continente vem pouco caracterizado em ter-
mos físicos e muito mais em termos daqueles que o habitam. O
O continente: um romance de formaçÃO? 61

pampa com suas coxilhas varridas pelos ventos não passa de pano
de fundo para a solidão radical de Pedro Missioneiro, de Ana Ter-
ra ou do aventureiro Capitão Rodrigo. A cidade de Santa Fé, mô-
nada que figura tantos povoados inaugurais do território brasilei-
ro, reduz-se a alguns poucos prédios, todos descritos em função
de acontecimentos do enredo, deles sobressaindo o Sobrado,
muito mais uma alegoria da vida doméstica e do lugar social de
seus moradores do que obra de arquitetura interiorana.
Assim como as personagens são descritas com poucos tra-
ços, os mais significativos para suscitar as ações que praticam,
do mesmo modo o espaço diegético é apenas sugerido, acen-
tuando seu potencial simbólico. Por isso, alguns acessórios,
como o punhal de Pedro, herdado do Pe. Alonzo, um quase as-
sassino penitente, a tesoura de Ana, que corta os cordões umbi-
licais e libera novas vidas, a roca de Bibiana e sua cadeira de ba-
lanço, dois momentos simbólicos do percurso de sua domestici-
dade no romance, e a vela de Maria Valéria, a iluminar não só
os desvãos do Sobrado, mas os do caráter dos homens de Licur-
go, tornam-se significantes fortes, inseparáveis da caracteriza-
ção dos sujeitos que os utilizam.
Por outro lado, a obra investe no tempo, não só o da narra-
ção, com sua inversão e rupturas, mas o do mundo narrado, cuja
duração é pulsante como as vidas que o habitam. Lidando alter-
nadamente com momentos de conflito e intensidade dramática
e momentos de pausa, de espera estática, também simetricamen-
te proporcionados, a que os segmentos dedicados aos Carés pro-
longam, o autor consegue representar os séculos percorridos pe-
las gerações dos Terra-Cambarás com renovado suspense. Desde
a guerra entre portugueses e espanhóis pelas missões jesuíticas,
passando pela ocupação do território pelos imigrantes paulistas,
o surgimento dos coronéis terratenentes, as guerras cisplatinas,
a imigração alemã, as guerras contra a monarquia brasileira,
contra Rosas e contra o Paraguai e chegando aos tempos da Abo-
62 O tempo e o vento • 50 Anos

lição, da Proclamação da República e do governo de Júlio de


Castilhos, esses dois séculos desfilam com velocidade, com o
tempo concretizado em ações em que o histórico e o ficcional se
mesclam, indistingüíveis, e o que a História não consegue regis-
trar acaba sendo suprido pela imaginação, que sonda o verossí-
mil e com ele preenche as lacunas temporais.
É dessa forma que a História contada em O Continente des-
cola do cotidiano das gentes, dos detalhes da vidinha miúda,
dos atos triviais ou heróicos de atores sociais que nunca apare-
cem na historiografia porque não ficam documentados nem
merecem monumentos. Nesse elenco humano há lugares de
honra para mulheres, índios, imigrantes, vagabundos, peões
desgarrados e sem nome, assim como os há para desbravadores,
militares, caudilhos de cor branca e origem portuguesa. No en-
tanto, essa deshierarquização dos sujeitos sociais, captados em
vislumbres rápidos, não resulta num tempo narrativo estilhaça-
do. Cada pequeno gesto situa seu agente numa cadeia de or-
dem sempre mais ampla, em que a continuidade não é linear,
mas espiral: do indivíduo ao grupo familiar, dos feitos pessoais
aos coletivos, das histórias particulares à História do Rio Gran-
de do Sul, como salienta Antonio Candido ao detectar nesse
procedimento a projeção do eixo sincrônico sobre o diacrônico
que singularizaria o sistema de composição de Erico (cf. p. 41).
Talvez a partir dessa sugestão, Flávio Loureiro Chaves insista em
que O Tempo e o Vento possui uma estrutura concêntrica, em que
o esfacelamento de uma família é a projeção da ruína moral
duma sociedade burguesa, com duas constantes: o questiona-
mento da noção de progresso e a defesa das individualidades ra-
dicalmente livres (cf. 1976, p. 97).
Em todo o caso, em O Continente a estrutura é monádica. A
diversidade dos sujeitos e a diferenciação ideológica, a profusão
de eventos bélicos e de gestos cotidianos, mesmo subsumidos à
saga de uma só família, não exige continuidade nem se irradia
O continente: um romance de formaçÃO? 63

em círculos ou num ciclo. Basta-se a si mesma e privilegia o fe-


chamento. Evidencia uma progressão interna, que antes de ser
impelida por uma utopia parece dela brotar para depois desgar-
rar-se. Trata-se de uma estratégia moderna, lembrando a rela-
ção ser e tempo heideggeriana (uma das leituras de Erico, cons-
tituinte de seus cadernos de notas). O regresso iterativo dos su-
bepisódios de “O Sobrado” não configura um ideal de futuro
emancipado, mas representa a parede da mônada, do “conti-
nente”, de onde não se deve ir além, pois não há mais terra fir-
me. Esse é um “continente” que encerra ab initio um mito já des-
truído pela História: o comunismo idílico das reduções, outra
espécie de colonização que, impondo não pelas armas, mas pela
força simbólica da catequese, um modelo social primitivo-cris-
tão ao indígena, instala a contradição que Pedro Missioneiro já
traz dentro de si em sua própria genealogia: a bastardia e a ile-
gitimidade, que o conduzem à profecia, um evidente processo
compensatório.
A família que ele irá gerar será igualmente ilegítima aos
olhos dos que a ela se opõem. Não é à toa que a figura da opo-
sição prevalece nas relações sociais engendradas. O “continen-
te” é o anteparo identitário contra as reivindicações de territó-
rio dos espanhóis, assim como contra as pressões político-eco-
nômicas do Império brasileiro. O problema é que internamen-
te essa região que se quer auto-suficiente já nasce desterritoria-
lizada e é povoada por levas também sem território. Daí o lado
belicoso, que agita toda sua história num jogo de forças pelo
poder e que gera exclusões e rebeldias. Para compensar sua
marginalidade, a família Terra-Cambará defende seus princí-
pios arrimada na convicção de sua legitimidade emancipatória,
sem muita contemplação aos valores alheios, conservadores, de-
vendo fechar-se outra vez como uma mônada para resistir às
tentativas de assimilação ao mundo feudal dos terratenentes.
Por isso “O Sobrado” assombra todo o desenvolvimento da saga
64 O tempo e o vento • 50 Anos

e a vitória atordoada de Licurgo, ao final do segundo tomo, na


verdade é a abertura da mônada, permitindo a entrada do ou-
tro, que O Retrato irá tematizar:

De olhos fitos na fachada da Intendência, Curgo atravessa a


rua em silêncio. Doem-lhe os olhos e o peito; suas pernas estão
fracas e trêmulas, a garganta seca, as mãos e os pés gelados.
Mas ele se mantém empertigado, e vai andando sempre, enquan-
to um sino enorme, um sino brutal badala-que-badala-que-bada-
la implacavelmente dentro de sua cabeça, confundindo-lhe as
idéias, martelando-lhe os nervos, deixando-o quase louco...
(CON2, p.668)

O monadismo estrutural do romance repercute sobre a


matéria temática, que, nas trajetórias isoladas no tempo dos
grupos familiares, paradoxalmente interligados pelo sangue,
como requer o regime feudal da propriedade, torna-se uma es-
pécie de tapeçaria à maneira medieval, cujas cenas se apagam
para proporcionar uma visão de conjunto da história, não mais
de pessoas, mas de um povo. Graças a essa intrincada estrutura
compositiva, O Continente pode ser pensado, enquanto narrativa
do processo histórico do Rio Grande, a partir do modelo do ro-
mance de formação, o Bildungsroman que Thomas Mann – au-
tor dileto de Erico – consagrou em A Montanha Mágica, não por
acaso uma das traduções que a Globo publicou sob a inspiração
do escritor.
À diferença do modelo europeu, não se trata de acompa-
nhar a consolidação da personalidade de um jovem que se tor-
na adulto e perde as ilusões infantis, em meio à reconstituição
cuidadosa da época e das circunstâncias sócio-culturais que im-
pelem seu amadurecimento. Jovem nesse caso é o Continente
de São Pedro, que ao fim do volume já se transformou em Pro-
víncia de São Pedro, demarcando, com a metáfora espacial, o
processo de degradação das terras ilimitadas e de trânsito livre
para o Estado de propriedades cercadas, o processo de indivi-
O continente: um romance de formaçÃO? 65

dualização política que da massa coletiva de povoadores hetero-


gêneos destaca o caudilho e mais adiante concentra o mando
nas mãos do Presidente da Província, Júlio de Castilhos.
Como no romance de formação, no início a personagem
Rio Grande aparece com suas qualidades mais autênticas: é fei-
ta de homens e mulheres de fibra, independentes, capazes, na
adversidade, de sonhar e de realizar seus sonhos. Quando a his-
tória acaba, essa personagem-Estado mostra no que se tornou
na maioridade: uma terra de conflitos políticos exacerbados, de
famílias desunidas, de morte e ameaça de podridão. É assim
que Erico descoloniza o processo de formação de seu Estado.
Empregando os procedimentos formais europeus, do gênero
do romance e de seus subgêneros aos elementos estruturais da
narrativa, faz com que trabalhem a favor de um construto iden-
titário próprio, tipificado, mas multiforme, em que a História
oficial contracena com a história anônima e, incorporada à fic-
ção, denuncia suas próprias contrafações.
Com maestria exemplar, o escritor hibridiza o repertório
de formas romanescas com uma matéria histórica informe, que
resiste à moldagem eurocêntrica, e esculpe um retrato do que
o Rio Grande poderia ter sido, mas não conseguiu ser, desmis-
tificando a visão que a classe dominante forjou de si mesma e
de que imbuiu o imaginário popular. É dessa forma que faz os
subalternos falarem, contrariando aquele desejo “de conservar
o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como sujeito”, na formu-
lação de Spivak (p.24), o que, na perspectiva de um romance de
Terceiro Mundo, implica adonar-se do legado ocidental e re-
criá-lo, assujeitando-o às necessidades identitárias de uma re-
gião colonizada de muitas maneiras, que não se reconhece no
que é: a ruína que recobre ideais e movimentos emancipatórios
vencidos.

* Doutora em Letras. ALEV/CPGL/PUCRS.


66 O tempo e o vento • 50 Anos

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Glo-
bo, 1981.
O continente: um romance de formaçÃO? 67

DOCUMENTAÇÃO DO ACERVO LITERÁRIO DE ERICO VERISSIMO

ALEV 04a0033-41 – Caderneta de notas com o título A caravana, contendo o primeiro


roteiro de O Tempo e o Vento.

ALEV 04b0059-43 – Agenda com primeiros planos e esboços de O Tempo e o Vento.


“De súbito ali ao pé do poço Ana Terra teve a impressão de que não estava só. A mão que batia a
roupa numa laje parou. Em compensação o coração começou a bater-lhe com mais força...”
O Continente – Ana Terra
O NARRADOR COMO TESTEMUNHA
DA HISTÓRIA

F l á v i o L o u r e i r o C h av e s *

Na última parte d’O Tempo e o Vento o personagem Floriano


Cambará traça o plano de um livro que ele pretende redigir. En-
tão, escreve: “Era uma noite fria de lua nova. As estrelas cintila-
vam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta pa-
recia um cemitério abandonado”.
Logo se vê que esse último parágrafo d’O Arquipélago não é
senão o parágrafo primeiro de O Continente, sugerindo ao leitor
um jogo surpreendente. O livro que Floriano Cambará imagina
é precisamente o romance que Erico Verissimo escreveu. Assim,
a narrativa fecha-se circularmente, voltando ao seu início. De
um extremo ao outro, cerca de 2 mil páginas resgatam o passa-
do e fazem-no refluir à memória, abrangendo 200 anos numa
extensa reflexão sobre a identidade brasileira, isto é, o nosso
mundo presente.
Essa perspectiva ilumina o projeto original de Erico Verissi-
mo que em certa ocasião ele mesmo definiu como “o corte trans-
versal duma sociedade”. Tal objetivo foi perseguido nos roman-
70 O tempo e o vento • 50 Anos

ces iniciais, desde a redação de Clarissa e Caminhos Cruzados, em


que ele desenhou uma infinidade de tipos característicos, para
cumprir-se afinal no resultado obtido em O Tempo e o Vento. A ação
que transcorre entre 1745 (quando nasce Pedro Missioneiro nas
reduções jesuíticas do Alto Uruguai) e o ano de 1945 (que assi-
nala o fim de uma época na queda de Getúlio Vargas) impõe a vi-
são duma mudança. Transformou-se o antigo Rio Grande, pa-
triarcal e agrário, para dar lugar à cultura dos imigrantes e ao sur-
gimento da classe média. E com ele transformou-se o país.
Grave erro cometeria quem ainda quisesse encontrar aí uma
epopéia guasca ao estilo do regionalismo retardatário em que tan-
tos se fartam até hoje. Cumprindo um desígnio explícito, Erico
Verissimo instaurou um romance histórico na sua forma exemplar.
A descendência da família Terra/Cambará em várias gera-
ções coincide com a fundação da cidade de Santa Fé; esta, por
sua vez, traduz uma síntese do Rio Grande do Sul, passando daí
o retrato da sociedade brasileira. Dimensiona-se assim, nesta es-
cala de ampliação, o corte transversal proposto pelo narrador.
Ocorre que o mural representativo da nossa formação, fi-
xando tanto os mitos fundadores quanto a seqüência dos fatos,
também não era uma idéia nova. Vinha do romantismo naciona-
lista (leia-se Alencar) e reapareceu em diversas correntes do mo-
dernismo a partir dos anos 20, rodando até a concepção do Ma-
cunaíma de Mário de Andrade. O volume inaugural de O Tempo e
o Vento, em 1949, não incorporou, pois, à ficção o “projeto” do ro-
mance histórico, que já era antigo. Erico Verissimo ofereceu, isto
sim, a chave da sua resolução formal que, fossem quais fossem os
antecedentes, não havia sido encontrada até então. Esse é o mo-
tivo pelo qual constitui um marco decisivo. Afinal, o triunfo da
criação não residia na mera descoberta de um tema, mas na sua
expressão ótima, que acaba por incluí-lo definitivamente na nos-
sa visão do mundo.
Na raiz da questão encontra-se um paradoxo, aliás freqüen-
te naquelas culturas que, emergentes do ciclo colonialista, estão
O narrador como testemunha da histÓria 71

ainda hoje empenhadas na nomeação direta da realidade,


como é o nosso caso. Embora esteja ancorado na História e faça
a crônica dos seus episódios, o romance não pode ser discurso
histórico sob pena de deixar de ser literatura. Precisamente
porque não bastam os manuais escolares e os compêndios de
exaltação cívica, recorremos ao universo imaginário da ficção.
O filósofo Ernest Fischer aludia a isso quando falou da necessi-
dade da arte.
Erico Verissimo põe o problema em discussão dentro do
próprio texto. O desdobramento do painel d’O Tempo e o Vento
é intercalado pelas reflexões de Floriano Cambará sobre a natu-
reza do romance que está nascendo. São os capítulos que levam
o título Caderno de Pauta Simples. Aí ele se reconhece como “uma
testemunha da História”, cuja função primordial será estender
as pontes entre as ilhas do arquipélago. Sabe entretanto que o
seu livro não pode redundar numa autobiografia nem numa
crônica. Sua identidade é outra: “Imagine-se um romance que
trouxesse em seu bojo o romance de si mesmo e mais o roman-
ce desse romance-de-si-mesmo”. Verdadeiro jogo de espelhos, a
escritura propõe o trânsito ininterrupto entre o particular e o
universal, a circunstância histórica e a linguagem simbólica ca-
paz de torná-la patrimônio do homem.
Devemos entender portanto que, no caso d’O Tempo e o Ven-
to, a engrenagem que move a História pode ser entrevista me-
nos na cronologia dos fatos e mais na representação das perso-
nagens fictícias. Sob esse triângulo, a arquitetura da narrativa
está toda ela na dependência dos arquétipos essenciais e opos-
tos entre si, do princípio ao fim: o masculino e o feminino.
No curso das infindáveis guerras e revoluções intestinas em
que está cifrada a crônica da Província de São Pedro, os guer-
reiros e “heróis” são invariavelmente acionados pelo instinto
primário da violência. Sua arremetida engendra a devastação e
a morte, possuam eles a simpatia individual do capitão Rodrigo
72 O tempo e o vento • 50 Anos

ou a seca austeridade de Licurgo Cambará. De resto, a tradição


gauchesca ofereceu ao autor uma riqueza de vultos exemplares,
já no limite da caricatura machista.
Ao contrário, as personagens femininas situam-se na outra
margem da História e representam uma força de preservação.
Falando certa vez de Ana Terra, o escritor atribuiu-lhe substan-
tivamente uma verticalidade, oposta (dizia ele) à horizontalidade
nômade dos homens. Daí às figuras de Bibiana e Sílvia, passan-
do por Maria Valéria, é sempre nas mulheres, em sua solidão e
perseverança, que a narrativa amarra as linhas de força.
A posição de Floriano Cambará ou Erico Verissimo, en-
quanto testemunhas da História, levam-nos à convicção de que
a neutralidade é impossível e não existe o ato gratuito, como se
lê nas últimas páginas d’O Arquipélago. Nem por isso a questão
se deslinda no campo da ideologia; sua resolução é literária.
Embora a narrativa admita uma discussão política, que ocupa
grande parte do seu desenvolvimento, a visão histórica só se ofe-
rece no destino emblemático das personagens imaginárias: a
tensão (aliás insanável) entre destruição e preservação. Justa-
mente aí se estabelece a unidade dos diferentes planos d’O Tem-
po e o Vento, fazendo-o um romance poliédrico.
Ao alcançar esse resultado, a intuição de Erico Verissimo
acrescentou, com aguda ironia, o comentário que algumas dé-
cadas mais tarde pode funcionar como uma trilha na interpre-
tação da obra: “Afirmam os semanticistas que o mapa ideal se-
ria aquele que trouxesse também o mapa de si mesmo, o qual
por sua vez devia apresentar seu próprio mapa”. Matéria para os
teóricos da literatura... De qualquer modo, aí estava firmado
um padrão: o padrão do romance histórico na literatura brasilei-
ra contemporânea.
Tudo isso tem um significado importante também noutro
sentido, se considerarmos numa perspectiva diacrônica o arco
de tempo que vai da edição d’O Continente (1949) à conclusão
O narrador como testemunha da histÓria 73

d’O Arquipélago (1962). Um pouco antes Miguel Angel Astúria


havia publicado O Senhor Presidente (1946), colocando a literatu-
ra da Guatemala na crista da onda. Seguiram-se, muito próxi-
mos, as Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Os Subterrâneos
da Liberdade, de Jorge Amado, e O Reino deste Mundo, do cubano
Alejo Carpentier. Um pouco mais adiante, O Outono do Patriar-
ca, de Gabriel García Márquez, e Eu, o Supremo, do paraguaio
Augusto Roa Bastos.
Resguardadas as diferenças que fazem de cada autor um in-
divíduo e de cada texto um universo peculiar, chega-se entre-
tanto a ver que, nesse período, a decifração e a representação
da História propuseram um desafio crucial aos escritores de
toda a América Latina. E foi justamente aí que se rompeu o sub-
desenvolvimento cultural em certas obras paradigmáticas da
modernidade, como essas que acabo de mencionar. A contri-
buição de Erico Verissimo terá de ser considerada também no
caudal desse processo.
Ao estabelecer o modelo do romance histórico brasileiro,
O Tempo e o Vento assinala um dos pontos fortes do nosso diálo-
go com a literatura ocidental.

* Doutor em Letras pela USP, autor de História e Literatura.


“Se num romancista predomina a atitude do velho Licurgo, isto é, o senso comum, corremos o risco
de ter histórias chatas como a de certos autores ingleses cujas personagens passam o tempo toman-
do chá, jogando cricket ou falando no tempo.”
O Arquipélago – Reunião de Família I
NUM TERRITÓRIO DE FIGURAS FEMININAS

Lélia Almeida*

A idéia da existência da divisão entre um território femini-


no e um território masculino em O Tempo e o Vento, de Erico Ve-
rissimo, é recorrente nas interpretações da trilogia. Para alguns
críticos, a própria ação do tempo e do vento, enquanto catego-
rias estruturais de composição, estariam ligadas a práticas femi-
ninas ou masculinas. Flávio Loureiro Chaves, além de destacar
essa divisão de ações que caracterizariam o mundo feminino
(de dentro da casa, da espera) e o mundo masculino (das guer-
ras, da rua, das ações), propõe que há entre esses dois mundos
uma autêntica luta pelo poder. Para Chaves, a luta de Bibiana
pela posse e guarda simbólicas pelo neto Licurgo contra a nora
Luzia confirma a participação das mulheres, à sua maneira, nes-
sa luta. José Onofre, sintetizando a percepção de outros críti-
cos, ao mapear o mundo da casa e o mundo da guerra, numa
leitura do texto de Verissimo sobre “idéias” e “ações” políticas,
vê também as personagens femininas de O Tempo e o Vento como
detentoras de um poder e, por isso mesmo, tornando-se signifi-
cativas dentro do universo ficcional.
76 O tempo e o vento • 50 Anos

Há em O Tempo e o Vento uma outra divisão, originária tal-


vez dessa primeira e que se relaciona com a divisão entre as pró-
prias personagens femininas, naquilo que o próprio texto ins-
taura como sendo um mapa das dignas esposas e as indignas
amásias, e com a divisão do próprio corpo feminino no imagi-
nário social e literário.
O texto de Erico Verissimo é, definitivamente, o que mais
amplamente se ocupou de retratar uma diversificada galeria de
personagens femininas, vivíssimas para sempre no imaginário
do público leitor gaúcho. Ana Terra, Bibiana, Luzia são, sem
dúvidas, personagens femininas fortes, inesquecíveis e com
uma força arquetípica constatável nos inúmeros solares, edifí-
cios, projetos “Ana Terra”, ou inúmeras também Anas Terras e
Bibianas nascidas até hoje no Rio Grande do Sul a fora, num
movimento recorrente como é o movimento que solidifica a
força dos mitos. Mitos de mulheres de força, teimosia, perseve-
rança, garra, determinação.
No caso de Ana Terra, por exemplo: tendo a casa paterna
destruída pelos castelhanos e mortos pai e irmãos e o corpo vio-
lentado, parte cheia de coragem para reconstruir sua vida no
pequeno povoado que se transformará na cidade de Santa Fé,
cenário e palco onde se desenvolvem os 200 anos de história da
família Terra/Cambará.
Ana Terra não é movida apenas pelo ódio à violência provo-
cada pelos castelhanos: sua força e determinação, sua teimosia e
perseverança (típica dos Terra) são fruto de um sentimento po-
deroso, absoluto: é preciso criar seu filho Pedro, torná-lo um ho-
mem, sobreviver. E é dessa brava figura que depende a vida do
menino. Investida de fúria e de vontade, Ana Terra parte com
um menino pela mão para conquistar seu território, e a mater-
nidade é o sentimento, a função que lhe dá essa fúria, sua força.
Bibiana Terra, neta de Ana Terra, tem igual destino. É obs-
tinada como a avó, briguenta, enfrenta o pai para se casar com
o capitão Rodrigo e cria três filhos em meio a esperas, perigos,
num território de figuras femininas 77

solidão e idas e vindas do marido a guerras e outras mulheres.


Para ambas, cuidar da terra é mais do que parece; cuidar da ter-
ra é cuidar da descendência e da manutenção da sobrevivência,
que é, afinal, o que importa e o que concerne às mulheres. É as-
sim que Bibiana, com uma praticidade e objetividade agudas,
casa o filho Bolívar com Luzia, num casamento de interesses
contratuais, e consegue reaver assim sua casa de infância, seu
quintal, a tradição da família Terra, e investir o filho e o neto de
poder político e prestígio social.
Nada que um bom pai de família não fizesse por uma filha
casadoira. Bibiana, como a avó, é teimosa, perseverante, briga
sem limites e pruridos pelo que quer e consegue sempre o que
deseja. Para ela, como para Ana Terra, o que importa é a famí-
lia, a descendência, o filho, o neto. Ana Terra e Bibiana se con-
solidam na nossa literatura como mulheres indubitavelmente
fortes, e toda a crítica especializada usa de qualitativos masculi-
nizantes para legitimar essa força: são poderosas, viris, varonis. E
essa força que tem uma expressão masculina nasce de um moti-
vo específico, feminino: a maternidade. Ana Terra e Bibiana são
bravas e fortes mulheres, e são mães; acima de tudo são mães.
A contrapartida dessas figuras exemplares pautadas no ar-
quétipo da Grande Mãe, a Mãe Terra, é Luzia, neta de Aguinaldo
Silva e mulher de Bolívar Cambará, nora, portanto, de Bibiana.
Inscrita no capítulo A Teiniaguá, no segundo volume de O Conti-
nente, reforça com seu comportamento diferenciado aspectos sig-
nificativos da lenda. Luzia é bonita, rica, sedutora, vem da cidade
grande, toca cítara, faz versos, emite opiniões próprias, é cruel e
não se situa dentro de um modo de ser feminino proposto às per-
sonagens femininas ao longo do texto, quiçá ao longo de toda a
nossa literatura. Um modo de ser feminino idealizado, muito dis-
tante do modo como as mulheres são e vivem realmente.
Luzia desempenha papel de estrangeira: nem ela nem o
avô são originários de Santa Fé, ele nordestino, ela órfã e ado-
tiva, o que obscurece e mitifica ainda mais sua origem, reforçan-
78 O tempo e o vento • 50 Anos

do a percepção trágica do Dr. Winter, que a nomeia significati-


vamente de Melpômene. Essa Lorelei perversa, de olhos de rép-
til, tem sua força e seu poder na sedução a que sucumbe Bolí-
var e numa determinação que a põe em guerra com Bibiana,
numa disputa por Licurgo e pelo Sobrado até sua morte, vitima-
da por um tumor maligno.
Se a terra e as boas águas nutrem o nosso imaginário quan-
do falamos em Ana Terra e Bibiana, com Luzia o que aparece é
o fogo destruidor, poderoso, sedutor, como quer seu próprio
nome e a lenda na qual seu perfil está calcado. Luzia é também
uma forte, mas sua força, ao contrário de Ana Terra e Bibiana,
não tem motivação na sublime função materna, mas na sexuali-
dade que seduz a aniquila Bolívar, uma sexualidade que vemos
muita mais explicitada no desejo do Dr. Winter e no ódio de Bi-
biana do que na conduta propriamente dita de Luzia. Essa for-
ça sexual, por assim dizer, é representativa ao longo do texto,
sobretudo se recordarmos que Helga Kunz evocava à jovem Bi-
biana os olhos de Teiniaguá e que, na tradição das “outras” dos
varões Terra Cambará, Ismália Caré evocará à velha Bibiana um
jeito, alguma coisa de Luzia.
Na contrapartida das mães dignas e fortes, Ana Terra, Bi-
biana, Flora e Sílvia estão as “outras” no rastro de Luzia-Teinia-
guá-Lorelei-Melpômene, as Helga Kunz, Ismália Caré, Toni We-
ber, Roberta Çadário, Sônia Fraga, Mary Çee, Mandy. A prince-
sa moura é estrangeira, como o desejo é estrangeiro. As “ou-
tras”, todas estrangeiras, perigosas, ameaçadoras, excluídas tan-
to do âmbito cultural como da classe social dos Terra Cambará,
encarnam uma sexualidade impulsiva e destruidora.
A equação é simples, recorrente ao longo da representação
e construção das personagens femininas na literatura: o corpo
feminino dividido entre um corpo materno digno e um corpo
prostituído indigno; ou bem Marias ou bem Evas, ou bem san-
tas ou bem putas, como se sabe.
num território de figuras femininas 79

Submetidas à prescrição patriarcal “parirás na dor”, as tais


mães fortes e poderosas expiam a culpa do pecado original e
vêem-se deslegitimadas na própria maternidade ao terem seu
corpo dividido com as “outras”. E o desfecho de cada uma de-
las é revelador: Ana Terra pede para enterrarem a roca de fiar
com ela para que Bibiana não seja mais uma escrava; Bibiana já
velha, ao saber da morte da bisneta Aurora, sente-se aliviada ao
pensar que será uma a menos a amargar um destino de mulher;
Luzia é sacrificada por um tumor maligno.
A contraposição do território feminino versus o território
masculino, dentro de O Tempo e o Vento implica a representação
cindida do corpo feminino através das personagens analisadas,
as dignas mães de família e as indignas amásias.
A casa e o mundo doméstico são por excelência o territó-
rio das esposas e das mães, reduto familiar onde se dá o cuida-
do com a manutenção da sobrevivência, território privado para
onde os homens sempre retornam. Ali as mulheres têm seus fi-
lhos e esperam infinitamente que cresçam. Alimentá-los, vesti-
los, educá-los, criá-los, socializá-los, enfim, é tarefa das mães
num território rigidamente demarcado pelas leis sociais e cultu-
rais: o espaço da intimidade, do dentro do mundo, do interior
e da subjetividade, o espaço de casa. O corpo feminino mater-
no, em função de suas atribuições, traz em si os odores da casa,
seus cheiros e luzes, seu ritmo. Esse é um corpo que lembra, no
imaginário do texto, um grande regaço onde descansar, onde
proteger-se do medo, da grande solidão de ser no mundo, de
ter de crescer e morrer. É o das mulheres fortes que amparam
seus homens e filhos, os de Ana Terra, Bibiana, Flora, Sílvia. Sua
força vem do recato, decência, dever, da resignação, responsa-
bilidade, sacrifício, da infinita paciência, dessas qualidades que
tecem essas mulheres nas suas malhas, enquanto os filhos cres-
cem e os homens partem. O corpo materno é o corpo da casa e
na casa da infância, como quer a aparência dos fatos e como
acredita o texto, não há sexo, não há desejo.
80 O tempo e o vento • 50 Anos

O desejo está fora de casa, na rua, no mundo dos homens.


Esse é o território do masculino, onde se faz política, onde se
vai para a guerra, onde é permitido beber, fumar e jogar, onde
pode-se “possuir” livremente as mulheres. O território do outro
lado da rua, além da casa, traz em seu mapa a casa das mulhe-
res perdidas, sexuadas, que “tentam”, com seus corpos e artima-
nhas, o juízo dos homens até o sumidouro, a perdição. Na rua
está o perigo, o inimigo, o outro, o desconhecido, o que não é
familiar, o estrangeiro. As mulheres da vida são um território a
ser “conquistado”, um corpo a ser “possuído”, “submetido”,
“violentado”, um corpo que deve “entregar-se”. O corpo sexua-
do evoca cheiros e tessituras que despertam todos os sentidos,
são frutas, carnes, flores e que encontram correspondência nos
sentidos de outros corpos; são perigosos, traidores e não são
confiáveis. O corpo sexuado é como a rua à noite, desafiador,
perigoso, fascinante.
As mulheres da casa são senhoras de boa alma, as mulheres
da rua são criaturas de belos corpos. Essa é a divisão que perpas-
sa o imaginário social de O Tempo e o Vento, a divisão do corpo fe-
minino em um corpo materno versus um corpo prostituído in-
digno. É verdade que certas trajetórias individuais reduzem o
universo feminino da obra, a história das mulheres, seus corpos
e suas vozes, a essa dicotomia simplista, mas a força desse ima-
ginário tem servido, na história da nossa cultura, como um mo-
delo, um exemplo, um modo de ser feminino a ser seguido.
A maternidade e o casamento, como opções únicas para a
vida das mulheres, escraviza-as ao mundo doméstico e ao cuida-
do dos maridos e filhos. A prostituição (as “outras” são encara-
das como prostitutas ainda que nem sempre o sejam) escraviza
as mulheres a um movimento narcísico em torno do próprio
corpo e à violência e hostilidade de um relacionamento hete-
rossexual com homens que temem e querem “possuir”, “subme-
ter” esse corpo feminino.
num território de figuras femininas 81

Assim reza o texto. Não há, portanto, muitas alternativas


para as personagens femininas de O Tempo e o Vento. As opções
são aquelas estipuladas como paradigmáticas, que criam um
modo de ser feminino exemplar: ser esposa e ser mãe.
Entre elas, no entanto, esquecida pela crítica, no rastro do
próprio anonimato criado pelo texto, Maria Valéria Terra, com
uma vela na mão, perpassa O Tempo e o Vento suscitando ques-
tões, subvertendo um modo de ser feminino que subjaz às nor-
mas e condutas. Esta figura feia, seca, sem a graça feminina de
Alice, sua irmã, virgem e solteirona, traz sua força num corpo
que, ao não cumprir com a prescrição patriarcal às mulheres,
não se divide. É a Dinda, a Madrinha, a que cuida e protege,
sem ser mãe; sombra, matriarca sem descendência, que na es-
tranha configuração de seu perfil vem perguntar sobre o femi-
nino: é vulto, fantasma, sombra. Maria Valéria é fada de inver-
no, fantasma predileto de Rodrigo Cambará, vestal, parca, cons-
ciência viva, símbolo das coisas imprescindíveis, guardiã da me-
mória das mulheres (é uma figura central no texto, entre Ana
Terra e Bibiana, Flora e Sílvia), assombração, almirante, roche-
do, fada de gelo e aço; Maria Valéria não se enquadra na carac-
terização do corpo feminino dividido. Anônima, solteira e vir-
gem, funda, ao contrário do que quer a tradicional leitura da
crítica, que a vê como uma reduplicação do arquétipo da Mãe
Terra fundado por Ana Terra e Bibiana, um novo arquétipo. O
de Héstia, a deusa do lar, do mundo da casa, simbolizado pelo
fogo doméstico. A deusa virgem e anônima que mantém seu po-
der por não sucumbir às paixões humanas, em especial à dos
homens. Na sua inteireza, Maria Valéria tem voz própria, seus
ditos e falares exprimem uma sabedoria peculiar, um certo hu-
mor e nos remetem ao resgate da oralidade na leitura da histó-
ria das mulheres e suas vozes. Uma sombra, um vulto, um fan-
tasma. Uma vela acesa e a descoberta de um conhecimento ain-
da não revelado. O saber das mulheres e seus silêncios.
82 O tempo e o vento • 50 Anos

Maria Valéria atualiza questões urgentes: do sentimento


materno ser instintivo ou cultural, de conceitos de feminilida-
de, de identidade, das mulheres e sua expressão, de seus falares.
Uma sombra percorre o texto, ponta a ponta. Maria Valé-
ria não morre, não se maldiz enquanto mulher. Floriano Cam-
bará ao iniciar/finalizar O Tempo e o Vento, ouve os passos da Din-
da pela casa e pensa: “O Sobrado está vivo”. Maria Valéria octo-
genária, cega, a vela acesa na mão.
O universo feminino, intuído por Erico Verissimo em O
Tempo e o Vento, está onde não se aceita a cisão do corpo femi-
nino, onde esse corpo não está fendido e de onde, portanto, ele
pode falar, argumentar, deliberar. Maria Valéria Terra vem di-
zer, em seus silêncios e meios-tons, que o feminino - ainda que
saibamos pouco sobre a sombra, sobre como nomeá-la, como
iluminá-la - é mais sutil e também menos misterioso do que suas
rígidas e inúmeras aparências. A Pucela de Santa Fé atravessa o
texto, de ponta a ponta, desmontando certezas. Duvida, com a
vela na mão, da falsa transparência, do que nos tem sido dito so-
bre esse desencontrado mundo onde habitam atrapalhadamen-
te os homens e as mulheres desses tempos.

* Professora de Literatura da Unisc, autora de A Sombra e a Chama.


“Bandeira tem razão. É necessario agarrar o touro a unha. Enfrentar sem medo e com a alegria
possível ‘el momento de la verdad’.”
Arquipélago – Caderno de Pauta Simples
O TEMPO E O VENTO:
CINQÜENTA ANOS DEPOIS

Paulo Hecker Filho*

Reler 50 anos depois O Tempo e o Vento (O Continente), a


maior obra de Erico Verissimo no consenso geral, buscando ver
o que nela ainda funciona, não é fácil, a começar por serem 639
páginas compactas. No entanto, o modo de narrar, duma ele-
gância simples, as torna bem mais digeríveis do que pareceriam
com esse tamanho todo. E já está aí, a meu ver, o melhor do li-
vro, o autor sabe interessar contando uma história. É claro, até
uma criança o entende, e se algum passo complica, o explana,
não teme simplificar. Não se excede – já que é o melodrama que
prende o maior número, vai de melodrama, mas sabendo coibir
perorações. Aceita que as pessoas sejam diferentes, ao ponto de
admitir tolices e mesquinhezas, estendendo a linha do roman-
ce de costumes a um prosaísmo de vida abominado por tantos
modernos, que buscam a verdade, inclusive nos caracteres. Aci-
ma de tudo, Erico encontra tal prazer em contar uma história
que o transmite a quem lê. O Tempo e o Vento é sem dúvida um
dos mais lidos dos livros julgados importantes ou de leitura
86 O tempo e o vento • 50 Anos

obrigatória, enquanto a maioria dos outros importantes são


comprados e olhados, raramente lidos. E não é só o conhecido
e fácil de dramas e personagens que leva à leitura, os apenas fá-
ceis acabam abandonados, é o modo dosado e sapiente com
que escreve e conquista o leitor. E tem suas reservas: se diálo-
gos, descrições ou personagens ameaçam encher, muda de pa-
rágrafo, cena ou capítulo, cria novo interesse e torna assim o as-
sustador mar de páginas sempre navegável.
Na época receei que o intento de romancear a história do
Rio Grande fosse suspender a revelação crítica do autor da bur-
guesia porto-alegrense dos romances anteriores, já que essa crí-
tica era a sua melhor justificação. Agora, relendo, vejo que reto-
mar nosso passado representou um tema real para Erico, tanto
que, ao conceber novelas no contexto, não deixou de ser críti-
co moralizador. Ao sair, a obra impressionou pelo cuidado for-
mal, superior ao dos títulos precedentes, e foi saudada como a
chegada à maturidade.
Mas esse depois revisou toda a obra e talvez essa evolução
já nem se note nas edições revistas, já que basicamente o escri-
tor estava pronto desde Cruz Alta. Em 1949, o que primeiro
marcou foi a atenção e a felicidade da redação e já por isso o fo-
ram pondo acima de seus outros títulos. De minha parte, como
romance, segui preferindo por exemplo Clarissa e mais tarde O
Senhor Embaixador. Mas repegando agora os parágrafos de O
Tempo e o Vento na mão para examinar, de fato a propriedade de
vocabulário e frases é constante, tanto que no imenso texto ano-
tei apenas uma meia dúzia de escusáveis deslizes.
O importante é que o crítico persiste e a burguesia do pas-
sado é vista como rude e primitiva, pior que a atual. “Selva-
gens”, conclui o dr. Winter, alter-ego do autor. Uma das figuras
que ganha mais espaço na obra é Bibiana, egoísta, possessiva,
maldosa, e que o dr. Winter considera “mulher prática” e trata
como “amiga”, em parte para fazer andar o enredo com as con-
fissões dela, mas que amiga!
O tempo e o vento: cinqüenta anos depois 87

Já se acha a tolerância do narrador excessiva, ainda que


programática. Licurgo, o neto que ela cria, é outro monstrinho
mandão e briguento, e o dr. Winter só de vez em quando se
exaspera, mas ainda bem que se exaspera. “Estou certo do que
houve um erro qualquer na distribuição das raças. Quando
deus criou o mundo ele destinou a esta terra outras gentes que
não estas. Haverá ainda um meio de corrigir esse erro” (p. 410).
(Pergunto eu hoje: haverá, Olívio Dutra?)
Tem mais. A festejada Guerra dos farrapos é dada “como
estúpida guerra civil que atrasara a Província de muitos anos”
(p. 395). Sem anacronismo, com imaginação histórica, faz os
donos tratarem os negros como os escravos que eram, sem con-
templação com sua humanidade. Os índios são várias vezes lem-
brados como temidos assaltantes que matam sem remorsos, fora
do falso lugar-comum atual que os dá como donos da terra,
quando para a tornarem sua deveriam cultivá-la, não viver dela.
De ponta a ponta, recusa a lenda tradicionalista de um gaúcho
forte e generoso, e os machões que apresenta são, como na real,
injustos. Os apoderados se mostram cobiçosos e agressivos, e os
pobres, como sempre, não têm praticamente vez de serem isso
ou aquilo. Completa o quadro dando uma aula sobre os fatos
históricos que constam dos compêndios, e sem enfarar, não
raro postos num debate pessoal, vivo. Outra aula é sobre a lín-
gua que se falava e que em parte prática, com castelhanismos e
termos já em desuso (alarife, origens, despautérios, sortir); ou-
tra, substanciosa, sobre expressões, hábitos, pratos, sobremesas,
quadrinhas rurais (p. 474) e reconta com encanto a lenda do
Negrinho do Pastoreio (p. 521).
Mas se é tão crítico, como o livro foi tão bem-recebido, por
alguns mesmo como a Bíblia do Rio Grande? É que os leitores,
inclusive pela crítica, vêem nele um passado em que se reconhe-
cem por ser real, ainda que o pintem diferente. Mas se foi assim,
foi assim, quem não sabia aprende, no mínimo para respeitar.
88 O tempo e o vento • 50 Anos

E o romance? Pelo menos no realista como é o caso, o ro-


mance vale pelas personagens que cria através dos dramas nar-
rados. Eis a galeria que as novelas de O Tempo e o Vento oferecem.
A concepção mítica da vida do índio está aproximada das vi-
sões, já em termos católicos, do índio menino Pedro, logo cha-
mado Pedro Missioneiro. É assim, o mítico tem a visão, e quan-
do falha inventa. E a usa para se excetuar, dominar os outros,
ser pajé. Mas, adulto, Pedro perde a individualidade, calado tí-
tere da trama planejada pelo autor. Ana Terra se desfralda
como uma das bandeiras feministas do livro – tema no ar, saía
no mesmo ano O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, que se
tornaria a Bíblia feministas. Ana, personagem, tem duas reais
ações. Uma é se enamorar de Pedro, e descrita com a ingenui-
dade machista que vê nas mulheres entes meio primários, mo-
vidos por fatores que não entendem, quando mais verdade é
que a mulher, desde sempre alvo sedutor, aprende cedo a dis-
cernir o sexo e seu sexo em particular. A segunda é mandar o fi-
lho e a cunhada se esconderem na mata, enquanto enfrenta o
risco dos bandidos castelhanos. Aí a personagem nasce e pro-
mete. Não cumpre a promessa. Estuprada até desfalecer pelos
assaltantes, para decepção do leitor, poucos parágrafos depois
se confessa bem como nunca, o texto prossegue e logo a perde
de vista referindo dados sociais. Rodrigo Cambará tem a frase
inicial que não se esquece e é justo que por ela seja recordado:
“Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos
grandes dou de talho!”. Em seguida, conquista com risos um
gaúcho ofendido, o que é inverossímil. Na mesma linha, seu en-
contro com o coronel Ricardo Amaral chega ao irrisório, e a fi-
gurinha difícil não convence até o fim, no recursos a situação
folhetinescas e na incoerência psicológica. Pode-se explicar o
insucesso por estar o autor dividido diante dele, visando aquies-
cências ao pintar o popular galã fanfarrão e, no íntimo, despre-
zando-o, no caso com todo o direito.
O tempo e o vento: cinqüenta anos depois 89

Já em Bibiana o que não se admite é que essa danada ávida


possa ser aceita pelo dr. Winter – o feminismo tinha os seus exa-
geros. Nossa desforra e do autor é que esse termina por lhe ti-
rar a razão, fazendo-a caducar. Luzia, dita a Teiniaguá, já que to-
dos insistem em que é um ser maléfico, não justifica a designa-
ção, porque o autor não a mostra fazendo o mal, e é a ação, no
romance ou na vida, que dá o verdadeiro caráter.
Em sua única cena forte, a briga aos gritos com a sogra Bi-
biana, Luzia é quem tem razão e a sogra é que vence. Bolívar se
expõe aos tiros, se mata frivolamente, já que não foi mostrado
o tão aludido inferno que a esposa Luzia lhe teria criado. E
olhem a força de Licurgo. Quando a cunhada Maria Valéria lhe
pergunta, desesperada, o que dar para os homens sitiados e
mortos de fome, responde em pensamento: “Por que não dor-
me com eles? Assim eles esquecem a fome, vassuncê fica sosse-
gada e me deixa em paz”. Belo caráter...
Mas há o dr. Winter, há o Erico, o autor dando opinião, o
raisonneur, tipo execrado no romance realista pelos teóricos
como uma facilitação que corrói o drama, detém o romance en-
quanto tal. Mas o Erico era tão inteligente e vivido que não fica
mal em nenhuma parte. Se me permitem uma inconfidência,
ele me disse na ocasião que, ao redigir o dr. Winter pensava em
mim – eu o queria muito, como amigo. “Nada de parecido, a ati-
tude”, especificou. Mas desde sempre vejo o dr. Winter bem
mais maleável e sedutor do que eu jamais fui e Erico, sim, sou-
be ser. Acabo de reler também suas entrevistas, reunidas sob o
título A Liberdade de Escrever e ora reeditadas. É um charme só.

* Escritor, autor de Febre de Viver.


“O gaiteiro continuava a tocar a tirana. Rodrigo via por sobre sua cabeça um vago brilho de estrelas
e, num relance, lembrou-se das suas noites de guerra, nos acampamentos da banda oriental...”
O Continente – Um Certo Capitão Rodrigo
O TEMPO E O VENTO:
“O CONTINENTE” COMO OBRA SÍNTESE

José Aderaldo Castello*

A leitura da nossa narrativa ficcional possibilita selecionar


autores e obras de momentos diversos, inspirados em ocorrências
de ocupação e fixação pioneira de partes distintas do Brasil. Eles
representam perspectivas semelhantes e freqüentemente reali-
zam criações de conteúdo épico-lírico. Aglutinam panoramas de
etapas de nossa formação, em nível de investigação, de memória
e até de inconsciente coletivo, compondo painéis totalizadores.
Projetam-se em continuidade e geram uma cadeia de representa-
ções convergentes. São classificados autor-síntese e obra-síntese.
Erico Verissimo é um dos que exemplificam a contribuição
proposta. Para melhor esclarecê-la, achamos fundamental a refe-
rência, embora sumária, à experiência de princípios da carreira
do romancista, ressaltado como observador da sociedade con-
temporânea em centro metropolitano, Porto Alegre, e interiora-
no gaúcho. Nas narrativas publicadas nas décadas de 30 e 40, sou-
be interligar personagens em núcleos familiares e apreender
comportamento de classe média surpreendido no dia-a-dia, sob
92 O tempo e o vento • 50 Anos

enfoque abrangente da condição humana em geral à realidade


brasileira. Destacamos o narrador preso a seu universo, quando
já se achava ultrapassada a fase de integração da imigração de
procedência européia. Ele se colocaria, então, na posição de me-
lhor compreender o novo gaúcho, enquanto o perfil do históri-
co seria delineado em O Tempo e o Vento, volume I, a ser retoma-
do em seu processo de renovação/assimilação nos volumes se-
guintes, II e III. Equivale a dizer definição do novo brasileiro que
surgiria da “recolonização”, uma vez que Erico Verissimo percor-
re caminhos paralelos aos de ficcionistas paulistas. Inclusive, tam-
bém, com a aproximação do interior ao urbano metropolitano,
acentuando crises ideológicas. Finalmente, confronta-se com ou-
tros do Centro e do Nordeste, quando se volta para a visão dos
momentos originários de penetração e conquistas de nossos espa-
ços geográficos.
Reconhecida a relação da experiência acumulada nas pri-
meiras narrativas com a concepção de O Tempo e o Vento, podemos
melhor distinguir nessa trilogia a sua primeira parte, O Continen-
te, de 1949. Principiemos pelos títulos dos capítulos que a com-
põem, às vezes com dimensão de novelas justapostas, encadeadas
de maneira remissiva: O Sobrado, A Fonte, Ana Terra, Um Certo Ca-
pitão Rodrigo, A Teiniaguá, A Guerra, Ismália Coré. Por força das
ações romanescas interpenetrantes, mapeia-se um espaço geográ-
fico de conquista e fixação e dimensiona-se o tempo nos limites
do século 18 a fins do 19. Delineia-se igualmente a trajetória épi-
ca, também com episódios de certo conteúdo lírico, nos quais o
rude prevalece sobre a sentimentalidade. Fatos e desdobramento
de situações convergem para a cidade de Santa Fé, configurando
a atualidade em decorrência da visão retrospectiva. Aqui, O Sobra-
do se impõe como símbolo de poder patriarcal e despótico. É tí-
tulo do primeiro e também do último capítulo-parte, entremea-
dos cinco vezes com outros sob a mesma designação. Tudo indi-
ca a preocupação do narrador em enfatizar a tradição brasileira
de concentração e preponderância de poder no processo forma-
“o continente” como obra síntese 93

dor de um Estado, que ainda contaria com o destaque da partici-


pação migratória.
As subunidades intituladas O Sobrado, em torno de 1895
(data citada na narrativa), são, portanto, do momento culminan-
te do processo histórico da configuração do Rio Grande do Sul,
cujo início também é datado com precisão: “O fato de os portu-
gueses haverem fundado em 1737 um presídio militar no Rio
Grande indicava que estavam decididos a tomar posse definitiva
do Rio Grande de São Pedro”.
Advertência, nas primeiras páginas da obra, confirma inten-
ção de traçar a trajetória das origens e formação do Estado gaú-
cho pelo discurso de mais de século e meio, ampliada nos dois vo-
lumes posteriores da trilogia: O Retrato e O Arquipélago. Mas o
acontecimento histórico que marca essa abertura é a guerra das
Missões dos Sete Povos do Uruguai, sabida conseqüência do tra-
tado de 1750 entre Portugal e Espanha. Integra a parte significa-
tivamente intitulada A Fonte. É uma versão e interpretação que
pede do leitor confronto com a literatura anterior sobre aquele
episódio: O Uruguai, de José Basílio da Gama, Tardes de um Pintor
ou as Intrigas de um Jesuíta, de Antônio Gonçalvez Teixeira e Sou-
za, e mesmo O Jesuíta, de José de Alencar. Comporta referências
às incursões paulistas de apresamento do índio, em situações de
contatos que justificam a criação ficcional do protótipo do mesti-
ço mameluco, na figura de Pedro Missioneiro. Ele se juntará, por
sua vez, com outro lado paulista, fundando a geração dos Ter-
ra/Cambará. Também dos Sete Povos provém a figura lendária
de Sepé Tiaraju, o grande chefe e herói índio nas lutas ali desen-
cadeadas, mitificado, até mesmo santificado pela tradição gau-
chesca, e a lenda de origem peninsular da Teiniaguá. São lendas,
mitos e tradições que ilustram reminiscências históricas sob o cri-
vo da ficção, às vezes próxima da crônica. Um segundo aconteci-
mento é sugerido pela referência à imigração açoriana, a primei-
ra colonização daquela região, de iniciativa oficial. Mas o que se
exalta mesmo é a presença paulista, a índia e também a castelha-
94 O tempo e o vento • 50 Anos

na dentro do “continente”, onde terra e gados “seriam de quem


primeiro chegasse”, com ou sem respeito à lei, em apropriações
arbitrárias.
“Muitos requeriam sesmarias. Outros roubavam terras. La-
drões de gado aos poucos iam virando estancieiros”.
E chega-se, finalmente, à conceituação de patriarcas autori-
tários e despóticos. Primeiro, o clã dos Amaral, todo poderoso
em Santa Fé, núcleo urbano que ele funda.
Mais tarde, nos fins de 1700, com a união de Pedro Missio-
neiro com Ana Terra surge o filho Pedro, pai da futura matriar-
ca Bibiana, mulher de Rodrigo Cambará, que dará origem aos
Terra Cambará. Os clãs se defrontam: o chefe dos Amaral, paulis-
ta que lutou em Sete Povos, e Rodrigo Cambará, em guerras e es-
caramuças de fronteiras, herói, fanfarrão, jogador, mulherengo e
corajoso. Os dois seguirão entrelaçados por ódios, vinganças, lu-
tas e finalmente oposição política. Ao fim de quase um século de
rivalidades, a narrativa se encerra com a vitória republicana do
Sobrado, reduto impoluto dos Cambará. E confirmamos a prefe-
rência do autor pelo capitão Rodrigo Cambará e pelos Cambará
Terra, os quais, no decorrer da ação épica da narrativa, seriam
sempre ressaltados entre os formadores e descendentes do nú-
cleo originário, interno, no espaço gaúcho que se delimita.
No desdobramento das famílias rivais, surgem heróis, traido-
res, vilões, prepotentes e usurpadores, generosos e justos. Certa-
mente, porém, elas se prendem a raízes internas geradas por se-
mentes índias e de paulistas que se aventuraram até as “bandas
orientais”. No princípio, vivem em condições precárias, isoladas,
mas avançam progressivamente para maiores agregações, de es-
tâncias, povoados e cidades. No panorama retroativo, o açoriano
é referido, contrastando, digamos, com o gaúcho do universo ru-
ral. E Portugal era mesmo rejeitado: “Antigamente, quem dizia
governo dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontade
para com tudo quanto fosse português, começando por antipati-
zar com o jeito de falar dos galegos”.
“o continente” como obra síntese 95

A imigração alemã é vista com simpatia, também a italiana,


mas, curiosamente, práticas populares, tradições, até o canto e o
verso são de origem castelhana e principalmente açoriana. Dessa
última procedência, seriam as cavalhadas, que, contudo, já eram
freqüentes por quase todo o Brasil do século 18. De qualquer ori-
gem que sejam, as raízes internas - quer dizer, “continentais” ame-
ricanas - seriam logo mais adubadas por açorianos, alemães e ita-
lianos. E assim, da visão surpreendida em momentos pioneiros
épico-líricos, caminha-se, e não esqueçamos as sugestões anterio-
res e posteriores de toda a criação do romancista, para a visão da-
quela nova representação gaúcha mencionada inicialmente.
Obra-síntese, juntamente com outras do Modernismo, con-
tribuiu significativamente para ampliar a representação histórica
e contemporânea do Brasil. No conjunto da criação ficcional dos
anos 20 aos 60, ela se entrelaça com narrativas do mesmo senti-
do, que se enriquecem entre si. Se o começo está com José de
Alencar, a participação modernista principia com Macunaíma,
propondo a desregionalização geográfica e cultural do Brasil, a
favor da visão unitária. Prossegue-se em retomadas parciais, po-
rém, sem aprisionamentos exclusivistas. Vasculham-se raízes in-
ternas em espaço e tempo de limites definidos, sob investigação
histórica e cultural de maneira a compor a visão inter-relaciona-
da do processo seccionado da nossa formação.
E com os modernistas, além de Mário de Andrade, ressalta-
mos José Lins do Rego (Fogo Morto e Pedra Bonita), Jorge Amado
(Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus), Graciliano Ramos (o con-
junto de suas narrativas), Guimarães Rosa (Grande Sertão: Vere-
das), Rachel de Queiroz (Memorial de Maria Moura), aos quais
acrescentamos Erico Verissimo com a contribuição de O Continen-
te (O Tempo e o Vento I), entre outros possíveis.

* Doutor em Letras, USP, autor de A Literatura Brasileira: Origens e Unidade.


“Naquele dezembro – o sexto dezembro da Guerra – já não havia em Santa Fé família que não
chorasse um morto.”
O Continente – A Guerra
O TEMPO E O VENTO:
UM DIÁLOGO ENTRE FICÇÃO E HISTÓRIA

Marilene Weinhardt*

Erico Verissimo apostou no potencial romanesco da vida de


seus conterrâneos e da história de sua terra. A cartada foi extraor-
dinária e há cinco décadas os leitores vêm entrando no jogo, ence-
nando sempre, a cada leitura de O Tempo e o Vento, a comédia hu-
mana da província, muitas vezes de modo revigorado.
A afirmação de que a vida de alguém ou de que a história de
um lugar daria um romance é ouvida com freqüência. Aqueles
que, a partir dessa convicção, tentam transpor essa vida ou essa his-
tória para a escrita, descobrem que não é o relato de uma seqüên-
cia de episódios, ainda que interessantes, que faz um romance,
como também não se constitui em ensaio histórico. Um e outro -
discurso ficcional e discurso histórico - têm especificidades que os
distinguem de outros usos da palavra. O discurso ficcional, com a
liberdade de apropriação de linguagens que o caracteriza, pode
aproximar-se do histórico a ponto de parodiá-lo. O discurso histó-
rico, reconhecem hoje os teóricos da história, também recorre a
elemento próprio do ficcional, o imaginário, para dar sentidos aos
documentos, conceito este também reformulado e ampliado. As-
98 O tempo e o vento • 50 Anos

sim, a designação romance histórico, herdada do século 19 e que


para alguns, dada a reação de certos escritores e de tantos outros
críticos, parece se constituir em uma pecha, merece ser redimen-
cionada à luz dos conceitos contemporâneos do que é história e do
que é ficção, bem como à luz do diálogo que se pode estabelecer
entre essas duas áreas da produção humanística, em alguns mo-
mentos de seu percurso tão próximas.
O conceito de história predominante quando da publicação
da trilogia de Erico Verissimo - estudo dos fatos registrados pela
crônica histórica e de figuras de destaques a eles relacionados, pre-
ferencialmente num sentido de exemplaridade e de reforço do he-
roísmo nacional, conceito ainda hoje não superado de todo e bas-
tante corrente, cristalizados desde os bancos escolares - permitia lo-
calizar os momentos e as personagens históricas de que apropriou-
se a escrita ficcional, ou antes, que constituíam o cenário do enre-
do, já que se referir à noção de apropriação talvez seja prematuro
nesse contexto. Os modos de abordagem do texto literário, por sua
vez, observavam se o que era considerado assunto histórico estava
integrado ao momento ficcional, isto é, se era informação necessá-
ria ao desencadeamento da ação romanesca.
Tome-se como exemplo o relato do episódio do assassinato de
Pinheiro Machado, situado no segundo tomo de O Retrato. O que
aparece em primeiro plano na narrativa é o modo como a notícia
se difundiu na imaginária Santa Fé e a reação de cada personagem.
À leitura dos jornais, seguem-se comentários mais ou menos apai-
xonados, conforme o caráter e a coloração política de cada perso-
nagem. Para a realização literária, é relevante notar, em princípio,
se essas reações são verossímeis, das perspectivas comportamental
e ideológica, com a atuação que cada um vinha demonstrando, e
se o ato integra-se ao curso da ação romanesca. Para o discurso
orientado para a história política, interessava a possibilidade de
conferir, na pesquisa em jornais da época, que as notícias registra-
das foram de fato divulgadas na imprensa, com detalhes sobre o as-
sassino e sobre o enterro, bem como a colagem do telegrama por
um diÁlogo entre ficçÃO e história 99

Rui Barbosa à viúva e transcrito no jornal. Vale destacar que o des-


compromisso do ficcionista com o que se acreditava como “a ver-
dade histórica”, única e definitiva, lhe permite dar voz e peso a to-
das as opiniões correntes na ocasião, sem deferência especial por
nenhuma.
O simpatizante da história dos vencidos, primeiro questiona-
mento da história tradicional com repercussão fora dos círculos
acadêmicos, focaria sua atenção sobre o padeiro gaúcho que des-
feriu a punhalada, denunciando sua condição de vítima. Quer te-
nha tido mandantes, quer tenha se decidido em função da morte
do “filho duma protetora sua” na repressão policial violenta à ma-
nifestação popular contra a candidatura do marechal Hermes,
conforme declarou, estaria sempre servindo aos interesses da clas-
se dominante. No estudo do plano lingüístico, reforçar-se-ia tal ar-
gumentação pela seleção vocabular usada para denominar o agres-
sor. Não só a imprensa e os grupos governistas usam termos bem
marcados. O dr. Rodrigo Cambará, um civilista mas nem por isso
traindo sua casta, qualifica o crime de “bárbaro”, designa o autor
como “sicário”, esbofeteia e chama de “canalha” um forasteiro que
ousa dizer em voz alta que a morte do caudilho fora “uma limpe-
za”. Atualmente, a história do cotidiano extrairia outras significa-
ções da mesma cena: o modo de transmissão e de difusão da infor-
mação (um telegrama urgente ao intendente, o centro telefônico
congestionado, a leitura dos jornais da Capital); a situação em que
foi comprada a faca e seu preço, reveladores de uma faceta da ati-
vidade comercial popular; a roupa que vestia o senador e os obje-
tos encontrados em seus bolsos, marcas da condição social. A his-
tória cultural interessar-se-ia ainda pela seleção de opiniões: o vigá-
rio, o forasteiro, o intendente naturalmente situacionista, o oposi-
tor também pertencente à oligarquia. Este, ainda também signifi-
cativamente, dado uma coloração humana ao ser político, no mes-
mo momento em que emite e ouve opiniões sobre o acontecimen-
to, sente saudades da amante.
100 O tempo e o vento • 50 Anos

A primeira acusação que se pode levantar contra esse modo


de ler diz respeito ao nivelamento produzido entre fatos históricos
e fatos ficcionais. A seguinte é a de que se está afirmando que a fic-
ção contém tudo o que seria objeto da história, propondo-se por-
tanto que seria dispensável. O discurso romanesco produz, de fato,
esse nivelamento. Tudo o que ele relata é, por princípio, ficcional,
tenha ou não referente externo. A excelência dessa equiparação,
quando o escritor opta por recorrer ao externo, é um dos fatores
de realização do romance, o que não significa que a fusão se pro-
jete para além das fronteiras do tempo e do espaço do romance.
Quanto a importância da história, a maneira de ler a realida-
de que lhe é própria depende de instrumental de sua exclusiva
competência. A ficção, que eventualmente até pode ser usada pela
história como documento, neste caso oferecendo subsídios a pro-
pósito do tempo em que é produzida e não do tempo ficcional,
não é substitutivo para o ensaio histórico, embora parceira de diá-
logo. É em decorrência dessa possibilidade de diálogo que se está
propondo aqui uma forma de ler e de estabelecer a relação entre
literatura e história na ficção de Erico Verissimo. O movimento
não é de exclusão, mas de inclusão. O texto literário, se submetido
aos atuais recursos da teoria histórica, pode ganhar novo rendi-
mento ficcional. Quando a teoria histórica abre seu leque para a
cultura e, em movimento simultâneo, reconhece seu caráter de
discurso e percebe a necessidade de conhecer as regras de funcio-
namento de processos discursivos e sua força de revelação e de
mascaramento, está apontando também para um outro modo de
ler o texto ficcional que encena o histórico. A consistência do ro-
man fleuve gaúcho revelada por diferentes tipos de abordagens his-
tóricas é mais um modo possível de aduzir razões para a força de
verdade de seu universo ficcional.
No episódio comentado, o que se informa sobre a persona-
gem histórica é resultado de pesquisas em jornais e em registros
históricos, portanto nos mesmos documentos em que se apoiaria a
história que se quer ciência. O romancista registra também os ele-
um diÁlogo entre ficçÃO e história 101

mentos que constituem matéria da história que promove, em pro-


cesso de fetichização, a mitificação dos heróis. Lá estão listados os
objetos a serem encaminhados à estante envidraçada do museu.
Da perspectiva da história, tal como era entendida há poucas déca-
das, essa seria a linha limítrofe de sua atenção, tudo o que está
além seria campo exclusivo de interesse da ficção. As reações à
morte do senador no universo de Santa Fé naturalmente são pro-
duto do imaginário. Mas seria invenção em grau muito mais eleva-
do, no sentido de distanciamento da realidade, do que aquilo que
aconteceu no Rio de Janeiro e foi objeto do olhar e da pena do jor-
nalista? Mesmo na Capital, quanto e como o cidadão comum se
sentiu afetado? No país todo, dado o papel que Pinheiro Machado
vinha exercendo, como a notícia terá ecoado? Em tantas cidade in-
terioranas, particularmente nas sulistas, a repercussão terá sido
muito diversa da que ocorreu na cidade ficcional? Ou seja, o ficcio-
nista Erico cria o que é verossímil e mesmo muito provável que te-
nha acontecido. À noção de que Santa Fé é um microcosmo do Es-
tado, ou do país, agrega-se a possibilidade de entendê-la com este-
reótipo. A realidade a que a maioria de nós tem acesso, sempre
parcial, é a de nosso círculo social e profissional, a de nosso bairro,
de nossa cidade, no máximo. O que acontece no país, ou mesmo
no Estado, chega à imensa maioria dos cidadãos como um eco que
passou por uma série de filtros. A credibilidade do testemunho na
história é tão relativa quanto qualquer ideal de totalidade.
Realizado esse balizamento, neste espaço só é possível um pre-
cário levantamento dos tipos de abordagem histórica que vêm se
realizando e que se poderia transpor, com seguro rendimento,
para a análise literária dos sete volumes. O conceito de longue du-
rée, proposto por uma linha da historiografia francesa que conside-
ra só assim ser possível apreender o processo cultural, pode ser
ponto de partida. O tempo ficcional da trilogia cobre desde os qua-
se míticos tempos missioneiros até meados do século 20. Na se-
qüência, a história do cotidiano e da vida privada se instalam à von-
tade. O narrador estende-se em minúcias sobre a história da famí-
102 O tempo e o vento • 50 Anos

lia, da constituição das classes sociais, da sexualidade, dos hábitos


de vida no espaço doméstico e social, da alimentação, do vestuário,
da música, dos modos de lazer, dos meios curativos; acompanha a
instalação e o incremento do consumismo; reconstitui o percurso
dos sistemas de comunicações, particularmente do papel do jornal
como difusor de informações e formador de opiniões e de hábitos,
funções em que recebe expressiva colaboração do cinema, cuja tra-
jetória também está representada. A história da arquitetura, da in-
trodução e incorporação do automóvel, da aviação e de tantos ou-
tros avanços tecnológicos no cotidiano brasileiro estão também
presentes. A história do leitor brasileiro é acompanhada com rigor.
O registro de diversos padrões e preferências de leitura, do folhe-
tim a Marx, dão oportunidade a entrada da história das idéias. En-
fim, é o relato ficcional, nem por isso menos verdadeiro, da cons-
tituição de um povo. No painel visto desse ângulo, destaca-se a fun-
ção de dois tipos de personagens. Um grupo é representado pelos
“de fora”, estrangeiros ou originários de outras regiões do país,
cujo olhar sobre os habitantes do Sul, sem os mesmos condiciona-
mentos, permite iluminá-los. Outro grupo é o de indivíduos social-
mente marginais, cujas vozes relativizam a perspectiva dos detento-
res do poder.
Nessa altura, fica claro que se está confirmando O Tempo e o
Vento como ficção histórica, não no sentido de limitação, mas de
reafirmação de seu potencial criativo, sempre disponível para atua-
lização. Não se reivindica para o autor o título de precursor dos
atuais métodos da história e da filosofia que os orienta, mas se in-
tenta sublinhar o caráter plural da criação literária e sua capacida-
de de revitalização.
Que o passado está vivo quando oferece achegas para explicar
o presente é lição da história. Para enfim amarrar essa abordagem
que transita entre a literatura e a história, vale a pena lançar um
olhar sobre a história da literatura mais recente e focalizar o mes-
mo espaço em que predominantemente Erico Verissimo produziu
suas obras e situou a ação romanesca. A permanência de seu lega-
um diÁlogo entre ficçÃO e história 103

do é uma evidência. Em Josué Guimarães, o diálogo se estabelece


de forma mais direta, ainda que não exclusivamente, em A Ferro e
Fogo (1972/75); Luiz Antonio de Assis Brasil, em seu projeto de
painel da sociedade e da história do Rio Grande do Sul, não disfar-
ça a condição de tributário da linhagem, mais claramente na trilo-
gia Um Castelo no Pampa (1992/94), mas seus primeiros títulos já
apontavam também nesse sentido; Tabajara Ruas, particularmente
em Os Varões Assinalados (1985), oferece outra contribuição signifi-
cativa para a produção romanesca gaúcha que não se contém no
limites daquele regionalismo que significa criação autocentrada.
Certamente há outros nomes a acrescentar na descendência dessa
matriz. E a interlocução não se dará também, ainda que pelo aves-
so, quando a negação do modelo parece um imperativo? João Gil-
berto Noll, cujas opções narrativas o colocam em patamar muito
afastado, não estará pagando o seu tributo? Seu romance A Céu
Aberto (1996) encena uma guerra, o indefectível assunto sulista,
embora essa seja indeterminada e em espaço indefinido. E ainda
há uma passagem que cita como uma das possíveis causas da luta o
resgate do morro em que está enterrado um herói, vencedor de
uma batalha ao cortar a língua de um velho guerreiro inimigo que
não parava de falar, enunciando continuamente os feitos de seu
povo. Tematização da morte do pai ou do discurso como princípio
que constrói a realidade, lê-lo em contraponto com a ficção de Eri-
co é uma vereda crítica possível.

* Doutora em Letras, UFPR.


“Pai era Sol. Mãe era Lua.
Pai era ouro. Mãe era prata.
Pai era fogo. Mãe era água.
Pai era vento. Mãe era terra.”
O Arquipélago - Caderno de Pauta Simples
O TEMPO E O VENTO COMO
ROMANCE HISTÓRICO

Pedro Brum Santos*

Dentro das diversas e novidadeiras formas de manifestação


da literatura registradas ao longo do século XX, é possível res-
gatar um fato singular relativamente ao romance histórico. As
ocorrências significativas desse gênero, registradas, por exem-
plo, pelas produções de Thomas Mann e André Malraux, estão
mais próximas de uma tradição afirmada entre os oitocentos e
os novecentos do que das vanguardas contemporâneas. Graças
a isso, o romance histórico do século XX continuou sendo clas-
sificado como uma narrativa que recupera e problematiza ações
e personagens que, se não reproduzem experiências de histori-
cidade consagrada, ao menos apontam para questões gerais de
uma época e de uma comunidade.
De resto, também ao longo dos novecentos, a aludida defi-
nição se prestou para diferenciar o romance histórico de outro
que lhe é próximo - o romance social. Pelo critério da matéria
de representação, pode-se dizer que enquanto o primeiro tema-
tiza questões abrangentes, que buscam refletir sobre o próprio
106 O tempo e o vento • 50 Anos

fundamento dos fatos, o recorte social tende para assuntos loca-


lizados, de abrangência específica e circunstancial.
O romance histórico, segundo a caracterização consagrada
de Georg Lukács1, não necessita reproduzir diretamente feitos
e personagens decalcados de registros do mundo empírico. To-
mando como exemplo introdutório do gênero as obras de Wal-
ter Scott, Lukács lembra que no autor escocês do século XVIII
as referências aos feitos da realidade contingente aparecem
como pano-de-fundo. O que conta para a caracterização do ro-
mance histórico – e isso se encontra em Scott – é uma resposta
que esse tipo de obra apresenta frente a questões históricas,
algo que é feito através do torneio de ações nas quais são fixa-
das literariamente etapas reconhecidas como pertencentes à
História da época de produção.
No Brasil, ao longo dos novecentos, salvo exceções, o ro-
mance foi primeiro social e, somente depois, histórico. A feição
social começa a despontar cedo em autores como Lima Barreto
e Graça Aranha, mais tarde seguidos, em parte, por Mário de
Andrade e Oswald de Andrade. Depois desses, tal feição se con-
sagra como o recorte preferido do chamado romance de 30.
Preferido, mas não exclusivo.
Erico Verissimo, nas primeiras obras lançadas nos anos 30,
demonstra uma preferência pela História como matéria de re-
presentação. O exame da produção atesta que a abordagem de
fundo histórico pode ser detectada no conjunto da obra ficcio-
nal de Verissimo, e que, além disso, se intensifica com a passa-
gem do tempo. As obras iniciais, como Música ao Longe e O Res-
to é Silêncio, em que a referência a episódios históricos é menos
enfática, já colocam questões de inequívoco sentido historicista,
como a decadência do patriarcado rio-grandense e as marcas do
crescimento desenfreado das cidades. Nas obras da maturidade
do escritor, como O Tempo e o Vento, Senhor Embaixador e Inciden-

1. LUKÁCS, Georg. La Novela Histórica. Barcelona, Grijalbo, 1976.


O tempo e o vento como romance histórico 107

te em Antares, a opção pela história ocupa função no próprio es-


quadrinhamento do enredo.
Presente desde os primeiros escritos, a consagração da fór-
mula através da qual o autor equaciona a matéria de representa-
ção ficcional na linha do romance histórico ocorre por ocasião
do primeiro volume de O Continente,2 com o qual lança o proje-
to da trilogia O Tempo e o Vento, em 19493. O procedimento con-
siste em selecionar um episódio histórico, dentro do qual são in-
seridas as personagens e situação ficcionais e em torno do qual
gira a trama romanesca, num processo integrativo que produz
imbricações entre micros e macros seqüências de significados.

Soluções Estéticas

De acordo com o esquema de imbricações entre seqüên-


cias, a revolução federalista de 93, em O Continente I, serve como
um leitmotiv para o desencadeamento das ações. Os episódios,
seriados segundo o título de “O Sobrado”, estão divididos em
sete partes e servem de ponte a partir da qual, na seqüência da
leitura, entre um e outro, intercalam-se trechos que recuam e
avançam no tempo. Os segmentos que compõem “O Sobrado”
estão situados em junho de 1895, data que coincide, no âmbito
da História, com o término da revolução federalista.
No romance, a habitação encontra-se cercada pelas forças
republicanas, que aparecem como vitoriosas sobre o poder po-
lítico de Santa Fé. Dentro da fortaleza, em condições precárias
causadas pelo isolamento, resistem os representantes republica-
nos: Licurgo Cambará, o chefe político deposto, alguns fiéis se-

2. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. Rio de Janeiro, Globo, 1985.


3. O crítico que melhor compreendeu a caracterização histórica da proposta literária de Erico Ve-
rissimo foi Flávio Loureiro Chaves, para quem o realismo social do autor se traduziu “como um
pacto ético-literário no qual o indivíduo se faz cidadão da História”. Cf. CHAVES, Flávio Lourei-
ro. Erico Verissimo: Realismo e Sociedade. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1981, p. 128.
108 O tempo e o vento • 50 Anos

guidores e os familiares. À medida que o leitor vai se situando


em relação às personagens que se encontram no Sobrado, co-
nhece, nos capítulos circundantes, dados de outras persona-
gens e episódios que se ligam aos nucleares.
Além da imagem da casa – o sobrado – o autor utiliza-se de
referências da natureza com o fito de integrar as personagens e
as ações a âmbitos cada vez mais amplos da trama e da História.
Esse procedimento de integração permite uma mistura entre es-
paço doméstico e palco de guerra, do mesmo modo que justifi-
ca a referência ao vento como marca de tempo – numa perspec-
tiva que conduz do particular para o geral, da parte para o con-
junto, da definição de detalhes às imagens-sínteses, nas quais se
incluem os títulos das partes e do todo.
Assim, do mesmo modo em que se passa da casa para a
guerra e do vento para o tempo, a História – guerra civil – inte-
gra-se à história – enredo. Os conflitos experimentados por Li-
curgo, como chefe político e pai de família, num certo nível,
possuem uma lógica ficcional. Dentro dessa lógica, tais conflitos
interagem com a queixa das mulheres – Alice, sua esposa, e Ma-
ria Valéria, a cunhada, para ficar no âmbito do sobrado.
Para além do círculo de casa – e ainda no espectro roma-
nesco – os cruzamentos se ampliam, chamando para o diálogo
a memória de Ana Terra, Capitão Rodrigo, Luzia – os antepas-
sados de Licurgo e de outros ocupantes da casa. Novas imagens
vão se formando na teia de relações aberta pelos trechos que
preenchem os espaços entre as diferentes focalizações sobre o
sobrado. Além das referências ficcionais, essas imagens vão co-
locando em diálogo recortes históricos diversos. De 93, retroce-
de-se a episódios do povoamento do solo sulino, à época das
missões jesuíticas e à revolução farroupilha, para citar três refe-
rências bem presentes.
Os diferentes níveis de representação, tal como estão dis-
postos em O Continente – e, de resto, ao longo de todo O Tempo
O tempo e o vento como romance histórico 109

e o Vento – exigem que o leitor vá montando a história, como se


juntasse as peças de um quebra-cabeças. O procedimento, que
é próprio dos grandes romances, fica reforçado pela utilização
que Verissimo faz do contraponto, técnica consagrada pelo es-
critor inglês Aldous Huxley, em romance de 28, no qual apro-
funda o uso da composição fracionada da história, cujos pontos,
disseminados pelo todo, vão se ampliando passo-a-passo.
Do ponto de vista do arranjo ficcional, a escolha da revolu-
ção federalista como tópico de partida de O Continente I – e, de
resto, da própria trilogia, considerando-se que se trata do volu-
me inaugural - reveste-se de particular significado. Na história
do Rio Grande do Sul esse é um conflito essencial, pois signifi-
ca a passagem da antiga ordem institucional, arranjada com os
acordos imperiais que puseram fim à revolução farroupilha, à
ordem republicana, assentada no ideal positivista de Júlio de
Castilhos.
Registrado na história como um embate de contornos bár-
baros, com fartos registros de degolas, humilhações e massa-
cres, aos quais não escaparam velhos, mulheres e crianças, a re-
volução de 93 tornou a envolver inocentes nas contendas da eli-
te rio-grandense. Na oportunidade, o confronto foi entre os fe-
deralistas, chamados maragatos, simpáticos ao parlamentarismo
monárquico e chefiados por Gaspar Silveira Martins e os repu-
blicanos, ditos pica-paus ou chimangos, que eram republicanos
e obedeciam à chefia de Júlio de Castilhos.
O arranjo ficcional que Verissimo procede em relação a
esse evento histórico, logo na abertura de O Tempo e o Vento, ga-
rante a visão da história que se alarga pelos demais volumes da
trilogia. Em primeiro lugar, o procedimento distingue-se por
garantir a expressão de vários aspectos em relação ao mesmo
objeto retratado. Em segundo lugar, por força da disposição do
material, fica preservada a prevalência de uma lógica de caráter
ficcional contra a linearidade mais própria da lógica do discur-
110 O tempo e o vento • 50 Anos

so histórico. Por fim, a forma pela qual se realiza a integração


entre os fatos da realidade contingente e o universo diegético
permite que os fatos da História sejam recuperados do congela-
mento do passado para a multiplicidade viva do presente.
Com a transposição da revolta federalista da História para
a ficção, integrando diferentes planos narrativos, Verissimo, tal
como faz em O Continente I, desveste o episódio histórico de seu
sentido apriorístico e deixa-o à mercê da trama ficcional. Cabe,
então, aos agentes ficcionais expressarem opiniões, que, embo-
ra às vezes sejam contraditórias entre si, por isso mesmo, colo-
cam para o leitor questionamentos que mais dizem respeito à
época de produção da obra do que propriamente ao episódio
retratado.
A revolução federalista, pois, transforma-se no centro gera-
dor em torno do qual as personagens, envolvidas no conflito,
em lugar de protagonizarem cenas de enfrentamentos bélicos,
refletem sobre a inutilidade das situações a que estão submeti-
das. O velho Florêncio Terra, sogro de Licurgo, em meio aos si-
lêncios do sobrado cercado, registra:

Eu tenho quase sessenta e cinco. Já vi outras guerras. Tudo isso


passa. A revolução termina, os federalistas e os republicanos fi-
cam alguns meses ou anos um pouco estranhos, mas o tempo tem
muita força. Um dia se encontram, fazem as pazes, esquecem
tudo (VERISSIMO, 1985, p. 11).

Os aspectos destacados por Florêncio transcendem a Revo-


lução de 93, embora neles não se deva desprezar o quanto isso
encerra de crítica sobre a tradição heróica e brava do Rio Gran-
de do Sul. Mas acima disso, a digressão de Florêncio Terra
aponta para uma dimensão hedonística da História que é pre-
ponderante em O Tempo e o Vento. Esta é traduzida pelo princí-
pio de que, como o tempo a tudo consome, o verdadeiro senti-
do da ação humana está em canalizar as energias em ações agra-
O tempo e o vento como romance histórico 111

dáveis, que sejam ao mesmo tempo simples e realizadoras e que,


acima de tudo, signifiquem fontes de prazer.
Fandango, o velho e alegre contador de histórias, igual-
mente submetido ao cerco do Sobrado, exprime seus sentimen-
tos exatamente nesses termos:

Curgo vive dizendo que os maragatos são bandidos. Mas qual!


Todo mundo sabe que há gente boa e gente ruim dos dois lados.
(...) [a guerra é] uma sangueira braba, uma perda horrível de
vidas, de dinheiro e de tempo! E no entanto o mundo tem tanta
coisa gostosa! Mulher bonita, cavalo bom, baile, churrasco, mate
amargo... Laranja madura, melancia fresca, uma guampa de
leite gordo ainda quente dos úberes da vaca... Uma boa prosa
perto do fogo... Uma pescaria, uma caçada, uma sesta debaixo
dum umbu... Tanta coisa! (Idem, p. 287).

Reflexões como a de Fandango – e aqui é mais uma vez o


fato histórico ganhando expressão particular pelo ponto de vis-
ta de uma personagem –mostram a montagem do romance his-
tórico em Erico Verissimo. Distanciando-se da pura e simples re-
visão do passado, o autor busca, a partir desse, montar o seu
projeto ficcional de modo que, de acordo com a tradição do ro-
mance histórico, os fatos referenciados sirvam para que o leitor
vá adiante, presentificando as questões suscitadas pelos referi-
dos fatos.

Sentidos da História

As soluções estéticas adotadas por Verissimo na composi-


ção ficcional dos recortes históricos que toma como matéria-
prima para compor seus romances, freqüentemente levaram a
crítica a classificá-lo como um humanista liberal. Em períodos
de acirramento de discussões ideológicas, como aqueles em que
112 O tempo e o vento • 50 Anos

produziu, tal classificação é conseqüência lógica dos debates


que estavam postos para o conjunto da sociedade.
O enquadramento no humanismo liberal, às vezes, é visto
de modo negativo. Álvaro Lins, por exemplo, ao comentar o
conjunto que o autor produziu entre os anos 30 e 40, aponta
que se trata de um universo ficcional que costuma tornar-se
vago e incaracterístico “por efeito do seu otimismo, do seu in-
vólucro cor-de-rosa”4. Outras vezes, o liberalismo, traduzido por
liberdade, rende elogios. Otto Maria Carpeaux enquadra-se
nessa vertente da crítica, destacando a identidade que se estabe-
lece entre a expressão liberal de Verissimo e o anseio do povo
brasileiro, “anseio tão profundo que (...) até os mortos estão fa-
lando dela e sonhando com ela: é a liberdade”5
Ao insistir nas posições ideológicas do autor, a crítica deixa
de ver que, por trás delas, estão as soluções estéticas que os ro-
mances de Verissimo propõem, buscando, justamente, fugir das
armadilhas do esquematismo ideológico em que facilmente
pode escorregar o romance histórico. Tais riscos decorrem não
apenas das marcas prévias de que são constituídas as referências
históricas, como das marcas próprias que lhes pode dar o ro-
mancista. Ora, a marca, no sentido de partidarismo, é um pas-
so para o fechamento ideológico e para o discurso de caráter
panfletário. Esses são os riscos que a matéria histórica coloca
para o romancista. No caso de Verissimo, há uma complicação
suplementar representada pelo quadro que encontra no perío-
do em que produz.
Nos anos 30, quando surgem suas obras iniciais, o roman-
ce brasileiro desdobra-se em, pelo menos, três vertentes repre-
sentativas. Uma delas é assinalada pelo experimentalismo for-
mal, ao modo de Oswald e Mário de Andrade. A outra é a que

4. LINS, Álvaro. Sagas de Porto Alegre. In: Os Mortos de Sobrecasaca. Porto Alegre, Mercado Aberto,
1981, p. 43.
5. CARPEAUX, Otto Maria. Erico Verissimo e o Público. In: O Contador de Histórias. Porto Alegre, Glo-
bo, 1972, p. 39.
O tempo e o vento como romance histórico 113

propõe a indagação sobre os estágios interiores, psicológicos do


ser humano, casos em que se enquadram Lúcio Cardoso e Cor-
nélio Pena. A terceira vertente registra a ficcionalização de uni-
versos que, com maior ou menor propriedade, classificam-se no
âmbito do regionalismo, tal como se constata em nomes como
Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
No Rio Grande do Sul, a linhagem de cunho regionalista,
mantendo arraigada tradição, permanece, na primeira metade
do novecentos, como dado relevante da produção literária. Nes-
se período, embora surjam revisões relativas ao trato grandilo-
qüente do passado, a literatura sulina ainda dá crédito à figura
entronizada do gaúcho, considerando-a, a partir do ícone de
bravo guerreiro, como autêntico tipo representativo do povo
rio-grandense. O mito composto sob inspiração romântica no
século XIX revive, de modo particular, sob a égide da gauchiza-
ção do Brasil aurida pelos revolucionários getulistas de 1930.
A crescente ficcionalização da História que a obra de Veris-
simo apresenta a partir dos anos 30, encontra certas dificulda-
des diante do panorama esboçado. Em nível nacional, depara-
se com uma crítica que, diante do pendor histórico dos enre-
dos, busca julgar sua obra a partir de princípios ideológicos. Já
em termos rio-grandenses, o problema é encontrar o tom que
suplante o apelo ideológico verificado em produções preceden-
tes, sem cair num ideologismo oposto.
O autor de O Tempo e o Vento soube equacionar tais ques-
tões. Um exame distanciado de sua obra, como hoje é possível
fazer, permite concluir que o seu mérito radica na opção pri-
meira que fez pela ficção, a cujo funcionamento soube subme-
ter, com técnica e criatividade, a matéria histórica. Depois de se
reconhecer esse aspecto e de colocá-lo antes de qualquer outro,
pode-se até concordar em classificar o autor como um humanis-
ta liberal. Mesmo porque, se, como sugere Lukács (op. cit.) o ro-
mance histórico faz ver as grandes questões do tempo de produ-
114 O tempo e o vento • 50 Anos

ção, não é exagero levantar-se que a liberdade, em termos hu-


manistas, como destaca a referência anterior de Otto Maria Car-
peaux, é uma das grandes questões da época em que Verissimo
produziu.
É preciso lembrar que o romance, desde os primórdios de
seu desenvolvimento moderno, a partir do século XVIII, deba-
teu-se entre o modo enunciativo assumido por sua forma pro-
saica e o caráter poético necessário para que pudesse funcionar
do ponto de vista estético. É evidente que o trato da História
possui naturalmente um caráter enunciativo. Verissimo busca
dar-lhe, justamente, a dosagem poética a partir dos pontos que
destacamos: fuga da linearidade própria do relato histórico
com a proposta de integrar, em seus romances, fatos da realida-
de contingente com universos diegéticos e extradiegéticos, bus-
cando resgatar sentidos que substituam o congelamento do pas-
sado pelas cores vivas do presente.
Tudo isso concorre para que o autor retire da matéria his-
tórica os melhores resultados literários. Nesse sentido, O tempo e
o vento, cujo lançamento completa 50 anos, é exemplar, porque,
a partir do recorte sul-rio-grandense monta um processo inte-
grativo que, do micro para o macrocosmo dialoga com as gran-
des questões do século, não apenas em relação ao Brasil mas à
própria sociedade ocidental.

* Doutor em Letras, Coordenador do Mestrado em Letras, UFSM.


“Ó mundo horrível dos grandes / que cheiravam a sangue de boi / a sangue de homem / a suor de
cavalo / a sarro de cigarro de palha.”
O Arquipélago – Caderno de Pauta Simples
O Retrato e a Identidade

Orlando Fonseca*

Bota o retrato do velho, outra vez


Bota no mesmo lugar
O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar.

Haroldo Lobo e Marino Pinto

Seguindo a indicação do título dado por Erico Verissimo à


segunda parte de sua trilogia de O Tempo e o Vento, há dois mo-
mentos significativos importantes para a leitura de O Retrato, no
que concerne à configuração do espaço ficcional e a remissão
aos eventos históricos ou regionais. Ainda que trate de envolver
personagens com aspectos da história nacional, 1910 a 1945, e
fundar o ambiente da fictícia Santa Fé em elementos caracterís-
ticos do meio rural gaúcho, não se trata de um romance histó-
rico, stricto sensu, ou obra regionalista, à maneira da produção
características da geração de 30. Entretanto, uma leitura esqua-
drinhada dos eventos ficcionais, mais do que a presença de da-
dos históricos propriamente, produz a descoberta de aspectos
importantes para se visualizar um julgamento da História brasi-
leira recente.
O primeiro momento apontado, no quadro alegórico que
se pretende destacar como revisão histórica do romance de Eri-
co, aparece já nos primeiros parágrafos, quando o proprietário
118 O tempo e o vento • 50 Anos

da Casa Sol sai para a rua com um quadro debaixo do braço, e,


dirigindo-se a um “mulato”, exclama: “Este é o dia mais feliz da
minha vida!” E então quebra o quadro na quina da calçada, ras-
gando em pedaços o retrato do ex-presidente, que não é indica-
do, mas, pelas evidências que seguem na narrativa, trata-se de
Getúlio Vargas. Com uma fúria “que o deixava apoplético”, nas
palavras do autor, depois do gesto de soltar os pedaços da foto
ao vento, num gesto dramático, acentua: “Este é o fim de todos
os tiranos!” Na seqüência, o “mulato”, dirigindo-se ao comer-
ciante, sentenciou: “Deixe estar, um dia esse retrato volta pra
parede. Os milicos derrubaram o Velho, mas ele caiu de pé nos
braços do povo!”1
Importante destacar nessa cena composta por Erico, em
que se confrontam na rua dois emblemas do quadro social vi-
gente: o proprietário de uma loja, representando uma pequena
burguesia emergente, e um representante da minoria étnica, o
estrato popular originário da miscigenação, os quais esboçam
duas reações distintas, diante da situação política de crise, de
desencanto ou de expectativa. Reações que aparecem contradi-
tórias também nas referências que seguem à apresentação do
fato citado: na discussão que se originou, insultado, o proprie-
tário da loja agrediu violentamente o mulato, que foi arrastado,
então, por dois desconhecidos rua abaixo, no entanto sem se
calar, repetindo aos brados: “Viva o nosso Presidente! Viva o Es-
tado Novo!”. Em pichações, no muro à frente da Casa Sol, a
mesma contradição: “Queremos Getúlio, resíduos da campanha
“queremista”2. Logo abaixo, em garranchos brancos: Viva Pres-
tes! Morra o fascismo! E, entre a foice e o martelo, um moleque
gravara no reboco, a ponta de prego, um nome feio”. (p. 4)

1. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. Porto Alegre: Globo, 1985, v. 2: O Retrato, p. 4. Todas as re-
ferências à obra serão retiradas desta edição, mencionadas no corpo do texto, seguidas apenas
do número da página.
2. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995, p. 385.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 119

O outro momento relacionado mais especificamente com


o plano temático da obra é o retrato de Rodrigo Cambará, a
personagem protagonista, aos vinte e quatro anos, feito pelo
pintor espanhol Don Pepe. Esta era tida, pelos moradores de
Santa Fé, “para todos os efeitos o Retrato, com R maiúsculo”, o
qual representava uma espécie de referência turística, pois,
quando chegava algum forasteiro, a primeira coisa que pergun-
tavam era: ‘Já viu o Retrato’?”(p. 28) Erico Verissimo, na com-
posição das falas do pintor, deixa indícios de uma insinuação,
em metalinguagem, desse propósito transversal ao percurso da
narrativa:

Quando tive na minha frente o modelo e a tela vazia, pensei: Don


Pepe, esta vai ser a grande obra de tua vida. Mas não pintes ape-
nas o corpo de Rodrigo, pinta também sua alma. Não fixes ape-
nas este momento, mas também o passado e o futuro. (...) O re-
trato é profético, é mágico, porque dentro dele está tudo: Don Ro-
drigo aos vinte e quatro anos, seu passado, seus antepassados e
também o futuro com todas as suas vitórias e derrotas... (p. 31)

No retrato de Rodrigo, configura-se uma personalidade po-


lítica identificada com uma identidade nacional, pois este tre-
cho, situado temporalmente no momento presente da narrati-
va, em que os fatos importantes serão recuperados em flash back
marca o retorno de Rodrigo, envelhecido e doente, depois de
ter estado no Palácio Guanabara como amigo e assessor do Pre-
sidente Vargas, já deposto. O pintor, também decadente, refere-
se a uma dupla identidade do representado em sua obra, : “Don
Rodrigo nunca saiu de Santa Fé. Me refiro ao Rodrigo verdadei-
ro, o do Retrato. (...) Esse que chegou do Rio é o fantasma do
outro.” (p. 29) Planifica-se desse modo a configuração típica da
alegoria, na qual subsiste um referente imediato e explícito, o
retrato de Rodrigo, e uma remissão latente que perdura na de-
cifração secundária, mas não por isso menos importante, em
que o retrato do Velho, Getúlio Vargas, emblematiza a época
120 O tempo e o vento • 50 Anos

histórica nacional e seu conseqüente julgamento crítico. “Está


tudo lá no quadro. Vai a ver. Tudo: a glória, sua carreira, suas
viagens, a Revolução de 30, o Estado Novo, as mulheres que ele
amou, e também este final desastroso...”(p. 32), são as palavras
do pintor, que intensificam esse sentido oculto da obra.

1 – A moldura

Tendo iniciado a composição de O Tempo e o Vento com a in-


tenção de constituir um único volume, ao final da redação de O
Continente e logo após sua publicação, Erico compreendeu que
seria necessário articular a saga em uma trilogia. O segundo vo-
lume, O Retrato, trazia o propósito de apresentar o bisneto do
Capitão Rodrigo, “representando a urbanização e intelectuali-
zação da família Cambará”3. Publicado em 51, começou a ser
elaborado “em janeiro de 1950, em Torres, e continuado em
Porto Alegre, em sua casa, na sala de jantar, cercado de volumes
do Correio do Povo”.4 Esse período coincide com o da campanha
eleitoral que reconduziu Getúlio Vargas ao poder pelo voto. Os
versos da epígrafe do presente ensaio foram tomados da mar-
chinha “Retrato do Velho”, o maior sucesso do carnaval de 51.
A letra da canção composta por Haroldo Lobo e Marino Pinto
tem como mote o fato de que, durante a vigência do Estado
Novo, instituiu-se como prática a colocação de retratos dos pre-
sidente nas paredes das repartições públicas. “Em 1945, Vargas
saiu e saíram também os retratos. Veio então sua vitória na elei-
ção presidencial de 1950 (...) a volta do líder ao poder é simbo-

3. BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto Alegre: L&PM/EDIPUCRS,
1995, p. 136.
4. idem, ibidem.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 121

lizada pela volta dos retratos às paredes”.5


A mesma motivação impele Erico a compor o quadro em
que Rodrigo assume a luta política, primeiramente em sua cida-
de, e, posteriormente no governo Vargas, sem que esta parte te-
nha representação efetiva na trama romanesca. É pelo mote do
“retrato” que o autor resgata os elementos históricos que compa-
recem nesta parte de O Tempo e o Vento, servindo, literalmente
como suporte da configuração da protagonista, e subsidiariamen-
te como uma visão crítica do Estado Novo, tanto em sua gestação,
como em sua efetivação não nomeada. Verifica-se, a propósito
disso, um lapso não narrado de 1915 - coincidindo as mortes de
Pinheiro Machado, assassinado, e da personagem Toni, com
quem Rodrigo teve um affair, levando-a ao suicídio - a 1945,
quando aparece outra coincidência entre ficção e História: Ro-
drigo retorna doente a Santa Fé e Vargas acaba de ser deposto.
Embora o contexto contemporâneo à produção da obra
seja o do retorno de Vargas ao poder, o período histórico em
que transcorre o universo ficcional começa na crise da Repúbli-
ca Velha e a implantação do Estado Novo. Ao lado de um pro-
gresso industrial importante, as primeiras décadas deste século
não assistiram a uma ascensão do capitalismo urbano, mas o do-
mínio da velha oligarquia rural, que se tratou de manter sob
suas rédeas o regime político, com o predomínio do “coronelis-
mo”. Segundo Luiz Roberto Lopez, “a inexistência da Justiça
Eleitoral, o voto aberto e a falta de mecanismos eficazes de con-
trole asseguravam a mais absoluta impunidade para a domina-
ção política do latifundiário”6. A fraude era comum, pois era
um procedimento natural o camponês votar de acordo com a
indicação do dono da terra, em articulação com o governador
do estado. Como não havia políticos nacionais, predominavam

5. SEVERIANO, J. & MELLO, Zuza H. de. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras. vol. 1.
São Paulo: Editora 34, 1997, p. 284.
6. LOPEZ, Luiz R. História do Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 44.
122 O tempo e o vento • 50 Anos

os Partidos Republicanos estaduais, máquinas que “assegura-


vam a unanimidade em eleições”7. Nesse estado de coisas, o re-
sultado de eleições nacionais estava diretamente relacionado
aos interesses das duas maiores oligarquias do país, a produção
cafeeira de São Paulo e a produtora de gado leiteiro de Minas –
daí a chamada “política café-com-leite”. Na campanha civilista
de 1910, houve a primeira divisão política, pois Minas se juntou
ao Rio Grande do Sul, liderado por Pinheiro Machado, apoian-
do o Marechal Hermes, contra Rui Barbosa.
No período da República Velha, o setor militar não teve
muita participação, até o advento do tenentismo, em 1922. O
exército começa a ter participação mais efetiva entre 1910 e
1914, durante o governo de Hermes da Fonseca, especialmente
com intervenções no nordeste, para neutralizar as oligarquias
locais, que militaram a favor do candidato civil. No entanto,
essa não teve maiores repercussões. A política das oligarquias
começa a mudar no período de 1914 e 1918, com a I Guerra na
Europa, que favoreceu a industrialização nacional, o que provo-
cou o aumento da população operária urbana. Junto com esse
dado, “a influência anarquista e ainda o impacto da Revolução
Russa de 1917 deram início a um período de greves de massa
em São Paulo”.8 Com isso começaram as perseguições aos traba-
lhadores e às sociedades anarquistas, no início dos anos 20. Em
22, substituindo o anarquismo na condução do movimento ope-
rário, surgiu o Partido Comunista, que junto com o “tenentis-
mo”, formaram umas das principais forças políticas e ideológi-
cas antecedentes à Revolução de 30.
Agravou-se o quadro de cisão entre os setores civis e milita-
res nos anos entre 1919 e 1922, período da presidência de Epi-
tácio Pessoa, contribuindo para a instabilidade do regime repu-
blicano. Em 22, com a campanha eleitoral, mais uma vez o pro-

7. Idem, ibidem, p. 45.


8. Idem, ibidem, p. 49.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 123

cesso transcorreu num clima de tensão, uma vez que alguns es-
tados formaram a “reação republicana” para garantir a candida-
tura de Nilo Peçanha, contra o candidato governista, Arthur
Bernardes, que acabou vencendo as eleições. Embora o poder
civil tenha explorado ao máximo o descontentamento dos mili-
tares para atacar o governo, foi da parte dos militares que a rea-
ção teve conseqüência efetiva: em julho de 1922 aconteceram
diversas revoltas patrocinadas pelos jovens oficiais, fazendo sur-
gir o “tenentismo”, cuja representante histórica mais ilustre é a
famosa “Coluna Prestes” de 1924.
Em 26, assumiu Washington Luís, no último conchavo vito-
rioso da política café-com-leite. Este, no entanto, não conseguiu
solucionar os graves impasses da conjuntura nacional; o Partido
Comunista teve uma atuação importante às vésperas da Revolu-
ção de 30. Em meio às crises, era intensa a articulação política:
em São Paulo, criou-se o Partido Democrático, reunindo seto-
res da burguesia e classe média, com um programa de reformas
liberais; no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas patrocinou um
acordo entre o Partido Libertador e o Partido Republicano, o
que se demonstrou importante para os eventos que levaram à
Revolução de 30.
Em plena campanha eleitoral, a crise mundial de 1929 le-
vou o setor cafeeiro, endividado, a apelar para o governo, que
preocupado com seu plano de estabilidade cambial, recusou
ajuda, gerando um descontentamento nos produtores paulistas.
Embora a ala política tradicional tivesse aceitado a derrota, uma
geração de políticos novos, tendo à frente Getúlio Vargas, Flo-
res da Cunha, Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor, e outros, can-
sada das fraudes eleitorais, decidiu impedir à força a posse, mar-
cada para novembro daquele ano, do candidato oficial, Júlio
Prestes, eleito em março de 1930. Reforçada pela adesão dos te-
nentes, a revolta teve como base um movimento regional, par-
tindo do Rio Grande do Sul, Minas e Paraíba, na qual se deu o
124 O tempo e o vento • 50 Anos

estopim do movimento, com o assassinato de João Pessoa, em


26 de julho.
O período que se inaugura neste momento histórico tem a
marca das contradições que caracterizam o país desde então. O
regional e o nacional se apresentam na dicotomia que se confi-
gura com o caráter da revolta:

Getúlio Vargas deslocou-se de trem a São Paulo e daí seguiu para


o Rio, onde chegou precedido por 3 mil soldados gaúchos. O ho-
mem que, no comando da nação, iria insistir no tema da unida-
de nacional, fez questão de fazer transparecer, naquele momen-
to, seus traços regionais. Desembarcou na capital da República
em uniforme militar, ostentando um grande chapéu dos pampas.
O simbolismo do triunfo regional se completou quando os gaú-
chos foram amarrar seus cavalos em um obelisco existente na
Avenida Rio Branco.9

Com a posse de Vargas e ascensão do populismo, chega ao


fim a Primeira República, marco de uma transição do Brasil ar-
caico para a modernidade. No entanto, produto de uma alian-
ça heterogênea, é importante destacar que “a multiplicidade
dos interesses vitoriosos fez com que sérias dificuldades surgis-
sem posteriormente, quando chegou a hora das grandes opções
para resolver os grandes impasses nacionais”.10
Não se percebe na narrativa de O Retrato a evidência do
quadro histórico acima referenciado. No entanto, é a ele que
remete o autor quando aponta traços da personagem Rodrigo,
um misto de personalidade política e dandy do interior do Esta-
do do Rio Grande do Sul, origem das figuras nacionais que as-
cenderiam ao poder central com a Revolução de 30. O modo
como isso se realiza, no plano da composição ficcional, é um
dado instigante na leitura do romance. Enquanto na primeira
parte de O Tempo e o Vento ressalta-se a força do símbolo, como

9. FAUSTO, Boris, op. cit., p. 325.


10. LOPEZ, op. cit., p. 64.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 125

o “punhal” de Pedro Missioneiro que passa pela mão dos Terra


e dos Cambará – figurando ao final desta segunda parte na mão
do filho mais novo de Rodrigo, um prestista ferrenho –, a tesou-
ra de Bibiana11 e o vento, em O Retrato persiste a força da alego-
ria: o “retrato” concentra os dois eixos de leitura da obra: o da
linearidade romanesca e o da referência ao plano histórico.
Ainda que possa se verificar a presença do símbolo, segundo
Regina Zilberman, como elemento integrador da trama, obser-
va-se que há um modo diferente do emprego em O Continente,
uma vez que se relaciona com a configuração do narcisismo da
protagonista, e não mais para “caracterizar os vínculos geracio-
nais e a repetição dos ciclos vitais”.12
A distinção conceitual entre símbolo e alegoria, que se faz
aqui, remete à definição romântica, especialmente em Goethe,
associada à herança da retórica,13 que leva em consideração, no
dado da representatividade, o universal e o particular. Segundo
essa proposta, no símbolo se percebe o universal no particular,
decorrendo daí uma “intransitividade” do símbolo - baseado
nisso é que Erico simplesmente faz referência passageira de que
o punhal de Pedro Missioneiro, o qual atravessa a narrativa de O
Continente, está na cintura de Eduardo, sem a necessidade de
nenhuma informação adicional: a menção já diz tudo. Ao passo
que, na alegoria, escolhe-se um particular para o universal, exi-
gindo para a leitura alegórica uma representação coerente no
plano literal, que, no entanto, deixa margem para uma segun-
da leitura implícita, tão ou mais importante que a primeira ca-
mada do texto. É por esta razão que se toma aqui a polissemia do
signo “retrato”, na narrativa, uma vez que o mesmo se desdobra,
explicitamente, na cadeia sintagmática, como um dado da nar-
rativa, na ordem dos eventos ficcionais, mas mantém uma vin-

11. Cf. ZILBERMAN, Regina. “O Tempo e o Vento: história, mito, literatura”. In: Discurso histórico e
narrativa literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, p. 142.
12. idem, ibidem, p. 144.
13. Cf. TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 203-223.
126 O tempo e o vento • 50 Anos

culação importante, como signo de época, com o “retrato ofi-


cial”, signo histórico popular à época da produção do texto, e
que comporta, nas entrelinhas de sua configuração do roman-
ce, um julgamento do período político enfocado.

2 – O retrato

A passagem do primeiro capítulo, “Rosa dos ventos” para o


segundo, “Chantecler”, apresenta uma sutileza de construção
temporal importante para a definição de uma relação ambígua
de Rodrigo com o contexto de Santa Fé e para com o contexto
nacional: ao final do primeiro capítulo, anuncia-se a volta de
Rodrigo, depois de sua passagem pelo governo; já o início de
“Chantecler” apresenta a sua chegada, mas em um recuo no
tempo, com um Rodrigo recém formado em Medicina, muito
antes de iniciar sua carreira política. Jovem, ambiciosa, dividida,
a personagem é retratada como uma personalidade, por vezes
impulsiva (“Digam para o Titi Trindade que de agora em dian-
te ele vai encontrar homem pela frente”, p. 155) diante dos ou-
tros, ou vacilante diante de si mesmo (“No caminho, Rodrigo
arrependeu-se do que havia feito. Será que nunca vou criar juí-
zo? Traço uma linha de conduta, sigo-a durante algum tempo e
de repente, sem saber como, caio no primeiro alçapão que me
armam,” p. 384). Esta última passagem, que revela uma cons-
tante no auto-retrato que Rodrigo faz de si mesmo, precede de
poucas páginas o relato em que o espanhol anarquista se dispõe
a pintar o famoso retrato: “Rodrigo, me gustaria de pintar tu re-
trato de cuerpo entero... No! De alma entera!” (p. 394). O qua-
dro pintado serve tanto como um reforço na auto-estima da
protagonista, quanto para intensificar a autocrítica. Rodrigo,
em alguns momentos, assimila a pose que assume no retrato:
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 127

“Havia naquela figura uma poderosa expressão de vitalidade.


(...) Sim, ele se reconhecia naquela imagem: a tela mostrava
não apenas sua aparência física, as suas roupas, o seu “ar”, mas
também seus pensamentos, seus desejos, sua alma”. (p. 402)
Como não se trata de um retrato à maneira do de Dorian
Grey, de Oscar Wilde, e na condição de recurso narrativo, per-
mite que a protagonista revele a sua autocrítica, como em um
espelho de imagem fixa. Em diversas situações graves, de atitu-
des contraditórias, Rodrigo se vê forçado a comparar a sua ima-
gem e sua personalidade: “Aproximara-se do piano, bateu dis-
traído numa tecla, tornou a olhar para o Retrato e quedou-se
num diálogo mental com o Outro.” (p. 515) Nesse procedimen-
to de uma alteridade fictícia, Rodrigo demonstra o seu egocen-
trismo, pois não há, na narrativa, a revelação efetiva de um alter
ego, como a presença física, concreta de sua própria imagem,
com a qual busca confrontar-se: “Entre o que ele era hoje e o
Rodrigo do Retrato havia já algumas diferenças de volume visí-
veis a olho nu. Era o diabo...” (p. 517) Nesse ponto, a preocu-
pação é com o aspecto físico, uma vez que estava apaixonado
por uma garota muito mais nova, a qual, em outras ocasiões já
estivera diante do quadro a admirar a pintura. O Retrato apare-
cia como um julgamento do tempo, a dizer que a personagem
não era mais o mocinho de 24 anos, no entanto, o que mais
preocupava Rodrigo era a sua forma física envelhecida. Algu-
mas páginas adiante, em razão do que se desencadeia com sua
paixão por Toni Weber, diante do retrato ele tem uma outra
reação: “Olhou para o Retrato, viu-se todo de negro, de colete
claro, plastrão carmesim, bengala e cartola – um dandy, um gen-
til-homem, um perfeito cavalheiro. No entanto tratara a esposa
como um brutamontes... Aos poucos foi se sentindo invadido
por uma fria vergonha.” (p. 520)
A forma está, aí, acompanhada de um conteúdo que reme-
te à personalidade, num sentido positivo, o que, para os even-
128 O tempo e o vento • 50 Anos

tos do presente, apresenta-se como uma condenação ao seu ato


de traição à esposa.
A visão política de Rodrigo aparece, nesse conjunto de as-
pectos, como um confuso retrato que reflete a sua impetuosida-
de e ausência de um corpo doutrinário consistente. Confun-
dem-se interesses particulares, com uma profunda, e talvez sin-
cera, dedicação ao próximo, o que, aos olhos do anarquista
Pepe, é mais um indício da sua formação burguesa. Em razão
do confuso quadro político rio-grandense em que a velha divi-
são entre federalistas e republicanos é posta em cheque por di-
visões internas de cada facção, numa conversa com amigos, en-
tre os quais um padre liberal, um militar positivista, Rodrigo faz
a sua profissão de fé liberal: “Pois permita que eu faça mais uma
vez a minha declaração de princípios. Creio nos Direitos do Ho-
mem e em todas as conquistas da Revolução Francesa. Creio na
liberdade, na igualdade e na fraternidade. Numa palavra: creio
na Democracia”. (p. 539)
No entanto esta crença não resiste ao seu olhar particular
sobre a condição do país, pois, algum tempo depois, diante de
um fato arbitrário cometido pela polícia, e com as desculpas ofi-
ciais apresentadas pelo presidente do Estado, ele reage, de-
monstrando sua inconstância: “- A desculpa de sempre! O que
acontece é que nossos governantes não toleram oposição. Nos-
sa democracia é apenas de fachada. Estou farto dessa farsa!” (p.
551) Voltando à discussão sobre o regime político ideal, a dis-
puta entre o padre e o militar não lhe interessam a ponto de
deslocar o seu pensamento obsessivo sobre a sua paixão do mo-
mento. Ou seja, o quadro político nacional não tem a dimensão
efetiva de uma luta consciente, e sempre que pode, coloca o in-
teresse particular, a visão pessoal, diante da conjuntura:

Rodrigo sentou-se pesadamente. Por que o padre provocava o co-


ronel? Assim não havia nenhuma esperança de que o homem se
calasse. Que importava a ele, Rodrigo, a ditadura positivista, o
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 129

Dr. Borges de Medeiros, Augusto Comte e a confusão mental do


Ocidente? Seu corpo ardia de desejo pelo de Toni. (p. 542)

Rodrigo chega ao ponto de usar como desculpa, no plano


doméstico, a fim de dissimular seu ato adulterino, a situação po-
lítica, dimensionando-a acima da sua própria consideração a
respeito. O seu encontro com Toni Weber coincide com um
fato político, em Porto Alegre: uma manifestação estudantil
contra a candidatura de Marechal Hermes foi dissolvida violen-
tamente pela Brigada Militar. Ao chegar em casa, para justificar
o fato de estar chegando àquela hora, alega à esposa que estava
às voltas para resolver a questão, alguns quilômetros distante de
sua cidade:

- Onde é que andavas?


- Às voltas com o Cel. Prates. Aconteceu uma coisa horrível em
Porto Alegre. (p. 552)

Fruto desse temperamento que lhe infunde, ora uma visão


positiva, pelo entusiasmo quase juvenil, ora uma crítica mordaz,
por sua arrogância burguesa, a visão que tem da questão políti-
ca não passa de arroubos intempestivos. Mesmo depois de ouvir
dos amigos uma consistente discussão desse tema, seus projetos
estão arquitetados a partir de seu estado particular, diante da
conquista da moça austríaca.

Rodrigo depediu-se dos amigos e entrou em casa. Agora uma es-


pécie de feroz alegria apoderava-se dele. Tinha em mente uma
efervescência de planos. Sim, era preciso lutar, tomar posição.
Deixaria o Partido Republicano, escreveria uma carta ao Dr. Fer-
nando Abbott aderindo aos democratas. Faria ali em Santa Fé e
arredores a propaganda de Ramiro Barcellos... Só de pensar na
luta seu peito como que inflava de esperança e alegria. (p. 552)

A mistura do compromisso social com os sentimentos, que


por fim é o fundamento de um caráter político populista de Ro-
130 O tempo e o vento • 50 Anos

drigo, está evidenciado com o diálogo que a personagem esta-


belece com o “outro” do retrato. Diante do mesmo, admira a
sua própria figura, no topo de uma coxilha, “a olhar o futuro
com certa arrogância”:

Tens cinco anos menos que eu, rapaz, mas não te invejo, porque
estás preso nessa tela e eu estou livre, e vivo, compreendes? Livre
e vivo! E, caso ainda não saibas, comunico-te que Toni é minha.
E que pretendo romper com o Partido e com o Senador. Daqui por
diante sou um homem novo. O que vai acontecer não sei, nem
quero saber, só sei que vai ser divertido. (p. 552)

É interessante como o autor também faz transparecer na


narrativa, o retrato que as outras personagens fazem da prota-
gonista, acentuando suas contradições e ambigüidade quanto à
sustentação de sua auto-estima diante da necessidade de uma
vida pública. O fato de, ao início da narrativa, a protagonista
não aparecer por estar preso a uma cama, torna-o inacessível,
tanto aos moradores de Santa Fé, quanto aos leitores. Através
dos depoimentos dos moradores da cidade, emerge “uma visão
controversa do herói: um primeiro retrato, o falado, vai dese-
nhando sua personalidade”.14 É muito significativo o fato de que
o “retrato”, primeiramente, seja feito por um estrangeiro. Ro-
drigo, inclusive, segundo a narrativa, tinha isso em considera-
ção, vendo “em Pepe - apesar de tudo quanto o espanhol pudes-
se ter de falso - um símbolo das coisas maravilhosas que estavam
para além dos horizontes de Santa Fé, do Rio Grande do Sul e
do Brasil. Don Pepe representava o Velho Mundo”. (p. 179) É
mais um elemento da faceta da personagem, porque, da visão
crítica e da expectativa que Rodrigo manifesta ao longo dos ca-
pítulos ressalta-se uma preferência acentuada pela realidade ex-
terna, principalmente a França, em detrimento da identidade e
dos destinos nacionais, filtrados pela ótica da desilusão política

14. idem, ibidem, p. 143.


O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 131

e das condições locais. Planejara ir para a França, onde teria


vida: “Que tinha ali em Santa Fé? A civilização da vaca, do sebo,
do charque. A boçalidade, a banalidade, a rotina, a pobreza de
espírito, o atraso dum século! Ou vou para Paris o ano que vem
ou me caso. Ou faço as duas coisas. Ou meto uma bala nos mio-
los.” (p. 333) Mas é de Don Pepe também que parte um julga-
mento definitivo, a partir da distinção entre a personagem real
e a do retrato: “Aquel, si es mi amigo. Mi único amigo. Pero tu,
tu eres un impostor!” (p. 419)
O lado político de Rodrigo aos olhos das outras persona-
gens ressaltam o seu aspecto vacilante e desprovido de princí-
pio. O Cel. Jairo Bittencourt, um positivista ferrenho, destaca
que lhe falta uma orientação doutrinária; diz ele: “O amigo tem
o sentimento de justiça social. O que lhe falta é uma base ideo-
lógica sólida. (...) E que melhor base existe para uma ação so-
cial do que o positivismo?” (p. 252) Em outra ocasião, fazendo
frente a esta avaliação do Coronel, Rodrigo tenta se justificar,
fazendo uma síntese para se eximir da falta de uma doutrina,
mas acentuando o seu narcisismo:

Teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazen-


do alguma coisa para minorar-lhes os sofrimentos. Não tens ra-
zão, meu caro Rubim. Podemos e devemos elevar o nível material
e espiritual das massas. Tenho uma grande admiração por Cé-
sar, Cromwell, Napoleão, Bolívar: foram homens de prol, dota-
dos de energia, coragem e audácia, figuras admiradas, respeita-
das e temidas. Mas para mim, meu caro Cel. Jairo é mais impor-
tante ser amado que respeitado e mesmo admirado. O tipo huma-
no ideal, o supremo paradigma, seria uma combinação de Napo-
leão Bonaparte e Abraão Lincoln. O ditador perfeito, amigos,
será o homem que tiver as mais altas qualidades do soldado cor-
so combinadas com as do lenhador de Illinois. O diabo é que a
bondade e a força são atributos que raramente se encontram reu-
nidos numa mesma e única pessoa. A menos que essa pessoa seja
eu – acrescentou, um pouco por brincadeira e um pouco a sé-
rio.(grifo nosso) (p. 312)
132 O tempo e o vento • 50 Anos

No pasquim da situação, o jornal A Voz da Serra, um artigo


publicado em resposta à provocação do próprio Rodrigo, pro-
duz uma caricatura da sua assimilação burguesa, do seu dandis-
mo, inadequado aos padrões provincianos de Santa Fé:

Que importância pode ter o Dr. Rodrigo Cambará (ai, doutor da


mula ruça!) esse mocinho pelintra que pensa conquistar Santa
Fé com sua “formidável” inteligência e seus dotes físicos? Ai, Ro-
driguinho! Onde foi que compraste tuas botininhas de cano de
camurça? E as tuas águas-de-cheiro? Quem confeccionou essas
roupinhas que te fazem o “dandy” mais completo de Santa Fé?
Teria sido o Salomão Padilha, teu amiguinho particular? Dizem
que trouxeste de Porto Alegre muitos caixões de bugigangas, e
que entre estas veio um gramofone, com chapas de Caruso. Será
que o grande tenor canta a famosa canção intitulada “Ismália
Caré”? (...) Ouvimos também dizer que o “dandy” trouxe muitos
vinhos e conservas estrangeiras. (p. 246)

Rodrigo mesmo manifesta o seu descompasso com aquela


cidade atrasada, algum tempo depois, em seguida aos resulta-
dos das eleições que deram a vitória ao Mal. Hermes: “Concluiu
que não valia a pena sacrificar-se por aquele burgo podre. Os
santa-fezenses simplesmente não queriam ser salvos...” (p. 291)
O último julgamento de um outro olhar sobre Rodrigo
vem do seu pai, que mantém a dignidade inabalável dos ho-
mens simples, aguerridos do tempo simbólico enfocado n’O
Continente. E é com esse código que desmerece a si mesmo a fi-
gura do filho, sobre o qual depositava a esperança da continui-
dade da luta política nos moldes de sua geração. Diante do fra-
casso no plano familiar, após as circunstâncias trágicas da mor-
te de Toni Weber, em que Rodrigo tinha sua parcela de culpa,
o autor constrói, com um simbolismo expressivo, a decepção de
Licurgo Cambará: “No coração de Licurgo havia uma praça e
no centro dessa praça um monumento: a estátua do jovem Dr.
Rodrigo Cambará, homem de caráter, médico humanitário,
bom filho, bom irmão, bom marido, bom pai, bom amigo. Ago-
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 133

ra ele próprio, Rodrigo, derribara a estátua com aquela confis-


são, atirara sua própria imagem ao barro”. (p. 586) O arremate
final do quadro de Rodrigo, pintado pelos olhos dos outros,
vem das palavras de seu filho Eduardo, em um discurso na fren-
te do Sobrado, em defesa de Luiz Carlos Prestes, e identificação
simbólica com a era getulista se explicita de todo:

Se eu tivesse de escolher um símbolo de todos os defeitos e vícios


dessa classe decadente, eu vos apresentaria a figura dum desses
pró-homens do falecido Estado Novo, dum egoísta que, em virtu-
de de sua vida de dissipações, orgias e indulgências tivesse fica-
do com o coração irremediavelmente abalado e à beira da morte!
(p. 608)

Floriano, na seqüência, revela-se chocado com a menção


acintosa: “Aquilo era uma referência clara ao velho Rodrigo”.
(p. 608) Depois do comício, procura o irmão para dizer-lhe que
considerou de mau gosto o seu gesto. Eduardo então se volta
para o retrato de Rodrigo e o aponta como o símbolo das coisas
que eles, os comunistas, combatem: “Olha só a empáfia, a vaida-
de...” (p. 610) Como o outro falasse em voz alta, Floriano o re-
preende, em face à possibilidade de o pai estar ouvindo.

3 – A identidade

O que está implicada sob esta rubrica é a noção de “identi-


dade nacional”, como um esboço do Brasil que emerge, ou se
insinua através dos eventos ficcionais, constituindo uma segun-
da camada no quadro pintado por Erico. Pouco resta no Dou-
tor Rodrigo Cambará de seu homônimo da primeira parte da
trilogia, o Capitão Rodrigo, alicerçado no código de honra do
gaúcho. Caudilho urbanizado dos anos 30, alimentado no opor-
tunismo político, o segundo Rodrigo não alcança a adequação
134 O tempo e o vento • 50 Anos

entre o pensamento político, pretensamente liberal, e a ação.


Enquanto o primeiro era um protótipo da velha tradição, o úl-
timo é um emblema da situação política de sua época. “Na ver-
dade, esta personagem não é mais do que uma caricatura da ti-
rania getulista e, significativamente, a narrativa denuncia a sua
instabilidade afetiva colocando-a no primeiro plano justamente
quando, acompanhando o líder vitorioso, embarca para o Rio
de Janeiro”,15 assinala Flávio Loureiro Chaves, considerando
ainda que esta personagem se constitui na verdade em simula-
cro do antepassado.
Em várias passagens, é possível detectar os indícios dessa
afinidade identitária, como alegoria. A primeira, como já se des-
tacou, a ênfase sobre o “retrato”, com uma relação à imagem
oficial do presidente, consagrada pela imposição do Estado
Novo. Outra expressão comum associada ao nome de Getúlio é
o apelido “Velho”, usado na primeira cena, na reação de uma
pessoa comum ao insulto que um comerciante faz com a que-
bra do retrato, expressão que praticamente se repete, pela boca
de um motorista, no capítulo final: “- Mas um dia ele volta. Pode
demorar um ano, dois, quatro... mas o Velho volta e essa corja
toda ainda vai beijar a mão dele.” (p. 599) Imediatamente, na
seqüência da narrativa, em que Floriano se encontra com Don
Pepe, este revela sua impressão de que o filho é muito seme-
lhante ao pai, ressalvando: “- Mas o parecido é só no físico, sa-
bes? Te falta algo. Fogo. O fogo que o Velho tem no olhar”. (p.
600) O adjetivo é usado em seguida para identificar, entre os fi-
lhos de Rodrigo, a figura paterna. Floriano se dirige ao outro:
“- Por que não esperas mais uns dois ou três dias pra fazer esse
comício? O velho não está nada bem...”E logo em seguida,
Eduardo também usa a mesma forma: “Se o velho não quiser es-
cutar, que tape os ouvidos com algodão.” (p. 602). Nas reminis-
cências que Floriano faz, a respeito de sua família, volta a se re-

15. CHAVES, Flavio L. Erico Verissimo: realismo & sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 80.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 135

ferir em pensamento ao pai, com o mesmo termo, com a dife-


rença que, nesse caso, o autor usa a inicial maiúscula, como o
faz para Getúlio: “Certo ou errado, o Velho vivera com plenitu-
de, tivera a coragem dos próprios defeitos e desejos”. (p. 604)
Uma outra referência recorrente na obra é a identificação
de Rodrigo, em razão de suas obras de caridade, como o “pai da
pobreza”, modo pelo qual lhe adjetiva tia Vanja, depois de saber
de suas atividades de médico entre os mais necessitados.(p.
380) O mesmo título foi conferido a Getúlio, em razão de sua
política populista, o que o próprio Floriano menciona: “O Esta-
do Novo produzira o Pai dos Pobres”. (p. 610)
Segundo a indicação de Flavio L. Chaves, Rodrigo tem uma
identificação com o perfil ditatorial de Getúlio Vargas, de modo
que a sua representação em O Retrato é feita dentro de um qua-
dro em que o contexto nacional aparece na forma de alegoria.
Ainda que a identificação com o presidente Vargas pontue a
narrativa, a relação de Rodrigo com a realidade nacional é con-
traditória, uma vez que, de resto, a própria personagem apre-
senta uma personalidade multifacetada.
Dentro de seu perfil burguês, a visão que Rodrigo tem do
contexto nacional, do país, é de certa forma condicionado por
uma valorização do ambiente estrangeiro, especialmente da
França, em detrimento da cultura, da natureza, dos destinos do
país. Rodrigo não é necessariamente cético, mas, diante de seu
perfil egocêntrico, elege como espaço um lugar que não é o do
atraso em que se vê cercado, tanto em sua cidade natal, como o
resto do Brasil. A uma certa altura da sua luta política, diante
dos sucessivos fracassos pessoais neste terreno, e diante do qua-
dro político nacional, contrapõe a disputa pela força à possibi-
lidade de evadir-se do campo de luta, ou seja, do país: “E o pior
– acrescentou – é que o Marechal mandou à Câmara uma men-
sagem pedindo o estado sítio! (...) É o fim de tudo, a debacle
moral e material do País, o descalabro completo. O que as pes-
136 O tempo e o vento • 50 Anos

soas decentes têm a fazer é emigrar, homem. O remédio é fazer


uma revolução e derrubar esse sargentão.” (p. 408) Em seu re-
torno à cidade natal, trouxe de Porto Alegre, onde cursou Me-
dicina, uma série de produtos e materiais que deixam clara esta
preferência pelo estrangeiro, motivo de reação dos moradores
de Santa Fé, que representam no âmbito da narrativa, o contra-
ponto nativo, da resistência, tanto em relação à tradição, quan-
to à identidade.
Já se disse que Rodrigo, por seu narcisismo, coloca em mui-
tas ocasiões o seu interesse, o seu modo particular de ver o
mundo, acima de uma consideração, vamos dizer, patriótica.
Não é por outra razão que Erico dá título ao maior capítulo de
O retrato de “Chantecler”, personagem de Rostand, em uma
peça francesa, cuja vinculação, como alegoria, faz convergir tan-
to a figura de um administrador político soberano, que com-
porta a identidade mais flagrante de Vargas, e o egotismo de
Rodrigo, com sua supervalorização das coisas francesas. Ao ma-
nifestar o desejo de pintar o retrato de Rodrigo, Don Pepe já
havia espressado, quanto ao possível nome do quadro: “Chante-
cler! Si, tu eres el Gallo”. (p.395) Em diversas passagens, revela-
se um apaixonado pela França, ou pela vida parisiense: “Um dia
hei de visitar Paris - prosseguiu, depois de breve silêncio. - Mas
enquanto esse dia não chegar, hei de fazer o possível pra trazer
um pouco de Paris pra Santa Fé”. Tinha trazido consigo uns
quinhentos livros franceses, feito a assinatura de dois anos de
L’Illustration. “A França é minha segunda pátria” – emendava –
“Ah! Paris... Lá é que está a verdadeira civilização”. (p. 176).
Quando da visita oficial do candidato militar às eleições de
1910, Marechal Hermes a Santa Fé, a agitação, a música, fize-
ram despertar uma emoção confusa na personagem, em que
imagens do sentimento de nacionalidade revelam a ambigüida-
de que havia muito acalentava o gosto pessoal pelo estrangeiro:
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 137

E um passado inteiro feito de textos e gravuras escolares, discur-


sos patrióticos, romances de capa e espada, hinos, heróis, márti-
res, clarinadas, apoteoses; todo um passado de mitos que Rodri-
go julgava mortos, ergueu-se como um vagalhão e arrebatou-o,
atirando-o, por um mágico segundo, às prais da infância. Lo-
mas Valentinas... Riachuelo... Itororó... Quem for brasileiro que
me siga!... Com a cavalaria dos Farrapos conquistarei o mun-
do!... Felipe Camarão... O estudante alsaciano batendo no pei-
to: A França está aqui dentro!... O tamborzinho inglês que não
sabia tocar retirada... Ó auriverde pendão de minha terra, que
a brisa do Brasil beija e balança! (p. 279)

Quando o quadro político do país se agrava, Rodrigo vai


perdendo o interesse pela luta em favor das causas nacionais, e
a solução que imagina para a sua frustração política é a fuga do
espaço brasileiro, embora a conjuntura internacional, com a
Primeira Guerra, imponha certos obstáculos: “Talvez estivesse
precisando de novos amigos, de outros horizontes e interesse:
duma viagem em suma. Mas viajar para onde? Para a Europa era
impossível. Os Estados Unidos, com suas chaminés a vomitar fu-
maça e fuligem (...) Buenos Aires era uma cidade sem alma.
Montevidéu nem chegava a ser uma cidade...” (477). Rodrigo
também encontra uma justificativa para o seu envolvimento ex-
traconjugal, dentro desse quadro de oposição entre o nacional
e o estrangeiro: “Toni era a Europa.” (p. 517) Diante da possi-
bilidade real de derrota do candidato civilista, alimenta a sua
preferência “nacional” pela França: “Os lampiões alumiavam lo-
bregamente a rua. Rodrigo sentiu saudade de Porto Alegre, de
teatros, cafés, cabarés e pândegas. Pensou em Paris e decidiu
que em princípios de 1911 estaria dentro dum fiacre, rodando
pelo Bois de Boulonge. Se Hermes fosse eleito, passaria quatro
anos na Europa...” (p. 292)
Por vezes o nacional é criticado por uma revelação de pre-
ferência às coisas estrangeiras: quando um disco que havia en-
comendado chega quebrado, reage, com indignação: “Então es-
138 O tempo e o vento • 50 Anos

ses animais não vêem que está escrito no caixão. Frágil! Frágil!
(...) Mas não sabem ler. São analfabetos, irresponsáveis. Este
país está perdido”. Ao ver que a música da outra face do disco
era Miserere, fica ainda mais furioso: “Miseráveis! Cretinos! O
Brasil não tem mais compostura. Só o Mal. Hermes. É o que
este país merece.” (p. 209)
Pelo que se pode observar, não é exatamente movido por
um senso cívico que Rodrigo toma decisões políticas, nem se-
quer por um bairrismo, no que diz respeito à sua relação com a
comunidade local, santa-fezense. Diante da indagação do pai
quanto à eficácia de sua campanha civilista pelo jornal, manifes-
ta uma crença ingênua na retórica panfletária: “Claro que es-
tou. Se não estivesse, o jornal nasceria morto”. (p. 199), defen-
dendo uma posição nacional na defesa do candidato à presi-
dência. No entanto, algumas páginas adiante, já revela o verda-
deiro sentido de sua militância: “Sim, era médico e pretendia
levar a sério a profissão, cumprir à risca o voto de esculápio.
Mas o que interessava no momento - empurrando a medicina
para um plano inferior - era sua luta contra o Trindade”. (p.
229,230) A compreensão da missão política de Rodrigo decorre
de sua experiência a partir de Santa Fé, a qual, em muitas oca-
siões, serve de referência para o julgamento do quadro nacio-
nal. Ao ver uns cavaleiros chegando do interior para as eleições,
condicionados pela orientação do Intendente a votar no candi-
dato governista, Rodrigo, da janela de sua casa, indignado, mur-
mura: “Isto é um país de botocudos. Só a bala!” (p. 288) A mes-
ma avaliação, do local para o nacional, procede no caso em que
ele socorreu uma pessoa, e tomou partido desta, em razão de a
mesma ter sido agredida ao dar um “viva” ao candidato Rui Bar-
bosa: “Vejam o que o beleguim fez neste pobre homem! Isso
não pode ficar assim. Vou mover um processo contra o bandi-
do. Que país é este em que a polícia em vez de ser uma garan-
tia de vida é um elemento de terror?” (p. 170) Mais adiante, ao
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 139

justificar a sua atitude para Maria Valéria, que queria repreen-


der os seus arroubos, expressa-se: “Deixe, titia. Não tem impor-
tância... Imagine, só porque ele deu um viva ao Dr. Rui Barbo-
sa... Em que país estamos? Na Cochinchina?” (p. 171) Já, em ou-
tro momento, ouvindo uma discussão da conjuntura nacional
entre seus amigos, esboça um certo enfado por ela, diante do
que se lhe apresenta na esfera municipal: “Não estava interessa-
do naquela guerra hipotética entre a Argentina e o Brasil, mas
sim em sua guerra particular contra Titi Trindade e seus asse-
clas”. (p. 244) Em razão de um acontecimento grave nas elei-
ções, historicamente fraudulentas naquela época, em que foi
morto um correligionário, Rodrigo redigiu um telegrama de
protesto, a ser enviado ao Presidente da República, “acusando
o Trindade e seu delegado de polícia como responsáveis pelo
conflito, e exigindo justiça”. Mas a sua decepção se desenha a
partir da pouca adesão dos outros membros do partido:

Saiu depois de casa em casa a colher assinaturas para o memo-


rial. Todos os federalistas assinaram sem hesitar; alguns republi-
canos dissidentes fizeram o mesmo; mas muitos foram os que se
esquivaram, usando de subterfúgios ou dizendo claramente que
não queriam meter-se naquele embrulho. Ao fim do dia o telegra-
ma contava apenas com quarenta e três assinaturas. Rodrigo,
que esperara conseguir no mínimo cento e cinqüenta, estava de-
sapontado. SantaFé era um caso perdido. (p. 294)

Em outras, a situação pessoal, íntima – agravada pelo nar-


cisismo, condiciona uma visão positiva ou negativa do quadro
nacional. Nesse sentido, é muito significativo o diálogo que Ro-
drigo tem com a esposa, Flora, na cama, já quase ao final da nar-
rativa, quando chega em casa após o primeiro encontro com
Toni Weber e depois de passar na intendência para se inteirar
de um ato violento da Brigada Militar contra estudantes que
protestavam contra a candidatura do Marechal. Rodrigo estava
excitado por esses casos em conjunto, e especialmente por ter
140 O tempo e o vento • 50 Anos

conseguido dissimular a sua traição diante da mulher, usando os


fatos políticos como anteparo. É com esse espírito que senten-
cia, ao deitar-se: “Este país não tem compostura”. (p. 552) Mui-
to tempo antes, em função da derrota de Rui Barbosa, já havia
revelado a Maria Valéria os seus planos estabelecendo uma in-
versão de prioridades: “Daqui por diante pretendo cuidar da
profissão, do consultório, da farmácia. O resto que vá pro diabo!
(...) Palavra de honra. Esse país não tem jeito. Só uma revolu-
ção”. (p. 299) Em uma festa, logo em seguida, reforça a sua de-
cisão, misturando em sua idéia de conjuntura, o local e o nacio-
nal: “É para comemorar a minha retirada da vida política (...)
Santa Fé não merece o nosso sacrifício. Os povos têm o governo
que merecem, não é Cel. Jairo? Sejamos egoístas. Bebamos vi-
nhos estrangeiros e comamos caviar. A vida é curta. – Ergueu a
taça”. (p. 303) Ainda no mesmo evento, sob o efeito das bebidas,
desenvolve a sua tese, para dois militares positivistas, de que o
país estava perdido, para ouvir a reação deste: “Perdido qual
nada! – protestou o coronel. O Brasil tinha um futuro fabuloso.”
(p. 304) Já o Tenente Rubim defendia, para a redenção nacio-
nal, a ditadura: “O Brasil – continuou – é um país novo e infor-
me, que só poderá ser governado mediante uma ditadura de fer-
ro”. (p. 305) A reação de Rodrigo ia cada vez mais se encami-
nhando para o desinteresse da ação política, diante do que ocor-
ria no resto do país, optando pela sua condição particular:

Rodrigo atirava longe os jornais num gesto teatral com o qual


queria dar a entender que estava não só desiludido da política
como também indiferente ante os resultados daquela farsa eleito-
ral. Meter-se em política seria não só perder tempo como também
fazer papel de tolo. De resto, não trocava seu prestígio de médico
pela oposição do Trindade ou de qualquer deputado estadual ou
federal. Sentia-se forte, feliz e de consciência tranqüila. (p. 322)

Erico Verissimo usa a mesma alegoria do “retrato” para re-


presentar esta mudança gradativa de Rodrigo em relação a sua
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 141

missão política condicionada por sua vida pessoal, o que lhe in-
funde caráter muito peculiar e ambíguo com a conjuntura. Ao
assumir o seu papel de dono do Sobrado, manifesta o interesse
de fazer modificações: “Se dependesse de mim – murmurou Ro-
drigo – eu tirava também aquele retrato do Júlio de Castilhos da
parede do escritório (...) Não é que eu não admire o homem...
Mas acontece que esse retrato tem qualquer coisa de cemitério,
de mausoléu. Temos de alegrar esta casa. Precisamos de cor!”
(p. 298) Para efetivar a sua vontade, revela sua preferência por
elementos estrangeiros: “Estava pensando em quadros com mu-
lheres nuas – nus artísticos, naturalmente – reproduções de
obras de pintores famosos como Rubens, Ticiano, Manet, Re-
noir... Ah! Como ele gostaria de ter no Sobrado as sugestivas
pinturas de Toulouse-Lautrec, tão típicas da galante vida pari-
siense!” (p. 298)
Toda essa contradição e espírito oportunista pode ser enfa-
tizado pelo modo como Erico retrata a relação de Rodrigo com
o senador Pinheiro Machado. Quando este visitou Santa Fé,
sentiu-se orgulhoso desfilando com o mesmo pelas ruas da cida-
de, às vistas de todos, ainda que ficasse em dúvida com a tenta-
tiva do senador em neutralizar a sua ação local, lisonjeando-o
com a perspectiva de uma carreira nacional, “em páreos mais
importantes”:

Não sabia se devia indignar-se ou envaidecer-se ante aquelas pa-


lavras. Amanhã poderia fazer o que bem lhe aprouvesse: ressus-
citar A Farpa, romper fogo de novo contra a situação, atacar o
próprio Pinheiro Machado... (esta idéia lhe dava uma reconfor-
tante sensação de força, por mais improvável que parecesse).
Agora, porém, ele, Rodrigo Cambará, simplesmente se entregava
ao esquisito prazer de ser cortejado por uma figura do porte do
“Condestável da República”. (p. 374)

Mais adiante, devido às transformações abruptas de sua


aventura pessoal, já não tem a mesma dimensão dos eventos na-
142 O tempo e o vento • 50 Anos

cionais. Ao ler um discurso do senador, teve ímpetos de lhe es-


crever uma carta, solidarizando-se com a sua figura, diante das
ameaças de assassinato, mas deixou esmorecer a vontade: “Fica
para outro dia – decidiu. Mas esse dia não chegou. Rodrigo es-
queceu o Senador, pois Toni Weber absorvia-lhe os pensamen-
tos, fazendo-o alternadamente feliz e desgraçado”. (p. 561)
Quando Pinheiro Machado foi assassinado, Rodrigo de-
monstrou a sua indignação, produzindo um julgamento do
país, a partir dos elementos do episódio: “Que estupidez! - ex-
clamou Rodrigo - Uma faca comprada a um negro por seiscen-
tos réis cortou a vida do maior político do Brasil! E não me ad-
mirarei se o bandido for absolvido. Este país não cria vergonha,
o que ele merece mesmo é um ditador da fibra do Senador pra
botar a canga no pescoço da canalha!” (p. 567) No entanto, ao
se retirar para o Angico, em razão do suicídio de Toni, há uma
mudança na ordem das importâncias que empresta aos eventos
pessoais e conjunturais, em virtude de estar mais sensibilizado e
abalado pela morte da amante. Diante da pergunta do pai
quanto à sua visita inesperada, dá como desculpa o abalo pela
morte do senador, para em seguida refletir: “Sim, ele sentira
sinceramente a perda de Pinheiro Machado, mas por que razão
essas palavras agora soavam como uma mentira?” (p. 585) O
que dá bem uma perspectiva do modo como a protagonista é
composta em sua dimensão particular sustentando indícios de
uma visão muito especial quanto ao quadro político nacional da
época em que é composta a sua vivência.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 143

4. Conclusão

Erico Verissimo, como atestam inúmeros estudos, não este-


ve diretamente vinculado ao projeto nacionalista do regionalis-
mo de 30. O próprio autor, em suas memórias, testemunha que
não estava no escopo do seu trabalho demarcar a condição na-
cional.16 Contudo, como se pretende demonstrar desde o início
deste ensaio, há um Brasil que emerge das entrelinhas da nar-
rativa, com um julgamento crítico de um período histórico bra-
sileiro definido, tanto no que concerne ao tempo no âmbito
dos eventos narrativos, quanto no que se refere ao tempo da
produção. A história, como se viu, não serve de pano de fundo
para a ação da narrativa: está presente, no entanto, na forma da
alegoria do “retrato”. Tanto é assim que há um lapso de tempo
na narrativa, nesta parte da trilogia, que não tem narração efe-
tiva. A história dá um salto no tempo histórico, justamente
aquele em que o próprio Rodrigo está vinculado ao governo ge-
tulista, cujos fatos só aparecerão ao nível da narrativa n’O Arqui-
pélago, e assim mesmo do ponto das aventuras da própria perso-
nagem protagonista, em sua experiência ficcional.
Observe-se a sugestão de Regina Zilberman de que a estru-
tura narrativa de O Retrato não satisfez o autor, que assim o ex-
pressou,17 justamente porque, ao contrário de O Continente, que
fecha um ciclo, esta segunda parte desemboca, necessariamen-
te, n’O Arquipélago, o qual representa desse modo uma solução
de continuidade à saga. Ao invés de narrar diretamente os fatos,
e proceder em sua menção uma análise crítica, o autor optou
por indiciá-los em eventos ficcionais, colocando neles toda uma
carga de julgamento.

16. Palavras de Erico: “nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda
tenho para com esse gênero literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos ca-
sos, com um certo odor e um imobilismo anacrônico de museu”. Solo de clarineta. Porto Alegre:
Globo, 1974, p. 288.
17. Idem, ibidem, p. 306.
144 O tempo e o vento • 50 Anos

Não é possível afirmar que Erico tenha tido alguma in-


fluência da letra da marchinha de carnaval “O Retrato do Ve-
lho”, ainda que revele ter começado a produzir O Retrato em
pleno carnaval de 50 – a referida canção é de 51. Que tenha
acrescentado este dado posteriormente também não é possível
identificar, mas é certo, pela estrutura da obra, que o “retrato”
é o ponto nodal, sustentáculo dos eventos narrativos, assim
como a era Vargas pode ser resumida pela presença do seu re-
trato, tanto nas paredes dos gabinetes oficiais, como nas das ca-
sas particulares e estabelecimentos comerciais dos anos 30 - 45
e posteriormente, 51-54. Erico teve, seguramente, a mesma ins-
piração que os letristas da marchinha, na recuperação da fase
getulista do Estado Novo, em razão de ser “o retrato” uma mar-
ca definitiva do culto ao personalismo que reconduz Getúlio ao
poder, com uma plataforma populista. Nesse último caso, o sen-
so crítico está acima da propaganda, que é o motivo central no
caso da composição da referida música.
Moldado pelo mesmo caráter público, Rodrigo aparece
como uma cópia de Vargas, sendo representado na ficção como
um participante em seu governo. Em se tratando apenas desta
parte específica da trilogia, O Retrato, a sua composição não
comporta a recomposição da História brasileira, o que implica
um valor alegórico da personalidade ficcional central da narra-
tiva e os eventos em que está envolvido. Erico não estaria mais
sob os efeitos da censura do Estado Novo em 50, quando come-
ça a escrever O Retrato, contudo propõe-se a uma revisão da His-
tória, como pano de fundo dos eventos do plano fictício, justa-
mente de um momento histórico cujos atores estão outra vez no
poder. Para isso lança mão da alegoria, configurando em Rodri-
go Cambará os traços de caráter e ações políticas contraditórias
que pretendia enfocar no próprio Getúlio dos anos 30. Os even-
tos políticos, propriamente, deste, não estão explicitados na
narrativa em questão, e só vão aparecer na seqüência da trilo-
gia, que Erico começa a produzir em fins de 57.
O r e t r ato e a i d e n t i d a d e 145

O autor só conseguiu trabalhar, segundo seu testemunho,


os eventos históricos de 1923 a 1945, depois de um distancia-
mento físico do país, cumprindo missão cultural na OEA. Nos
dados que constam de seu acervo, esse período seria “o mais di-
fícil de escrever, o mais perigoso e por tudo isso o mais fascinan-
te”.18 Erico fugiu de representá-lo em O Retrato, recheando o
texto da narrativa com longas digressões das personagens sobre
a realidade cultural, tertúlias e debates ideológicos, que desfi-
guram a trama, impondo ao projeto ficcional o caráter frouxo
e pouco consistente – na comparação com as duas outras partes
– na avaliação dos críticos e do próprio autor.19 Onde o escritor
encontra refúgio e se sente seguro para revisar os eventos que
marcaram a história nacional do Estado Novo é na alegoria, na
qual persiste um distanciamento entre o conteúdo explicitado
na trama e o conteúdo latente, para usar um termo do concei-
to freudiano de trabalho onírico, para o qual Erico remete a sua
avaliação e julgamento dos aspectos históricos vislumbrados no
universo fictício em que se move Rodrigo Cambará.
Na acepção de Walter Benjamin, que aqui, contudo, não
segue numa acepção estrita, a alegoria empreende a façanha de
compor possibilidades não constituídas da História, revelando a
sua facies hippocratica. E isso com a missão de superar a censura.20
Talvez, neste caso do autor de O Tempo e o Vento, não fosse a cen-
sura oficial da ditadura Vargas, já um pouco distante, que o im-
pedisse de ser explícito, mas uma auto-censura em relação ao
projeto de recompor a história rio-grandense e dimensioná-la
nacionalmente, sem que para isso trouxesse a antipatia de patrí-
cios, tanto do sul como do centro-norte do País – vide a afirma-
ção de Rodrigo com relação a Pinheiro Machado que defendia
a candidatura de Hermes da Fonseca: “O que eu temo – disse

18. Erico Verissimo. In: BORDINI, M. da Glória. op. cit., p. 140,141.


19. ide, ibidem, p. 138,139. Vide Solo de clarineta, ed. cit., p. 306, e .
20. BENJAMIN, W. Documentos de cultura: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 22.
146 O tempo e o vento • 50 Anos

Rodrigo – é que o Senador Pinheiro acabe chamando sobre o


Rio Grande a antipatia do resto do Brasil”. (p. 415) Só assim ob-
teve segurança para poder revelar, seguindo o conceito benja-
miniano, a verdadeira face, ou melhor a caveira,21 da História
brasileira. Esta, vivida nos anos que transcorreram após a Revo-
lução de 30 e durante a implantação e vigência do Estado Novo,
com tudo o que houve de contraditório neste, se assemelha ao
quadro em que um tipógrafo é convencido à força a trabalhar
no jornal de Rodrigo. Diante do pobre rapaz, que tem compro-
misso com o inimigo político do patrão, Rodrigo declara, com
o revólver em punho: “Estamos num país livre, onde cada qual
faz o que bem entende. E você vai trabalhar por bem ou por
mal”. (p. 224)

* Doutor em Letras, UFSM.

21. “A história, com tudo o que desde o início ela tem de extemporâneo, sofrido, malogrado, se ex-
prime num rosto, não, numa caveira”. idem, ibidem.
“A paisagem era civilizada, mas os homens não. Tinham rudes almas, sem complexidade, e eram
movidos por paixões primárias.”
O Continente – A Teiniaguá
A Imigração Alemã em
O Tempo e o Vento

Lúcio Kreutz*

Em princípios de 1833 Santa Fé foi sacudida por uma grande


novidade: a chegada de duas carroças conduzindo duas famí-
lias de imigrantes alemães, as primeiras pessoas desta raça a pi-
sarem o solo daquele povoado. Os recém-chegados acamparam no
centro da praça, e em breve toda gente saía de suas casas e vinha
bombear. (O Continente, p. 248).

Ao examinar a maneira como Erico Verissimo retrata a imi-


gração alemã em O Tempo e o Vento, parece-me oportuno explici-
tar previamente alguns aspectos que, em meu entendimento,
influenciaram o autor na sua concepção do romance e do papel
que atribuiu à imigração. Da mesma forma, também aponto
para algumas dimensões relacionadas com o tema e que certa-
mente condicionaram o foco de interesse de minha leitura. Tra-
ta-se de esclarecer pelo menos em parte que conjunto de fato-
res deve ter levado o renomado escritor a traçar determinado
perfil dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e que mo-
tivações e filtros levaram-me a perceber e a deixar de perceber
150 O tempo e o vento • 50 Anos

ênfases do autor. Tanto o escritor quanto o leitor exercem sua


criação e leitura a partir de um contexto específico, com um
conjunto de elementos que permitem ênfases, condicionam si-
lêncios. No presente caso minha tarefa é bastante complexa
porque o escritor, reconhecido pela sua acurada sensibilidade
artística, pode ter criado sentidos e matizes talvez nem sempre
percebidos na leitura.
Em relação a meu ponto de vista, isto é, um certo referen-
cial que me conduz na leitura, entendo que a identidade étnica
não é uma realidade muda. Ela é uma das instâncias fortes no
engendramento do processo histórico, mesmo quando margi-
nalizada no imaginário nacional. Em cada grupo étnico há uma
história de lutas pela determinação de suas metas e valores. No
entanto, o étnico não é algo constituído e estável, mas é funda-
mentalmente um processo, um eixo desencadeador de conflitos
e interações (Betancourt, 1994; 1997). Etnia, o pertencimento
étnico, perpassa os símbolos de uma sociedade, sua organização
social, de forma semelhante ao que Scott (1990) afirma em re-
lação ao gênero. Isto significa que o processo histórico é etnici-
zado, atravessado pela etnia. A sociedade caracteriza, classifica
e decide sobre o espaço dos grupos étnicos, fazendo-o com dis-
putas e conflitos.1 Talvez seja mais apropriado dizer que a dinâ-
mica dos grupos étnicos, suas afirmações e reações, interferem
na reconfiguração do processo social. Isto quer dizer que as es-
tratificações e divisões feitas em termos de etnia também são
fundantes na dinâmica social.
Não parece adequado falar em identidade étnica, pois
pode ensejar a compreensão de que o étnico é algo constituído,
pronto, estável. Ao contrário, ele é algo em constante reconfi-
guração, é um processo identitário. E esta reconfiguração pro-
cessa-se mais rapidamente em situação de contatos interétnicos

1. A este respeito veja-se estudos de Epstein, Sutton, Blumer, apud Pujadas (1993).
a imigração alemã em o tempo e o vento 151

mais freqüentes.2 Por outra, o processo identitário de um grupo


étnico também não se articula apenas a partir de dentro do gru-
po. Há aí também o concurso da nominação, isto é, os grupos
étnicos também vão internalizando em seu processo identitário
a forma como são nomeados e caracterizados pelas outras et-
nias.3 O processo identitário implica também um processo rela-
cional.
Quanto aos referenciais de Erico Verissimo para traçar sua
compreensão da imigração alemã em O Tempo e o Vento, certa-
mente é oportuno lembrar que elaborou o romance entre 1947-
1962 e, segundo depoimento seu, já vinha alimentando esta
idéia desde 1935. Em 1947 Erico já havia convivido com descen-
dentes de imigrantes, tinha amigos entre os mesmos e sua espo-
sa Mafalda Volpe, filha de Emma Halfen Volpe, também tinha
ascendência alemã. Em 1941, passou três meses nos Estados
Unidos da América e de 1943-46, indisposto com a Ditadura
Vargas, viveu nos Estados Unidos, lecionando literatura em Uni-
versidades e dando palestras. A partir de 1953 passou três anos
como adido cultural da União Pan-Americana em Washington,
função que lhe propiciou diversas viagens pelos Estados Unidos
e pelos países da América Central e do Sul. Isto significa que, ao
compor O Tempo e o Vento, Erico Verissimo já havia conhecido e
convivido com outros grupos étnicos, além dos do Rio Grande
do Sul, que já são bastante diversificados, como povos indíge-
nas, negros, lusitanos e variado grupo de imigrantes, entre os
quais italianos, alemães, poloneses, judeus, sírio-libaneses, japo-
neses e outros.
Além de fatores diretamente vinculados com sua vivência
cotidiana, Erico Verissimo observava profundas transformações
de ordem econômico-social e política no Rio Grande do Sul. Sa-

2. Veja-se a respeito HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Ed., 1997.
3. Veja-se estudos de Seyferth em relação à forma como foi se constituindo a reconfiguração étnica
entre teuto-brasileiros.
152 O tempo e o vento • 50 Anos

bia ele pelo censo de 1920 que havia um número praticamente


equivalente de habitantes entre a metade Sul e a metade Norte
do estado, traçando-se uma linha imaginária de São Borja a
Osório, excluindo-se o município de Porto Alegre. E que pelo
censo de 1940 o número de habitantes da metade Norte se tor-
nara 50% superior ao da metade Sul, sendo que todos os indi-
cadores sócio-econômicos também apontavam para o maior de-
senvolvimento da metade Norte, com exceção dos que haviam
cursado ensino superior, predominantes na região Sul (Gertz,
1999).
Em 1940 a população gaúcha era de 3.320.821 pessoas, das
quais 393.934, acima de 10% do total, falavam alemão em casa.
Destes falantes em alemão, 375.731 já haviam nascido no Brasil
(Giron, 1980). A imigração estava diretamente vinculada com
estas transformações no estado e também no Brasil. A partir do
século XIX expressivo número de imigrantes de diversas etnias
contribuiu para a formação de um pluralismo étnico e cultural
mais visível nas regiões Sul e Sudeste. Os alemães formaram a
primeira corrente imigratória para o Brasil, a partir de 1824,
em São Leopoldo, RS. E até 1947 entraram no Brasil em torno
de 253.846 imigrantes alemães, número pouco expressivo se
comparado com algumas outras etnias. Os italianos, tendo vin-
do a partir de 1875, formaram o contingente maior: 1.513.151
imigrantes. No mesmo período vieram 1.462.117 portugueses,
598.802 espanhóis, 188.622 japoneses (a partir de 1908),
123.724 russos, 94.453 austríacos, 79.509 sírio-libaneses, 50.010
poloneses e 349.354 de diversas nacionalidades (Carneiro,
1950).4
Roche (1969) estima que o Rio Grande do Sul tenha rece-
bido um total de 75.000 imigrantes alemães entre 1824-1939. É

4. Viotti da Costa (1977); Bruit (1982); Schorer Petrone (1982) e Diegues Júnior (1960;1976), entre
outros, também tratam da questão do número de imigrantes para o Brasil. Alertam que não se tem
estatística exata a respeito e que os números devem ser tomados como aproximação. Carneiro diz
que os dados levantados por ele talvez não contemplem o número total de imigrantes, mas que em
todo caso não pecam por exagero.
a imigração alemã em o tempo e o vento 153

um número pouco expressivo dentro de um contexto geral de


imigrantes no país. Porém o que conferiu maior visibilidade a
algumas etnias foi o fato de terem se estabelecido em núcleos
etnicamente homogêneos, mantendo as tradições culturais de
origem. É o caso dos alemães, poloneses e em parte italianos e
japoneses, especialmente nos três estados sulinos. Imigrantes
espanhóis e portugueses, instalando-se mais em zonas urbanas,
não deram tanta ênfase à manutenção de características étnico-
culturais.
Erico Verissimo, ao compor O Tempo e o Vento, tinha conhe-
cimento do significado da imigração tanto no Brasil quanto na
América anglo-saxã, onde já vivera alguns anos. Da imigração
européia para a América, só 24% tinha vindo para a América do
Sul, os outros 68% haviam ido à América anglo-saxã, aspecto
bem conhecido por ele.
No século XIX o imigrante ainda vivia bastante isolado no
Rio Grande do Sul. A liderança política e econômica provinha
da região das estâncias com estrutura latifundiária. A partir do
século XX, com a crescente industrialização e o aumento da
produção na região Norte do estado, foi-se formando, a partir
dos imigrantes, uma crescente liderança econômico-social com
reflexos no quadro político.
Zilberman (1982), entre outros, afirma que a partir de
1930 a região da Campanha começou a perder a primazia tam-
bém em termos de representação literária. O aparecimento do
romance histórico, vinculado à narrativa dos episódios da colo-
nização, significou a formação de uma literatura em cujo cená-
rio aparece a imigração. Os imigrantes alemães foram os pri-
meiros a receberem a atenção dos romancistas. Vianna Moog
publicou em 1939 Um Rio Imita o Reno, tratando diretamente da
imigração alemã. Na pequena e imaginária cidade de Blumen-
thal, referência a São Leopoldo, o imigrante alemão chama a
atenção pela sua linguagem, pela alimentação, pelo vestuário e
154 O tempo e o vento • 50 Anos

pelos hábitos. Marobin realça que as sucessivas edições deste ro-


mance mostravam que Vianna Moog “havia trazido algo novo
para a literatura gaúcha”. Blumenthal é apresentada como o la-
boratório “onde se caldeiam os novos elementos que integram
a temática urbana”, é um ponto de “intersecção de conflitos, de
culturas e de raças”. O texto polemiza e seu objetivo é fazer uma
denúncia do nazismo e do isolacionismo dos imigrantes ale-
mães (Marobin, 1985, p. 188/9). O sucesso deste romance fez
com que Vianna Moog fosse eleito para a Academia Brasileira
de Letras, em 1945.
Estas são algumas referências de contexto, importantes
para se entender o momento histórico em que Erico Verissimo
elaborou O Tempo e o Vento. O centro do romance dá-se em tor-
no dos Terra Cambará, originários de etnia indígena e luso-bra-
sileira. Mas Verissimo vai acentuando a presença dos diferentes
grupos étnicos na formação social rio-grandense no decorrer
do relato. Os imigrantes entram com um papel colateral, inten-
sificando-se seu significado na medida em que o autor apresen-
ta a gradativa decadência da aristocracia rural e o surgimento
de uma nova dinâmica econômica e social a partir, especialmen-
te, dos imigrantes.
Erico Verissimo manifesta em O Tempo e o Vento profunda
percepção das transformações, do contexto histórico-social de
seu tempo. Apresenta uma descrição em que processos identitá-
rios e história real são misturados com a ficção, no entanto,
muitos personagens e fatos reais são claramente identificáveis.
Em relação aos imigrantes alemães, Gertz nos lembra que os in-
cidentes referidos sobre Neu-Württemberg (hoje Panambi) du-
rante a revolução de 1923 de fato ocorreram. O mesmo vale
para a referência aos Brummer, a Koseritz e, principalmente, as
descrições relativas aos imigrantes alemães.
Chaves (1981, p. 119) salienta a capacidade de Erico
Verissimo para, “observando um cotidiano que aparece como
a imigração alemã em o tempo e o vento 155

opaco e anônimo, penetrá-lo e dar-lhe um novo significado pela


criação imaginária exercendo-se mediante o reconhecimento
explícito do mundo concreto”. Problematiza o real, realça o pa-
pel significativo e ao mesmo tempo contraditório do processo
histórico no qual estavam inseridos os imigrantes. Frente a uma
formação social rio-grandense que tem o concurso de muitas et-
nias, Erico Verissimo realçou o tema da identidade. Levou as
personagens a dizerem como se entendem e como entendem
seu mundo. O Tempo e o Vento é um romance. Pelo depoimento
dado a Roche (1967, p. 725), Erico Verissimo preferia que sua
trilogia não fosse considerada nem um ensaio sociológico, nem
um estudo histórico, mas com “um pano de fundo tecido de
acontecimentos históricos”.
Este conjunto de referências certamente ajuda a situar,
pelo menos em parte, a perspectiva a partir da qual Erico traça
o perfil dos imigrantes alemães em O Tempo e o Vento.
Parece-me oportuno lembrar ainda que O Tempo e o Vento
de fato é uma trilogia. O Continente, escrito entre 1947-49, retra-
ta a gênese da sociedade rio-grandense, sob a liderança de uma
elite audaciosa e guerreira. Vai de 1745 até 1895, com ênfases
na Revolução Farroupilha, Guerra do Paraguai e Revolução Fe-
deralista. Os imigrantes alemães entram em cena a partir de
1833, quando duas famílias chegam a Santa Fé, e, especialmen-
te, a partir de 1855, quando um grupo maior de imigrantes ale-
mães funda a colônia de Nova Pomerânia, distante três léguas
de Santa Fé. O Retrato, segundo livro da trilogia, escrito de 1949-
51, embora inicie e termine com a deposição de Getúlio Vargas,
em 1945, centra a ação principal entre 1905 e 1920, com o ce-
nário político referenciado a Castilhos, Medeiros e Assis Brasil.
Neste livro os imigrantes são descritos em fase de forte expan-
são econômica, com presença crescente na indústria e no co-
mércio. O último livro da trilogia é O Arquipélago, escrito de
1959-61. Neste a narrativa parte do início dos anos 20, acompa-
156 O tempo e o vento • 50 Anos

nha a revolução de 30, a ditadura do Estado Novo e fecha com


a queda de Getúlio Vargas, que também abrira e fechara O Re-
trato. Neste período de nazismo na Alemanha, fascismo na Itá-
lia e integralismo no Brasil, os imigrantes alemães, em período
de afirmação econômica, também manifestam adesão política,
quando não pró-nazismo, então pró-integralismo. É o período
em que a presença dos imigrantes alemães torna-se alvo de
maiores questionamentos por parte das lideranças tradicionais
da metade Sul, que então vão perdendo a liderança econômica
e em parte política.
Daqui para a frente toda referência ao texto de Erico
Verissimo não será feita em termos genéricos de O Tempo e o Ven-
to, mas sempre citando o livro específico da trilogia do qual tra-
to. Pressupondo que se trata de Erico Verissimo em O Tempo e o
Vento, citarei apenas o título do livro da trilogia com a respecti-
va página. Entendo que isto facilita tanto a compreensão do pe-
ríodo histórico do qual se fala quanto a identificação do texto
original. Um motivo a mais para este procedimento é que em O
Continente uso a edição Círculo do Livro e em O Retrato e O Ar-
quipélago, a edição José Aguilar.

A descrição dos imigrantes.


O estranhamento do outro

Em O Tempo e o Vento os imigrantes não aparecem como


grupo único nem com características iguais. O primeiro grupo
estava composto de apenas duas famílias, a do artesão (seleiro)
Kunz e a do agricultor Schultz, que mais tarde tornou-se comer-
ciante. Foram a Santa Fé em 1833.
O segundo grupo entrou em cena em 1855, fundando a co-
lônia de Nova Pomerânia. Também estes não são descritos
a imigração alemã em o tempo e o vento 157

como grupo totalmente homogêneo. Além da maioria pro-


veniente da Pomerânia, há também alguns da Renânia e da
Westfália.
A partir de então entram em cena também imigrantes de
forma isolada, como o Dr. Winter, o jornalista Carl von Koseritz,
representando um grupo de 1.800 Brummer, o sacristão Jacob
Geibel e a família de músicos Weber.
Os motivos apontados para a imigração alemã são basica-
mente dois: a fuga à tributação fiscal altíssima e a miséria, com
poucas perspectivas de futuro melhor na Alemanha, motivo pri-
meiro dos colonos e artesãos. Outros, como o médico Winter –
figura de destaque, sendo entendido como um alter-ego (outro-
eu) de Erico Verissimo – e o grupo dos Brummer (liberais com
formação mais acurada, dentre os quais se destaca Koseritz),
que entram em cena através dos contatos do Dr. Winter, saíram
da Alemanha por motivos políticos, após sua derrota nos movi-
mentos liberais de 1848. No caso do Dr. Winter também concor-
reu o fator de uma decepção amorosa.
A chegada das duas primeiras famílias de imigrantes ale-
mães, a de Erwin Kunz e a de Hans Schultz, representa uma
grande novidade e simultaneamente uma interrogação para os
moradores habituais de Santa Fé. As duas famílias tinham vindo
cada uma na sua carroça e estavam acampadas na praça.
Erico Verissimo teve muita sensibilidade artística e habili-
dade para fazer aparecer na seqüência da cena um conjunto de
aspectos típicos do estranhamento quando dois grupos étnicos
diferenciados se encontram. Está bem clara, aí, a idéia de que
normalmente se reage a partir de uma perspectiva etnocêntri-
ca, isto é, caracteriza-se, avalia-se a partir do lugar cultural no
qual o observador se encontra. Os costumes, o modo de ser e de
agir de cada qual são a referência, o lugar a partir do qual ele
dirige seu olhar e emite seu parecer. E a partir deste lugar de
observação caracteriza-se o outro, cria-se parte do outro através
158 O tempo e o vento • 50 Anos

da nominação, através daquilo que se pronuncia do outro. Nos


estudos sobre etnia entende-se, como vimos acima, que a reali-
dade étnica de determinado grupo não é apenas aquilo que
este grupo é “em si”. É também aquilo que o outro fala dele, a
forma como o caracteriza. Isto significa que a nominação, o ato
de pronunciar e caracterizar o outro, também é constituinte da
etnicidade. Sylvia Caiuby Novaes (1993) diria que as especifici-
dades étnicas também vão criando cores na inter-relação e no
estranhamento que os grupos diferenciados têm uns em relação
aos outros. A “identidade étnica” estaria se construindo num
processo de nominação, de “jogo de espelhos”.
Voltando à praça de Santa Fé onde estavam acampadas as
duas famílias de imigrantes, sendo que nenhuma delas “parecia
falar ou entender em português”, percebemos uma dinâmica
de reação entre os “continentinos”, isto é, os habitantes tradi-
cionais da Província, que se torna mais clara com as referências
acima.
Os imigrantes são descritos como pessoas louras, “aquela
coleção de caras brancas, cabeleiras ruivas e douradas, olhos
azuis, esverdeados e cinzentos” (O Continente, p. 248). Erwin
Kunz é visto como “o alemão alto, magro, de rosto vermelho e
sardento” (ibidem). E os filhos do Schultz tendo “fisionomias
vagas e sardentas, coroadas de cabelos que mais pareciam bar-
ba de milho”.
Helga, a filha de Kunz, tinha “olhos dum azul vivo e limpo
e cabelos tão louros que pareciam polvilhados de ouro”. Al-
guém comentava: “tem cara de imagem”, outro observava que
“era duma boniteza engraçada”. Helga Kunz, “tão branca e de-
licada”, usando chinelos de couro, falando outra língua, vestin-
do-se de uma maneira diferente, contrastava com as mulheres
do lugar, “de cabelos e olhos castanhos ou negros – criaturas de
feições bem marcadas” (O Continente, p. 248).
Na observação do Pe. Lara aventa-se o possível imaginário
destes colonos: “como deveriam achar estranho ficarem sob o
a imigração alemã em o tempo e o vento 159

governo dum homem como o coronel Amaral e como lhes deve-


riam parecer rudes as caras barbudas e morenas dos homens da
província e bárbara a língua que falavam”(O Continente, p. 248).
Mas o Pe. Lara, por sua vez, também entrava neste “jogo de espe-
lhos” e se perguntava: “seriam protestantes?” E a paraguaia Ho-
norina, em contraposição a Helga, “saiu do rancho e estava des-
calça” (O Continente, p. 249/53). O impacto inicial do diferente
foi cedendo espaço para novas percepções na medida em que se
estabeleciam as relações entre os dois grupos. Assim, ao anoite-
cer já havia informações positivas sobre as duas famílias, observa-
va-se que Kunz e Schultz falavam um pouco de português.
Uma das características marcantes atribuídas aos imigran-
tes alemães é sua dedicação ao trabalho, o que já era um dos
motivos da preferência do Governo, a partir do Império, para
convidá-los a imigrar ao Brasil. A laboriosidade e o espírito or-
deiro dos mesmos entraram forte no imaginário popular. Erico
Verissimo realça-o freqüentemente. Um dos momentos desta
caracterização está na descrição da família Schultz na lavoura:
“estavam todos na lavoura, menos a mãe, que decerto tinha fi-
cado em casa com o filho de colo a preparar o jantar para sua
gente”. Enfatiza também que os imigrantes Schultz viviam quie-
tamente a sua vida, “trabalhavam de sol a sol, desde o filho mais
moço, de oito anos, até o velho Hans”. O capitão Rodrigo en-
contrara na estrada o “batalhão dos Schultz que ia para o traba-
lho. Cada um levava sua enxada e uma lata de comida. Iam to-
dos de tamancos e tinham nas cabeças chapéus de palha de abas
largas”. (O Continente, p. 254). E ainda: “Naquela madrugada,
mal o sol começava a raiar, lá se iam eles para a lavoura, falan-
do muito alto a sua língua doida, e dando grandes risadas”.
Ante este contraste de vida com a de Rodrigo, este tentava
justificar-se, “afinal de contas, eles eram estrangeiros e tinham
vindo com a intenção de encher os bolsos de dinheiro para de-
pois voltarem para sua pátria” (O Continente, p. 254).
160 O tempo e o vento • 50 Anos

Porém, ao ver a primeira vez a família Schultz em plena ati-


vidade, Rodrigo parou, admirou e ficou confuso:

Aquilo era até bonito (...) Era bom a gente ver aquelas gentes de
pele clara e roupas de muitas cores inclinadas a virar a terra,
com a cara escondida pela sombra dos chapéus. (...) Toda a fa-
mília tinha parado de trabalhar, voltava-se para Rodrigo e, ti-
rando os chapéus, acenava-lhe (...) E de repente, sem ele mesmo
saber por quê, sentiu um nó na garganta e uma vontade de cho-
rar. Ficou com raiva de si mesmo e meio ressentido com aquela
‘alemoada do diabo.’ (O Continente, p. 254/5).

E o Padre Lara, pressentindo que iria rebentar a guerra ci-


vil e “vendo a família de Hans Schultz passar em fila indiana, de
volta do trabalho a cantar uma cantiga alemã”, refletiu: “esses
sim é que são felizes” (O Continente, p. 256).
As referências à laboriosidade dos imigrantes alemães con-
tinuam em O Continente a partir das narrativas referentes a 1855,
quando o Governo da Província autorizara o estabelecimento
de uma colônia de imigrantes pomeranos a três léguas de San-
ta Fé. Fundando a colônia de Nova Pomerânia, os imigrantes
dedicavam-se sem trégua ao trabalho. Tendo recebido um peda-
ço de terra virgem, em pouco tempo haviam transformado tudo
no campo e embelezaram a vila. Construíram uma ponte, uma
roda-d’água, instalaram um moinho e uma serraria. Nova Po-
merânia crescia, transformava-se em vila. Os colonos fundaram
sua associação, sua escola, sua igreja. Com o passar do tempo
abriram uma cervejaria. Até formaram uma banda de música di-
rigida por um colono. Era a única banda do município de San-
ta Fé, sendo convidados com freqüência para tocarem nas festi-
vidades da cidade e região vizinha.
Os moradores de Santa Fé passavam por vezes na colônia
de Nova Pomerânia para ver como ia o trabalho. Ficavam sur-
preendidos com o que viam.
a imigração alemã em o tempo e o vento 161

A região transformava-se dia a dia, tomava um jeito de povoa-


do, e por toda a parte viam-se valos, lavouras, cercas, roçados,
sinais, enfim, de que aqueles estrangeiros começavam a dominar
a paisagem (...) Haviam construído uma ponte sobre um riacho
que cruzava aquelas terras e Otto Spielvogel já tinha posto a
funcionar seu moinho d’água (...) De vez em quando passava a
cavalo um caboclo moreno, de olhos e cabelos negros, parava,
olhava para os colonos por muito tempo, sem dizer nada, depois
(...) seguia caminho. (O Continente, p. 384/5).

Há muitas outras passagens em que Erico Verissimo realça


a dedicação dos imigrantes ao trabalho, no qual eram persisten-
tes e metódicos. Já no terceiro livro de O Tempo e o Vento, em O
Arquipélago, descreve a pontualidade com que os imigrantes, in-
cluindo agora os italianos, punham-se em atividade: “às seis ho-
ras da manhã, Lunardi, metido num macacão de mecânico, en-
trava em seu caminhão; José Kern abria a casa de comércio;
Spielvogel punha em movimento a máquina de sua serraria cujo
apito costumava ser exatamente às seis.” (O Arquipélago, p. 114).
Enfim, tanto os imigrantes alemães que se estabeleceram
na vila de Santa Fé quanto os da colônia Nova Pomerânia são
descritos como muito diligentes, transformando logo o meio,
organizando-se e progredindo. Em Santa Fé abriram confeita-
rias, casas comerciais, indústrias de conservas, de sabão, de ar-
tefatos de couro e serraria. A serraria dos Spielvogel foi sendo
transformada para usar energia a vapor, e os que tinham casas
comerciais fundavam filiais em outras localidades. Os imigran-
tes entravam em cena como pioneiros da indústria, com bons
lucros e rápida expansão do comércio. Assim foram surgindo
nomes como os de Kern, Kunz, Spielvogel, Schnitzler e outros,
vinculados à indústria e ao comércio, entrando aos poucos nos
círculos mais “conceituados” de Santa Fé, associando-se às so-
ciedades antes restritas aos fazendeiros.
Porém Erico Verissimo deixa bem claro que a distinção en-
tre fazendeiros, donos das grandes extensões de terra, com a li-
162 O tempo e o vento • 50 Anos

derança política, e os imigrantes mantém-se viva e forte, o que


se evidenciava até nas festas.

Pelo aspecto de suas caras germânicas e pelo entusiasmo com que


dançavam, Jacob Spielvogel e sua Frau davam ao baile um ar
de Kerb colonial, ao passo que Chiru Mena, com suas batidas de
calcanhares com esporas hipotéticas e com seu ar de monarca,
parecia esforçar-se para transformar o reveillon num fandango
de terreiro. (O Retrato, p. 165/6).

Erico Verissimo escreveu O Continente entre 1947-9. Como


vimos acima, neste momento histórico a metade Norte do esta-
do (linha imaginária), povoada predominantemente por imi-
grantes, desenvolvera-se rapidamente enquanto a metade Sul
estagnara, o que trazia reflexos nas composições políticas e in-
clusive na fisionomia sócio-cultural e religiosa. Era o período
pós-Segunda Guerra Mundial, com reflexos fortes nas iniciati-
vas culturais dos imigrantes (escola, imprensa, associações)
através do processo de nacionalização. Havia tensões étnicas e
os imigrantes, especialmente os alemães, eram vistos com ressal-
vas. Porém o fato mais importante a ser levado em conta é a gra-
dativa perda da hegemonia política e econômica das tradicio-
nais lideranças e grandes proprietários da metade Sul.
Verissimo torna habilmente o peão José Fandango, totalmente
identificado com a vida e as lidas das estâncias, o porta-voz da
insatisfação da metade Sul.
O peão José Fandango, a refletir, solava:

Pra meu gosto o verdadeiro Rio Grande fica na margem direita


do Jacuí, pros lados de São Borja e pra baixo na direção de Uru-
guaiana, Santana do Livramento, Dom Pedrito e Bajé (sic),
principalmente na Campanha onde sempre terçamos armas com
os castelhanos. Da margem esquerda pro norte e pro mar tem grin-
go demais. Não gosto de alemão. Falam uma língua do diabo,
olham pra gente com ar de pouco-caso. Tudo neles é diferente: as
roupas, as danças, as comidas, as casas, até o cheiro. Quando
vejo um homem de pele muito branca, cabelos de barba de milho
a imigração alemã em o tempo e o vento 163

e olho de bolita de vidro até me dá nojo. Se eu fosse governo, man-


dava esta alemoada embora. (O Continente, p. 489).

Quanto aos imigrantes italianos, José Fandango considerava:

Duns anos pra esta parte, tem chegado também muito italiano.
Se empoleiraram na serra, porque a alemoada, que chegou pri-
meiro, pegou os melhores lugares na beira dos rios. Já andei por
essas novas colônias da região serrana. A fala deles tem música
e é doce como laranja madura e meio parecida com a nossa. Gos-
tam de comer passarinho, de fazer e beber vinho, de cantar, de
ouvir missa de padre e de procissão. (O Continente, p. 489).

Não era só pelo trabalho que os imigrantes alemães se di-


ferenciavam do restante da população. Também o vestuário, a
habitação, a alimentação, entre outros aspectos culturais, eram
marcantes. Quanto às casas, elas “ofereciam um contraste níti-
do quando comparadas com todas as outras do povoado. Eram
graciosos chalés de madeira, muito limpos, que tinham até cor-
tinas e vasos de flores nas janelas.” (O Continente, p. 256).
Os poucos que haviam entrado nas mesmas diziam que “lá
dentro até o cheiro das coisas era diferente”. Também Rodrigo
Cambará, referindo-se a Frau Wolf, que o recebera em Neu-
Württemberg (hoje Panambi), admirava-se que ela, com quase
80 anos, vivia em grande casa de madeira, em estilo bávaro, en-
tre árvores e flores, filhos, netos, livros, muitos livros. Realça
que ela o havia recebido com graça de castelã antiga, ofereceu-
lhe café com leite, bolos, Apfelstrudel e vinho do Reno. Além de
mostrar-lhe a Bíblia da família, falou-lhe de seus autores predi-
letos, recitando Heine e Goethe. Depois sentou-se junto a um
órgão de fole e tocou trechos de Bach. Maravilhado, Rodrigo ti-
vera a impressão de ter entrado em outro mudo. “Aquela se-
nhora vestida de negro, os cabelos brancos penteados à moda
do final do século passado, os móveis, os bibelôs, os quadros, a
louça, o cheiro de madeira envernizada, tudo lhe evocava a Ale-
164 O tempo e o vento • 50 Anos

manha.” (O Arquipélago, p. 64). E, para sua surpresa, ao despe-


dir-se, Frau Wolf recitou versos de Alfred de Musset, em francês.
Também Licurgo diz que em Neu-Württemberg tivera
“oportunidade de tomar um banho, comer boa comida, dormir
em cama limpa e ter mulher.” (O Arquipélago, p. 63).
Outro aspecto que chamava muito a atenção dos santa-fe-
zenses eram os jardins bem cuidados em frente às casa dos imi-
grantes, com seus canteiros caprichosos e suas flores. Também
achavam muito engraçada a maneira como os imigrantes ale-
mães festejavam a Páscoa e o Natal. O domingo em Nova Pome-
rânia também contrastava com o dos “continentinos”. Havia, à
meia tarde,

café com leite, cuca e manteiga de nata, doce na casa de Spielvo-


gel. Apfelstrudel no chalé de Frau Sommer. Canecos de cerveja es-
pumante e partidas de bolão no clube dos atiradores. Música de
acordeão e cantigas. (O Continente, p. 519).

No romance atribui-se a Helga Kunz uma liberdade de cos-


tumes que causava estranheza em Santa Fé. Como que ela viaja-
va sozinha com o noivo para São Leopoldo, viagem que levava
vários dias e noites? As observações eram: “cruzes, que gente!”,
“estrangeiro é bicho sem-vergonha!”. O Pe. Lara relativizava
esta atitude da moça, juntamente com os amores que ela tivera
com Rodrigo, pois “ela é protestante”. Erico Verissimo retrata
claramente que, em relação às diferenças religiosas e étnicas,
permitem-se certas aproximações, mas sempre com ressalvas. E
se ocorre algo menos aceitável, então é porque provém do ou-
tro, do diferente. São os grupos étnicos e confessionais que têm
seus estranhamentos mútuos. Neste sentido é elucidativa a rea-
ção de Bibiana à expectativa do Pe. Atílio Romano quanto ao
convívio cada vez mais próximo entre os grupos étnicos. Em
sermão dominical, o padre ponderava:
a imigração alemã em o tempo e o vento 165

Nesta mesma igreja hoje, sentados no meio de brasileiros, acham-


se imigrantes italianos que há quase dez anos chegaram a esta
província e fundaram neste mesmo município de Santa Fé uma
colônia que se chama Garibaldina, em homenagem ao herói. E é
porque estes colonos italianos, bem como os alemães de Nova Po-
merânia, estão trabalhando juntamente com os brasileiros pela
grandeza deste município, desta Província, deste país. E nesta
terra cujos conquistadores primitivos tinham nomes como Maga-
lhães, Pereira, Fagundes, Xavier, Terra, vivem hoje homens que
se chamam Bernardi, Nardini, Sorio, Conte, Bauermann,
Schultz, Schneider, Schmitt, Kunz. (...) Espero um dia unir em
matrimônio uma Dela Mea com um Pinto ou um Spielvogel. (O
Continente, p. 523).

Bibiana reagiu: Filho meu não casa com gringo.


E quando o Dr. Winter achava que seria melhor que as fa-
mílias tradicionais de Santa Fé “casassem seus homens e mulhe-
res com os imigrantes alemães do que com os negros e índios”,
o Pe. Otero perguntava: “não eram aqueles imigrantes na maio-
ria protestantes? Como casariam com moças brasileiras?” (O
Continente, p. 365/6). Nesta cena Verissimo não retrata apenas
o preconceito racial e religioso, tão fortes na época. Traz à luz
também a questão da eugenia numa perspectiva marcantemen-
te racial. E não terá sido meramente fortuito que atribuísse esta
proposta ao médico alemão. Na época da concepção do roman-
ce os horrores cometidos pelo nazismo em nome da raça pura
e da ciência posta na perspectiva do “melhoramento” das raças
ainda estavam muito próximos e vivos na memória. Da mesma
forma, ainda não se divisava uma aproximação entre as confis-
sões religiosas.
Quanto à aparência física, Verissimo retrata os imigrantes
alemães com alguns traços marcantes, comuns. Assim, Otto
Spielvogel era “um alemão corpulento da Renânia, de quase
dois metros de altura, com grandes manoplas sardentas reco-
bertas de pêlo ruivo, nariz vermelho e fino, e olhos de pupilas
tão claras que chegavam quase a parecer vazios.” (O Continente,
166 O tempo e o vento • 50 Anos

p. 384). Jacob Vogt, natural da Westfália, “tinha longas barbas


dum branco amarelecido, que lembravam as macegas dos cam-
pos (...) olhos muito azuis.” (O Continente, p. 385). E Jacob Gei-
bel, sacristão, (...) de barbas ruivas e olhos cor de malva.” (O
Continente, p. 505). O noivo de Helga, de São Leopoldo, “um
alemão grande, de barbas louras e olhos claros.” (O Continente,
p. 259). Erwin Kunz, “o alemão alto, magro, de rosto vermelho
e sardento.” (O Continente, p. 248). Os filhos de Schultz, “fisio-
nomias vagas e sardentas, coroadas de cabelos que mais pare-
ciam barba de milho.” (O Continente, p. 249).
Verissimo caracteriza fisicamente os imigrantes sempre ao
estilo de um nórdico. Nenhum deles é descrito à semelhança de
respeitável parcela de alemães provenientes de povos mediter-
râneos, com cabelo preto, tez mais morena e olhos escuros.
Erico Verissimo usa freqüentemente a língua alemã na nar-
rativa, seja através de palavras, expressões ou frases. As expres-
sões espontâneas como “ach!” ou “mein Gott” (meu Deus!) são
as mais freqüentes. Ocorrem também quando expressa os senti-
mentos dos imigrantes. “Trude! Trude! Ich liebe dich! (Trude!
Trude! Eu te amo!)” (O Continente, p. 327), ou “ach, liebe Frau
Cambará!” (Ó, querida senhora Cambará)” (O Continente, p.
370). Freqüentes vezes cita a expressão em alemão seguida da
portuguesa: “Kaput! Morreu!” (O Continente, p. 436). “Eine gros-
se Schweinerei”, “uma grande porcaria” (O Continente, p. 437).
No período referente ao nazismo, usa termos então em voga:
“Kreis”, “Putsch”, “Führer”.
Quanto à perspectiva de gênero, entre os imigrantes ale-
mães os homens não tratam as mulheres como sua proprieda-
de. Tomam-nas sob seus cuidados, mas não reagem à força. Ro-
drigo sentia-se humilhado quando Herr Schnitzler o encontrou
com Marta e se limitou a uma advertência (O Retrato, p. 319).
Não costumavam demonstrar constantemente sua virilidade. E
a mulher, entre imigrantes alemães, é apresentada como pessoa
a imigração alemã em o tempo e o vento 167

muito enérgica, que, no entanto, não se envergonhava de exter-


nar seus sentimentos em público. Podia conversar com homens
estranhos, o que não era mal interpretado. Toni Weber falava
com Rodrigo, passeava sozinha com Erwin Spielvogel. Para os
moradores de Santa Fé esta relação era chocante. As vestimen-
tas da mulher imigrante são descritas como bonitas e alegres. A
mulher teuto-brasileira é caracterizada como pessoa ativa, com
opinião própria, não dependendo de seu marido. Quando os
homens foram convocados para a revolução e as colheitas requi-
sitadas, assim mesmo no outro dia a mulher foi com os filhos
para a roça, pois o serviço não poderia deixar de ser atendido.
Também são descritas como altamente prendadas para manter
a casa limpa e atraente. E em matéria de cozinha, de forno e de
confeitaria eram admiradas.

Frau Schnitzler era uma doceira de primeira ordem e suas cucas,


bolos e tortas eram muito apreciados, principalmente pelos habi-
tantes de Nova Pomerânia, para onde semanalmente ela man-
dava os produtos de seu forno. (...)
“Rodrigo gostava daquela casa – o único café e restaurante que
existia na cidade. Era um lugar que ‘cheirava a estrangeiro’.
Imaculadamente limpo, tinha nas paredes quadros com paisa-
gens da Baviera e do Tirol. À hora das refeições andava naque-
las salas um cheiro de molho de manteiga, batatas cozidas e ‘Ap-
felstrudel.’ (O Retrato, p. 126).

O Dr. Winter, uma crítica da imigração


a partir de um imigrante

Foi realçado acima que a narrativa de Verissimo não retra-


ta um único tipo de imigrante alemão. A maioria efetivamente
era de agricultores, artesãos e comerciantes, dentre os quais
muitos ascenderam economicamente e abriram indústrias. Po-
rém também havia os imigrantes com outras profissões e bem
168 O tempo e o vento • 50 Anos

mais cultos, como a família de músicos Weber, o Dr. Winter, mé-


dico, e o jornalista Koseritz, juntamente com quase 2 mil
“Brummer”, revolucionários sem espaço político após a revolu-
ção conservadora de 1848 na Alemanha e que, após uma parti-
cipação rápida na guerra contra Rosas, da Argentina, estabele-
ceram-se no Rio Grande do Sul, dedicando-se ao magistério, à
imprensa, ao comércio e à indústria.
Críticos literários entendem que na primeira parte de O
Tempo e o Vento, entre 1855 e 1895, o Dr. Winter exerce como
que o papel de alter-ego (outro-eu) de Erico Verissimo, ao esti-
lo do que Floriano significa na última parte. O Dr. Winter é
apresentado como um dos protagonistas de O Continente. Médi-
co alemão, natural de Eberbach, formado em Medicina pela
Universidade de Heidelberg, solitário, culto, um tanto bizarro
mas extremamente observador, havia fugido da Alemanha por
razões sentimentais e políticas. O Dr. Winter é um “comentaris-
ta” da vida cotidiana e dos costumes, tanto de Santa Fé quanto
da Província de São Pedro. Segundo Sérgius Gonzaga (1986), o
Dr. Winter é a expressão da acentuada curiosidade européia
pela vida nas regiões remotas, traduzida em centenas de viajan-
tes cultos que estiveram no Brasil, no século XIX, e deixaram
significativa quantidade de relatos.
Quanto ao Dr. Winter, Florêncio sempre admirava a manei-
ra correta com que aquele homem se exprimia em português, o
que já é uma contraposição à maioria dos imigrantes do interior
que, tanto no romance quanto na vida real, não demonstravam
muito interesse em aprender o português. E quando o apren-
diam, tinham muita dificuldade com a pronúncia correta. Flo-
rêncio sentia que ele, Dr. Winter, “tinha um sotaque forte, car-
regava nos erres, mas quanto ao resto falava fluentemente como
um brasileiro educado, quase tão bem como o juiz de direito,
ou o padre.” (O Continente, p. 319). Tinha muitos livros em lín-
guas estrangeiras e sabia latim.
a imigração alemã em o tempo e o vento 169

Através do Dr. Winter, Erico Verissimo introduz na história


Carl von Koseritz, revolucionário do grupo dos Brummer. Kose-
ritz entra no romance na função que exerceu como persona-
gem real, jornalista, batalhador pela participação política dos
imigrantes alemães. Também Koseritz falava fluentemente o
português, tinha interesse em naturalizar-se brasileiro já na dé-
cada de 1850/60. No caso, trata-se de mais uma contraposição
à maioria. É na voz do Dr. Winter que Erico Verissimo expressa
as ressalvas e críticas em relação aos imigrantes colonos. Winter
achava que muitos imigrantes eram estúpidos, cheios de pre-
conceitos, politicamente apáticos e isolados. Mesmo estando há
50 anos no Brasil, eram poucos os que sabiam falar português.
Seus compatriotas o irritavam por sua falta de cultura. Embora
a maioria deles morasse bem e prosperasse, desprezavam os ca-
boclos e eram desprezados pelos fazendeiros, dos quais não gos-
tavam, embora parecessem temê-los (O Continente, p. 325). Win-
ter encontrara compatriotas que haviam assimilado “todos os
maus hábitos dos naturais da terra”, amasiando-se com mulatas
e negras, das quais tinham filhos. “Moravam em ranchos mise-
ráveis, andavam descalços e já estavam roídos de vermes e de sí-
filis.” (O Continente, p. 325). Causava tristeza ao Dr. Winter ver
como em seus baús e sacos, junto com as roupas e tarecos, ha-
viam trazido para o Brasil todos os preconceitos, rivalidades,
mesquinhezas de suas aldeias natais. “Não compreendiam, os
insensatos, que lhes seria possível passar a vida a limpo naquela
pátria nova.” (O Continente, p. 325).
Em termos gerais, o Dr. Winter não era admirador dos imi-
grantes alemães colonos. Achava-os ignorantes e pouco simpáti-
cos (O Continente, p. 384). E em relação à questão dos Mucker,
o Dr. Winter escreveu a seu amigo Koseritz:

Este lamentável episódio vem confirmar a opinião que tenho de


meus compatriotas: individualmente são excelentes, sensatas
pessoas, mas quando reunidos em grupos acabam sempre fazen-
do alguma asneira brutal. (O Continente, p. 581).
170 O tempo e o vento • 50 Anos

Porém, quando observava Nova Pomerânia, a dedicação ao


trabalho, a transformação do ambiente por parte dos imigran-
tes, achava que os alemães seriam as pessoas mais apropriadas
para a Província.
Tanto o Dr. Winter quanto os músicos Weber e o jornalista
Koseritz são apresentados como pessoas cultas, tendo excelen-
tes relações com as elites locais. O Dr. Winter é quem dá um to-
que de reflexão aos diálogos, procura entender as motivações
das pessoas, relativiza certezas e costumes, abre horizontes. En-
fim, é uma presença reflexiva, ao mesmo tempo simpática e
questionadora. E Erico Verissimo lança habilmente mão da fi-
gura do Dr. Winter, um imigrante alemão, alguém de dentro do
grupo e ao mesmo tempo diferente, para fazer a crítica e apon-
tar as mazelas da imigração alemã. Bem arquitetada estratégia.
Se o Dr. Winter e Carl von Koseritz aprenderam logo o por-
tuguês, fizeram esforço em adaptar-se ao ambiente e tornar-se
interlocutores cultos e simpáticos entre os moradores tradicio-
nais da província, sem no entanto descaracterizar-se, não falta-
ram imigrantes que também queriam adaptar-se, mas faziam-no
de forma ridícula. Erico Verissimo apresenta na figura de Jacó
Stumpf a dificuldade que a maioria dos imigrantes tinha com a
pronúncia correta do português e a forma ridícula com que al-
guns forçavam uma adaptação aos costumes locais. O que mais
deliciava Rodrigo era que Jacó Stumpf – apesar de seu aspecto
nórdico e de seu sotaque – tinha a mania de ser gaúcho legíti-
mo, “neto de Farroupilha”. Era um espetáculo vê-lo metido nas
largas bombachas de pano xadrez, chapéu de barbicacho, botas
de sanfona com grandes chinelas barulhentas. Esforçava-se por
imitar o linguajar gaúcho e com freqüência dizia: “Puxa tiapo”.
Os companheiros logo passaram a chamá-lo “Jacòzinho Puxa
Tiapo”. Quando perguntado se agüentaria o repuxo, respon-
deu: “Quem tem medo de parulho não amara poronco nos ten-
dos.” (O Arquipélago, p. 49).
a imigração alemã em o tempo e o vento 171

Os imigrantes alemães e
sua participação política

Segundo os críticos literários, Erico Verissimo cria persona-


gens que nos diversos períodos de O Tempo e o Vento são como
que seu “alter-ego”. Se o Dr. Winter é assim considerado, em
parte também Aaron Stein, com certeza Floriano é o que exer-
ce esta função de forma mais completa. Em O Arquipélago, Flo-
riano faz reflexões para seus interlocutores Terêncio, Bandeira
e Toríbio sobre a mudança sócio-econômica no Rio Grande do
Sul com reflexos diretos sobre a constelação política. Parece-me
que esta reflexão de Floriano deixa entrever muito claramente
a posição de Erico Verissimo em relação à participação dos imi-
grantes alemães no processo político. Em função da centralida-
de desta reflexão, recorro a três citações mais longas.
Até o final da Primeira Guerra Mundial os imigrantes ale-
mães haviam participado pouco do processo político, não sen-
do nenhuma ameaça para a tradicional liderança dos fazendei-
ros. Quando o quadro econômico-social se modificou e os imi-
grantes apareceram como candidatos na campanha política,
criou-se um mal-estar entre os estancieiros, tradicionais lideran-
ças. Floriano considerou com seus interlocutores Terêncio,
Bandeira e Toríbio que:

O fenômeno sociológico mais importante na história do RS, nes-


tes últimos cinqüenta anos, é o declínio da aristocracia rural de
origem lusa e o surgimento de uma nova elite com raízes nas zo-
nas de produção agrícola e industrial onde predominam elemen-
tos de ascendência alemã e italiana. Neste meio século processou-
se a marcha do colono da picada para o comércio e para a indús-
tria. Antigamente o produtor menor e o assalariado não podiam
nem sequer sonhar com uma carreira política. Agora a situação
está mudando. O estancieiro perde o seu poder econômico e polí-
tico, e os nossos deputados, senadores e governadores já não são
mais, digamos assim, eleitos pela força do boi. Hoje os candida-
172 O tempo e o vento • 50 Anos

tos se chamam também Spielvogel, Greenberg, Lunardi, Schmidt,


Kunz, Kalil. (O Arquipélago, p. 571/2).

Terêncio escutava-o com expressão triste e Floriano conti-


nuava:

Se folhearmos, por exemplo, o catálogo telefônico de Porto Alegre,


descobriremos uma grande, expressiva quantidade de médicos,
advogados, engenheiros, professores, comerciantes e industriais
com nomes alemães, italianos, sírio-libaneses, polacos, judeus...
E as listas dos estudantes que todos os anos entram ou saem de
nossas escolas superiores revelam o mesmo fenômeno. Estamos
saindo da Era Mezozóica da nossa história, isto é, da Idade de
Ouro dos Grandes Répteis. Em breve não veremos mais dinossau-
ros em nossa paisagem política, pois o caudilho urbano (...) per-
tence a uma espécie praticamente extinta. (O Arquipélago,
p. 572).

Respondendo aos questionamentos de Bandeira, Terêncio


e Toríbio, Floriano toma a palavra:

A mim me parece tão absurdo querer italianizar ou germanizar


o Rio Grande como pretender ignorar a grande contribuição que
o imigrante alemão ou italiano trouxeram para a nossa vida.
Acho que temos de aceitar esta contribuição com alegria e espe-
rança. Só podemos lucrar com isto. (O Arquipélago, p. 573).

Até o período da República os imigrantes normalmente


são retratados sem participação política. Organizavam-se comu-
nitariamente, assumiam escola, professor, sociedades, pontes,
estradas e mantinham a maior distância possível de ingerências
e disputas políticas. Achavam que os políticos prometiam mui-
to, mas não cumpriam as promessas. Não tinham recebido nem
professor. Havia o entendimento entre eles que teriam que ze-
lar por si mesmos, tornando-se assim bastante independentes
dos estancieiros e do governo, mantendo por muito tempo suas
peculiaridades étnicas. Mesmo assim votavam com o governo.
a imigração alemã em o tempo e o vento 173

Os moradores de Santa Fé observavam os imigrantes ale-


mães, salientavam que eles viviam quietamente a sua vida, traba-
lhavam de sol a sol e transformavam o ambiente em que viviam
(O Continente, p. 254). O Padre Lara, preocupado com a guerra
civil que lhe parecia iminente e vendo a família Schultz voltar
do trabalho cantando, refletia:

Esses sim é que são felizes. Não sabem o que está se passando e,
se vier a guerra, não terão nada a ver com ela, porque são es-
trangeiros”. Outro felizardo era o Erwin Kunz (...) “passava os
dias a fazer lombilhos e a bater a sola, enquanto a mulher e a fi-
lha faziam doces e cucas cujo cheiro apetitoso o padre às vezes
sentia ao passar pela casa do seleiro. (O Continente, p. 256).

Quando os imigrantes vieram para se estabelecer em Nova


Pomerânia, o chefe político local, Coronel Bento Amaral, fez
uma preleção e, com “ar patronal”, dizia-lhes: “têm de obedecer
às autoridades. Não queremos badernas nem anarquias.” (O
Continente, p. 384). E os colonos o escutavam “entre uma atitu-
de respeitosa e assustada”. É significativa a forma como
Verissimo descreve a visita que este mesmo Coronel fez a Nova
Pomerânia, quando os imigrantes já estavam se instalando. O
Coronel Amaral “falou com a ‘alemoada’ de cima do cavalo,
olhou em torno, fez perguntas e deu conselhos. Depois voltou
a Santa Fé.” (O Continente, p. 385). O fato de chegar, observar,
falar de cima do cavalo, perguntar e aconselhar, retrata forte-
mente a relação política incorporada autoritariamente. Este
quadro torna-se mais significativo ainda com a descrição de
como os imigrantes reagiram: “os colonos seguiram o Coronel
com o olhar. Mas não disseram nada: voltaram discretamente
para o trabalho”.
A partir da República, a nova liderança política de Santa
Fé, agora sob os Cambará, tenta cooptar os colonos com favo-
res. “Os colonos de Garibaldina e de Nova Pomerânia obtinham
dele tudo quanto pediam”. Porém, como foi salientado acima,
174 O tempo e o vento • 50 Anos

a partir da República as famílias tradicionais de Santa Fé, “abas-


tadas há vinte ou trinta anos, foram decaindo, ao passo que os
imigrantes italianos, alemães, sírios e judeus prosperavam.” (O
Arquipélago, p. 604). E começaram a ter maior definição políti-
co-partidária, alguns inclusive com aspirações políticas, como é
o caso de José Kern. Este, iniciando no interior do estado como
mascate, abriu comércio em Nova Pomerânia, transferiu-se para
a sede do município, tornando-se proprietário de várias fábricas
– de conservas, sabão, malas, artefatos de couro –, entrando de-
pois em loteamento de terrenos e construção de prédios. Com
aspirações políticas, sendo de tendência autoritária, tornou-se
“ardoroso defensor da suástica e do sigma”, entre 1934-40. De-
pois tornou-se candidato do PRP (Partido de Representação Po-
pular) (O Arquipélago, p. 603/4). O Café Poncho Verde deste
José Kern é descrito como o ponto de encontro natural entre
integralistas e os nazistas de Santa Fé. José Kern aparece como
membro influente de ambos os grupos, sendo como que “uma
ponte viva entre o fascismo alemão e o indígena.” (O Arquipéla-
go, p. 502). Quando Rodrigo foi fazer campanha política em
Nova Pomerânia, José Kern o prevenira: “o senhor não faz co-
mício aqui porque a gente não somos políticos. O que quere-
mos é trabalhar em paz.” (O Arquipélago, p. 694). Mas fazia polí-
tica. E Rodrigo foi fazer o comício assim mesmo e foi mal rece-
bido pelos colonos. Vários imigrantes foram gradativamente
aparecendo como candidatos na campanha política, o que ge-
rou mal-estar dos estancieiros.
Enfim, na medida em que os imigrantes foram se firmando
econômica e socialmente, começaram a independentizar-se
também da influência dos estancieiros e a ter opções políticas
próprias.
Em 1933 foi fundado o núcleo local da Ação Integralista
Brasileira, que ganhara logo muitos adeptos entre imigrantes.
Tanto em Santa Fé quanto em Nova Pomerânia foram criados
a imigração alemã em o tempo e o vento 175

núcleos do Partido Nacional Socialista, fundando-se o “Kreis”, o


círculo nazista, e fazendo-se proselitismo nas escolas e nas socie-
dades recreativas. Nas escolas a “campanha de nazificação se
processava livremente”, criando-se a Juventude Hitlerista. Hou-
ve incidentes como, por exemplo, o caso de um “mascate judeu
apedrejado em Santa Fé por três rapazes alourados.” (O Arqui-
pélago, p. 507).
Rodrigo, representante da elite política dos fazendeiros,
questiona a postura dos imigrantes pró nacionalismo alemão. E
irrita-se com a grande adesão ao integralismo por parte da po-
pulação luso-brasileira. Queixa-se dos imigrantes: “afinal de
contas estes lambotes vivem na nossa terra, comem o nosso pão,
bebem a nossa água, respiram o nosso ar, dependem, enfim, da
nossa generosidade e da nossa tolerância.” (O Retrato, p. 412).
Começa a negar cumprimento aos de sobrenome alemão e acha
que haverá de chegar o dia em que organizará uma expedição
punitiva contra a Nova Pomerânia.
Erico Verissimo levanta ainda outro aspecto crucial na
questão política relacionada com a imigração. Trata-se da con-
cepção que os imigrantes tinham da relação entre etnia e nacio-
nalidade. Para os luso-brasileiros era chocante o fato de os imi-
grantes afirmarem-se de língua e cultura alemã e quererem es-
tar vinculados ao Estado brasileiro. Afirmavam-se alemães no
sangue, na espécie, na cultura e na língua, concomitantemente
com a cidadania brasileira. Entendiam que havia um Estado
brasileiro no qual viviam alemães, lusitanos, italianos, japone-
ses, etc. (O Arquipélago, p. 535). Isto era inconcebível na tradi-
ção luso-brasileira.5

5. A este respeito veja-se Rambo (1994) e Seyferth (1994).


176 O tempo e o vento • 50 Anos

Indicações finais

Não pretendo tirar conclusões, mas salientar, de forma bem


sucinta, alguns aspectos que me chamaram a atenção na leitura
de O Tempo e o Vento com o olhar atento para a forma como é re-
tratada a imigração alemã.
Verissimo teve muita atenção para com todos os grupos ét-
nicos que compõem a formação social do Rio Grande do Sul.
Sua sensibilidade de artista da palavra também se manifesta na
forma como aborda e concede espaço ao pluralismo étnico do
estado. Na trilogia transparece claramente a dinâmica de uma
sociedade que, pela sua formação étnica plural, viveu tanto mo-
mentos ricos de afirmação de processos identitários quanto si-
tuações de estranhamento e de conflitos. O texto deixa entrever
a visão aberta, equilibrada do autor Erico Verissimo em relação
a esta temática. Reconhece e salienta os valores dos diferentes
grupos étnicos, mas não deixa de apontar suas mazelas. Neste
sentido entendo que usou de uma estratégia bem arquitetada ao
apontar parte de suas divergências e críticas à imigração alemã
através do Dr. Winter, também um imigrante alemão. Através de
Floriano, seu alter-ego, Erico Verissimo é claro: nem italianizar
ou germanizar o RS nem ignorar a contribuição dos imigrantes.
“Temos de aceitar esta contribuição com alegria e esperança”.
Isto ele faz em relação a todas as etnias no estado.
No romance percebe-se também aquilo que hoje se afirma
teoricamente: os grupos étnicos mantêm suas especificidades
culturais mais fortemente quando bastante isolados. Quando en-
tram em contato mais freqüente com outros grupos há estranha-
mentos, o poder de nominação começa a ser também constituin-
te do processo identitário, isto é, os diversos grupos vão interna-
lizando aquilo que os outros dizem deles. Os processos identitá-
rios entram como que numa dinâmica de “jogo de espelhos”.
a imigração alemã em o tempo e o vento 177

Outro aspecto bem patente é o de que as relações interétnicas


implicam também relações de poder, de confrontos, de afirma-
ções e silenciamentos, porém não em perspectiva linear. Na re-
lação interétnica os grupos se recriam em suas especificidades
culturais, mas não apagam as diferenças. Trata-se daquilo que
hoje chamaríamos de “a dinâmica entre tradição e tradução”.
Claro que Verissimo não teorizou estas questões – somos nós que
o fazemos hoje – mas teve uma extraordinária sensibilidade de
artista para captar a dimensão étnica na dimensão histórica.
Quanto à imigração alemã, embora trate mais diretamente
daqueles imigrantes que estavam em Santa Fé e Nova Pomerâ-
nia, deixa entrever que eles não eram um grupo homogêneo
nem cultural nem religiosamente. Com o Dr. Winter faz a pon-
te para Koseritz e, através dele, para os Brummer e outros, de
características culturais bastante diferentes daquelas do traba-
lhador rural em Nova Pomerânia. Concordo com Roche no sen-
tido de que Verissimo soube exprimir muito bem a realidade
psicossocial que cobria os esquemas coletivos e de grupos. Tive
a impressão que a descrição da opção política dos imigrantes
alemães em Santa Fé e Nova Pomerânia em termos de nazismo
ou integralismo carrega um pouco nas tintas, mas é perfeita-
mente inteligível levando-se em conta o contexto histórico. A
opção do autor foi a de não fazer um romance histórico, mas de
fundo histórico. Erico Verissimo apresenta, no geral, uma visão
muito positiva tanto da imigração alemã quanto de outros gru-
pos étnicos.

* Programa de Pós-Graduação em Educação, UNISINOS.


178 O tempo e o vento • 50 Anos

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“Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o
sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continua-
mente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.”
Eclesiastes - I, 4-6
OLHAI O QUE O TEMPO NÃO LEVOU.
A Literatura de Erico Verissimo

Maria elena Camara Bastos*


Maria Teresa Santos Cunha**

Os pensamentos postos no papel nada mais


são que pegadas de um caminhante na
areia: vemos o caminho que percorreu, mas
para sabermos o que ele viu nesse caminho,
precisamos usar nosso próprios olhos.
Schopenhauer1

Introdução

A Literatura não é um mero documento para a História. É


uma prática simbólica que coloca em cena determinados acon-
tecimentos históricos, como a organização e as convenções de
representação de um certo tempo. É também um dispositivo
educativo e pedagógico que permite entrever os espaços discur-
sivos de um tempo, as representações sociais forjadas em cada
época, o imaginário de atores sociais - reais e ficcionais.
Historicizar a obra literária significa, para o historiador, in-
serí-la no movimento da sociedade, investigá-la em suas redes
de interlocução social e desvelá-la como constrói ou representa
sua relação com a sociedade e a cultura.

1. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre livros e leitura. p. 21.


182 O tempo e o vento • 50 Anos

Toda produção literária tem um projeto educativo que lhe dá


forma, sentido e lhe eterniza... Sua função é, sem dúvida, de mora-
lizar, mas introduzindo na história as razões do coração que a razão não
quer conhecer.2
O autor de uma narrativa literária cria um efeito de verdade - a
verdade está no fim de uma procura que é uma ascese social e moral.3 Isto
é, a verdade procede do íntimo, o que garante o seu reconheci-
mento por parte do sujeito. Goulemot afirma ser possível identificar
nas obras literárias os deslocamentos, as tensões e os conflitos que perpas-
sam o discurso.4 É, portanto, nesse espaço fascinante e movediço -
onde se constróem a história dos homens, as linguagens, os discur-
sos e as representações - que se moverá este texto.
Além de um documento para a História da Educação, a Lite-
ratura permite múltiplas abordagens e olhares do pesquisador -
história da leitura, práticas de leitura, memórias da vida escolar;
imaginário, representações, hábitos e valores perpassados, discur-
so ficcional/real. Para Hansen, a literatura trabalha com enunciados
de possibilidades, a história com enunciados de realidade5 - assim, o histo-
riador mantém uma dependência com o arquivo, enquanto o es-
critor pode falar de um vir-a-ser.
Como leitor dos documentos literários, o historiador produz
sentidos; dessa produção, resulta o ser social e cultural, movido por
certos objetivos e expectativas.

É verdade também que devemos perguntar sobre a produção dos


modos de leitura pelos próprios textos. Com seu processo de escri-
tura, cada texto inventa um leitor fictício ao qual interpela e
convoca. É uma evidência que essas sociabilidades de leitura
inscritas nos livros dependem do debate entre privado e público
nas práticas de leitura.6

2. GOULEMOT, Jean Marie. As Práticas Literárias ou a publicidade do privado. IN: ARIES, P. e


DUBY, G.(org) História da Vida Privada III. P.398.
3. Ibidem, p. 373.
4. Idem, p. 373 e 395.
5. HANSEN, J. Os lugares das palavras. p. 1.
6. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 389.
olhai o que o tempo não levou 183

Ao se apropriar da Literatura, o historiador produz sempre


uma nova leitura, que constrói um outra leitura do passado.
Dessa forma, aquilo que acabamos de chamar de passado é sem-
pre uma elaboração tanto do historiador como do escritor. Para
exemplificar e tornar mais inteligível as relações entre história
e literatura é importante recorrer às memórias de Mário Mar-
ques - quando professor de Sociologia na faculdade, enfatizava
que por um bom período, levava os alunos a analisarem os processos so-
ciais correntes nas tramas de obras literárias, processo mais acessível e
rico que as observações que pudessem realizar na realidade local. Predo-
minavam aí obras de Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Vianna
Moog.7
A obra literária nasce do concreto, do meio condicionante,
mas também trata da essência dos seres e dos eventos - as utopias
do autor, a necessidade de extravasar ao mundo suas idéias, pro-
jetos, nostalgias; ou seja, ele quer respostas para angústias inter-
nas. Para Goulemot, a Literatura expressa os sonhos de liberdade e de
intercâmbio de um tempo passado e as coerções institucionais do presente.8
Erico Verissimo (1905–1975), autor de uma significativa
obra literária, retrata o universo rio-grandense, através da histó-
ria social de várias gerações que se sucedem.9 Nesta construção
ficcional, que faz da sociedade gaúcha, é possível perceber as
várias representações sociais10 do universo escolar, da educação,
da profissão docente, temas fartamente abordados na caracteri-
zação do universo dos personagens. Por exemplo, na criação da
personagem Dr. Carl Winter, em O Continente, o autor assim se ex-
pressa:

7. MARQUES, Mário O. Uma Hermenêutica de Minhas Aprendizagens. p. 41-2.


8. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 389.
9. MARTINS, Wilson. As Gerações e a Terra. In: Cultura Especial. Zero Hora. Porto Alegre. Sába-
do, 18 de setembro de 1999. p. 5.
10. O conceito de representação social é resultado das relações históricas e sociais que a produziram, em determi-
nado espaço de tempo. A representação é uma maneira do sujeito fabricar um objeto psicológico e cultural sig-
nificativo. O conteúdo, a forma e o processo de construção da representação social possibilitam caracterizá-la
como produto cultural, resultado organizado de informações, julgamentos, atitudes de seu sujeito. Produtos
culturais, as representações sociais são determinadas socialmente, duplamente pelo seu conteúdo e forma.
DESCAMPS, Annie. L’image des enseignants dans le journal Le Monde. p. 6-7. (A tradução é nossa)
184 O tempo e o vento • 50 Anos

A certa altura comecei sentir a necessidade de criar uma perso-


nagem que pudesse fazer o papel de coro daquela comédia provin-
ciana. Devia ser uma pessoa não só alfabetizada, mas também
lida e com pontos de referência geográficos e culturais que a tor-
nassem capaz de comparar aquela agreste e incipiente civilização
sul-americana com a européia, comentar consigo mesma ou com
outras aquela gente, a vida de Santa Fé, em particular, e a da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.11

Nesse texto, nosso olhar estará centrado na questão esco-


lar/educacional, tema recorrente em sua obra - como podemos
constatar principalmente em Clarissa, Música ao Longe, Caminhos
Cruzados, O Tempo e o Vento, Olhai os Lírios do Campo, e outros.

Um Olhar na Obra de Erico Verissimo


na Perspectiva da História da Educação

(Re)Ler e/ou (re)visitar a obra de Erico Verissimo12 foi um


prazer, como leitura, como pesquisa e como fruição estética.
Voltar às leituras que marcaram nossa adolescência e os vinte
anos é sempre muito prazeroso e gratificante. É uma volta ao
passado com os olhos do presente, em dupla dimensão - indivi-

11. VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta I. p. 299.


12. A cronologia de sua obra completa é a seguinte: 1932 – Fantoches, contos; 1933 – Clarissa, roman-
ce; 1935 – Música ao Longe, romance; Caminhos Cruzados, romance; A vida de Joana D’Arc, literatu-
ra infanto-juvenil; 1936 – As aventuras do Barão Vermelho, literatura infantil; Os três Porquinhos Po-
bres, literatura infantil; Rosa Maria no castelo encantado, literatura infantil; Um Lugar ao sol, roman-
ce; 1937 – As aventuras de Tibicuera, literatura infantil; 1938 – O Urso-com-música-na-barriga, litera-
tura infantil; Olhai os Lírios do campo, romance; 1939 – A Vida do elefante Basílio, literatura infan-
til; Outra vez os Três Porquinhos, literatura infantil; Viagem à aurora do mundo, literatura infanto-ju-
venil; Aventuras no Mundo da Higiene, literatura infantil; 1940 – Saga, romance; 1941 – Gato Preto
em Campo de neve, viagens; 1942 – As mãos de meu filho, contos; 1943 – O resto é silêncio, romance;
1945 – Brazilian Literature, An outline; 1946 – A Volta do Gato Preto, viagens; 1949 – O Tempo e o Ven-
to, 1ª Pare: O Continentes, 2. Vols, romance; 1951 – O Tempo e o Vento: 2ª Parte: O Retrato, 2.
Vols, romance; 1954 – Noite, novela; 1956 – Gente e Bichos, literatura infantil (antologia); 1957 –
México, viagens; 1959 – O Ataque, contos; 1961/62 – O Tempo e o Vento; 3ª Parte: O Arquipélago, 3
vols, romance; 1965 – O Senhor Embaixador, romance; 1966 – Ficção Completa; 1967 – O Prisioneiro,
romance; 1969 – Israel em Abril, viagens; 1970 – Um certo Capitão Rodrigo (extrato de O Continente
1); 1971 – Ana Terra (extrato de O Continente, 2); Incidentes Antares, romance; 1972 – Um certo Hen-
rique Bertaso, biografia; 1973 – Solo de Clarineta, 1º vol, memórias; 1975 – A Ponte ( extrato de O
Ataque); 1976 – Solo de Clarineta, 2º vol, memórias.
olhai o que o tempo não levou 185

dual e social. É olhar a natureza humana e social a partir dos


olhares de Erico, pela extraordinária realidade dos acontecimen-
tos que descrevia.
A produção literária de Erico Verissimo é permanente:
atravessa várias gerações de leitores13. Cada uma delas retém o
que lhes interessa, ou seja, aquilo que convém a seu sistema de
valores ou a seus objetivos, a sua ambiência cultural.14 A recep-
ção e apropriação15 de sua obra é um fato: basta constatar o nú-
mero de edições e exemplares editados, significativo indicador
da pregnância de sua obra.
Solo de Clarineta - livro de memórias16 - é o mote, o ponto de
partida nessa viagem pela obra de Erico Verissimo. O livro de
memórias, autobiográfico, é uma fonte preciosa para a História
da Educação. Para Gondra, nesse gênero narrativo:

Um sujeito fala a sua própria voz, levando o leitor a aceitar


como verdadeiro o que ele conta sobre o seu destino. A ênfase re-
cai sobre o universo privado e das experiências particulares fa-
zendo, então, com que a barreira estabelecida entre a esfera da
vida pública e da vida privada deixe de ser tão nítida. O leitor
é convocado para o lugar de testemunha do que é narrado. As-
sim, este entendimento acerca do caráter da narrativa autobio-
gráfica potencializa o seu uso como fonte para a pesquisa histó-
rica.17

13. Passados mais de sessenta anos do primeiro livro de Erico Verissimo, sua obra permanece atual,
pois continua sendo referência de leitura, tanto para alunos como para professores, tendo sido
indicada recentemente como leitura da Biblioteca Básica para a formação do Professor Leitor, onde
consta a trilogia - O Tempo e o Vento. Folha Proler. Rio de Janeiro, ano III, n°7, julho de 1999.
14. SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit. p. 43.
15. Para Chartier, a noção de apropriação é útil: porque permite pensar as diferenças na divisão, porque pos-
tula a invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção. Uma sociologia retrospectiva, que du-
rante muito tempo fez da distribuição desigual dos objetos o critério primeiro da hierarquia cultural, deve ser
substituída por uma outra abordagem, que centre sua atenção nos empregos diferenciados, nos usos contras-
tantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias. CHARTIER, Roger. História Cultural. p.
136.
16. Para Calligaris, falar ou escrever de si é um dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade cultu-
ral, já que a verdade é sempre e prioritariamente esperada do sujeito - subordinada à sua sinceridade. CAL-
LIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. p. 45.
17. GONDRA, José G. A Exibição do Privado. p. 1.
186 O tempo e o vento • 50 Anos

As memórias também enfatizam a importância da vida públi-


ca para a valorização e desenvolvimento do indivíduo - ninguém existe
fora da vida pública -, e mostram, ao mesmo tempo, a importância do
sujeito individual aumentada à custa do coletivo.18
Essa opção por Solo de Clarineta deveu-se também à necessi-
dade de melhor conhecer o autor19 - o conhecimento do eu, isto é,
possibilitar um (re)encontro com suas vivências, com a história
de sua obra:

Seguir o fio do intinerário particular de um homem implica ins-


crevê-lo num grupo de homens que, por sua vez, são situados na
multiplicidade dos espaços e tempos de trajetórias convergentes.
As séries documentais, aparentemente circunscritas a um indiví-
duo, acabam indicando situações vividas em comum; no tempo
curto de uma existência cujo espaço é mais ou menos restrito, na
longa duração de um universo cultural sem fronteiras.20

Ao mesmo tempo, significou uma forma de olhar o social


rio-grandense a partir da dimensão individual, da identidade de
sujeito e de autor - de um lado normas, valores e categorias que dão sen-
tido ao mundo, e, de outro, comportamentos e atos que o instrumentam.21
O livro de memórias permite conhecer algumas faces da
personagem do autor: sua relação com a obra, sua singularidade,
o modo de ser do seu discurso. Para Foucault, o autor é um fun-
dador de discursividade - portanto, a função do autor é caracterís-
tica do modo de existência, de circulação e de funcionamento
de alguns discursos no interior de uma sociedade.
O que, afinal, essas memórias apontam para um pesquisa-
dor da História da Educação? Os costumes e práticas sociais e

18. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 391.


19. A idéia de autor de Foucault ajuda a ampliar a compreensão de sujeito histórico. Para ele, o nome
do autor não é um nome próprio como qualquer outro, mas antes um instrumento de classificação de textos e
um protocolo de relação entre eles ou de diferenciação face a outros, que caracteriza um modo particular de exis-
tência do discurso, assinalando o respectivo estatuto numa cultura dada. FOUCAULT, Michel. O que é um
autor? p. 53.
20. SALGUEIRO, H. A. Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão. p. 18.
21. LEPETIT, B. L’histoire prend-elle les acteurs au sérieux? Espace Temps Paris, n. 59-61,p. 115-116,
1995. In: SALGUEIRO, H. op. cit. p. 13 a 21.
olhai o que o tempo não levou 187

familiares que marcaram a vida de Erico - em uma pequena ci-


dade, Cruz Alta, e na capital do Estado, Porto Alegre - do início
do século XX aos anos setenta, especialmente as recordações de
escolaridade e as práticas de leitura22 de um sujeito de classe
média urbana. Em toda sua obra, é possível encontrar uma his-
tória do cotidiano e da vida privada - onde o narrador espraia-
se em minúcias sobre a sua formação em família, em seus hábi-
tos de vida no espaço doméstico e social, em seus dispositivos de
(in)formação, em sua história como leitor.
Singularmente, Solo de Clarineta possibilita, a nós, pesquisa-
dores da História da Educação, entrever o universo cultural de
sua família, através de inúmeros registros onde se evidenciam
sua aguçada percepção do mundo. Por exemplo, descreve as
preferências de leitura de seus familiares - uma tia é mostrada
como ledora voraz de romances, essa tia, a quem sempre votei uma afei-
ção especial, era das poucas mulheres - talvez a única - que naquela pe-
quena cidade serrana sabia ler e falar francês. O Tio Antônio é re-
memorado por ter feito algumas incursões pela literatura: lembro-
me de ter lido um soneto de sua autoria intitulado Lenço Encarnado,
no qual ele exaltava o símbolo de seu partido. De igual maneira, Tio
Nestor é apresentado por sua preferência pelo folhetim, e é
descrito como – Devoto ledor de novelas de capa-de-espada, compra-
zia-se nas ficções de Alexandre Dumas, Xavier de Montepin, Michel Ze-
vaco, Ponson du Terrail e outros grandes do folhetim romanesco do fim
do século passado. O pai – Sebastião Verissimo - merece uma aten-
ção especial, mais pormenorizada. Para tanto, Erico elenca os
vários autores lidos, os quais permitem pensar na riqueza do
mundo cultural que vivia.

Homem de leituras variadas, embora não profundas, Sebastião


Verissimo, à boa maneira brasileira, era capaz de discutir com bri-

22. Neste texto, consideramos a leitura como um dos processos de socialização, que juntamente com
a função estética tem também uma função pedagógica. A literatura e a leitura como dispositivos
sociais formadores de seus leitores. FREITAG, Bárbara. O indivíduo em formação. p. 10.
188 O tempo e o vento • 50 Anos

lho assuntos que não conhecia, e livros de que apenas ouvira fa-
lar. Sabia de cor versos de poetas brasileiros, portugueses e france-
ses. Lia com delícia Guerra Junqueiro (Quantas vezes o ouvi reci-
tar O MELRO!). Devorava As farpas, de Ramalho Ortigão e Eça
de Queirós. Conhecia toda a obra do autor de Os Maias. Gostava
das crônicas mordazes de Fialho de Almeida. Era íntimo de Her-
culano, Camilo, Garret, Antonio Nobre e Antero Quental. Conhe-
cia muito bem a História de Portugal. Admirava a Inglaterra,
mas seu amor, esse ele reservava para a França. Tomara uma as-
sinatura da revista parisiense L’Illustration. Sua biblioteca crescia
aos poucos. Creio que chegou a ter mais de dois mil livros - isso em
Cruz Alta, na primeira década deste século. Lembro-me de nomes
que eu via em letras douradas na lombada dos volumes ricamen-
te encadernados em couro: Chateaubriand, Lamartine, Taine, Re-
nan, Victor Hugo, Nietzche, Goethe, Tolstoi, Zola, Stendhal, Flau-
bert, Balzac... Numa outra estande não menos pesada alinha-
vam-se brochuras impressas em papel gessado - novelas galantes de
boulevard - com ilustrações em que se notavam ainda influências
de Toulouse-Lautrec.

Em igual sentido, a história de leituras de seu avô materno


é também registrada como uma prática de leitura intensiva,
conforme nos informa Chartier: poucos livros mas muito lidos,
destacando a sua intensa circularidade.

Meu avô materno, entusiasta leitor de jornais, não era, entre-


tanto, amigo de livros. Sua “biblioteca” constava de três volu-
mes: Os Sertões de Euclides da Cunha, Martín Fierro, de José
Hernandez e Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Dessas três
obras só lera a última, mas tantas vezes que lhe sabia os versos
de memória.

Também é possível perceber em suas memórias o registro


constante de suas práticas de leitura, que se iniciam pela revis-
ta carioca Tico-tico23, e prosseguem com Eu sei tudo, L’Illustration.

23. Em 11 de outubro de 1905, surgia no Brasil a primeira publicação de estórias em quadrinhos infantil - O Tico-
Tico -, publicada pela Editora S.A O Malho. Além de história em quadrinhos, a revista publicava estórias em
textos, biografias, folclore, poesias e brincadeiras. PRADO, Maria Dinorah Luz. A Literatura Infantil de
Erico Verissimo. p.11
olhai o que o tempo não levou 189

Esta última - uma publicação francesa largamente difundida no


Brasil, entre as elites ilustradas, desde finais do século XIX - si-
naliza o enraizamento de um habitus cultural francês, que valo-
riza a presença de uma cultura humanística clássica.
Compondo um verdadeiro painel, Erico enumera delicio-
samente uma sucessão de leituras que lhe marcaram a fase juve-
nil. Primorosos comentários são realizados sobre os livros lidos
- por exemplo, a lembrança do primeiro livro como uma “narra-
tiva sobre caçadas”. E prossegue lembrando:

Aos dez ou onze anos, Júlio Verne: Viagens Maravilhosas – A


Casa a Vapor. O que me interessava em seus romances não era a
cultura, mas a aventura. Aos treze li Esfinge de Afrânio Peixo-
to. De Afrânio Peixoto também li Fruta do Mato e Bruguinha...
Travei conhecimento com Aluísio de Azevedo através de O Corti-
ço e Casa de Pensão. Coelho Neto me conquistou - que linguagem
rica, quanta palavra de dicionário! - com o seu Sertão, mas de
todos os seus romances o que mais me impressionou foi Inverno
em Flor. Por mais estranho que pareça, a minha primeira tenta-
tiva para ler Machado de Assis não foi lá muito bem sucedida.
Fiz passeios deliciosos pelos romances de Joaquim Manoel de Ma-
cedo, cuja Moreninha beijei castamente....

A paixão pela leitura e pelas palavras aparece na dedicató-


ria à sua mãe na obra Viagem à Aurora do Mundo: aquele primeiro
dicionário que me deu. O que tanto o impressionou?
A recordação de seus livros escolares remete para algumas
obras significativas do ensino no período, tais como Seleta de Pro-
sa e Verso, de Clemente Pinto; Dicionário Prosódico de Portugal e
Brazil, de João de Deus - além destes, faz referências a uma va-
riedade de leituras e autores que o marcaram: Renan, Stuart
Mill, Tagore, Khayyan, etc.
O romancista também relata em minúcias descritivas todo
o seu processo de educação formal, permitindo ao pesquisador
um certo conhecimento do cotidiano escolar de sua época:
190 O tempo e o vento • 50 Anos

Aos sete anos eu havia sido matriculado no Colégio Elementar


Venâncio Aires. Como já sabia ler passavelmente bem, pude sal-
tar por cima da cartilha primária do uva, ovo, avô e cair num
livro que começava com a estória de duas irmãs, Guiomar e Jú-
lia. Para o menino acostumado aos pitorescos contos de Estevão
- com seus punhais malaios, seus suplícios chineses, duelos e
guerras -, aquelas inocentes fábulas das duas irmãs eram-me in-
suportavemente aborrecidas, a ponto de me provocarem bocejos.
(...) No colégio elementar eu era um aluno bem comportado, sem-
pre fechado no meu silêncio, retraído nas horas de recreio. Por
isso não era lá muito bem querido pelos alunos rebeldes, que me
chamavam de “chaleirista”, de adulador das professoras. Estas
sim, eram minhas amigas, citavam-me como exemplo de bom
comportamento e até de decência, mal sabendo por onde anda-
vam meus pensamentos e sentimentos. Aprendi a soletrar muito
cedo, em casa. Mais tarde, na escola primária, fui um tanto mi-
mado pelas professoras, por causa do prestígio social de meu pai.
Lia corretamente, sabia o meu pouco de História do Brasil, tira-
va boas notas em Lições das Coisas, mas tinha as piores relações
imagináveis com os números, que me causavam vertigens.
Aprendi a duras penas três das quatro operações, mas empaquei
nas contas de dividir. Como se aproximassem os exames de fim
de ano, e eu estivesse correndo o risco de ser reprovado por causa
de Aritmética, D. Margarida Pardelhas, diretora da escola, me
levou a meu pai e lhe disse: “fizemos tudo que estava ao nosso
alcance, mas não conseguimos meter na cabeça desse menino a
conta de dividir”. Pronunciou estas palavras apocalípticas e se
foi no seu passo duro e marcial de coronel prussiano. Fiquei en-
vergonhado, com um calorão nas orelhas. Meu pai me olhou e
disse: “Acabas de receber o diploma de burro”. Depois dessa cena
confiou-me aos cuidados magistrais dum senhor que naquela
época estava hospedado no Sobrado. Chamava-se Miguel Maia,
era franzino, tinha no rosto chupado, de um amarelo citrino,
uma permanente expressão de azedume. Homem inteligente e
culto, lia Nietzsche e Schopenhauer...

Ainda com relação à sua memória escolar, destaca-se o sig-


nificado da passagem do tempo para o autor:

É sabido que o relógio psicológico da infância anda muito mais


devagar que o dos adultos. O calendário das crianças parece fei-
olhai o que o tempo não levou 191

to mais para a eternidade do que para o tempo humano. As ho-


ras de aula arrastam-se como tartarugas monótonas. Como cus-
ta a chegar, todos os anos, o período de férias de verão!

Sobre a professora, a descrição apresentada parece confir-


mar alguns estereótipos ainda presentes no imaginário coletivo.
A primeira professora é assim descrita:

Meus pais me faziam também freqüentar a Aula Mista Particu-


lar da famosa D. Margarida Pardelhas24 – inesquecível figura
de educadora que fez história na nossa cidade e fora dela.(...) D.
Margarida Pardelhas era uma espécie de Nêmesis, temida pelos
alunos insubordinados ou vadios e respeitada e mesmo venera-
da pelos outros. Solteirona de estatura meã, robusta mas não
gorda, usava pince-nez, tinha um par de olhos claros e penetran-
tes, que pareciam ler nossos pensamentos mais recônditos, o lá-
bio superior sombreado por um buço que, quando seu rosto esta-
va sério ou irado, lhe acentuava a expressão de terribilidade.
Sua voz era metálica e autoritária. Tinha, porém, um belo sor-
riso, que parecia reservar para os seus eleitos, isto é, os alunos
que se portavam bem em aula e interessavam-se por aprender.
(...) Pisava duro com seus sapatos de salto militar, e o ruído rit-
mado de seus passos era conhecido de todos, inocentes e culpa-
dos. Quando ela entrava na aula em que a desordem e a balbúr-
dia se haviam instalado, todos se aquietavam de súbito, ao im-
pacto de sua poderosa presença, e dali por diante reinava o si-
lêncio. Recordo-me freqüentemente dessa minha professora atrás
de uma mesa, em cima do estrado, tomando notas num caderno.
Quando se ouviam murmúrios na aula, erguia a cabeça, seus
óculos relampejavam, e ela exclamava: “Ai!Ai!Ai!”. E os ruídos
morriam instantaneamente.

Futuramente, as marcas desse período escolar vão aflorar


quando de uma viagem a Portugal. Erico relembra:

24. Margarida Pardelhas foi aprovada em concurso público urbano a que se submeteu em fevereiro
de 1904, sendo nomeada para reger a segunda classe complementar, seção feminina do Colégio
Distrital de Cruz Alta. Com esse colégio foi extinto, passou a assumir a 6ª aula mista de 2ª entrân-
cia de Cruz Alta. Em 14 de maio de 1913 foi designada para servir no Colégio Elementar de Cruz
Alta, acumulando a função de diretora. Completou 30 anos de serviço em 31 de dezembro de
1934, passando a atuar no Grupo de Navegantes. Diretoria Geral da Instrução Pública. Almanck
Escolar do Estado do RGS. 1935. Porto alegre: Livraria Selbach, 1935. p. 81.
192 O tempo e o vento • 50 Anos

E então de súbito o menino está em Cruz Alta, na Aula Mista


Particular de D. Margarida Pardelhas, de pé junto de sua car-
teira, com a Seleta de Prosa e Verso nas mãos, lendo em voz alta
um trecho de Pinheiro Chagas, intitulado Os Restos do Naufrá-
gio, e que começa assim: Nas praias da Bretanha vivia um pes-
cador com a mulher e um filho...

Ao longo de sua obra, muitas recordações remetem à in-


fância. Durante a recuperação de um enfarte - decidido a conti-
nuar vivo -, são as lembranças de um velho livro de leitura escolar que
lhe povoam a mente, através do desenho linear que ilustrava a Pa-
rábola das Varas.
Na adolescência, Erico é interno em um Colégio fundado
por missionários da Igreja Episcopal Americana - Colégio Cru-
zeiro do Sul, onde permanece três anos (1920-22). No interna-
to, segundo o autor, ... ocupava o quarto número 50, um cubículo es-
treito onde mal cabiam uma cama, um lavatório de ferro com jarro e ba-
cia, e o baú onde eu guardava as minhas roupas. Essa descrição si-
naliza para um regime de enclausuramento do sujeito, que o faz
identificar-se com o protagonista de um de seus textos escolares
- Por essa época líamos e analisávamos em classe Eurico, o Presbítero,
de Alexandre Herculano. (...) Agora naquele internato eu me sentia
como Eurico enclausurado no seu mosteiro.
Nesse aspecto, pode-se inferir que o universo escolar de
Erico é recorrente em suas obras literárias e nas motivações
para escrevê-las, como podemos observar em O Tempo e o Vento:

Antes de começar o ambicioso projeto, eu precisava vencer mui-


tas resistência interiores, a maioria delas originadas nos meus
tempos de escola primária e ginásio. (...) Nossos livros escolares
– feios, mal impressos em papel amarelado e áspero – nunca nos
fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos
em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresen-
tavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecí-
vel de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e caste-
lhanas. (Ganhávamos todas) (...) Concluí então que a verdade
sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a
olhai o que o tempo não levou 193

sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa história, mas


convencido ficava de desmitificá-la.

Em Olhai os Lírios do Campo, para construir o personagem


Eugênio, o autor utiliza de eventos escolares para descrever a
vergonha da pobreza. Eugênio não podia olhar para o pai sem se
lembrar do Segundo Livro de Leitura, cuja lição moral consistia na
frase:

Quem com ferro fere com ferro será ferido. Na aula Eugênio sen-
tiu-se humilhado como um réu. Na hora da tabuada a professo-
ra apontava os números no quadro-negro com o ponteiro e os
alunos gritavam em coro. Dois e dois são quatro! Três e três são
seis! E o ritmo desse coro lembrava a Eugênio a vaia do recreio.
Calça furada-dá.

Eugênio lia as revistas que Erico lia na infância - L’Illustra-


tion. Através desse personagem, também defende que uma das
formas de ascensão de classe social se dá através do desempe-
nho escolar, resignificando a instituição escola como agência
formadora matriz.

Eugênio não tinha outro remédio senão procurar compensação


nos livros. Estudava muito, distinguia-se na sua classe, ocupa-
va os primeiros lugares. Isso lhe valia novas inimizades e essas
inimizades o empurravam cada vez mais para a solidão.

Ao que tudo indica, podemos pensar que Eugênio seria um


alter ego de Erico, haja vista as similaridades da formação escolar
vivenciadas por ambos. Eugênio freqüentou também internato
de missionários americanos - Columbia College - graças ao sacrifício
da mãe - o luxo de freqüentar um colégio de primeira classe era porque a
mãe pagava a pensão e o ensino lavando toda a roupa branca do colégio.
A mulher na obra de Erico é, em geral, uma figura central
e de personalidade forte. Para construir suas personagens femi-
ninas, as insere no universo da escrita como desvelamento de si.
194 O tempo e o vento • 50 Anos

Clarissa, Silvia, Olívia, Bibiana são autoras de diários25 e de car-


tas; entre outras finalidades, servem para apreensão de suas sub-
jetividades. Espaços sacralizados da escrita feminina, os diários
fazem parte de práticas da memória, que o autor, como homem
que não tinha um diário, lamenta não tê-lo feito enquanto es-
crevia O Tempo e o Vento:

Esse jornal não só teria registrado os pensamentos, sentimentos,


dificuldades e dúvidas, ânimos e desânimos do escritor empe-
nhado em fazer o que ele esperava viesse a ser a sua obra máxi-
ma, como os fatos políticos e sociais desses agitados quinze anos
da vida nacional e internacional se refletiram na mente, na
vida e na obra do romancista.

O público infanto-juvenil também mereceu atenção espe-


cial de Erico Verissimo. A Literatura Infantil, no início de sua
carreira, foi um investimento singular. É um período em que a
escolarização infantil é foco da atenção das autoridades gover-
namentais. Na década de 3026, produz vários escritos voltados a
este público, depois reunidos em Gente e Bichos (1956).27 Nestes
textos, ocorre uma associação da criança com os animais huma-
nizados, isto é, os personagens são bichos, bonecos animados,
que assumem características humanas.28

25. Para Goulemot, no diário o autor manifesta sua consciência, sua visão privilegiada por ser comum
e exterior aos fatos, sua vontade de salvar do esquecimento o que viu, escutou ou ouviu dizer. Nes-
sa prática, o sujeito que escreve se coloca como o fundamento da verdade daquilo que enuncia. O
que garante a veracidade do conteúdo do diário paradoxalmente pertence ao não público, ao pri-
vado e ao íntimo, (...) a esse olhar individual, à margem, quase secreto, lançado sobre as coisas e o
mundo. GOULEMOT, J.M. op. cit. p.392. Para Calligaris, os conteúdos do diário são invariavelmen-
te afirmações da substancialidade de quem escreve. (...) de um diário o indivíduo espera identida-
de, significação e valor. CALLIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. p. 50.
26. Os romancistas e a crítica de 30 compartilham a evolução da literatura infantil brasileira. O crescimento quan-
titativo da produção para crianças e a atração que ela começa a exercer sobre escritores comprometidos com a
renovação da arte nacional demonstram que o mercado estava sendo favorável aos livros. Essa situação rela-
ciona-se aos fatores sociais: a consolidação da classe média, em decorrência do avanço da indústria e da mo-
dernização econômica e administrativa do país, o aumento da escolarização dos grupos urbanos e a nova po-
sição da literatura e da arte após a revolução modernista. Há maior número de consumidores, acelerando a
oferta. LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. Literatura Infantil Brasileira. p. 47.
27. Recentemente, o Ministério de Educação divulgou a lista de títulos considerados indispensáveis
em bibliotecas de escolas públicas selecionados entre autores nacionais e clássicos da literatura
para crianças. Nesta lista não consta nenhuma obra de literatura infantil de Erico Verissimo. ZERO
HORA. Caderno de Cultura. Porto Alegre, 6 de março de 1999.
28. Para Filipouski e Zilberman esse tipo de literatura tem a função de fornecer informação científi-
olhai o que o tempo não levou 195

Erico também escreve três obras, caracterizadas como ro-


mances didáticos: Viagem à Aurora do Mundo (1939), Aventuras no
Mundo da Higiene(1939) e As Aventuras de Tibicuera (1937) - essa
última conta, a partir das proezas de um índio imortal, a Histó-
ria do Brasil, tendo como mote a versão oficial escolar da histó-
ria de nosso país, ou seja, Erico assume os mesmos juízos lega-
dos pela visão portuguesa da história brasileira.29
Também para as crianças, Erico aborda temas históricos: es-
creve a biografia de Joana D’Arc (1935) e Viagem à Aurora do Mun-
do (1939), que afirma ser:

Conseqüência dum feriado que concedi à imaginação - não tem


nenhum compromisso com a psicologia nem com a verossimilhan-
ça e muito menos com os problemas sociais do mundo. Trata-se de
uma fantasia quase didática na forma de romance e seu objetivo
principal é dar ao leitor uma idéia do mundo pré-histórico, tal
como os cientistas o reconstruíram.30

Essas obras constituem um projeto político e pedagógico -


como podemos perceber no final do livro A Vida de Joana D’Arc,
em que conta à personagem o que aconteceu após sua morte e
destaca as semelhanças ainda presentes no século XX.

De repente me acho dentro do meu século. Que vejo? Rumores de


guerra na Europa onde ainda há reis sem vontade, conselheiros
astutos e homens solertes que tiram gordos proveitos das guerras.
Existem ainda capitâes bravos (...) e soldados ingênuos que, como
no teu tempo, iam à guerra sem saber para quê. Os tratados se ras-
gam com a mesma facilidade (...). (...) Infelizmente, doce Joana,

ca, moralizante e fantástica, ensinando divertindo. Também, essa produção age como um exercício
preparatório para a vida futura, nos quais a criança adquire noções primárias sobre o meio ambiente através
de uma efabulação com contornos dramáticos que, mesmo possuíndo índole fantástica, volta-se para o real. FI-
LIPOUSKI, Ana Maria e ZILBERMAN, Regina. Erico Verissimo e a Literatura Infantil. p.58-59.
29. LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. op. cit. p. 79.
30. No Prefácio, encontramos referência que a obra de Conan Doyle - O Mundo Perdido -, “fêz que -
sendo já adulto - meu interesse por aqueles monstros pré-históricos revivesse. Procurei dar neste
livro destinado a leitores de todas as idades - leigos como eu na matéria - um história compreen-
siva daqueles truculentos habitantes do mundo antediluviano. Tratei de açucarar a pílula, envol-
vendo a narrativa nos véus do romance e por sinal romance folhetinesco ao qual não faltam o mo-
cinho, a mocinha e nem mesmo o homem mau detentor duma hipoteca...”
196 O tempo e o vento • 50 Anos

ainda não podes voltar ao mundo apenas com o teu vestidinho


vermelho de camponesa, com a roca na mão e um sorriso no rosto.
Terá de usar de novo tua rija armadura (...), a tua espada e teu
grito de guerra. E nem assim estará protegida, porque os homens
de hoje, minha iluminada, são senhores de artimanhas sobrenatu-
rais.31

Do ponto de vista da História da Educação, especial regis-


tro deve ser dado à obra Aventuras no Mundo da Higiene32, por
sua significação para o momento histórico, de organização e
consolidação da Secretaria de Educação e Saúde Pública
(1935). Nessa época, as autoridades governamentais assumem
um discurso de sanitarização da sociedade, especialmente no
tocante às questões de higiene pessoal e social. Essa obra pode
ser considerada um manual de civilidade, que serve ao mesmo
tempo para impor novas condutas através dos modelos altamente va-
lorizados e para excluir necessariamente do espaço público comporta-
mentos que outrora lhe pertenciam.33
Trabalhando na interface entre História, Literatura e Edu-
cação, foi possível o diálogo: o historiador da educação, enrai-
zado nas condições do mundo contemporâneo, busca interpre-
tar práticas de memória expressas via literatura. Para esse olhar
passageiro na obra de Erico Verissimo, nos arriscamos pelos ca-
minhos do apenas imaginável, onde seguindo misteriosas pega-
das foi possível entrever, nas sombras da memória, o doce, o su-
blime, o interdito, o proibido, o permitido, o sonhado...
Finalmente, parece importante lembrar que essa experiên-
cia de interpretação não descartou a imaginação produtiva: abar-
cou outros campos disciplinares como constantes interlocuto-
res, levando em conta a possibilidade da inclusão de represen-
tações, metáforas e imagens variadas no trato histórico. Assim,

31. VERISSIMO, Erico. A Vida de Joana D’Arc. p. 310-311.


32. Maria Dinorah Luz Prado, na dissertação de mestrado sobre a literatura infantil de Erico
Verissimo, não cita e nem faz referência a esta obra.
33. GOULEMOT, Jean M. op.cit. p.373.
olhai o que o tempo não levou 197

entre um e outro - discurso ficcional e discurso histórico - esta-


belecem-se arriscadas e sedutoras relações, em alguns momen-
tos do seu percurso muito próximas, como tentamos olhar e tra-
çar um caminho pela vasta obra de Erico Verissimo.

* Doutora em História e Filosofia da Educação, UFRGS.


** Doutora em História e Filosofia da Educação, UDESC/UFSC
“Maria Valéria sempre lamentara que os homens não tivessem juízo suficiente para resolverem suas
questões – as políticas e as outras – sem duelos ou guerras.”
Arquipélago – Lenço Encarnado
O CICLO DE VARGAS SEGUNDO VERISSIMO

René E. Gertz*

A partir dos livros de Hélio Silva, popularizou-se a expres-


são “ciclo de Vargas”. Para ele, esse ciclo iniciou-se em 1922,
mas seu fechamento pode ser tanto o ano da morte de Vargas,
em 1954, quanto o do golpe militar de 1964, porque visou o le-
gado getulista e porque seus protagonistas militares se viam na
linhagem dos de 1922. Para o início, costuma indicar-se como
batizador fundamental o levante de jovens oficiais, os “tenen-
tes”, no Rio de Janeiro, movimento continuado em 1924, em
São Paulo e no Rio Grande do Sul, e depois na Coluna Prestes.
Mas deve-se agregar outros episódios, como a fundação do Par-
tido Comunista, fator que, no decorrer do tempo, reforçou o
surgimento de sentimentos anticomunistas e de propostas para
lidar com a “questão social”; a realização da Semana de Arte
Moderna, a partir da qual vários artistas e intelectuais começa-
ram a repensar o Brasil; a fundação do Centro D. Vital, impor-
tante local de articulação político-religiosa do catolicismo. Com
certeza não está errado incluir as eleições ao governo do Rio
200 O tempo e o vento • 50 Anos

Grande do Sul, pois seu desfecho desencadeou a revolução de


1923, que só acabou com a fixação de um término para o longo
domínio de Borges de Medeiros, abrindo caminho para a ascen-
são política de Vargas. E esses episódios todos estavam emoldu-
rados pelos festejos do centenário da Independência.
O “ciclo de Vargas” ocupa espaço importante em O Tempo e
o Vento. Aparece no início do segundo terço da obra, ao abrir –
e também fechar – O Retrato, e ocupa todo O Arquipélago. O fato
de a trama terminar em meio ao período, em 1945, sugere que,
para o autor, a história do Estado percorreu um caminho deci-
sivo entre 1745 e 1945. Claro, Vargas não aparece desde o iní-
cio (em 1922), tanto na história real quanto na ficção, como
peça-chave desse período de significativas transformações. Pelo
contrário, foi antes responsável pelo continuísmo, quando nes-
se ano exerceu o cargo de presidente da comissão escrutinado-
ra das eleições em que Borges concorreu pela quinta vez ao go-
verno do Estado e necessitava de 75% dos votos para se reele-
ger. A comissão presidida por Getúlio conseguiu, por meio de
alquimias usuais na época, produzir um resultado em que esse
percentual foi atingido.
Como acontece com todo o período abarcado pelo roman-
ce, a história referente ao “ciclo de Vargas” aparece em vários
níveis e sob várias formas. Quanto aos níveis, temos desde os
mais profundos sobre as transformações econômicas, sociais, re-
ligiosas, culturais, até o mais cambiante dos episódios políticos
do dia-a-dia. Quanto às formas, temos, no mínimo, duas: a his-
tória narrada pelo autor e as versões das personagens.
O período Vargas foi rico em transformações econômicas.
O Brasil iniciou uma transição decisiva de uma economia essen-
cialmente agrária para uma economia mais urbanoindustrial.
Seja porque esse processo não afetasse muito profundamente a
economia gaúcha, que no início do século ocupava o terceiro
lugar no ranking nacional de industrialização, perdendo grada-
o c i c lo d e va r g a s s e g u n d o v e r i s s i m o 201

tivamente essa posição, seja porque Erico Verissimo não tivesse


tido muita familiaridade com assuntos econômicos, esse aspec-
to – e outros – da história econômica está parcamente refletido
em O Arquipélago. Há, evidentemente, referências genéricas à
crise da pecuária, mas a apresentação de fatos concretos não vai
muito além da bancarrota do Banco Pelotense. Referências a as-
pectos culturais, em contrapartida, estão onipresentes, caracte-
rizando de forma convincente a crescente influência norte-ame-
ricano desde a I Guerra, sobretudo por meio do cinema e da
música; mas persistem também debates antigos, incluindo lite-
ratura e filosofia, entre francófilos, germanófilos e , agora, ame-
ricanófilos.
Cabem algumas observações menos banais sobre as trans-
formações sociais e religiosas. Em vários momentos, as persona-
gens do romance apontam a decadência da aristocracia rural e a
emergência da sociedade colonial como o fato social mais im-
portante do período, aparecendo quem temesse a “agringalha-
ção” do Rio Grande. A pesquisa histórica aponta para a correção
dessa percepção, ao menos no que tange ao segundo elemento.
Santa Fé fica numa zona limítrofe entre esses dois mundos.
Se dividirmos o Estado através de uma linha imaginária de
São Borja a Osório – com exclusão do município de Porto Ale-
gre – definindo, cum grano salis, os dois mundos, veremos que
pelo censo de 1920 ambos tinham mais ou menos o mesmo nú-
mero de habitantes, mas pelo censo de 1940 o número de habi-
tantes da metade Norte se tornara 50% superior ao do Sul. To-
dos os indicadores socioeconômicos desse mesmo ano também
apontam para a superioridade do Norte em relação ao Sul. O
associativismo econômico colonial crescia, com a reestrutura-
ção da católica União Popular em 1926 e a fundação da lutera-
nófila Liga de Uniões Coloniais em 1929, esta última com atua-
ção muito intensa na região de Cruz Alta. Mas – na medida em
que a educação constitui um indicador social – a elite universi-
202 O tempo e o vento • 50 Anos

tária em 1940 ainda era mais numerosa no Sul, com 2.695 indi-
víduos com curso superior, contra 2.138 no Norte, e nesse sen-
tido os diálogos de O Arquipélago – mesmo desconsiderando fa-
tores culturais – soariam deslocados na região colonial.
A religiosidade do mundo gaúcho tradicional certamente
não era muito intensa. O “ciclo de Vargas”, no entanto, coinci-
de com um movimento nacional de renovação do catolicismo e
com desafios representados pelo ingresso de confissões protes-
tantes de origem não-imigrantista. E diante desse quadro estru-
tura-se no Rio Grande do Sul uma Igreja Católica fortemente
marcada por traços coloniais – o que não é necessariamente a
mesma coisa que alemão ou italiano: a liberal madre superiora
do colégio de Santa Fé viera da Alemanha, já o vigário era de
“origem” alemã. D. João Becker governava desde 1912 a arqui-
diocese de Porto Alegre, permanecendo nela até sua morte, em
1946. Na década de 1920, o encontramos tentando ampliar sua
influência política, candidatando-se a mediador do conflito de
1923. Em 1929, iria colocar um de seus mais estreitos colabora-
dores, monsenhor Nicolau Marx, numa cadeira da Assembléia
de Representantes, de cuja tribuna sairia em defesa da candida-
tura de Getúlio Vargas em 1930, contra as acusações de ateísmo
positivista formuladas por grande parte do clero do restante do
país. Além de Marx, a equipe em torno do arcebispo incluía
nomes como José Barea e Vicente Scherer. Das 47 funções pas-
torais de Porto Alegre em 1940, 30 estavam ocupadas por pa-
dres de sobrenome alemão ou italiano. No restante da arquidio-
cese, 101 do total de 119 paróquias eram presididas por padres
de sobrenome alemão ou italiano.
É, porém, ao nível da política – para os historiadores, o
mais imediato e cambiante – que se destaca com intensidade
não só a percepção, mas também a pesquisa histórica de Erico.
É natural que nem toda a história política do romance seja uma
história “verdadeira” – o autor mistura personagens e fatos fic-
o c i c lo d e va r g a s s e g u n d o v e r i s s i m o 203

tícios com a história real e os diferentes personagens apresen-


tam suas versões. Mas não raro impressiona a precisão com re-
lação aos fatos. Nesse sentido, por exemplo, efetivamente acon-
teceram os incidentes referidos sobre Neu-Württemberg –
nome real de Panambi, na época – durante a Revolução de
1923, e o presidente eleito Washington Luís de fato visitou o Es-
tado na primeira semana de junho de 1926.
Mas acontece um fato curioso. O cidadão interessado na
história política do Rio Grande do Sul encontrará pouquíssi-
mos trabalhos sobre o período que vai além de 1937. Uma das
raras exceções é o livro Gaúcho Politics, do brazilianista norte-
americano Carlos Cortés, que está aguardando uma tradução
desde 1947. O livro cobre os anos de 1930 a 1964, mas, interes-
santemente, ao tratar do período de 1937 a a 1945, como que
levanta vôo, pois as informações sobre o estado são muito escas-
sas, havendo um certo detalhamento da política nacional.
Com Erico parece acontecer algo parecido, talvez por ou-
tra razões. Sua história política do Rio Grande do Sul é bastan-
te detalhada até 1927, mas sofre uma inflexão a partir desse
ponto. O governo estadual getulista de 1928 a 1930 ocupa mui-
to espaço e, a partir de 1930, os personagens centrais transfe-
rem residência para o Rio, de forma que a história passa a ser
relatada a partir dessa perspectiva federal, o que ocorre conco-
mitantemente com o abandono do detalhe. Para uma saga gaú-
cha, causa estranheza a ausência de referências significativas a
Flores da Cunha, que, afinal, governou o estado de 1930 até
1937; há muito maior destaque para sua atuação anterior a esse
período. E Cordeiro de Farias, na qualidade de interventor de
1938 a 1943, não aparece.
Depois de ter proclamado o Estado Novo, em 10 de novem-
bro de 1937, Getúlio deixou o irmão Protásio como supervisor
de seus interesses pessoais e políticos no Rio Grande do Sul. Na
sua correspondência, encontramos freqüentes cartas do irmão
204 O tempo e o vento • 50 Anos

com avaliações sobre o desempenho de Cordeiro de Farias


como interventor. No início de 1938, Protásio julgou que havia
muito pouco entusiasmo em torno do novo regime no Estado.
Por isso, criou um Comitê Propaganda, presidido por Viriato
Vargas, que, entre outras medidas, passou a irradiar aos sábados
pela manhã, através da Rádio Farroupilha, pequenas falas de in-
telectuais a favor da nova situação. Logo no início desse movi-
mento, em abril de 1938, Erico Verissimo compareceu a um
desses programas, sendo sua fala posteriormente publicada no
Jornal do Estado (25/4/1938). Começou contando uma histó-
ria sobre o que costumava acontecer no Brasil, onde, em virtu-
de dos excessos do federalismo, a luta entre facções locais e en-
tre os Estados prejudicava o país, aviltando, por exemplo, o va-
lor de sua moeda: “E nessa cegueira caminhávamos para a gran-
de catástrofe. E é desse desastre que o Estado Novo nos procu-
ra livrar”. A idéia de que a política local e regional deixaria de
ser a determinante e que, portanto, teríamos uma verdadeira
política, a nacional, estava bem presente, justificando possivel-
mente o próprio abandono da história regional: “O Estado
Novo em última análise pretende fazer com que os brasileiros,
desde o mais humilde até o mais importante, política e social-
mente, deixem de olhar para a sua barriguinha e ergam os
olhos e pensem no Brasil como um todo”. A partir dessa avalia-
ção, foi além, mostrando-se bem prático, ao abordar a questão
da nacionalização do ensino nas assim chamadas “escolas es-
trangeiras” : “Senti sempre a necessidade da nacionalização do
ensino. Ela aí está”. Endossou aquilo que imaginava ser a políti-
ca externa do novo regime, destacando que o Brasil por nature-
za renegava o racismo e precisava praticar uma “política de
aproximação pan- americana”. Confessou que mudara sua opi-
nião sobre o regime entre novembro de 1937 e abril de 1938:
naquela data, pensara que se estava diante da concretização da
ditadura integralista, “mas os fatos, meus amigos, tomem nota:
o c i c lo d e va r g a s s e g u n d o v e r i s s i m o 205

os fatos se encarregaram de provar que felizmente eu me enga-


nara. Nem esquerda nem direita, mas sim o centro, que é o
equilíbrio e o bom senso. Nenhum homem de boa vontade
pode negar o seu apoio ao Estado Novo”.
No romance, essa posição aparece quase ipsis verbis numa
fala de Rodrigo Cambará em defesa do regime; mas Rodrigo,
evidentemente, não reflete o pensamento de Erico Verissimo.
Se olharmos para aquilo que Floriano pensa sobre o Estado
Novo, veremos que ele se sente culpado por esse regime, cúm-
plice “por comissão ou omissão”. Suas principais críticas são a
prática de todo tipo de violência e a não-eliminação das maze-
las da velha política regional: empreguismo, corrupção, negó-
cios escusos. Talvez tenha sido essa decepção que levou o ro-
mancista a não investir pesado na pesquisa histórica sobre o
próprio Vargas.

* Doutor em História, UFRGS/PUCRS.


“Em 1850 a vila de Santa Fé foi elevada a cabeça de comarca e seu primeiro juiz de direito, o Dr.
Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, natural do Maranhão, veio morar com a esposa numa das
casas de alvenaria que o Cel. Bento Amaral mandara recentemente construir na Rua dos Farrapos.”
O Continente – A Teiniaguá
A Identidade Sul-rio-grandense no
Imaginário de Erico Verissimo

Heloisa Jochims Reichel*

A identidade é uma definição posicional de


indivíduos dentro de instituições e socieda-
des.

Raúl Béjar Navarro 1

Entre as inúmeras abordagens que a obra O Tempo e o Vento


de Erico Verissimo possibilita, escolhemos identificar e analisar
as representações que, no imaginário do autor, aparecem como
elementos fundantes da identidade sul-rio-grandense. Para tal,
selecionamos a primeira parte da mesma, a qual se apresenta
sob o título de Ana Terra.2
Para justificar nosso enfoque, inicialmente, destacamos a
relevância de que se reveste, para o processo de construção e de
afirmação da identidade coletiva de uma sociedade, um texto
que, escrito por um reconhecido autor como Erico Verissimo,
narra as origens de sua formação. Para que as representações
de um romancista, aqui entendidas como construções mentais
subjetivas e apresentadas de forma ficcional, sem compromisso
com a objetividade do real, alcancem o estatuto de verdade e

1. NAVARRO, Rául, Béjar; CAPELLO, G. Héctor Manuel. Bases teóricas y metodológicas en el estudio de
la identidad y el carácter nacionales. Cuernavaca: Universidad Autónoma de México, 1990. p. 24.
2. VERÍSSIMO, Erico. Ana Terra. 9 ed. Porto Alegre: Globo, 1977.
208 O tempo e o vento • 50 Anos

atuem como marcas identitárias, é necessário que dois elemen-


tos se conjuguem: deve haver uma relação entre a narrativa do
enunciador e as vivências econômicas, sociais, políticas e cultu-
rais do grupo receptor, como também o reconhecimento, pelos
membros deste grupo, da autoridade do autor do discurso.
Bourdieu alerta para a relevância deste reconhecimento quan-
do afirma:

O acto de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou


quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder
por si... A eficácia do discurso performativo que pretende fazer
sobrevir o que ele enuncia no próprio acto de o enunciar é pro-
porcional à autoridade daquele que o enuncia...3

Se considerarmos a identidade como um ato consciente de tra-


zer à existência um grupo que passa a ter uma visão única de sua iden-
tidade e uma visão idêntica da sua unidade, isto quer dizer, uma per-
cepção de alteridade em relação a outros grupos sociais e de per-
tencimento a um em especial, podemos dizer que o romance de
Erico pode ser considerado como um discurso regionalista que
contribui significativamente para a aceitação coletiva de determi-
nadas representações como sendo próprias da identidade sul-rio-
grandense.4
As idéias, as imagens, os valores, as atitudes ou os estereóti-
pos descritos num texto podem expressar o conteúdo de uma
identidade e atuar na construção dos sentimentos de pertença e
de alteridade. Mas como todo o grupo tem necessidade de co-
nhecer sua origem, aquelas representações vão desempenhar
este papel tanto quanto mais estiverem compromissados a dar co-
nhecimento das condições de nascimento do próprio grupo. Em
outras palavras, o que queremos afirmar é que as representações

3. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Rifel, 1989. p.116.


4. Para Bourdieu, “ O discurso regionalista é um discurso “performativo”, que tem em vista impor
como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a “região”
assim delimitada....”. [Op. cit., p.116].
a identidade sul-rio-grandense 209

construídas por um autor acerca das origens de um grupo, seja


ele político, social, étnico etc, têm uma força determinante no
processo de construção de sua identidade. Daí advém, pois, a im-
portância do texto de Ana Terra, no qual Erico Verissimo procu-
ra dar a conhecer aos receptores privilegiados do mesmo que são
os sul-rio-grandenses, os elementos constitutivos e o processo de
gestação deste grupo regional.
Seria, assim, o momento de perguntar quais as principais
representações sobre a formação da sociedade sul-rio-gran-
dense que se fazem presentes na obra de Verissimo a ponto de
podermos considerá-la como peça importante no estabeleci-
mento da comunidade de sentido em que se constitui a identi-
dade. Antes, porém, nunca é demais referir que as representa-
ções se constituem de construções imaginárias que se apoiam
em dados concretos do real, reapresentando-os através de ima-
gens e de palavras, através dos quais se realiza uma atribuição
de sentido.
A principal idéia que queremos destacar porque perpassa
todo o livro é a de formação e delimitação de fronteira, como li-
nha que divide os territórios do eu e do outro. Ela é fundamen-
tal para a identificação e reconhecimento daqueles que estão
dentro do continente como integrantes da sua coletividade e
aqueles que a ele não pertencem, como os diferentes. Através de
uma linha imaginária que vai sendo traçada, o sentimento de
pertença e o de alteridade vão sendo construídos. Nesse sentido,
é evidente o papel de outro que Erico Verissimo atribui aos caste-
lhanos e, para que as diferenças sejam rapidamente assimiladas
pelo leitor, a representação dos mesmos como bandidos e inva-
sores. Episódio ilustrativo, encontramos no assalto à casa de Ana
Terra e seus pais quando Pedro ainda era menino. Num mesmo
parágrafo, há a identificação dos invasores como castelhanos e
bandidos e, logo a seguir, o uso de palavras em espanhol, ajudan-
do a construir a imagem do hispânico como o outro:
210 O tempo e o vento • 50 Anos

Combinaram tudo. Antonio sairia para se entender com os cas-


telhanos enquanto os outros ficariam dentro de casa, preparados
para tudo. Se os bandidos quisessem apenas saquear a estância,
respeitando a vida das pessoas, ainda estaria tudo bem. Era só
apear e começar a pilhagem...5

A gritaria continuava. Mãos fortes agarravam Ana Terra no ar,


e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para ela
faces tostadas, barbudas, lavadas em suor.
– Mira que guapa!” 6

A fronteira, como território reconhecido como propriedade


coletiva por onde se pode transitar com segurança e oficialmen-
te, inspira, também, o espaço e o tempo trabalhados pelo autor
em seu livro. O período delimitado entre os anos de 1777 e
1811 é fundamental para a delimitação do atual território do
Rio Grande do Sul pois, além de seu início ser marcado, como
refere Erico, pela expulsão dos espanhóis das terras do continen-
te, ele corresponde ao momento da expansão portuguesa para
o oeste e para o sul da linha de Tordesilhas. Corresponde, as-
sim, a um momento de construção de novas fronteiras, quando
o território se estendeu até o rio Uruguai, através da anexação
da área missioneira e, ao sul, foram ocupadas as terras que cor-
respondiam aos campos neutrais.
Além de se referir a um período de crescimento e, portan-
to, de conquistas, a obra narra o domínio do território da cam-
panha rio-grandense, espaço que os construtores da identidade
rio-grandense, numa perspectiva homogenizadora, identificam
como berço da cultura regional típica. É sugestiva, assim, a idéia
de fronteira móvel que se faz presente na descrição de uma cons-
tante interiorização e ocupação de novas terras, além das do po-
voado mais avançado na fronteira legal, que surgira em 1756

5. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 95.


6. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 96-7.
a identidade sul-rio-grandense 211

com a fundação do forte de Rio Pardo. Assim aconteceu com os


pais de Ana Terra, quando vieram se instalar no Rio Grande do
Sul e quando, após perder quase toda família, ela mudou-se
para a zona missioneira. A imagem que nos passa o autor é de
que as terras estavam vazias e a concessão de sesmarias aos mili-
tares, pelo governo português, é que provocava a sua efetiva
ocupação e povoamento. O cenário construído em torno da es-
tância Santa Fé e de seu proprietário, o militar e estancieiro Ri-
cardo Amaral, serve para atribuir o sentido de legitimidade à
ocupação portuguesa, porque ela ocorreu em território desocu-
pado e foi lenta e gradual. Nesta mesma direção, a conquista do
território missioneiro, em 1801, significou apenas o reconheci-
mento oficial de um espaço já povoado por luso-brasileiros de
fato. Sendo assim, podemos dizer que, com este sentido, o ima-
ginário do autor se embasou na interpretação portuguesa de
que a ocupação se legalizava através do uti possidetis.
As partes do texto que se detém no personagem Ricardo
Amaral servem para, igualmente, fortalecer os sentimentos de
pertencimento dos sul-rio-grandenses à nacionalidade luso-bra-
sileira e os de alteridade em relação aos castelhanos do Prata.
Baseado em acontecimentos históricos que antecederam a to-
mada das Missões, o autor constrói uma comunidade (o nós)
em que todos são de origem portuguesa ou, pelo menos, estão
sob a guarda e a tutela do responsável pela defesa do território
e representante legal do governo luso. Exemplo encontramos
na cena em que Ricardo Amaral relata ter sido recebido em au-
diência pelo governador. O espanhol mais uma vez aparece
como o inimigo, o outro. Diz:

General, preciso que o governo me conceda mais sesmarias para


as bandas do poente. Vossa mercê precisa saber que meus campos
ficam a dois passos do território inimigo. Mais cedo ou mais tar-
de os castelhanos nos atacam de novo...7

7. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 122.


212 O tempo e o vento • 50 Anos

A representação da sociedade sul-rio-grandense, formada a


partir da união de portugueses com índios missioneiros consti-
tui-se em outra marca da identidade regional que integrava o
imaginário de Erico Verissimo. Ao vincular a origem da família
de Ana Terra ao tropeirismo, atividade econômica que encon-
trou seu auge no período que corresponde ao do romance, o
escritor nos apresenta a sua representação acerca da origem ét-
nica predominantemente portuguesa da sociedade gaúcha. Se-
gundo ele, os portugueses desceram de São Paulo com a finali-
dade de levar o gado do sul para os mercados do centro do país
que se encontravam em franca expansão, dado o desenvolvi-
mento da atividade mineradora inicialmente e, mais tarde, a ex-
pansão urbana das cidades do sudeste do país. A partir da circu-
lação pelos campos do continente, do crescimento do mercado
interno e a presença das vias de comunicação e dos caminhos
das tropas, alguns tropeiros, como foi o caso do pai de Ana Ter-
ra, mostraram interesse em se fixar nas terras do continente, co-
meçando a surgir algumas pequenas propriedades. As terras
passaram a ser exploradas por homens livres que as compravam
ou, na maioria das vezes, simplesmente as ocupavam, tornando-
se posseiros que se dedicavam a produzir gêneros de subsistên-
cia, possuíam um pequeno número de cabeças de gado e, às ve-
zes, alguns escravos.
Para Erico Verissimo, o sul-rio-grandense é um mestiço,
como todo o brasileiro. Nesse sentido, segue as versões apresen-
tadas por importantes e reconhecidos intelectuais brasileiros,
como Silvio Romero e Gilberto Freyre, que vinham, desde as
primeiras décadas do século XX, contribuindo com reflexões
sobre a identidade e o caráter nacionais brasileiros. segundo
versões autorizadas apresentadas pela sociologia brasileira. Para
o romancista, porém, a mestiçagem do gaúcho é peculiar em re-
lação a dos demais brasileiros. Ela é composta da união de san-
gue branco com o do indígena, sendo que este aparece de for-
a identidade sul-rio-grandense 213

ma bem menos expressiva. O negro é muito pouco considera-


do, como atestam os papéis de meros figurantes destinados aos
homens de cor em seu romance.
O nascimento do filho de Ana Terra e de Pedro Missionei-
ro retrata esta situação. O elemento de caráter permanente é o
português. Ana Terra é a mãe e a figura que cria e permanece
junto ao filho, transmitindo-lhe sua cultura. O índio missionei-
ro tem uma participação tão fugaz na formação da sociedade
quanto a duração de seu personagem no romance. Dele, só o
que interessava era a figuração enquanto contribuição racial.
Da sua cultura, dos seus valores quase nada se aproveitou, o que
é bem representado pela fala escassa do personagem Pedro Mis-
sioneiro.
A contribuição da etnia indígena fica restrita apenas ao
grupo dos índios aculturados. Pedro Missioneiro representava o
índio guarani que fora aproveitado pelos portugueses para tra-
balhar nas estâncias, era dócil, convertido e, consequentemen-
te, não engrossava as hordas de índios selvagens e infiéis que se
encontravam do outro lado da fronteira e eram aliadas dos cas-
telhanos. O índio que formou o mestiço sul-rio-grandense era o
pacífico, ordeiro, trabalhador e, ainda mais, conhecedor das ar-
tes e ofícios que atendiam as necessidades de trabalho e lazer
da sociedade que se formava.
As representações construídas por Erico Verissimo acerca
das origens e da composição étnica da sociedade sul-rio-gran-
dense integravam um imaginário que era partilhado por boa
parte da intelectualidade gaúcha e, sendo assim, caminhava a
passos largos para assumir a posição de um imaginário de toda
esta sociedade acerca da sua identidade.
Para nos fazermos entender acerca do que afirmamos acima,
se faz necessário reportarmo-nos ao contexto político e, principal-
mente, ao debate sobre a identidade dos sul-rio-grandenses que se
fazia presente na sociedade do Estado à época da produção do ro-
mance, em especial entre os seus intelectuais.
214 O tempo e o vento • 50 Anos

Desde o início do século atual, o Rio Grande do Sul estrei-


tara sua vinculação com o Brasil, tanto na esfera política quan-
to na econômica. O federalismo representativo que a Repúbli-
ca adotara como sistema de governo era uma antiga reivindica-
ção de parte dos gaúchos. Além disso, a modernização e a ex-
pansão da cafeicultura exportadora bem como o incremento da
urbanização, estimulados pela adoção da mão de obra livre e da
mudança de regime político, faziam com que fosse se consoli-
dando o mercado interno brasileiro, do qual o Rio Grande do
sul era importante abastecedor.
No campo da literatura e das artes, mais especificamente
após a Semana de Arte Moderna, o nacionalismo passara a ser
uma idéia que inspirava toda a produção, fenômeno que seria
enriquecido ainda mais pelo surto nacionalista que seguiu a Re-
volução de 30 e a Segunda Guerra Mundial.
Alguns estudos sobre a historiografia produzida acerca da
história do Rio Grande do Sul8 têm mostrado, com muita pro-
priedade, a presença de duas vertentes que se diferenciam no
que diz respeito às origens da sociedade sul-rio-grandense: a
vertente hispânica, que aceitava a participação de influências
vindas do Prata espanhol e a vertente lusitana, que defendia a
exclusividade lusa na formação do Rio Grande do Sul.
À época em que Erico Verissimo escreveu sua obra, a ver-
tente lusitana se apresentava com grande força e projeção, inse-
rida que estava em uma conjuntura que se caracterizava por um
intenso nacionalismo. O crescimento da economia com base na
indústria e no mercado interno nacionais, bem como a presen-
ça de um governo central que defendia a presença do Estado
no processo desenvolvimentista, características econômico-polí-
ticas do momento, haviam se iniciado no governo de Getúlio
Vargas, um gaúcho, na década de trinta.

8. Destaca-se principalmente o trabalho de GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Por-


to Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992.
a identidade sul-rio-grandense 215

O período do governo Vargas possibilitou grande projeção


e acesso ou intimidade com o poder aos intelectuais da verten-
te lusitana. Aurélio Porto, ao ser nomeado, em 1932, para atuar
junto à direção do Arquivo Nacional, foi um dos principais res-
ponsáveis pelo fortalecimento da historiografia lusitana e enga-
jamento dos círculos literários na campanha de, definitivamen-
te, integrar a origem lusitana no imaginário da sociedade sul-
rio-grandense. A importância do trabalho de Aurélio Porto para
o predomínio da vertente lusitana, ao ordenar e publicar vasta
documentação sobre o Rio Grande do Sul, especialmente sobre
o movimento farroupilha, junto aos arquivos nacionais, foi bem
apreendida pelo padre Luís Gonzaga Jaeger, S.J., quando escre-
veu o prólogo à segunda edição da importante obra do historia-
dor, História das Missões Orientais do Uruguai:

No entanto, os anos foram correndo; mas a História do Rio


Grande do Sul não ficou estacionária. Foi se delineando cada
vez mais nítida, graças a novas achegas e documentos desconhe-
cidos, antes soterrados sob a poeira de arquivos europeus e sul-
americanos, desenterrados pouco a pouco pelos estudiosos do
nosso passado. Um dos que mais aprofundaram a História do
Rio Grande do Sul foi incontestavelmente AURÉLIO PORTO...
Teschauer9, em geral, conforme alguns críticos, se mostra com-
placente para com os espanhóis, aos quais defende na maioria
dos casos, ao passo que se manifesta mais rigoroso no julgamen-
to dos luso-brasileiros É que o ilustre historiógrafo se abeberou
precipuamente em fontes de origem hispânica, além dele próprio
pertencer à Companhia de Jesus, tão sacrificada pela política ex-
pansionista dos portugueses e a ação hostil dos bandeirantes.
Por sua vez, Aurélio Porto carrega as cores no campo oposto pe-
las razões contrárias e ainda por seu acendrado nacionalismo10

9. O padre Carlos Teschauer. S.J. publicou, em 1818, o primeiro dos três volumes da sua HISTÓ-
RIA DO RIO GRANDE DO SUL DOS DOUS PRIMEIROS SÉCULOS, a qual pode ser classifica-
da como integrante da vertente hispânica. (nota nossa)
10. JAEGER, P. Luis Gonzaga, S. J. Aurélio Porto e sua história das Missões Orientais do Uruguai -
Prólogo da segunda edição.In: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai – 1ª
parte. Porto Alegre: Selbach, 1954, p. 5 e 6.
216 O tempo e o vento • 50 Anos

Aurélio Porto publicara Notas ao Processo dos Farrapos, em


quatro volumes de Documentação das Publicações do Arquivo
Nacional, de 1933 a 1936 e, após vários outros trabalhos, em
1943, sua História das Missões Orientais do Uruguai, obras que ti-
nham grande repercussão junto aos intelectuais gaúchos. Estes
passaram a constituir uma comunidade que defendia as mesmas
idéias acerca da identidade do sul-rio-grandense e, por pode-
rem usufruir das vantagens de quem estava junto ao poder, en-
contraram canais expressivos para divulgação de suas concep-
ções junto à população. Erico Verissimo era apenas um deste
grupo de intelectuais, que também contava com a participação
de Moysés Vellinho, Othelo Rosa, Carlos Reverbel entre outros.
Concluindo, podemos afirmar que foi lendo as obras de
historiadores da vertente lusitana, seus contemporâneos e mui-
tas vezes colegas de ofício que com ele compunham uma con-
fraria, que Erico Verissimo foi construindo as representações
que nos apresenta em sua obra. Sem dúvida, ela pode ser consi-
derada como fortemente engajada na tarefa de transferir este
imaginário individual ou de grupo ao imaginário coletivo da so-
ciedade sul-rio-grandense. E, sem dúvida, sua competência para
tal foi e é inquestionável.

* Doutora em História, UNISINOS.


¨Naquele dia chegou Toríbio. Desde que soubera da notícia do levante de São Paulo – confessou –
andava pisando em brasas, sentindo ‘comichões no cabo do revólver’.”
O Arquipélago – Um Certo Major Toríbio
A Abolição da Escravatura a Serviço
da República - Leitura Política
Do Episódio Ismália Caré

T e ó f i lo Oto n i Va s c o n c e lo s Tor r o n t e g u y *

A Trama Ficcional

O narrativo repousa na situação de impasse político quan-


do da propaganda republicana. A contradição existente era a
de libertar os escravos e, ao mesmo tempo, manter o poder dos
grandes proprietários. Da mesma maneira, promover a Repúbli-
ca e estabelecer o novo, sem que as camadas elitistas da socieda-
de perdessem o domínio econômico, social e político.
A localidade, Santa Fé, era dominada por duas famílias la-
tifundiárias: a dos Amarais e a dos Cambarás. A primeira era li-
derada pelo venerando Coronel Bento Amaral, enquanto que a
segunda era liderada pelo jovem Licurgo Cambará, descenden-
te de Rodrigo Cambará. Na ocasião, dia 23 de junho de 1884,
chegou a notícia que o governo provincial havia elevado a Vila
ao status de cidade. Os liberais programaram, imediatamente,
uma festa comemorativa, incluindo missa com te deum.
O Coronel Bento Amaral lutou contra os farroupilhas e foi
líder dos conservadores. Mais tarde, ele, sua família, seus empre-
220 O tempo e o vento • 50 Anos

gados e correligionários, ingressaram no Partido Liberal. Man-


tinha um jornal político, “O Arauto”, escrito pelo jornalista
Manfredo Fraga, subserviente ao velho Amaral.
Licurgo Cambará, embora jovem, mantinha a tradição re-
publicana da família enquanto sua avó, Bibiana, detinha o po-
der sobre todos os cambarás. Influenciado pela propaganda re-
publicana e, principalmente, pelo Dr. Toríbio Rezende, Licurgo
entregou-se à causa abolicionista. Dr. Rezende era um jovem
baiano que, com a sua oratória, encantava os republicanos. Este
redigia o jornal “O Democrata”, de orientação republicana e
abolicionista. Licurgo e Dr. Rezende eram os líderes do Clube
Republicano de Santa Fé.
Enquanto os liberais estavam programando os festejos co-
memorativos da elevação do local em cidade, os republicanos
programaram uma solenidade, no Sobrado, onde 31 escravos
receberiam a carta de manumissão.
Pela cidade correram boatos de que haveria conflito entre
as duas facções. A população, assistente diante da espectativa de
luta, preocupava-se, enquanto os jornais preparavam seus edito-
riais defendendo seus pontos de vistas.
A noite de 23 para 24 foi ruim para Licurgo. Ele teve sonho
aflito. Sonhou que ora andava a cavalo e ora andava a pé. Usa-
va roupa vermelha com turbante de mouro. Distribuía, ao mes-
mo tempo, títulos de manumissão e pontaços de lança. Estava
envolvido numa luta entre mouros e cristãos. Fazia parte de
uma quadrilha de lanceiros. Seu par, às vezes era sua prima Ali-
ce, outras vezes, Ismália Caré. Sentiu agonia naquela noite.
Acordou pensando que seu casamento com Alice já estava pre-
parado e marcado. Todavia, mantinha uma amante: Ismália
Caré.

Dona Bibiana pediu que o neto deixasse aquela china. Ele pen-
sou, e sua vontade era outra. Alice, sua prima, tinha dotes para
ser uma boa dona de casa. Ele a considerava bonitinha. Com
a a b o l i ç ã o d a e s c r avat u r a a s e r v i ç o d a r e p ú b l i c a 221

certeza, ela daria uma boa esposa e boa mãe. Olhava Alice com
respeito, pois logo ela seria sua esposa. Mas, ele não conseguia
deixar de pensar em Ismália. Licurgo amava aquela chinoca
que nunca havia lhe pedido nada e que nada esperava dele.1

Ismália era filha de um posteiro que cuidava o fundo da in-


vernada na estância do Angico, propriedade de Licurgo. Tudo
começou quando ele a violentou no mato. Pensou que jamais
tornaria a vê-la. Porém, Ismália o procurou e o romance entre
eles tornou-se forte. Sempre se encontravam. Quando ele esta-
va na cidade, mandava chamá-la. Não saberia viver sem o amor
daquela mestiça.
Licurgo levantou-se cedo, depois de ouvir o sino da igreja
sendo badalado ferozmente pelo sacristão, Jacob Geibel. Pou-
cos estavam em pé naquela pequena localidade. O Sobrado, a
casa dos Cambarás, era imponente e despertava um misto de
medo e raiva dos seus opositores. O Sobrado tinha “o jeito dum
grande animal adormecido.”2
Aos poucos seus ocupantes foram se levantando naquela
manhã de 24 de julho de 1884. A negra Lindóia, cozinheira, e
Fandango, capataz, também levantaram cedo.
Fandango era o homem de confiança da família. Amigo de
Bibiana e de Licurgo. Tinha sua maneira descontraída de ser e
seus pensamentos próprios. Ele dizia que Licurgo possuía três
amantes: a República, a abolição e a Ismália. O capataz era expe-
riente e esperto, sabia de tudo sobre as pessoas daquela família.
Enquanto o Sobrado se preparava para a cerimônia de alfor-
ria dos escravos, os festejos da cidade de Santa Fé transcorriam.
Negros da estância do Angico e de outras estâncias estavam
no porão do Sobrado à espera da liberdade que ocorreria na-
quela noite.

1. VERÍSSIMO, 1987:591.
2. VERÍSSIMO, 1987:565.
222 O tempo e o vento • 50 Anos

A velha Bibiana não aceitava a alforria daqueles escravos. No


entanto, para fazer a vontade do neto aceitou a libertação dos
seus escravos e dirigiu a preparação da festa, que iria incluir, é
claro, comidas, bebidas, música e dança, além dos discursos e a
entrega dos títulos de manumissão. Ela conservava preconceito
contra os negros. Incluía em suas reservas os gringos e os baia-
nos3.

Outras personagens da ficção auxiliaram o desenho da tra-


ma: Pe. Atílo Romano, Dr. Winter e Florêncio.
Pe. Atílio era italiano e não escondia seu favoritismo aos re-
publicanos. Apesar de usar de um discurso conciliador, ele ten-
tava ou acomodar os ânimos ou manter a Igreja na secular po-
sição pendular. Entretanto, não escondia sua simpatia pelos re-
publicanos.

Dr. Winter era o médico. Seu pensamento e sua análise política


era de origem liberal-transformadora. Por isso encaixava-se com
os republicanos. Sua lucidez era demonstrada pelo que conhecia
do Império e do contexto internacional para falar sobre os escra-
vos4.

Florêncio era o pai de Alice. Pertencia ao ramo pobre dos


Cambarás. Lutou na Guerra do Paraguai e teve uma vida de sa-
crifícios econômicos. Suas investidas pouco frutificaram e seus
negócios não prosperavam.
Na manhã daquele dia foi a missa do te deum. Houve um in-
cidente, o Cel. Bento saiu da igreja, de maneira intempestiva,
com sua gente, por considerar-se ofendido com a fala do Pe.
Atílio ao citar Garibaldi. O velho Amaral chamou Garibaldi de
traidor porque lutou junto com os republicanos farroupilhas.
Na tarde daquele dia ocorreu a “luta” entre mouros e cris-
tãos. Pe. Atílio, por precaução, colocou liberais e republicanos
misturados entre os dois “exércitos”. Não adiantou. Outro inci-

3. VERÍSSIMO, 1987:584,586 e 591.


4. VERÍSSIMO, 1987:593-595.
a a b o l i ç ã o d a e s c r avat u r a a s e r v i ç o d a r e p ú b l i c a 223

dente aconteceu. Alvarino Amaral, filho do Cel. Bento, e Licur-


go Cambará se desentenderam. Houve refrega e os dois saíram
machucados. As famílias e acólitos de ambos os lados quase en-
traram em conflito armado. A pronta intervenção do Pe. Atílio
acalmou os ânimos.

A tão esperada noite veio. Na parte nobre do Sobrado, no salão,


reuniram-se pessoas da camada social privilegiada de Santa Fé.
No pátio, ao redor da fogueira, os negros esperavam a hora de
serem chamados para entrarem na casa e receberem um papel -
a carta de liberdade. Apenas alguns sabiam o que esse papel sig-
nificava.5

Depois do discurso inflamado e demorado do Dr. Toríbio,


começou a entrega dos títulos de manumissão.
Aos poucos, um por um os escravos entravam na casa pela
porta da cozinha e se dirigiam até a sala. Alguns, assustados,
não sabiam o que fazer, se ficavam no lugar ou se saíam, imedia-
tamente alguém lhes indicava o caminho do retorno ao quintal.
Muitos ajoelhavam-se diante de Bibiana e beijavam a fímbria de
sua saia. Alguns, ainda, choravam. Um negro, João Batista, en-
trou e saiu altivo; era um bom peão, mas provocador, pensou Li-
curgo: “merecia uns bons chicotaços na cara”6.
Os negros estavam andrajosos e malcheirosos.
A cerimônia foi demorada. Os assistentes estavam inquietos;
esperavam o fim da entrega das alforrias para comemorar o fato,
comendo e bebendo. Havia a promessa de um fandango no local.
Os negros, já homens livres, no quintal, comiam e bebiam.
Uma boa parte deles dançavam. Eles não sabiam ao certo o que
fazer depois dessa “noite histórica”.

Foi um alívio geral quando o último negro recebeu o título.


Dona Bibiana não se conteve e disparou:
– Agora abram as janelas pra sair o bodum ! 7

5. TORRONTEGUY, 1994:134.
6. VERÍSSIMO, 1987:630.
7. VERÍSSIMO, 1987:631.
224 O tempo e o vento • 50 Anos

As janelas imediatamente foram abertas, enquanto os repu-


blicanos davam “Vivas” ao Clube Republicano.
Nessa mesma noite Licurgo recebeu a visita da amante, Is-
mália Caré. O encontro furtivo aconteceu numa edícula, um
“puxado” estilo meia-água, fora do Sobrado. Lá se amaram e Is-
mália revelou que estava grávida. Logo Licurgo retornou ao So-
brado, onde, inclusive, estava a sua noiva, Alice. Dona Bibiana e
Fandango perceberam imediatamente o que havia acontecido
com ele.
A festa continuou até a soltura de um balão. Remanescen-
tes persistiram na dança e na bebedeira.

A Trama Política

Apenas o negro João Batista não comemorou a “libertação”.


Naquela noite deveria ser a festa de São João. Houve a fes-
ta, mas, o motivo mesclou-se com os interesses do momento his-
tórico. A ação republicana da libertação dos escravos ocorreu
baseada na separação dos dois mundos já observados. Um, dos
que estavam dentro do Sobrado e, o outro, dos que permanece-
ram no quintal. Prelúdio daquilo que o tempo comprovou. Ne-
gros, ex-escravos e mestiços não receberam as oportunidades
sociais.
O crescimento da urbanização, com seus costumes particu-
lares de vida, e o uso da mão-de-obra livre estão relacionados
com a implantação capitalista.

A abolição e o próprio abolicionismo explicam apenas parcial-


mente a transformação do escravo em trabalhador livre. Os pro-
cessos econômicos e sociais responsáveis pela expulsão do escravo
da esfera dos meios de produção são os mesmos que provocam o
fluxo de imigrantes e, em menor escala, o deslocamento de cabo-
clos e roceiros para as fazendas de café e os núcleos urbanos.
(...)
a a b o l i ç ã o d a e s c r avat u r a a s e r v i ç o d a r e p ú b l i c a 225

Em teoria, os processos racionais do modo capitalista de produ-


ção tendem a tornar-se incompatíveis com a condição escrava do
trabalhador. Ou melhor, na empresa nacional de então, como em
qualquer empresa capitalista, ou tendente a esse padrão, a par-
ticipação de mão-de-obra precisa conformar-se às exigências da
produção do lucro.8

Somente a partir da Segunda metade deste século é que


irão surgir análises históricas mais consistentes sobre o negro
no Rio Grande do Sul; embora o número seja reduzido, desta-
cam-se Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e Escravidão
no Brasil Meridional – O negro na sociedade escravocrata no Rio Gran-
de do Sul (1962), Margaret Marchiori Bakos em RS: escravismo &
abolição (1982) e Mário José Maestri Filho em O escravo no Rio
Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho (1984).
As propostas dos republicanos sul-rio-grandenses foram re-
forçadas pela abolição dos escravos em 1888. O castilhismo, en-
tendido como política positivista, propunha uma ação baseada
no progresso. A sociedade republicana não teria escravos, mas
proletários. Júlio de Castilhos, em idéias e na prática assumiu
sua condição de líder poderoso, baseou-se na ordem, no pro-
gresso e na obediência ao chefe político.
O autoritarismo monárquico, combatido pelos republicanos,
sob novas roupagens foi conservado pela república no Rio
Grande do Sul.
Na ficção o discurso inflamado do Dr. Rezende defenden-
do a abolição juntava-se ao pensamento utópico de Licurgo.
Este planejava uma reviravolta na ação do governo, caso os repu-
blicanos viessem a assumir o poder. O Clube Republicano era en-
tusiasta em idealizar um governo limpo, sério e progressista. A
ficção mostra tais pensamentos se confrontando com outros
pensamentos de outras personagens.

8. IANNI,1987:23 e 24.
226 O tempo e o vento • 50 Anos

Dona Bibiana mantinha forte preconceito contra os negros


e achava bobagem libertá-los. Onde eles arranjariam comida e
lugar para ficar? Questões antigas aparecem no episódio trata-
do. O dono do escravo é o seu protetor. O negro longe de seu
dono estaria desprotegido. No dia da cerimônia Bibiana refe-
riu-se ao negro como negrada e que “carta de manumissão não en-
che barriga de ninguém.”9
Ela possuía preconceito contra gringos e baianos:

“Filho meu não casa com gringa” 10


(...)
“O baiano era um estrangeiro” 11

Ela, no íntimo, admirava a força e a firmeza. A imagem de


Rodrigo estava sempre presente em suas ações. Inconsciente-
mente, talvez, gemia no seu interior a visão triunfalista. A anti-
ga construção da raça dos gaúchos. A conquista da liberdade de-
veria ser pelo ato de força. Esta imagem aguerrida dos avoengos
foi a presença fóssil de que nada valeria se não fosse conquista-
da. A alforria, portanto, a liberdade concedida, seria uma der-
rota. É uma visão dialética da fala de Bibiana, mas, que tomada
na obra geral de O Tempo e o Vento poderá ter sentido.

Fandango, o capataz, gostava muito de Licurgo. No entanto, dis-


cordava de seus pensamentos políticos a respeito da escravidão:
– Eu só quero ver o que é que essa negrada vai fazer depois de re-
ceber papel de alforria. (...)
– Vassuncê vai ver – prosseguiu o capataz – Recebem dinheiro e
gastam tudo em cachaça. Vão passar o dia na vadiagem, dor-
mindo ou se divertindo. Nenhum desses negros alforriados vai
querer trabalhar. No fim acabam morrendo de fome.” 12

9. VERÍSSIMO, 1987:273.
10. VERÍSSIMO, 1987:584.
11. VERÍSSIMO, 1987:586.
12. VERÍSSIMO, 1987:568.
a a b o l i ç ã o d a e s c r avat u r a a s e r v i ç o d a r e p ú b l i c a 227

Fandango, embora tivesse regalias e afeto dos Cambarás,


não era da família e tampouco proprietário. Sua vida toda foi de-
dicada ao serviço da estância do Angico. O governo que ele co-
nheceu foi o proprietário. Submeteu-se a ele com verdadeira de-
voção. Era trabalhador e valorizava o trabalho. Entretanto, convi-
veu mais com a vida bruta dos trabalhos criatórios ou nas lutas de
fronteira. Ele teve que se condicionar numa posição intermediá-
ria entre o patrão e os peões. Depois, de uma hora para outra, o
patrão enveredou para o movimento abolicionista. O capataz, já
velho, demorava a se adaptar aos novos pensamentos. Até então
pensava-se o negro de um jeito, depois de outro. Nessa confusão
Fandango manteve-se na voz corrente, pois pouco conhecia da
retórica abolicionista, a não ser conversando com Licurgo.
Fandango também era intermediário entre o Sobrado e a
população de Santa Fé. Seu discurso conservava o que ouvia do
povo em geral.
Florêncio, que lutou na Guerra do Paraguai e talvez tenha
presenciado atos de bravura dos negros-soldados e que nunca ti-
nha tido escravos pensava assim:

Acho que no Rio Grande os negros são felizes. Nas estâncias e


nas charqueadas eles trabalham ombro a ombro com os brancos.
A não ser um ou outro caso, em geral são bem tratados. Dizem
que lá no Norte os senhores de engenho maltratam os escravos.
Não sei. Há muita conversa fiada. O que sei é que aqui na Pro-
víncia os negros passam bem. (...)
Acho que as coisas não vão mudar se vier a República.13

Ele passou a sua vida preocupado em dar um conforto ma-


terial para a sua família. Amava sua mulher. Sofria vendo-a ter
que costurar e bordar para vender e ajudar no sustento da casa.
Suas duas filhas também necessitavam de mais conforto. Depois
da morte da mulher ficou mais triste ainda. Nunca teve tempo

13. VERÍSSIMO, 1987:595-596.


228 O tempo e o vento • 50 Anos

para se ilustrar ou fazer amizade com doutores, padres ou polí-


ticos. O que sabia era pelas suas andanças na guerra e por con-
versa informal com algum viajante ou tropeiro. Em parte repro-
duzia a fala oficial de que no Rio Grande do Sul o negro era tra-
tado como igual.
Demonstrava admiração pelo imperador e por Silveira
Martins. Por isso não acreditava na República.
Na ficção encontra-se a riqueza do narrativo histórico. As-
sim como os negros festejaram fora do Sobrado, os brancos fes-
tejaram no salão. Os negros não ouviram o discurso político. A
maioria não entendeu o que estava acontecendo. O mundo dos
negros e dos mestiços era outro, diferente do mundo das cama-
das dominantes da sociedade.
Ismália Caré, mestiça, chinoca para os outros, não entrava
no Sobrado. João Batista só entrou no Sobrado para receber o
título de manumissão. Como foi altivo recebeu os arreganhos
do proprietário.
Da mesma maneira que São João Batista foi imolado, o ne-
gro João Batista e a mestiça Ismália também serão imolados
pela sociedade. Um seguirá a senda dos ex-escravos. A outra
será a outra rejeitada por todos. As proles do negro e da mesti-
ça amargarão o preconceito e a falta de oportunidades sociais.
Estas não faltaram ao imigrante e, mais tarde, aos clientes da
burocracia republicana.
A abolição da escravatura no Brasil mais serviu ao movi-
mento republicano do que à ação social. Ela foi o grande argu-
mento contra o Império.

* Doutor em História, UFSM.


“Tornou a olhar o Sobrado, a uma de cujas janelas surgia agora um vulto, Bibi... Esquecera-se por
completo da irmã. Era uma omissão que ocorria com freqüência quando ele fazia aqueles inventários
mentais da família.”
O Retrato – Uma Vela pro Negrinho
A Representação do Espaço na Obra de
Erico Verissimo: O Tempo e o Vento

Celia Ferraz de Souza*

Introdução

No revoar do vento, no passar do tempo, o espaço é coloca-


do como um elemento permanente, o grande referencial, um
significativo ponto de apoio, dessa extraordinária trilogia de
Erico Verissimo: O Tempo e o Vento.
As personagens vão se revezando, dando lugar umas às ou-
tras nesse tempo pelo qual gerações vão atravessando, num pro-
cesso contínuo de mudanças das práticas sociais: hábitos e costu-
mes, condições econômicas, atividades, muitas guerras e destrui-
ções, valores, mas sempre sobre o mesmo solo da cidade de San-
ta Fé. Esta com seus espaços públicos, praças e ruas e seus espa-
ços arquitetônicos, suas construções, também vão se modifican-
do ao sabor do vento, mudando nas partes, mas permanecendo
no todo. Sofre alterações, novas construções vão dando lugar às
antigas, outras envelhecem acompanhando as personagens. Sur-
gem novos equipamentos, novos bairros e a cidade persiste!
232 O tempo e o vento • 50 Anos

No romance de Erico Verissimo, o espaço físico de Santa Fé,


atravessa o tempo, enfrenta o vento e participa do contexto da fic-
ção, não apenas como cenário, de forma passiva, mas também
como uma personagem, cujo papel é nortear ou orientar o per-
curso no tempo, de todos as outras personagens. Tanto os espaços
urbanos como os arquitetônicos representam papéis significati-
vos, haja visto o papel do Sobrado, o casarão dos “Amarais”, a Igre-
ja, ou a Intendência, além evidentemente da praça com sua figuei-
ra, ou das zonas do Barro Preto e Purgatório, para citar apenas al-
guns. Eles fazem parte do passado e do futuro. É como se a cida-
de do presente fosse a síntese de seu passado, onde estariam con-
vivendo permanentemente todos as personagens dessa saga que
envolve tantas gerações, desde Ana Terra. É na cidade que se en-
contra todo o manancial da memória onde a trama vai marcando
sua história, e onde as personagens buscam suas lembranças. A fi-
gueira da praça atravessa todos os tempos, participa da locação do
sítio urbano, das guerras, das mortes, dos festejos, das tristezas e
das alegrias de todas as gerações. Certas ocasiões ela é quase uma
extensão do Sobrado, numa relação íntima entre o espaço públi-
co e o privado. É a partir dela que muitas vezes as rememorações
das personagens são detonadas. O contato com a árvore liberta fa-
tos e acontecimentos guardados no âmago mais profundo de cada
um. Proust mostrou esse processo no seu livro “Em busca do Tem-
po Perdido”, quando ao comer uma madeleine que lhe foi servida
com chá, enquanto esperava a pessoa a quem visitava, desenrolou-
se uma seqüência de recordações que estavam muito distantes de
sua memória e de seu tempo. A volta ao passado foi detonada por
uma bolachinha que ele comia na sua infância. Foi como se abris-
se as comportas da memória e nesse momento ele pudesse reviver
todo um passado, que para ele não estava mais presente. A praça
com a figueira, inseparáveis apesar de tratadas muitas vezes indivi-
dualmente, são representações muito fortes que alcançam o ima-
ginário coletivo da população em O Tempo e o Vento.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 233

A cidade é colocada assim, de forma bastante clara, tendo


como elemento básico de fundo, a estrutura e a paisagem urba-
nas, onde estão postos os referenciais que fornecem a identida-
de para todos os seus moradores, assim como para os “estran-
geiros” que vem a ela. O espaço urbano faz parte da vida de to-
dos, razão pela qual funciona como um texto lógico para os ci-
dadãos de Santa Fé, com o qual podem fazer uma leitura plena
de significados, identificando-se com o mesmo. É o vento trans-
formando ao longo do tempo o espaço urbano, cuja significa-
ção está presente ao olhar de todos.

A Leitura do Espaço

Procurando entender um pouco mais como a questão se co-


loca em termos universais, Taveira1 sugere que a busca do Ho-
mem, em adaptar-se aos lugares, levou-o a criação da ordem, da
ordenação do mundo e da luz, em função de seus comportamen-
tos, religião e de desgostos, ostentação e luxo, delicadeza, paixão,
amor e forma, ações e atitudes, que não podem deixar de fazer
parte da história dO urbanismo e da arquitetura. Prossegue, colo-
cando a cidade como um texto, no qual a história age transfor-
mando a matéria da arquitetura aqui entendida como língua,
cuja organização lógica gramatical se transforma na relação das
forças sociais da cena histórica. Essa colocação trás para o discur-
so arquitetônico uma leitura e uma relação dialética em relação
ao real, à urbe (conjugação de arquitetura), e à sociedade que é
a forma e a essência da transformação na qual elas próprias par-
ticipam. Para o autor citado, urbe, aglutinação dos espaços e das
formas que enquadram as situações humanas, é o texto, e arquite-
tura é a língua, entendida aqui como forma construída.

1. TAVEIRA, Tomás. O discurso da cidade. Lisboa: (s/ed.), 1974, p.14.


234 O tempo e o vento • 50 Anos

Entretanto, a urbe-texto e a arquitetura-língua surgem


como formas de marcar o mundo e de o animar. Mas, sem o en-
tendimento da significação, que nada tem a ver com a forma do
edifício, da rua ou da cidade, o texto tornar-se-ia incompreensí-
vel. A forma - a estrutura e o estilo - são resultantes de um de-
terminado tempo, com determinadas técnicas e usos. Por outro
lado, o conteúdo - a sociedade com suas práticas e seus valores
- imprime a significação, para justificar as permanências, as des-
truições, os usos e costumes. São atos e fatos que ocorrem no es-
paço no decorrer do tempo, mostrando então um sistema trípli-
ce de relações, espaço, tempo e sociedade, permeado fortemen-
te pelo caráter da significação, que é construído pelo imaginá-
rio social.
Em o Urbanismo de Representação2, já propúnhamos aprofun-
dar o estudo das questões urbanísticas na direção da construção
do imaginário urbano. Na verdade, este se coloca como um ou-
tro código a ser decifrado para a compreensão daquela relação
tríplice, citada a cima. Bazcko3 mostra que um dos caracteres
fundamentais do fato social é precisamente seu aspecto simbó-
lico. Embora o Urbanismo e a Arquitetura gerem formas que
exijam conhecimento de ciência, arte e tecnologia, a forma4
deve ser entendida no sentido Aristotélico do termo, no qual es-
tejam presentes simultaneamente os conceitos de Idéia e Ima-
gem. A forma tem um caráter de representação social e de mar-
cação no espaço de referenciais simbólicos da sociedade. Nesse
sentido o urbanismo e a arquitetura são um modo de represen-
tação dos interesses coletivos através da forma, expressos pelo
poder, pela classe dominante, ou ainda pelas crenças e mitos
dessa sociedade. Não se trata, portanto, só de uma questão téc-

2. SOUZA, Celia Ferraz de - Construindo o Espaço da Representação: O Urbanismo da represen-


tação. In: SOUZA, C. F .de & PESAVENTO, S.J. - Imagens Urbanas; Os Diversos Olhares na Forma-
ção do Imaginário Urbano. Porto Alegre: Ed. da Universidade - UFRGS, 1997
3. BAZCKO, Bronislaw. A Imaginação Social. In: Einaudi-Anthropos ,1986.
4. TAVEIRA, op.cit. p.32.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 235

nica ou científica ou mesmo artística, como muitas vezes foram


encarados, desde o princípio deste século. Interessa-nos, para
fins de análise, perceber como a obra arquitetônica ou urbanís-
tica detém um significado, e como é portadora de uma repre-
sentação, já que qualquer obra singela, pode expressar o senti-
do da sociedade que a construiu.

Literatura e História

Estabelecidos esses pressupostos podemos partir para idéia


de análise da narrativa ficcional envolvendo a cidade e seu es-
paço. Qual seria o sentido aqui? De início podemos afirmar que
se é difícil perceber a força do imaginário na vida real, pode
tornar-se mais evidente percebê-lo na ficção, já que esta está im-
pregnada de sensibilidades. Ou seja, a literatura através da fic-
ção pode mostrar livremente, sem compromissos com a ciência,
essa correlação de forças presente na sociedade, que é a ques-
tão das representações do imaginário coletivo. O leitor é indu-
zido a perceber a questão que na vida real está posta, mas não
está explicitada. Odile Marcel5 coloca bem essa questão do espa-
ço e a literatura, dizendo que a literatura ao longo do tempo
produziu representações das formas urbanas e que com seu po-
der metafórico deu sentido e função aos lugares. E explica ain-
da que:

A descrição das formas urbanísticas e arquitetônicas (na literatu-


ra) (...) não figuram apenas como um quadro inerte e preliminar,
facultativo, ao desenrolar da ação. (...) Mais principalmente as
formas do espaço servem para objetivar e qualificar a organização
social. Reciprocamente a identificação da constituição visual do
mundo humano, se efetiva no romance a partir das categorias psi-
cológicas, sociais e econômicas que caracterizam geralmente esse

5. MARCEL, Odile, -Formes Urbaines et Littérature. In: Le Courier du CNRS-La Ville N.81/1994 p.123.
236 O tempo e o vento • 50 Anos

mundo, fazendo assim da ordem arquitetural um momento expres-


sivo da totalidade social.(...) A leitura das formas arquitetônicas
na literatura, pode ser feita em direção a realidade social, no regis-
tro da identificação crítica. (...) No espaço imaginário da poesia e
do romance, a rudeza da mediocridade dos lugares podem de re-
pente se tornar geniais, e aqueles sem vida encontrar seus demô-
nios familiares.

Pensamento, esse que hoje já encontra raízes em vários paí-


ses, e Sandra Pesavento em seu recente livro O Imaginário da Ci-
dade - Visões Literárias do Urbano, complementa:

É nessa medida que as obras literárias, em prosa ou verso, tem con-


tribuído para a recuperação, a identificação, a interpretação e a
crítica das formas urbanas. (...) que essa potencialidade metafóri-
ca de transfiguração do real, não apenas transmite as sensibilida-
des passadas do “viver em cidades” como também nos revela so-
nhos de uma comunidade, que projeta no espaço vivido as suas
utopias.6

A História Cultural tem colocado o romance histórico como


uma das fontes da própria História. Uma vez que haja coerência
e verossimilhança é possível que essa representação do passado
nos ajude a encontrar respostas para determinadas questões.
Paul Ricoeur coloca a narrativa de ficção como uma “quase histó-
ria” e afirma em seu livro Tempo e Narrativa7:

Na medida em que os acontecimentos irreais que ela relata são


fatos passados para a voz da narrativa que se dirige ao leitor; é
assim que eles se parecem com a ficção e a ficção se parece com a
história. (...) Infelizmente essa simulação do passado pela ficção
foi ulteriormente obscurecida pelas discussões estéticas provoca-
das pelo romance realista. A verossimilhança é, então, confundi-
da com uma modalidade de semelhança com o real que coloca a
ficção no mesmo plano da história. Nesse aspecto, é bem verdade

6. PESAVENTO, S.p15 O Imaginário da Cidade-Visões Literárias do Urbano. Porto Alegre: Ed. da Uni-
versidade, UFRGS 1999, p. 12.
7. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. S.Paulo: Papirus, 1998. p. 329.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 237

que podemos ler os grandes romancistas do século XIX, como his-


toriadores adjuntos, ou melhor como sociólogos avant la lettre:
como se o romance ocupasse aqui um lugar ainda vacante no
império das ciências humanas.

Se a narrativa de ficção vem sendo trabalhada com o olhar


do historiador, com resultados extremamente interessantes, por
que não se encaminhar, também, nessa direção a relação da ar-
quitetura e do urbanismo com literatura e história, para se ava-
liar sob o olhar do arquiteto as espacialidades vividas no roman-
ce e seu caráter de representação? Nesse sentido é possível veri-
ficar ainda que, embora muitos estudos venham surgindo, com
muitos olhares, produzindo uma múltipla interpretação, na
obra de Erico Verissimo, a interpretação do espaço não tem
sido muito corrente. O olhar do arquiteto está faltando e isso
pretendemos suprir com esse texto.

Literatura, História e Espaço


A Representação do Espaço

Uma das imagens mais fortes e mais concretas da cidade é a


rua, espaço plurifuncional onde os mais variados fatos ocorrem,
do comércio à circulação, do ponto de encontro ao local de des-
file. A rua, juntamente com a praça, sempre representaram o es-
paço da liberdade, o espaço do cidadão, o espaço de fora, o espa-
ço público, enfim, o espaço da coletividade, que se contrapõe ao
espaço de dentro, ao espaço íntimo, ao espaço do controle fami-
liar, das regras individuais. As regras, que referem-se ao controle
coletivo, vêm também no sentido de orientar o comportamento
da população. Nesses espaços, o cidadão sempre assumiu a sua
característica de parte do coletivo social. A morfologia urbana, as
tipologias arquitetônicas e as práticas sociais desenvolvidas nas
ruas e nas praças também sempre serviram como elementos de
238 O tempo e o vento • 50 Anos

orientação e leitura da cidade. Entretanto, a desagregação da or-


dem, a confusão das atividades e fluxos de circulação, a falta de
identidade, a insegurança social, que vigora hoje nas cidades,
têm tirado das ruas centrais da cidade o seu papel didático-refe-
rencial. Em leituras como O Tempo e o Vento, essa visualização cla-
ra da integração espaço e sociedade serve para o leitor fazer esse
resgate, podendo sentir a necessidade de buscar suas referências,
despertando um novo olhar sobre a sua própria cidade ou ainda
perceber como é delicada a questão do trato do espaço urbano
no que se refere ao que preservar e ao que destruir.
Ao se pretender colocar a análise do espaço nesse campo de
discussões, é necessário estabelecer alguns conceitos básicos,
como Imaginário Social, Coletivo e/ou Urbano, além do que se
entende aqui por Representação. Para Bazcko8, Imaginário Social
é uma das forças reguladoras da vida coletiva e através dele:

Uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa re-


presentação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posi-
ções sociais, exprime e impõe crenças comuns, e constrói uma es-
pécie de código de convivência. (...) Cada geração trás consigo
uma certa definição de homem e de sociedade, simultaneamente
descritiva e normativa, no mesmo tempo que adota, a partir des-
sa concepção, uma idéia de imaginação do que a sua sociedade
é, e do que ela deveria ser.9

Daí a sugestão de que cada geração deveria reescrever a


sua história, porque, embora o passado não mude, o presente
se modifica a cada geração, criando um novo olhar sobre o pas-
sado. Não é o passado que altera o presente, mas sim o presen-
te que altera a maneira de ver o passado, através do imaginário
coletivo de cada época. Ainda de acordo com o autor acima ci-
tado, o Imaginário Social tem que ser visto como uma peça efeti-
va e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e em espe-

8. BAZCKO, op.cit.
9. idem, op. cit. p. 309.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 239

cial do exercício da autoridade e do poder, “se transformando as-


sim, no lugar e no objeto dos conflitos sociais.”10. A cidade é, portan-
to, o lugar que melhores condições tem para produzir um am-
biente fértil para o desenvolvimento das idéias, das imagens e
das representações. Através dos diversos olhares com que a so-
ciedade a vê, das múltiplas opiniões que ocorrem no seu meio,
dos vários conceitos e preconceitos que se estabelecem, dos sím-
bolos que se criam, e também, por ser o “locus” do poder, a ci-
dade é a projeção no espaço físico do Imaginário social. 11
O imaginário busca sentido para as coisas e para os fatos (e
por conseguinte, para a cidade e para as obras urbanas, ou para
as edificações), através dos diversos olhares ou leituras que são
feitas da realidade. O olhar “qualifica o mundo, transformando
o acontecimento em fato e o espaço em lugar”12.
A Representação, segundo Le Goff 13, é a tradução mental de
uma realidade externa e percebida (abstração). Portanto, ela é
a presentificação de um ausente, que é percebido, segundo
uma imagem mental ou material, que se distancia do mimetis-
mo puro, e trabalha com atribuição de sentido. O ausente se
presentifica por força da imagem, já que existe sempre um ou-
tro sentido além do manifesto. Os documentos históricos são
formas de representação, expressas por palavras ou coisas. A re-
presentação social possui sem dúvida uma faceta de transforma-
ção e engodo, mas é também portadora do sonho da coletivida-
de na sua dimensão utópica.14
Ao se trabalhar com a literatura, a representação fica coloca-
da de maneira explicita, e o imaginário coletivo com os valores
simbólicos expressos no discurso da narrativa. Do ponto de vis-
ta do urbanismo e da arquitetura a interpretação se dá a partir

10. BAZCKO, op.cit. p. 113.


11. SOUZA, op. cit.
12. PESAVENTO, op. cit.
13. LEGOFF, Jacques, apud Pesavento, S, 1992-93. Op.cit, p. 10.
14. ver SOUZA, op. cit.
240 O tempo e o vento • 50 Anos

das formas pelas quais as personagens circulam, habitam, traba-


lham e se distraem, enfim desenvolvem suas vidas na dicotomia
da vida coletiva e da vida privada

O Tempo e o Vento

A trilogia de Erico Verissimo, composta pelo O Continente es-


crito em 1949, O Retrato em 1951 e O Arquipélago em 1961, abran-
ge a história do Rio Grande do Sul por dois séculos, de 1745 à
1945, envolvendo seu processo de conquista, colonização, urba-
nização, e o início da industrialização. Ao ser perguntado se ha-
via feito uma grande pesquisa histórica para a elaboração de O
Tempo e o Vento, Erico respondeu que não quis se aprofundar
muito para evitar descrições desnecessárias e cansativas, e conse-
guiu! Seu livro prende o interesse do princípio ao fim da narra-
tiva, a partir de uma brilhante abordagem histórica. O trato do
espaço em O Tempo e o Vento é extremamente bem elaborado e
construído dentro da lógica e da coerência, traduzindo, sem dú-
vida alguma, o imaginário da população de Santa Fé.
O primeiro volume, O Continente, como estava destinado a
ser o único, Erico nos mostra aqui quase todo o processo da
evolução da cidade, que atravessa a história

O Espaço em O Tempo e o Vento


A Evolução Urbana de Santa Fé

A cidade, em O Tempo e o Vento, é vista como o elemento


constante e permanente da história, mas que também vai se
adequando as necessidades que os tempos vão trazendo no de-
senrolar de sua trajetória. A cidade se transforma, mas não de-
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 241

saparece, e nada faz crer que um dia isso possa acontecer. Pelo
contrário, seu processo de evolução urbana é contínuo come-
çando na formação do povoado, chegando a condição de vila,
cabeça de comarca e depois a cidade, indo até o término da his-
tória em 1945 nesta condição, mas já delineando algumas ten-
dências para o futuro.
O espaço, colocado como um elemento incessante no de-
senrolar da trama, funcionará como a base articuladora dos
acontecimentos do início ao fim do romance. A evolução urba-
na de Santa Fé está colocada, portanto, sempre relacionada à
formação da família protagonista central da história. Aliás, o que
justifica o desenvolvimento urbano é justamente o desenvolvi-
mento dos Terra ou Terra Cambará, como justificam as fases:

I - Antecedentes - 1754-1804

Da ocupação do Continente ao agrupamento de ranchos nas terras


do Cel. Amaral à criação do Povoado: sua localização.
Esta fase se inicia com a integração do Rio Grande do Sul
ao Brasil Colônia, com a troca da Colônia do Sacramento pela
região das Missões, determinadas pelo Tratado de Madri, em
1750. A história remete então à região jesuítica para alguns
anos antes, 1745, quando do nascimento de Pedro (Missionei-
ro), ao mesmo tempo que tropeiros paulistas começam a che-
gar em outros pontos do território, ainda com seus limites inde-
finidos, chamado por isso de Continente de São Pedro. Este é o
caso de Maneco Terra que traz a família, proveniente de Soro-
caba, São Paulo, para se instalar em uma estância próxima de
Rio Pardo, por volta de 1777, como confirmam as recordações
de Ana Terra, sua filha, Bom devia ter sido 1777: ela se lembrava
bem, porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do
Continente.15

15. VERISSIMO, Erico. O Continente, p. 75, Círculo do Livro.


242 O tempo e o vento • 50 Anos

Rio Pardo, a vila mais próxima, mais desenvolvida, servia


de ponto de apoio e era para lá que os dois filhos homens iam
vender sua produção excedente, comprar outras necessidades e
se distrair. Rio Pardo se apresenta como contraponto da cidade,
já que é lá que existe o comércio, lá está a Matriz, lá tem festas,
lá é animado! O isolamento em que viviam reflete bem a estru-
tura regional e fundiária do Continente, onde enormes glebas
de sesmarias foram doadas, tornando a densidade populacional
extremamente baixa. Passavam-se meses sem que nenhum cristão
cruzasse aquelas paragens.16
Junto com Rio Pardo, Viamão formava uma das grandes ex-
pectativas de Ana Terra para sair daquele cafundó. A chegada e
permanência de Pedro Missioneiro na estância dos Terra vai dar
uma guinada na vida da família. A gravidez de Ana, a morte de
Pedro, já se constituíram numa tragédia, que não se ameniza
com o nascimento de Pedrinho, mas segue com a morte da mãe
e após o ataque por um bando de castelhanos à estancia dos
Terras, em 1789, quando esses estavam começando a progredir.
Decorre daí a morte do pai e do irmão, e o estupro em série de
Ana. A decisão que restava era ir embora. Ana com seu filho,
com a cunhada e a filha embarcaram em duas carretas com um
grupo de pessoas que se dirigiam para as terras do Coronel Ri-
cardo Amaral, estancieiro mais rico da zona missioneira. É tio-avô de
minha mulher. Consegui umas terrinhas perto do campo dele. Diz que
há outras famílias por lá. O velho parece que quer fundar um povoado,
como informou um dos homens que as conduziam. E ao ser
perguntado se era muito longe dali, respondeu: “Bastantinho” 17
Depois de andarem por vários dias, avistaram o rio Jacuí, que os
impressionou pelo seu tamanho. Construíram uma balsa para
que pudessem atravessar e retomaram a marcha.

16. Idem, O Continente, p. 75.


17. Idem, O Continente, p. 123.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 243

– Agora estamos mais perto, disse um dos homens, olhando para


o norte.(...) e quando Ana já pensava que nunca mais haviam
de chegar, Marciano (...)gritou:
– Estamos entrando nos campos do velho Amaral!
Tres dias depois chegaram ao alto de uma coxilha verde onde se
erguiam uns cinco ranchos de taipa cobertos de santa fé. 18

Pela descrição, podemos inferir que a localização dessas


terras se situavam à noroeste do território gaúcho, numa região
de campos marcados por coxilhas, onde a atividade predomi-
nante era a pecuária.

– Criação é trabalho pra homem. Lavoura é coisa de português,


falava (o Cel Amaral) com certo desdém dos açorianos que vira
em Rio Pardo, Porto Alegre e Viamão.19

Mais adiante se esclarece que Santa Fé ficaria próxima de


Cruz Alta, cidade que compete com ela. Por outro lado, a refe-
rência de estar nas coxilhas e não na serra se coloca de pleno
acordo com o mapeamento da ocupação do Rio Grande do Sul
nessa época, ou seja, até 1850 todos os núcleos urbanos estavam
situados em região de campos, exceto aqueles povoados próxi-
mos ao Rio dos Sinos.20 A escolha dessa localização portanto,
para a instalação de Santa Fé permitiu a Erico desenvolver sua
história ligada tanto às bases oligárquicas da pecuária gaúcha,
como à imigração européia e ao desenvolvimento da agricultu-
ra. A presença múltipla dos habitantes acaba por marcar o ter-
ritório através de seus percursos, de suas lutas e de sua perma-
nência. Iniciada com os tropeiros, que darão origem ao gaúcho
“peleador”, imagem tão bem expressa na figura do Cel Amaral
e do Capitão Rodrigo, ou com os açorianos, cuja presença se
percebe pela plantação do trigo na região e citado como exem-

18. Idem, O Continente, p. 127.


19. Idem, O Continente, p. 128.
20. A ocupação da serra, só acontecerá com a chegada do segundo turno da imigração no Estado
a partir de 1850.
244 O tempo e o vento • 50 Anos

plo por Maneco e Pedro Terra. Mais tarde, ocorrerá a chegada


de alemães e italianos à região de Santa Fé, já na sua segunda
fase de desenvolvimento. Importante, então, é destacar que
Santa Fé fica no caminho por onde todos passam e acabam fi-
cando, desenvolvendo aqui suas práticas sociais. Não é segredo
para ninguém que Erico Verissimo utilizou Cruz Alta, sua cida-
de natal, como referência para criar Santa Fé, trazendo para
esta, muitas das características lá existentes, daí a rivalidade en-
tre as duas no romance. Aparece o confronto entre a cidade
real e a cidade imaginária:

Em princípios de 1803 um padre das Missões passou por aque-


le agrupamento de ranchos, disse uma missa, convenceu Chico
Amaral da necessidade de mandar erguer uma capela, batizou
doze crianças e fez cinco casamentos, inclusive o de Pedro Terra
e Arminda Melo.21

II - Do Povoado à Vila 1804 - 1834

A formação de um povoado ocorre em 1804, para ordenar


aquele agrupamento de ranchos, no qual Ana Terra havia che-
gado com seu filho Pedro, nas terras do Cel. Amaral, ainda no
final do século dezoito. Chico Amaral, filho do coronel, conse-
guiu do Administrador da Redução de S. João um ofício “conce-
dendo o terreno necessário para a edificação do povoado”:

Ordeno a Vmcê que faça medir com brevidade meia légua de ter-
reno no lugar onde pretendem formar a povoação, contendo des-
de o ponto em que desejam ter a capela, um quarto de légua na
direção de cada rumo cardeal, em rumos direitos de Sul a Norte
e de Leste a Oeste.22

21. Idem, O Continente, p. 139.


22. Idem, O Continente, p. 140.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 245

Nesse documento eram também especificadas as dimen-


sões das ruas e dos lotes e definia o prazo para requisição do tí-
tulo legítimo (6 meses):
O Major Amaral mandou fazer uma planta da povoação por
um agrimensor muito habilidoso, que viera de Rio Pardo. Que-
ria uma praça, no centro da qual ficaria a figueira, três ruas de
norte a sul e quatro transversais de leste a oeste. Meses depois
mandou começar a construção da capela com madeira dos ma-
tos próximos. E todos os homens e mulheres do lugar ajudaram
nesse trabalho. E quando a capela ficou pronta, foi ela dedica-
da a Nossa Senhora da Conceição; veio um padre de Santo Ân-
gelo e disse a primeira missa. E o Major Amaral mandou com-
prar nas Missões, a peso de ouro, uma imagem da padroeira do
povoado.23

Feita a marcação das ruas, definida a praça com a figueira


no centro, se iniciaram as construções particulares nos lotes es-
tabelecidos. A família Amaral mandou construir uma casa toda de
pedra bem na frente da capela, marcando significativamente a pai-
sagem. Construiu também outras casas para alugar, obedecen-
do uma pratica da época, na qual famílias de mais posses inves-
tiam também em construções de aluguel. Pedro Terra dedica
sua atividade principal à lavoura de trigo nas suas terras, mas vai
construir sua casa num lote de esquina, também na volta da
praça, perto da capela, com frente para o poente, como descre-
ve o autor:
A casa de Pedro Terra ficava numa esquina da praça, perto da
capela, com a frente para o poente. Baixa, de porta e duas jane-
las, tinha alicerces de pedra, parede de tijolos e era coberta de te-
lhas. Os tijolos haviam sido feitos pelo próprio Pedro em sua ola-
ria e as telhas tinham vindo de Rio Pardo, na carreta de Juve-
nal. Era das poucas casas assoalhadas de santa fé. Dizia-se até
que muita gente em melhor situação financeira que a de Pedro
não morava em uma casa tão boa como a dele. Não era muito

23. Idem, O Continente, p. 140.


246 O tempo e o vento • 50 Anos

grande. Tinha uma sala de jantar, que eles chamavam de va-


randa (o vigário, homem letrado, afirmava que varanda na ver-
dade era outra coisa). Dois quartos de dormir, uma cozinha e
uma despensa, que era também o lugar onde ficava o bacião em
que a família tomava um banho semanal (Pedro tinha o hábito
de lavar os pés todas noites antes de ir para cama). A cozinha,
que era a peça que o dono da casa preferia, por ser a mais quen-
te no inverno e a que mais fazia lembrar outros tempos – chão de
terra batida, cheiro de picumã, crepitar de fogo, chiado da cha-
leira – ficava bem nos fundos da casa, com uma janela para o
quintal onde havia laranjeiras, pessegueiros, cinamomos, um
marmeleiro - da – índia, e o poço. A mobília dos Terra era a mais
resumida possível. Na varanda, além da mesa de cedro sem lus-
tro, viam-se algumas cadeiras com assento de palha trançada,
uma cantoneira de tábua tosca, e uma toalha com água potável
a um canto. Nos quartos, cama de vento, baús e pregos na pare-
de, a guisa de cabides. As paredes eram caiadas e completamen-
te nuas; na da sala de jantar havia uma saliência semelhando
um ventre roliço. (Ana Terra costumava dizer que a casa estava
grávida(...).24

O traçado xadrez exposto no texto também está em conformidade


com as demais cidades da época, no Rio Grande do Sul. Mais fácil de se
implantar e distribuir os lotes. Aliás, desde os tempos da Grécia Antiga
esse é o traçado eleito para implantação de núcleos urbanos de uma for-
ma mais simples, mais rápida e, do ponto da distribuição dos lotes, mais
justa, pois todos eles teriam o mesmo tamanho e a mesma forma.
Erico indica como o crescimento de Santa Fé poderia se dar atra-
vés do fator populacional:

Tropeiros que vinham de Sorocaba para comprar mulas nas re-


dondezas, gostavam do lugar e iam ficando por ali. E o nome de
Santa Fé começou a ser conhecido por todo o município de Rio
Pardo e fora dele.25

24. Idem, O Continente, p. 179.


25. Idem, O Continente, p. 196.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 247

As notícias externas chegavam a Santa Fé. Sempre havia


um portador para informar das novidades, das guerras, da che-
gada da família real no Brasil (quando Bibiana tinha 3 anos) e
outras referências que permitem colocar a cidade na região, no
Estado, no País e no mundo. A medida que o núcleo vai se de-
senvolvendo, esse processo se torna cada vez mais intenso. Pri-
meiro são os forasteiros, depois virão os estafetas do Correio de
Rio Pardo. Por outro lado, sempre haverá alguém instruído
para colocar os fatos dentro de uma dimensão histórica mais
ampla.

III - Da vila à Cabeça de Comarca - 1834-1850

A elevação à condição de vila em 1834 corresponde ao forta-


lecimento de setores urbanos, que coincide também com a con-
solidação dos Terra: o nascimento do filho de Pedro, Juvenal,
exatamente nesse ano e pouco depois nasce Bibiana (1806). Sur-
ge, então, uma família consolidada, no seio da qual vivem um ca-
sal com dois filhos e uma matriarca, a avó Ana Terra, fundadora
desse clã. É uma fase marcada por guerras mas também pela che-
gada, em 1828, de um novo personagem, lutador, aventureiro,
cantador, o Capitão Rodrigo, que introduz uma nova dimensão à
família Terra assim como à vila, cuja venda do Nicolau aparecia
como o equipamento urbano mais importante depois da Capela,
além do cemitério. O seu curto casamento com Bibiana, pela sua
morte (1836) num ataque a casa dos Amarais durante a Revolu-
ção Farroupilha, dará início entretanto a uma forte geração, a
dos Terra Cambará, a qual se desenvolverá e atingirá o apogeu e
verá seu declínio, cuja a saga se estende até o final da história.
O desenvolvimento da Vila de Santa Fé, pode ser avaliado,
pela chegada dos imigrantes alemães em 1834, que trabalhavam
na agricultura em terras junto ao núcleo urbano. O trabalho sis-
temático dos alemães e a cultura diferente se traduzem num con-
248 O tempo e o vento • 50 Anos

traste com os habitantes do local, refletida na própria forma de


habitação. As casas dos alemães eram graciosos chalés de madei-
ra, que tinham até cortina e vasos de flores nas janelas. Causava estra-
nhamento a todos os jardins bem cuidados, com canteiros de flo-
res. A sua produção reforçaria evidentemente o núcleo na sua
função econômica de apoio à produção primária. Entretanto, a
revolução que toma conta da Província por 10 anos impede que
o desenvolvimento seja maior. A própria venda aberta por Rodri-
go e Juvenal se apresentava com fraco desempenho. O abasteci-
mento era feito em Rio Pardo e Cruz Alta, o que mostra as rela-
ções regionais claramente estabelecidas.

IV - Da Vila de Comarca à Cidade - 1850-1884

O casamento de Bolívar e o Sobrado como personagem


Nessa época já não se fala mais em capela, agora é a Igreja
o ponto focal da Praça e da Vila. Com a chegada de um ilustre
juiz à cidade, como o Dr. Nepomuceno, podemos ter uma idéia
mais clara de com era Santa Fé, em razão de um Almanaque
que ele produziu sobre a cidade, em 1853, com informações so-
bre a topografia, a geologia, a fauna e a flora do município,
além do calendário, charadas, e enigmas pitorescos, conselhos
úteis, etc.. Iniciava com uma descrição literária sobre a cidade:
Situada sobre três colinas e cercada de colinas onduladas. (...) O alma-
naque oferecia também um esforço histórico, baseada principalmente
no desenvolvimento das famílias da elite – os Amarais, no caso.
E descrevia:
A vila possuía agora sessenta e oito casas, entre as de tábua e as
de alvenaria, e trinta ranchos cobertos de capim; e que sua po-
pulação já subia a seiscentos e trinta almas. Informava ainda
Dr. Nepomuceno que Santa Fé contava com quatro bem sortidas
casas de negócios, uma agência do correio – cuja mala, lamen-
tamos dizê-lo, chega apenas uma vez por semana – uma pada-
ria, uma selaria e uma marcenaria
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 249

Citava ainda de forma sofisticada:


A ciência de Hipócrates está representada entre nós pelo Dr. Carl
Winter, natural da Alemanha e formado em Medicina pela Uni-
versidade de Heidelberg e que fixou residência nessa vila em
1851, data em que apresentou suas credenciais a nossa munici-
palidade.26

Continua se dedicando a comentar o Sobrado da praça, que foi


construído no terreno da antiga casa de Pedro Terra, que a perdera atra-
vés da execução de hipoteca para o Sr Aguinaldo Silva, o qual, ao che-
gar a vila, se aboletou num rancho nos arredores da cidade, e começou
a emprestar dinheiro a juros altos.

O forasteiro que chega a nossa vila há de por certo que dar-se


surpreso e boquiaberto diante de uma maravilha arquitetônica
que rivaliza com as melhores construções que vimos no Rio Par-
do, em Porto Alegre e até na Corte. Referimo-nos a casa assobra-
dada que o Sr. Aguinaldo Silva, adiantado criador deste muni-
cípio, mandou recentemente erguer na Praça da Matriz, num
terreno de esquina com as dimensões de trinta e cinco braças de
frente por uma quadra completa de fundo. Essa magnífica resi-
dência deve constituir motivo de lídimo orgulho para os santa-
fezenses. Dotada de dois andares e duma pequena água furtada,
destacavam-se em sua fachada branca os caixilhos azuis de suas
janelas de guilhotina, disposta numa fileira de sete, no andar
superior, sendo que a do centro, mais larga e mais alta que as
outras está guarnecida de uma sacada de ferro com lindo arabes-
co; por baixo dessa sacada, no andar térreo, fica a alta porta de
madeira de lei, tendo de cada lado três janelas idênticas às de
cima. Ao lado esquerdo do sobrado no alinhamento da fachada,
vemos imponente portão de ferro forjado ladeado por duas colu-
nas revestidas de vistoso azulejo português nas cores azul, bran-
ca e amarela, e encimadas as ditas colunas por dois vasos de pe-
dra de caprichoso lavor. O terreno, a que esse portão da acesso
está todo fechado por um muro alto e espesso que por assim dizer
(perdoe-se nos a ousadia da imagem) aperta a casa como uma te-
naz. O efeito é assaz formoso, pois o sobrado (assim a residência

26. Idem, O Continente, p. 300.


250 O tempo e o vento • 50 Anos

é conhecida na vila) dá a impressão desses solares avoengos, re-


líquia de nossos passados lusitanos. Não devemos esquecer outro
encanto, qual seja seu vasto quintal todo cheio de árvores de
sombra e frutíferas, com laranjeiras, pessegueiros, guabirobeiras,
lindos pés de primavera, etc.27

Todas plantadas por Pedro, como diz Bibiana em certo momento:

Agora lá estava o sobrado como um intruso em cima daquela ter-


ra querida - era como se o casarão do pernambucano houvesse es-
magado a casinha onde vivera Ana Terra e onde ela, Bibiana,
noivara com o Capitão Rodrigo. Lá estavam ainda as árvores que
Pedro ajudara a plantar com suas próprias mãos e amava quase
tanto como a seus filho. Sempre que passava pelo sobrado, Bibia-
na lançava um olhar para aquelas laranjeiras, pessegueiros, cina-
momos, e tinha a sensação de que eles eram parentes seus que a es-
piavam, tristes por trás das grades de uma prisão. Era por isso que
continuava a alimentar a certeza de aquela terra ainda lhe per-
tencia e que, portanto, o sobrado era um pouco seu.28

Comenta ainda o editor do “Almanaque” que, ao visitá-lo, verifica-


ram que se acha dividido:

Em 18 amplas peças, muito bem arejadas e iluminadas, com pé-


direito bastante alto; e que as portas que separam essas peças
umas das outras terminam em arco, em bandeirolas com vidros
nas cores amarela, verde e vermelha. Os móveis são de autêntico
jacarandá, muito pesados e severos, tendo pertencido, como nos
informou o dito Sr. Silva, a uma Casa Senhorial de Recife, e sen-
do de lá trazidos para Porto Alegre num patacho e desta última
localidade para cá em carretas.29

Realmente não era costume dos habitantes da região deco-


rar muito suas casas, ter muitos móveis, cortinas, etc. Diferente
do Nordeste brasileiro e evidentemente da Corte, que já exi-
biam hábitos e costumes mais sofisticados.

27. Idem, O Continente, p. 301-2.


28. Idem, O Continente, p. 333.
29. Idem, O Continente, p. 302.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 251

A elevação à cabeça de comarca, em 1850, corresponde no


âmbito familiar, ao casamento de Bolívar Terra Cambará, filho
de Bibiana, com Luzia Silva, neta de Aguinaldo Silva. Esse ma-
trimônio estimulado por Bibiana significa a volta às origens, às
suas terras, e a conquista do Sobrado.
A presença de Luzia, jovem vinda da Corte com uma forma-
ção cultural bastante rara para época, coloca Santa Fé em cho-
que. O seu olhar sobre a cidade é o olhar de uma estranha, de
uma forasteira, assim como o do Dr. Winter, que traduz esta per-
cepção durante suas reflexões. Ambos serão sempre estranhos,
mas Luzia realmente causa um grande impacto na cidade. Mes-
mo assim é vista por Bibiana como o caminho para se chegar ao
Sobrado. Sob seu ponto de vista, vale o sacrifício do filho, (que
é um apaixonado por Luzia) em prol das novas gerações.

Estava resolvido, ia tomar o Sobrado, não de assalto, com tiros,


como o Capitão Rodrigo (...) Era mulher, tinha paciência, esta-
va acostumada a esperar...(...) Um dia Aguinaldo morre, Bolí-
var fica dono de tudo, eu volto para as minhas árvores (...) vou
ajudar a criar meus netos.30

Bibiana assume o Sobrado, mas tem a difícil tarefa de con-


viver com a nora, que se torna uma pessoa cada vez mais com-
plicada. O nascimento de Licurgo, faz com que ela assuma o
neto como filho. A morte de Bolívar no meio da rua, mostra
uma outra perspectiva que parece interessante abordar. É a
questão do espaço público e do privado que se misturam entre
Santa Fé e o Sobrado. A guerra que ocorre na Província do Rio
Grande do Sul, entra para dentro de Santa Fé, assim como já
havia acontecido na morte do Capitão Rodrigo, que saiu da
cama onde se deitara com Bibiana para ir lutar, depois de tan-
tas lutas fora, e morrer na guerra interna, no Casarão dos Ama-
rais. Agora Bolívar sai de casa, enfrentando os capangas dos

30. Idem, O Continente, p. 334.


252 O tempo e o vento • 50 Anos

Amarais, para acabar caindo de borco no meio da rua com a cara me-
tida numa poça de sangue, morte essa assistida por Bibiana das ja-
nelas do Sobrado.
Antes já teria havido um enforcamento na praça assistida de
camarote, por quem quisesse, através das janelas da sala do So-
brado. Esses fatos tornarão a acontecer com o cerco do sobrado
em 1895, e o Sobrado como protagonista se tornará revelador.
Depois da Guerra contra Rosas e da Guerra do Paraguai,
que Licurgo esperava poder alcançar, assim que completasse 18
anos, mas que terminou antes que o fizesse, uma certa paz per-
mitiu o desenvolvimento da vila que a conduziu, no fim do pe-
ríodo, à duas grandes comemorações: à elevação da vila à cida-
de e ao casamento de Licurgo Cambará com sua prima Alice,
neta de Juvenal, irmão de Bibiana.

V - Da cidade ao cerco para o fim da história - 1884-1945


Amanhã, 24 de junho de 1884, será um dia assinalado na histó-
ria de nossa idolatrada terra. Santa Fé comemorará sua elevação
a categoria de cidade. Aleluia! Aleluia! Que os sinos de nossa al-
terosa igreja badalem e encham os ares de sons álacres, anuncian-
do o fasto grandioso. Finalmente a assembléia provincial fez justi-
ça (quae sera tamen), pois já a todos causavas estranheza a tar-
dança de concessão de foros à nossa vila, quando uma outra lo-
calidade menos progressista e menos importante que a nossa (cujo
nome a discrição manda calar) já o tem de há muito 31

O Arauto estava se referindo a Cruz Alta, cidade desde


1879. A grande festa começava com um romper da aurora com
a Banda de Música Santa Cecília, organizada pelo Dr Winter,
que percorrerá as ruas principais da nossa urbs. Às 10 horas Mis-
sa na Praça da Matriz, observe-se que estamos agora diante de
uma Matriz. Às 4 horas, na Praça:

31. Idem, O Continente, p. 502.


a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 253

Realizar-se-ão as tradicionais cavalhadas. Finalmente a noite, o


Paço Municipal abrirá seus salões para um grande Baile de
Gala, abrilhantada pela supra citada banda e iniciado por um
cotillon, e ao qual comparecerá o que Santa Fé tem de mais sele-
to e representativo. 32

A sofisticação da linguagem, novos equipamentos e novos


hábitos fazem parte da introdução paulatina da modernidade
deste período, primeiro com Licurgo e depois com Rodrigo,
seu filho, ambos exercerão um forte papel nesse sentido. Licur-
go influenciado pelos ideais republicanos e libertários vai repre-
sentar uma bandeira contra o Império escravista. Dizia-se em
Santa Fé que Licurgo tinha três amantes: a república, a abolição
e Ismália, e que as vezes ia para cama com as três. Desse perío-
do, Fandango faz o contraponto entre o antigo e o moderno,
entre o rural e o urbano.
Depois de um fantástico cerco ao Sobrado, em 1895, por
vários dias, a guerra está dentro da cidade e dentro do Sobrado
que resiste. Santa Fé, com os capangas do Intendente e a guar-
da militar atacam o Sobrado, enquanto se resguardam significa-
tivamente na torre da Igreja Santa Fé. É um momento delicado
da família, quando Alice está para dar a luz, e outros atingidos
resistem no Sobrado, com falta de quase todos os recursos. Mor-
re a criança e a mãe sai desse episódio muito fragilizada. Nesse
momento, a figura de Maria Valéria, irmã de Alice, vai assumir
o papel da resistência na família, antes já representado por Ana
Terra e Bibiana .
Depois desse fato, Santa Fé vai recomeçar sua vida no cami-
nho da reconstrução e do desenvolvimento, tendo em Rodrigo
Terra Cambará, filho de Licurgo, o seu porta voz. Rodrigo se for-
ma em Medicina em 1909, em Porto Alegre, e volta, de trem,
para sua cidade natal a fim de assumir paulatinamente a lideran-
ça familiar e política, procurando trazer, com suas próprias

32. Idem, O Continente, p. 502.


254 O tempo e o vento • 50 Anos

mãos, o progresso à Santa Fé. Esta fase se desenrola com muitos


detalhes descritos em O Retrato e em O arquipélago. A fase final se
dá com o seu afastamento da cidade para o Rio de Janeiro onde
assumirá uma cadeira na Câmara dos Deputados (1930-45). Seu
posterior retorno, quando da queda de Getúlio Vargas, já doen-
te, marca o fim de um período, com a sua própria morte. A fra-
se de Tio Bicho para Floriano é esclarecedora: com Dr. Rodrigo
não morre apenas um homem, acaba-se uma estirpe. Finda uma época,
o que vem por aí não sei se será melhor ou pior, só sei que não será o mes-
mo.33 E Santa Fé continuaria lá para o que desse e viesse.
Rodrigo, recém formado, chega a Santa Fé e a olha com
um olhar crítico, através primeiro do Sobrado, o grande camaro-
te da praça, e depois num passeio com Toríbio pelas ruas da urbe,
como a designou O Arauto, quando da sua elevação à vila.

Do ponto em que estava (no sobrado), Rodrigo dominava com o


olhar sua cidade, via-lhe os telhados em meio a densa vegetação
dos quintais. Santa Fé resumia-se em duas ruas que corriam de
norte a sul - a do Comércio e a dos Voluntários da Pátria, corta-
das por cinco outras de menor importância, ruas esbarrancadas
de terra batida e sem calçadas onde pobres meias-águas e casas
de madeira se erguiam em precário alinhamento, entremeadas de
terrenos baldios onde cresciam ervas daninhas, e os moradores
da vizinhança iam atirando dia a dia o seu lixo. A Rua do Co-
mércio era a única calçada de pedra e nela ficavam o Clube Co-
mercial, a Confeitaria Schnitzler, o Centro Republicano e as
principais casas de negócio.34

Visitou os amigos nos seus estabelecimentos: Zé Pitombo, o


armador, Chico Pão, o padeiro, e depois Rodrigo lançou um
olhar para as fachadas ao longo da rua do Comércio:

Como eram baixas, feias e tristonhas aquelas casa! Com exceção


do Sobrado, do Clube Comercial e de algumas residências como
dos Matos, dos Quadros e dos Fagundes, eram todas térreas e

33. VERÍSSIMO,E. O Retrato, p. 42.


34. Idem, O Retrato, p. 88.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 255

sem estilo, caiadas sem platibanda. No telhado limoso das mais


antigas cresciam até ervas. O pavimento da rua riçado de pedra
ferro de tamanho irregular e de ordinário coberta de finíssima
poeira avermelhada, dava a impressão de ter sido feita com pés
de moleque. Ao longo das calçadas alinhavam-se os lampiões de
querosene, no altos dos postes de madeira pintados de azul.35

Rodrigo não se conformava com o atraso da cidade, nem


luz elétrica? Logo adiante no seu percurso encontrou com o
aguadeiro de Santa Fé que vinha pelo meio da rua aos sacolejos
de sua carroça, sentado no alto da grande pipa. A praça é palco
dos acontecimentos da cidade, era também onde vacas e cava-
los pastavam. A cidade já tem alguns bairros mais afastados de
onde se destacam o Barro Preto, o Purgatório , e os distritos de
Nova Pomerânia, Garbadina.
Na volta de Rodrigo do Rio de Janeiro, em 1945, a cidade
é vista por seus filhos, primeiro Eduardo sobrevoando Santa Fé,
no seu Rosa dos Ventos:

Lá estava ela esparramada sobre as três colinas, com seu casario


esbranquiçado, os telhados antigos e pardacentos a contrastar
com o coral vivo das telhas francesas das construções mais no-
vas; as faixas cinzentas das ruas calçadas de pedra ferro a se-
guirem paralelamente ou a cortarem nítidas as sangüíneas das
ruas de terra batida; e enchendo dum verde escuro as casas da-
quele tabuleiro xadrez as maciças manchas do arvoredo de poma-
res e praças. Vista do alto, Santa Fé tinha um jeito miniatural e
morto de maqueta, dum brinquedo a que a luz do sol, ao bater
nas superfícies de vidro, água e metal, dava um certo lustro de
verniz e coruscações de lentejoula. A cidade estava cercada de co-
xilhas que fugiam na direção de todos os horizontes, cortadas
pela fita de ocre avermelhado das estradas. Era uma verde e im-
petuosa amplidão onde se desenhavam chácaras e fazendolas
com suas casas brancas, moinhos de vento, pomares, hortas, cer-
cados, pastagens e açudes...Aqui e ali, como remendos de dife-
rente tecido naquele tapete ondulado, recortavam-se os quadrilá-
teros cor de ferrugem das roças de terra recém virada ou os con-

35. Idem, O Retrato, p. 96.


256 O tempo e o vento • 50 Anos

tornos simétricos dos bosques de eucalipto... Olhando para o nor-


te, Eduardo avistou Nova Pomerânea com a esguia torre de sua
igreja numa paródia gótica; voltando a cabeça para as bandas
do poente divisou os telhados de Garibaldina entre os parrerais
e ciprestes(...). Até ao Rosa dos Ventos não chegava o perfume
dos ricos que viviam nos melhores palacetes de Santa Fé, nem a
fedentina dos miseráveis que vegetavam nas malocas de Barro
Preto, do Purgatório e da Sibéria.36

Do ponto de vista de Floriano a impressão não é melhor:

O carro pôs-se em movimento, descendo a encosta da coxilha, na


direção da cidade. Floriano lançou um olhar para o casario raso
e pardacento do purgatório, que se estendia ao tépido sol daque-
le fim de tarde. Ainda lá estavam sórdidas malocas com sua po-
pulação de marginais, bem como nos tempos de sua infância.
Nada parecia ter mudado. Santa Fé tinha agora um aeroclube,
uma estação de rádio, as ruas centrais pavimentadas de parale-
lepípedos, mas a miséria do Barro Preto, do Purgatório e da Si-
béria continuavam.37

O fato de terem morado por 15 anos no Rio de Janeiro, a


capital da República, desligados de Santa Fé, fez com que per-
dessem seus referenciais e suas identidades, ficando claro que
não será fácil resgatá-los, assim como reunir a família novamen-
te. Entretanto, Santa Fé continuará com seu povo, com sua his-
tória na mesma direção que outras cidades da região prossegui-
rem, só que agora seguirá seu rumo sem as amarras aos Terra
Cambará, a não ser que, através de Floriano, o escritor, seu
rumo seja alterado...

Conclusão

A maior complexidade de relações e de problemas da cida-


de nesta última fase é muito bem colocada no volume de O Re-

36. Idem, O Retrato, p. 13-4.


37. Idem, O Retrato, p. 525.
a r e p r e s e n ta ç ã o d o E s pa ç o n a o b r a d e e r i c o v e r i s s i m o 257

trato, apesar da crítica considerar esse volume o menos interes-


sante em O Tempo e o Vento, em termos de romance, pois a trama
gira em torno de praticamente um só personagem:

As narrativas não têm vida própria, senão as que servem para ex-
plicar a trajetória de Rodrigo Cambará, mostrando como era e em
que se transformou. Além disso, o romance centraliza na biografia
do protagonista, substituindo a composição centrífuga, de O Con-
tinente por uma seqüência centrípeta, cujo eixo é o líder dos Cam-
barás, impedindo que cada parte assegure para si a autonomia
narrativa.38

Contudo, do ponto de vista da cidade, é n’O Retrato que apa-


recem as maiores riquezas de detalhes. A vida da cidade está colo-
cada com todas as suas práticas sociais, seus equipamentos, bairros,
periferia, serviços, e uma sociedade plural circulando por Santa Fé
e marcando seus passos. Ao se fixar mais em um personagem, é
possível precisá-lo melhor, desenvolvendo mais o seu cotidiano e
dos demais, mostrando o circular, o perambular e o permanecer
nos espaços urbanísticos ou arquitetônicos , nos públicos ou priva-
dos, ou ainda aqueles que se tornam, ao mesmo tempo, uma coisa
ou outra. Para esse tipo de abordagem, podemos destacar que
muitas vezes a praça fez parte do Sobrado, assim como a sua pró-
pria rua de fronte. Outras vezes era o contrário, as salas do Sobra-
do se transformavam em camarotes de onde podiam assistir os
acontecimentos da praça. Fatos como esses são mostrados nos três
volumes.
Um aspecto que vale mencionar é o fato de que tanto a Cida-
de como o Sobrado assumem nitidamente o papel de personagens.
Não são os Terras que se preparam para as lutas, para as festas, para
os encontros, mas o Sobrado. O mesmo acontece com a cidade:
Santa Fé não apreciava , Santa Fé ia a luta, Santa Fé se fez mulher.
Por ocasião de sua elevação à vila, o padre, durante a Missa, dizia:

38. ZILBERMAN, Regina. O Tempo e o Vento: História, Mito, Literatura. In: LEENHARDT, Jacques
e PESAVENTO, Sandra J.(orgs). Campinas: Col. UNICAMP, 1998, p. 142.
258 O tempo e o vento • 50 Anos

Santa Fé, que era menina, agora se faz moça. E nós, que a ama-
mos e nos envaidecemos dela, apresentamo-la ao mundo e excla-
mamos: Vede como cresceu nossa menina, como se fez tão gracio-
sa e bela.39

Por último, a questão da modernidade tratada no Roman-


ce de Erico Verissimo merece um tratamento mais aprofunda-
do em outra oportunidade. Na verdade, ela não se reflete exa-
tamente no espaço físico mas está presente de maneira muito
forte na vida urbana, seja na aceitação das novas tecnologias,
nas adoções de novas políticas e novas ideologias, assim como
nas práticas sociais.

* Doutora em Arquitetura, UFRGS.

39. op. cit. O Retrato p. 519.


“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o Capitão Rodrigo Cambará entrara na vida
de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho
puxado para a nuca.”
O Continente – Um Certo Capitão Rodrigo
ALMANAQUE MUNICIPAL DA CIDADE DE SANTA FÉ
(atualização do texto original de Nepomuceno Garcia de Mascarenhas)

Para o ano de

1899
por Andrey Rosenthal Schlee*

Ao leitor

Prezado leitor, em 1853 o ilustre morador de Santa Fé, e primeiro Juiz


de Direito da Comarca, Dr. Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, escreveu
e mandou publicar, sob seus auspícios, o Almanaque de Santa Fé. Desde en-
tão, nenhuma outra publicação nesse gênero foi escrita, apesar do incontes-
tável auxílio que livros desta ordem prestam a todas classes da sociedade.
Passados exatos quarenta e seis anos de tão importante iniciativa e comemo-
rando a chegada de um novo século, retomamos o texto original do magistrado
com o intuito de providenciar sua atualização, dado o progresso crescente de nos-
so município. Procurei guiar-me por bons modelos na classificação e disposição dos
assuntos de que consta este livro. Ainda assim, muitas faltas hão de dar-se indepen-
dentes de minha vontade, e que os leitores relevar-me-ão, por alguma coisa útil que
tiver feito.

A Direção
262

HISTÓRICO DO MUNICÍPIO DE SANTA FÉ

A vila de Santa Fé se desenvolveu à beira da antiga estrada, por


onde passavam os índios missioneiros transportando erva mate de Botu-
caraí para os povos dos jesuítas. No início eram apenas cinco ranchos de
taipa cobertos de palha, construídos à frente de uma grande figueira.
Neste mesmo local, com o tempo, passaram a pedir descanso, ou agasa-
lho noturno, alguns raros viajantes provindos dos lados de São Martinho
ou da região da serra.
Ainda o local da cidade de Santa Fé era assim, quando, por vol-
ta de 1789, chegou o grupo capitaneado por Marciano Bezerra, compos-
to de mais dois homens, seis mulheres e cinco crianças. Depois destes
povoadores, vários outros foram ocupando a região, buscando o traba-
lho e a proteção oferecidos pelo Cel. Ricardo Amaral.
Procuramos saber os nomes dos primeiros povoadores do terri-
tório santa-fezense, mas a tradição, a memória desses homens pratica-
mente desapareceu. Dois ou três nomes ainda são recordados: o do cita-
do capataz Marciano Bezerra, o da viúva Eulália Terra, o da parteira Ana
Terra e o de seu filho Pedro.
As terras originárias da cidade de Santa Fé pertenciam à sesmaria
do Cel. Ricardo Amaral. Rico proprietário e senhor da estância que deu
nome à localidade. Uma vez preso ao solo, por tão grandes proprieda-
des rurais, resolveu formar o lugarejo, onde só havia ranchos.
De 1802 a 1811, reinou a paz na fronteira e em todo o Continente,
de modo que as atividades comerciais e pastoris prosperaram. Em 1803,
foi construída a primitiva capela da região, onde onze crianças recebe-
ram os santos sacramentos e cinco sagrados casamentos foram realiza-
dos.
No mesmo ano, o Maj. Francisco Amaral, filho do Cel. Amaral, re-
cebeu autorização do administrador da redução de São João Batista
para fundar uma povoação. O ofício fornecia as diretrizes para o deli-
neamento da área da povoação: “...ordeno a V.mce. que faça medir com
263

brevidade meia légua de terreno no mesmo lugar em que pretendem


formar a povoação, contendo desde o ponto em que desejam ter a cape-
la, um quarto de légua na direção de cada rumo cardeal, isto é, em ru-
mos direitos de Sul a Norte, e de Leste a Oeste, ponto marcos ou bali-
zas, que permaneçam seguros nos extremos das linhas assim medidas,
para que em todo o tempo se possam passar os rumos e travessões, que
devem ficar no quadro necessário da povoação. E dentro do menciona-
do quadro destinará V.Mce., um terreno de um quarto de légua em qua-
dro, pouco mais ou menos, no lugar próprio e adequado para logradou-
ro dos animais de todos os habitantes do lugar, os quais deverão ter suas
habitações em ruas bem alinhadas e destorcidas. Cada rua terá 60 pal-
mos craveiros de largura e cada morador 50 palmos contados na frente
da rua e 200 ditos de fundos. São proibidas expressamente as faturas de
Chácaras dentro da meia légua em quadro destinada à povoação, assim
como ninguém poderá ocupar mais terreno, que aquele que lhe é desti-
nado. A frente da capela se deixará uma praça quadrada e não deverá
ter menos de uma quadra de 400 palmos em quadro”.

A planta da povoação foi traçada pelo piloto de Sesmarias Mau-


rício Inácio da Silveira e pelo ajudante de corda Francisco Correia da Sil-
va. Ao finalizar a medição e demarcação do povo, o piloto foi confirma-
do por provisão para trabalhar em Rio Grande. Foram traçadas três ruas
no sentido de norte a sul e quatro travessas no sentido leste a oeste. No
centro do povoado, foi delimitada a praça, atual Praça da Matriz, que na-
quela época já exibia sua majestosa figueira.

Em terreno previamente definido, o próprio Maj. Amaral mandou


construir a nova capela, contando com a colaboração de todos os ho-
mens e mulheres da localidade. Foi ela dedicada a Nossa Senhora da
Conceição. No outro lado da praça, edificou sua própria morada, um
grande sobrado de pedra, e que, por muitos anos, foi considerada a
maior construção da região.
264

Enquanto não houve autoridades civis era o Maj. Amaral quem aco-
modava todas as questões, pois os habitantes da povoação, os da campa-
nha e até os padres, submetiam-se ao seu parecer conciliador e discreto.

A vida corria pacata quando, em 1833, chegaram a Santa Fé as duas


primeiras famílias alemãs. A do Sr. Erwin Kunz e a do Sr. Hans Schultz.
O primeiro abriu uma selaria, e o segundo comprou terras para o plan-
tio. Trouxeram novos costumes e novas maneiras de viver. Um ano de-
pois, em 34, Santa Fé fora elevada a condição de Vila por ato da presi-
dência da Província, na conformidade do artigo 3º do Código de Pro-
cesso Criminal do Império.

Nossa vila tem pago pesado tributo de sangue e heroísmo no altar


da pátria. Muitos foram os oficiais e soldados que deu para as lutas de
que esta Província tem sido teatro, e pode-se dizer sem exagero que não
houve geração que não tivesse visto pelo menos uma guerra. Durante a
luta civil que por espaço de dez anos ensangüentou o solo generoso do
Continente, muitos foram os santa-fezenses que participaram dela, quer
nas hostes farroupilhas quer nas forças legalistas. Não me cabe aqui,
como magistrado e como homem infenso às paixões políticas, manifes-
tar simpatias ou lançar diatribes. O que passou passou e mais vale esque-
cido do que lembrado, pois uma luta fratricida é mil vezes mais horren-
da do que as guerras entre as nações. Graças ao Supremo Arquiteto do
Universo o sol da paz raiou benfazejo no horizonte da Província, e os ini-
migos de ontem se deram as mãos e recomeçaram a trabalhar juntos em
prol da grandeza da Pátria comum. Mas, ai!, ainda nem bem se haviam
cicatrizado as feridas abertas pela guerra civil e já de novo eram nossos
irmãos arrancados ao aconchego dos seus lares e ao seu trabalho pací-
fico, convocados mais uma vez pelo pressago clarim da guerra. Rosas, o
tirano argentino, ameaçava a integridade de nosso Brasil, e era necessá-
rio fazer frente a essa ameaça. E assim mais uma vez os santa-fezenses
formaram os seus batalhões de voluntários e nessa luta que nem por ser
relativamente curta foi menos cruenta, muitos foram os filhos desta vila
265

que tiveram atuação destacada. Entre eles é de justiça salientar o jovem


Bolívar Terra Cambará, filho dum intrépido soldado, o Cap. Rodrigo Se-
vero Cambará, morto heroicamente num combate que se feriu nesta
vila em princípios de 1836. Bolívar, esse denodado jovem, cujo nome pa-
rece trazer em si uma destinação gloriosa, guiou os seus cavalarianos
numa carga de lança, destruindo um quadrado inimigo e arrancando,
ele próprio, das mãos dum adversário a bandeira argentina! Esse ato de
bravura valeu-lhe a promoção ao posto de primeiro-tenente, e uma cita-
ção especial em ordem do dia.

Em 1850 a Vila de Santa Fé foi elevada a cabeça de comarca e seu


primeiro juiz de direito foi o Dr. Nepomuceno Garcia de Mascaranhas.
Santa Fé foi elevada à condição de Cidade em 25 de março de
1884, dia em que se comemora a Anunciação de Nossa Senhora. Os fes-
tejos romperam pela matina quando os acordes da Banda de Santa Ce-
cília se fizeram ouvir em toda a cidade. Por voltas das dez horas da ma-
nhã, os sinos da matriz conclamaram a população para o magnífico Te
Deum. A missa solene foi organizada pelo Pe. Atílio Romano e contou
com a presença dos mais ilustres filhos de Santa Fé. Às quatro da tarde
teve início a “Cavalhada Festiva”, interrompida por um acontecimento
desastroso. Simulando uma guerra entre dois partidos, os mouros e os
cristãos, os combatentes executaram várias evoluções, sempre a galope.
Garbosamente montados nos seus melhores cavalos, os filhos da terra
apresentaram-se na arena trajando azul, se cristãos; ou encarnado, se
mouros. No entanto, a simulação deu lugar à terrível realidade, e aque-
les a quem todos deveriam respeitar lançaram-se em luta voraz. Ao anoi-
tecer, seguiram-se dois grandes bailes. O do Paço Municipal, organizado
pelo Cel. Bento Amaral; e o do Sobrado, organizado por Sr. Licurgo
Cambará.
Durante o baile de gala do Paço Municipal, foi prestada uma signi-
ficativa homenagem ao venerando Cel. Bento Amaral, neto do fundador
da cidade. Já, durante o baile do Sobrado, num gesto de grande huma-
nidade, o Sr. Licurgo Cambará concedeu carta de manumissão a todos
266

os seus escravos. Na mesma ocasião, dezenove outros cativos foram liber-


tados pelo Clube Republicano.


Como dizia o Pe. Atílio Romano: Santa Fé é obra de muitos homens,
de muitas famílias e principalmente uma dádiva do Todo-Poderoso!

A morte do índio Sepé

Do alferes-mor de São Miguel, José Tiaraju, ouviram apenas que


não havia direito para lhes tirarem aquelas terras, que Deus e São Mi-
guel lhes haviam dado. Os feitos de Sepé e seus guerreiros corriam pe-
los Sete Povos e testemunhas oculares das batalhas contavam que no
meio da refrega tinham visto o lunar a fulgir na testa do corregedor, que
passava incólume por entre as balas, brandindo no ar a espada flamejan-
te. São Miguel Arcanjo estava entre os índios, defendia sua própria Mis-
são. Aí estava José Tiaraju, o Capitão Sepé, que chamava atenção pelo
seu porte e pela atitude garbosa de seu natural. Sepé luta como um ser
sobrenatural. Mas chega-lhe, pelas costas, um dragão português, que lhe
joga um golpe profundo de lança. Sepé abraça-se ao pescoço de seu ca-
valo branco. José Tiaraju morreu, padre! São Jorge foi morto pelo dra-
gão! O alferes foi derrubado do cavalo por um golpe de lança. Vi quan-
do ele quis erguer-se e um homem... um general... de cima do cavalo, va-
rou-lhe o peito com uma bala. Lhe corta com um tiro de pistola o curso
da vida. A alma de Sepé subiu e virou estrela. Sepé ascendeu aos ares tra-
jando vestes de guerreiro. Longas botas, armadura, chapéu emplumado,


duas longas asas e nas mãos um arcabuz. Deus botou também na testa da
noite um lunar como o de São Sepé.
267

Poesia I

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

Tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

 Luiz Vaz de Camões

SITUAÇÃO DA CIDADE DE SANTA FÉ

A Cidade de Santa Fé é uma das flores mais formosas do vergel ser-


rano. Situada sobre três colinas e cercada de campos ondulados, lembra
ela ao viajante, singelo mas gracioso presepe. Prodigamente dotada pela
natureza, seus bons ares e suas cristalinas águas são propícios à longevi-
268

dade, razão pela qual muitos de seus habitantes, em geral de costumes


morigerados, passam dos noventa anos, como foi o caso extraordinário
do preto escravo conhecido pela antonomásia de Sinhô d´Angola, o
qual durou mais de uma centúria, e do Cacique Fongue, que viu pela
primeira vez a luz do dia na redução de Santo Ângelo, por volta de 1750,
e que, em 1853, contava com cento e três anos.

Apresenta ao visitante uma bela e bem planejada praça, a da Ma-


triz, caracterizada por sua magnífica figueira e pelos belos prédios que a
cercam, todos de boa arquitetura. São quatro as principais edificações
da cidade. A Igreja Matriz, o Paço Municipal, a residência da Família
Amaral e a residência da Família Cambará, distribuídos como que que-
rendo desenhar uma cruz, em cujo centro está a centenária figueira.

A igreja matriz, construída a partir de 1863, apresenta duas torres e


uma só nave dividida através das carreiras de bancos. Trata-se de abrigo
suficientemente grande para receber e proteger toda a população da ci-
dade. No altar-mor destaca-se a imagem missioneira da padroeira, Nossa
Senhora da Conceição, ao lado da qual repousam outras santos, que mais
parecem guerreiros entocaiados: São Miguel Arcanjo, anjo justiceiro,
príncipe celeste e defensor do bem; São Rafael Arcanjo, anjo da guarda,
que ampara e defende os homens; São Tiago Maior, combatente dos
mouros, com seu cavalo branco; e São Jorge, que luta contra todas as he-
resias, com sua armadura de ferro e seu cavalo, igualmente, branco. Em
uma das torres, a do batistério, fica a pia com a água benta e a escada de
acesso ao campanário propriamente dito; na outra, a capela de Santa Bár-
bara, protetora contra as tempestades e padroeira dos militares.
O Paço Municipal, antiga Casa de Câmara e Cadeia, é um prédio
térreo, mas com porão alto. No térreo fica o salão principal com o seu


forro artesoado, ladeado por quatro pequenos escritórios, dois de cada
lado. O porão repete a mesma distribuição, só que os escritórios dão lu-
gar às celas.
269

O cemitério de Santa Fé, ou Cemitério Católico Municipal, fica no


alto da coxilha, a um quarto de légua da Praça da Matriz. Todo cercado
de pedras, apresenta quatro tipos de sepulturas, variando segundo o po-
der aquisitivo do finado: montículos de terra com cruzes, covas recober-
tas por lajes, túmulos de tijolos rebocados e caiados e, finalmente, as ca-
pelas perpétuas que acabaram transportando para o Campo Santo anti-
gas rivalidades terrenas. São dignos de nota os jazigos das famílias Ama-
ral e Cambará. Está aberto das 6 horas da manhã às 6 horas da tarde.

Quanto a indústria e profissões, conta a cidade: com a Farmácia


Galena; a Casa Sol; a Sapataria Serrana; a Botina Elegante, o Bazar Ame-
ricano, a Fábrica a Vapor de Moer Café e o Armazém de Secos e Molha-
dos do Sr. Fernando Ribeiro; a Alfaitaria Italiana, estabelecimento que
acaba de passar por grandes reformas não temendo competência em tra-
balhos e preços; a filial do Armazém de Secos e Molhados do Sr. Candi-
do de Lamare de Santa Maria, com grande quantia de arame para cer-
cas; a Fábrica de Licores de Alexandre Hurtig & Irmão, com matriz em
Santa Cruz, produzindo os famosos Genebra, Aromático e Bonekamp; a
Fábrica de sabão e velas do Sr. Álvaro Pedroso; o Armazém Amaral, com
vendas por atacado de couros secos, lã, cabelo, cera, fumos, erva e varia-
do estoque de produtos de charqueadas; e a casa Ao Livro Verde, fábri-
ca de livros em branco. Conta a cidade com dois jornais: O Arauto, di-


rigido pelo Dr. Manfredo Fraga; e O Democrata, órgão oficial do Parti-
do Republicano, dirigido pelo Dr. Toríbio Rezende.

Diário de um soldado português

Reproduzimos a única página encontrada de um documento anô-


nimo, recolhido e gentilmente cedido pelo conterrâneo Dr. Carl Winter.
Provavelmente deve ter sido escrito por volta de 1777, ano da expulsão
dos castelhanos do território do Continente.
270

“... A região percorrida até aqui é ondulada, oferecendo excelentes


pastagens. Como a jornada apresentava-se cansativa, o vento era inten-
so, os homens estavam famintos e o forte de Santa Tecla estava distante,
tratamos de buscar algum local de pouso. Paramos numa estância cujos
edifícios se compõem de duas tristes palhoças: uma habitada pelo pro-
prietário, esposa e três filhos; outra utilizada como depósito de tranquei-
ras. O triste cenário contrastava com a beleza natural, com a coxilha,
com a sanga e com os pessegueiros floridos. O proprietário, de nome
Terra, convidara-nos para descer e comer alguma coisa. E, como a fome
era grande, dentro em pouco estava, com meus oficiais, sentado à mesa
comendo um churrasco com abóbora e bebendo uma guampa de leite.
O rancho era de pau a pique, paredes de taquaraçu e barro, coberto de
palha e piso de terra batida. Contava duma só peça quadrada com repar-
tições de pano grosseiro. Um dos compartimentos resultava maior e ali
faziam as refeições: era ao mesmo tempo refeitório e cozinha, e a um
canto dela estava o fogão de pedra e uma talha com água potável. O mo-
biliário era simples e rústico: uma mesa de pinho sem verniz, algumas ca-
deiras de assento e respaldo de couro, uma arca também de couro, com
fechos de ferro, um armário meio desmantelado... Numa outra reparti-
ção ficava a cama do casal, sobre a qual, na parede pedia um crucifixo
de madeira negra, com um Cristo de nariz carcomido. Na divisão seguin-
te estavam os catres dos dois filhos machos; e no outro compartimento
uma cama de pernas de tesoura, debaixo da qual se via um velho baú.
Devia ser o ´quarto´ da filha, moça mui linda... Moça bonita e trabalha-
deira. Um dia, vamos ficar donos de todo o Continente, e então precisa-
remos de moças bonitas e trabalhadeiras...
Fui soldado, sentei praça
Já servi numa guarita,


Agora sou ordenança
De toda moça bonita...”
271

Poesia II

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,


Depois da Luz se segue a noite escura,
Em triste sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria

 Gregório de Matos Guerra

FATOS CURIOSOS

• A primeira parteira da cidade foi a viúva Ana Terra. Através de


suas mãos firmes muitos santa-fezenses vieram ao mundo. Era chamada
para atender partos a muitas léguas de distância da Vila. Quando chega-
va a hora e algum marido vinha buscá-la, pegava a sua tesoura e, em ge-
ral, exclamava: então a festa é pra hoje!?
• A primeira condenação à morte ocorreu em 1853. Fora enfor-
cado, em plena Praça da Matriz, o negro Severino. Segundo registrou o
vigário Otero, “o espetáculo não foi nada edificante”.
• Na esquina onde atualmente encontra-se o grande Sobrado, an-
tigamente havia a residência do oleiro Pedro Terra. Morada baixa, de
porta e duas janelas, tinha alicerces de pedra, paredes de tijolos e era co-
berta de telhas. Era uma das poucas casas assoalhadas de Santa Fé. Tal
residência, por hipoteca, passou às mãos do Sr. Aguinaldo Silva, que
mandou destruí-la e construiu, no mesmo local, o grande palacete de
dois pavimentos mais a água-furtada. No entanto, quis o destino que a
neta de Aguinaldo Silva contraísse matrimônio com o neto de Pedro Ter-
ra, de maneira que a propriedade voltou a pertencer, com a morte de
Luzia Silva, à família Terra Cambará.
272

Medicina Caseira

Com o intuito de melhorar a saúde da população santa-fezense, o


Dr. Carl Winter vem traduzindo para o português, contando com impor-
tante colaboração do Dr. Cloratório Nunes e do Sr. Paulo Kraemer, a edi-
ção alemã do livro “Medicina homeopática doméstica”. Acreditando que
a ciência de Hipócrates deve tornar-se o bem comum de todo povo, e
com a permissão dos organizadores da edição, reproduzimos algumas
informações contidas em tão importante obra:
1. Banho de assento ou meio banho.
Toma-se este banho em qualquer vasilha espaçosa contendo água
que chegue só a altura do umbigo. Os pés devem ficar fora da banhei-
ra sobre um pequeno escabelo, cobrindo-se as pernas com uma colcha
de lã. Emprega-se para o banho de assento dois a quatro baldes de água
na temperatura de 24 a 28 graus Réaumur, ficando sentado na água 15
a 30 minutos. Tratamento indicado contra a febre, febres violentas, ma-
les do baixo ventre e hemorróidas.
2. Calos nos pés.
Estas excrescências incomodativas consistem simplesmente no en-
durecimento de uma porção da pele causada pela pressão, formando
como que um espigão ou espinho que sai do centro e se enterra na car-
ne como uma raiz. O tratamento consiste em amolecer o calo em um
banho bem quente de pés, a que se ajunta um pouco de cinza, deitando
em cima do calo um pedaço de toucinho, e ata-se em cima uma cama-
da de algodão. Com esse processo o calo amolece, podendo ser retirado.
3. Moléstias das mulheres.
São muitas vezes conseqüências de extravagâncias conjugais duran-
te a gravidez. É quase incrível a ignorância que domina o homem e a
mulher neste assunto. Mesmo a bíblia proíbe o coito no período da gra-
videz. Neste tempo o marido não deve importunar a mulher com pedi-
dos relativos ao leito nupcial, na prenhez a mulher deve ser uma santa
273

que o marido deve respeitar religiosamente. Também ela deve estar con-
victa, que será severamente castigada e terá em conseqüência graves
doenças nervosas e nos órgãos sexuais.


A bem da saúde aconselhamos as mulheres e as moças, que lavem
suas partes íntimas duas vezes por semana com água morna.

Poesia III

Não vês aquele velho respeitável,


que, à muleta encostado,
apenas mal se move e mal se arrasta?
o Tempo arrebatado,
que o mesmo bronze basta!

 Tomás Antônio Gonzaga

AS MAIS BELAS RESIDÊNCIAS DE SANTA FÉ

A mais antiga construção, ainda existente em Santa Fé, é o sobrado


da família Amaral. Mandado construir pelo Maj. Francisco Amaral, e da-
tado do final de 1803, foi erguido todo em pedra segundo risco elabora-
do pelo piloto Maurício Inácio da Silveira. Residência ampla de vários
lanços, ou como consta em seu inventário, “uma morada de casa de vi-
venda nobre de sobrado com primeiro e segundo andar com eirado,
tudo feito de pedra”. O pavimento térreo é composto de inúmeros com-
274

partimentos, antigamente reservados aos escravos, aos agregados ou


hóspedes. Outros eram utilizados como depósitos e cocheiras. Ainda no
térreo fica o escritório dos Amarais, onde, através dos anos, receberam
seus empregados e trataram dos negócios. Através de um pequeno com-
partimento, têm-se acesso à longa escada que conduz ao pavimento su-
perior, com duas salas de frente, dois dormitórios e quatro alcovas, pe-
ças que se comunicam umas com as outras. A fachada reflete a simplici-
dade do interior, cinco aberturas na parte superior e duas portas e três
janelas na parte inferior.

O forasteiro que chega à nossa vila há de por certo quedar-se surpre-


so e boquiaberto diante duma maravilha arquitetônica que rivaliza com as
melhores construções que vimos no Rio Pardo, em Porto Alegre e até na
Corte. Referimo-nos à casa assobradada que o Sr. Aguinaldo Silva, antigo
criador deste município, mandou erguer na Praça da Matriz, num terreno
de esquina com as dimensões de trinta e cinco braças de frente por uma
Quadra completa de fundo. Essa magnífica residência deve constituir mo-
tivo de lídimo orgulho para os santa-fezenses. Dotada de dois andares e
duma pequena água-furtada, destacam-se em sua fachada branca os caixi-
lhos azuis de suas janelas de guilhotina, dispostas numa fileira de sete, no
andar superior, sendo a do centro, mais larga e mais alta que as outras está
guarnecida duma sacada de ferro com lindo arabesco; por baixo desta sa-
cada, no andar térreo, fica a alta porta de madeira de lei, tendo de cada
lado três janelas idênticas às de cima. Ao lado esquerdo, do sobrado, no ali-
nhamento da fachada, vemos imponente portão de ferro forjado ladeado
por duas colunas revestidas de vistoso azulejo português nas cores branca,
azul e amarela, e encimadas as ditas colunas por dois vasos de pedra de ca-
prichoso lavor. O terreno, a que este portão dá acesso, está todo fechado
por um muro alto e espesso que por assim dizer aperta a casa como uma
tenaz. O efeito é assaz formoso, pois o “Sobrado” dá a impressão desses so-
lares avoengos, relíquias de nossos antepassados lusitanos.
Atualmente o Sobrado pertence a família de Bolívar Cambará, ten-
do abrigado em suas dezoito amplas peças toda a sua descendência. No
275


andar superior ficam os dormitórios e no pavimento térreo, a sala prin-
cipal, o escritório, a sala de jantar, a cozinha e a despensa.

Lendas da Província

São inúmeras as lendas e histórias que povoam nossa Província. Ca-


sos de assombração, lutas de família, guerras, duelos e lendas. O velho
Fandango, capataz da estância do Angico, propriedade da família Cam-
bará, na sua tosca sabedoria era capaz de preservar e reproduzir muitas
destas histórias que remontam aos mais distantes tempos, nos mais lon-
gínquos pagos.
A da princesa moura, que aparecia, por vezes, transformada em co-
bra, toda enroscada. Da cintura para cima era gente, e da cintura para
baixo era víbora. “Yo soy la princesa mora encantada, aquel que há veni-
do de otras tierras por sobre el mar que nosotros jamás hemos surcado...
He venido, y Anhangá-pitã transfomóme en teiniaguá de cabeza ofus-
cante que unos llaman — el carbunclo — y temem y desean, porque soy
yo la rosa de los tesoros escondidos en los vichaderos del mundo”.
A das mulitas que ajudaram a Sagrada Família em pleno deserto ou
a história do encontro de Jesus com uma mulita de coração empedernido:
Jesus, transfigurado em rapazito pobre se pôs a chorar e a tilintar
de frio junto à cova de uma mulita. Esta, ao presenciar a triste cena, se-
guiu o seu caminho de cabeça baixa. Na volta para a toca, Jesus implo-
rou ajuda, dizendo:
— Mulita, tenho frio!
— Corra que te aquecerás!, respondeu cinicamente o ani-
malzinho.
— Mas é que a noite vem próxima e a chuva não tardará...
— Faça como eu, cave no solo um buraco que te sirva de
abrigo.
276

— Habilidade não tenho e força não possuo para tanto.


Por que não me dás tu, mulita, a metade de teu abrigo, como
manda a Sagrada Escritura? O Senhor Deus te cobriu com um
magnífico poncho e te deu fortes unhas para cavar.
— Disto tudo sou muito grato ao Senhor e, por este mesmo
motivo, para honrar as graças concedidas, não vou rasgar meu
poncho para dar a metade a um vagabundo como tu. Agora vou
dormir. Sumindo em sua toca.


Então disse Jesus:
— Jamais te sairá do corpo o poncho que possuis, ainda
que morras de calor.

Poesia IV

O tatu mais a mulita,


É lei de sua criação
Sendo macho não pode ter irmã,
Sendo fêmea não pode ter irmão.

 Autor desconhecido
277

CALENDÁRIO DE SANTA FÉ

1737 – Fundação do presídio do Rio Grande


1750 – Tratado de limites
1754 – 1756 – A guerra das Missões
1756 – Combate a Caiboaté
1762 – Primeira invasão inimiga ao território do Rio Grande
1773 – Segunda invasão inimiga. A praça de Rio Pardo é salva
1777 – Terceira invasão. Os rio-grandenses consumam a
expulsão do inimigo
1803 – Demarcação do povoado de Santa Fé
1807 – O Rio Grande é erigido em Capitania Geral
1820 – Incorporação do território oriental ao Brasil
1822 – Independência do Brasil
1825 – Guerra com o Rio da Prata
1833 – Chegada dos primeiros alemães em Santa Fé
1834 – Elevação à categoria de Vila de Santa Fé
1835 – Revolução de 1835
1836 – Proclamação da República Rio-Grandense
1838 – Combate de Rio Pardo
1839 – Proclamação da República Juliana
1845 – A pacificação
1848 – O Rio Grande paga novos tributos de sangue
1865 – 1870 – Guerra do Paraguai
1882 – Fundação do Clube Republicano Rio-Grandense
1883 – Fundação do Clube Republicano de Santa Fé
1884 – Elevação à categoria de cidade de Santa Fé
1888 – Fim da escravidão no Brasil


1889 – República
1893 – 1895 – Guerra civil Rio-Grandense
278

O Clima

Em Santa Fé, costuma-se dizer que “sempre que acontece alguma


coisa importante está ventando!” Os ventos resultam da deslocação
mais ou menos rápida de certas partes do ar atmosférico. São ocasiona-
dos por mudanças de temperatura ou pela condensação do vapor de
água na atmosfera. Em certas regiões o ar vizinho do solo se aquece mais
que em outras, dilata-se bastante, torna-se mais leve e eleva-se para as
partes superiores da atmosfera; o ar dos arredores precipita-se para subs-
tituí-lo, assim resultam correntes atmosféricas dotadas, as vezes, de gran-
de força.

Eclipses

No ano de 1899 haverá quatro eclipses, segundo a Astronomia de Flam-


marion. Dois do sol e dois da lua, os quais terão lugar nos seguintes dias:
11 de janeiro – parcial do sol, central na Ásia
8 de junho – parcial do sol, central na Europa
23 de junho – total da lua, central em Nova Guiné


17 de dezembro – parcial da lua, central em Cabo Verde

Poesia V

Que, se amor não se perde em vida ausente,


Menos se perderá por morte escura;
Porque, enfim, a alma vive eternamente,
E amor é afeito de alma, e sempre dura.

Luís Vaz de Camões


279

MORADORES ILUSTRES DE SANTA FÉ

Cel. Ricardo Amaral, venerando cidadão, primeiro povoador destes


campos, um bandeirante na verdadeira extensão do vocábulo, e que
morreu como um bravo, no lendário combate de Passo das Perdizes.
Fundador da clã dos Amarais, foi senhor de dezenas de léguas de sesma-
ria e muitos milhares de cabeças de gado, além de uma charqueada e de
vastas lavouras de trigo, milho e feijão. Todo este vasto império era co-
mandado desde a sede da estância de Santa Fé. Sentou praça no exérci-
to da Coroa e em 1756 tomou parte na batalha de Monte Caiboaté. Lu-
tara ainda contra as forças espanholas comandadas por Pedro Ceballos,
em 1763, e Vertiz y Salcedo, em 1773.
Francisco Amaral, verdadeiro fundador de Santa Fé e filho primogê-
nito do Cel. Ricardo Amaral. Na mesma batalha do Passo das Perdizes,
em que perdera o pai, recebera um pontaço de lança que lhe vazara o
olho, assim, carregou para o resto da vida a marca que o distinguia e de-
monstrava seu heroísmo e bravura. Gratidão e honra à sua memória.
Cel. Ricardo Amaral Neto, que tanto contribuiu para o engrandeci-
mento deste município, de cuja Câmara foi o primeiro presidente. Em
1836, baqueou como um bravo, de armas na mão, dentro de sua própria
casa, defendendo a legalidade.
Cel. Bento Amaral, chefe político deste município, deputado à As-
sembléia Provincial, verdadeiro varão de Plutarco que perpetua no tem-
po e na administração de seus coevos um nome honrado e uma tradição
de virtudes cívicas e privadas. Foi o responsável por várias melhorias na
cidade, inclusive pela construção de uma série de casas de alvenaria na
Rua dos Farrapos.
Sra. Luzia da Silva, neta e única descendente do comerciante e cria-
dor, oriundo de Recife, Sr. Aguinaldo da Silva. Herdeira de grande for-
tuna, espírito de elite, primorosamente cultivado nos melhores colégios
da cidade do Rio de Janeiro. Carinhosamente chamada de “Senhora do
Sobrado”, em decorrência da bela morada que veio a ocupar na cidade,
tornou-se a mais notável figura da sociedade santa-fezense, quer pela ma-
280

neira de trajar, quer por sua capacidade de recitar versos, quer por seus do-
tes artísticos e musicais (era capaz de tocar cítara). Foi casada com o Sr. Bo-
lívar Cambará.
Dr. Carl Winter, médico alemão, natural de Eberbach, formado pela
Universidade de Heidelberg. Embora vivendo em Santa Fé desde 1851,
nunca abandonou os hábitos europeus, principalmente no que diz respeito
ao modo de vestir. Seu conhecimento na área da medicina e seu caráter
distintivo fizeram com que a sociedade local o aceitasse com grande rapi-
dez. Homem de grande cultura, tocava violino e dominava o francês. Foi o
responsável pela fundação e organização da Banda de Música Santa Cecília.
Licurgo Cambará, filho único de Bolívar Cambará e de Luzia da Silva.
O mais importante membro do Partido Republicano de Santa Fé, do qual
foi fundador juntamente com o bacharel bahiano Toríbio Rezende. Aboli-
cionista ferrenho, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, libertou os
seus escravos dando exemplo à toda sociedade local. Durante três dias de ju-


nho de 1895, em nome dos ideais republicanos, juntamente com sua famí-
lia e agregados, esteve sitiado em seu Sobrado pelas forças federalistas.

AS RAÇAS HUMANAS

A Escritura Sagrada ensina que a humanidade inteira, tal como existe


e povoa atualmente a terra, descende de um casal único, de Adão e Eva. To-
davia, apesar desta comunidade de origem, diferenças secundarias, como
cor da pele, a forma do rosto, a natureza do cabelo, fizeram classificar os ho-
mens em várias raças. As três principais são: a raça branca, a raça amarela e
a preta.
A raça branca ou caucásica tem por caracteres a alvura da tez, o oval
da face, o comprimento e a finura do cabelo. Os brancos tem geralmente
nariz aquilino, dentes verticais e barba muito densa. São inteligentes e sua
influência estende-se sobre todo o globo terrestre. Povoam especialmente a
Europa, a América, a Arábia e o norte da África.
281

A raça amarela ou mongólica é caracterizada pela tez amarela, face


achatada e alargada ao nível das maçãs do rosto, cabelo preto e rijo, barba
rara e olhos oblíquos. Habita particularmente a China e o Japão.
A raça preta ou africana caracteriza-se pelo nariz achatado, lábios es-
pessos e salientes, cabelos crespos e dentes oblíquos para a frente. Essa raça
povoa sobretudo a África central, a Austrália e a Guiné.


Encontram-se ainda, na América do Norte, vestígios de outra raça que
diminui cada dia, e talvez haja de desaparecer em breve. Os indivíduos que
a compõem são designados sob o nome de Peles-Vermelhas.

Poesia VI

Que saudades que eu tenho


Daqueles tempos passados,
Em que eu montava um tordilho,
Com arreios prateados.

Tenho saudades dos campos,


Saudades de meu rincão,
Onde eu era conhecido
Por homem de opinião;
Saudades do bom churrasco
E do mate chimarão

Mas vocês inda não sabem


Quanto me vale esta espada;
Pode lá vir quem vier,
Hei de dar-lhe pechada!
Caramba! Se viesse o Lopes,
Estava a guerra acabada.

Da “Saudade”, jornal que se publicava no acampamento


do Exército Brasileiro, no Paraguai, em 1867
282

O PRESTIGIO DA ARTE

Em sua Segunda Edição, o Almanaque de Santa Fé quer resgatar


momentos importantes da historia cultural de nosso crescente municí-
pio. Entre eles, destacamos, a Primeira Semana de Curiosidades e Poe-
sia, ocorrida em 1882. O programa, bastante variado, foi organizada
pelo cidadão italiano Próspero Catalin com a colaboração da sociedade
local. Amante das artes e da poesia, Catalin abriu o evento palestrando
sobre arquitetura. Tratou de demonstrar qual o caminho futuro da ciên-
cia da construção. Descreveu alguns prédios de Porto Alegre que julga-
va esplêndidos e contou, longamente, sua visita à Vicenza, no outro lado
do Atlântico, a “città del Palladio”. O segundo dia foi dedicado à músi-
ca, e esteve a cargo da senhorita Leonídia Moreira, de Rio Pardo. O re-
cital de piano contou com a colaboração de Próspero Catalin que, ao fi-
nal da apresentação da solista, declamou vários versos da Divina Comé-
dia. Quarta feira, ultimo dia de eventos, a cidade recebeu o poeta argen-
tino José Hernández. O convite causou, de fato, muito constrangimen-
to. A sociedade de Santa Fé só aceitou receber o castelhano quando Ca-
talin explicou tratar-se de um Senador da República vizinha e que fala-
ria sobre a vida do estanciero. Hernández apresentou-se como um pai a
quem o filho deu o nome e, rapidamente, mencionou que tinha um ca-
rinho muito grande pela Província, especialmente por Santana do Livra-
mento, onde escrevera parte de sua obra. Ao longo da palestra lembrou
episódios de sua vida, que ficara órfão aos nove anos, que fora criado
por uma tia, que o campo fora o seu lar e que era apenas soldado e pe-
riodista. Afirmou que, desde muito jovem, se dedicou ao comércio de
compra e venda de gado, percorrendo as estâncias e os acampamentos
militares que caracterizavam a linha divisória que separava as popula-
ções civilizadas das tolderias dos selvagens, adquirindo desta maneira,
um profundo conhecimento da vida do gaúcho. Lembrou das lutas com
Urquizia, da guerra contra Solano López, da oposição a Sarmiento, dos
tempos de exílio. Falou até dos índios, argumentando que o gaúcho
283

odiava os índios tanto quanto a oligarquia odiava o gaúcho. E que o gaú-


cho só odiava os índios porque fora ensinado, pela oligarquia, a odiá-los.
Terminou sua conferência declamando: “Y si canto de este modo / por
encontrarlo oportuno / no es para mal de ninguno / sino para bien de
todos”. Durante a semana , Santa Fé foi visitada por inúmeros forasteiros
que, mais por curiosidade do que por convicção, acompanharam os acon-
tecimentos. Entre os ilustres visitantes destacamos o Sr. Catão Bonifácio,


proprietário da estância São Sebastião em Uruguaiana, acompanhado de
seu filho (retornando de um período de estudos no Rio de Janeiro).

Livros

Ao Livro Verde, papelaria e fábrica de livros em branco, de todos


os tamanhos e riscados em todo o gênero, informa aos cidadãos santa-fe-
zenses que dispõe de grande surtimento de livros técnicos e literários,
tais como: “Elementos de Geografia”, de Pedro Abreu, “Pontos de Histó-
ria Antiga”, de Pereira Leitão, “Compêndio de Filosofia”, de Pellisier,
“Aritmética para Meninos”, de Pereira Coruja, “Algebra”, de Luiz Pedro
Drago, “Elementos de Geometria”, de Ottoni, “Gramática Latina”, de
Groeser, “Gramática Latina”, de Clintock, “Compêndio de Gramática da
Língua Nacional”, de Pereira Coruja, “Nova Floresta”, do Pe. Manoel
Bernardes, “Luziadas”, de Camões, “O Gaúcho”, de Senio, “O Rio Gran-
de do Sul para as Escolas”, de J. Pinto Guimarães,” A Divina Pastora”, de


José Antônio do Valle, “Minas de Prata”, de José de Alencar e “Auras do
Sul”, de Lobo da Costa.
284

Poesia VII

Eu não tenho pai nem mãe,


Nem nesta terra parentes.
Sou filho das águas claras,
Neto das águas correntes.

Índio velho sem governo
Minha lei é o coração.
Quando me pisam no poncho
Descasco logo o facão,
E se duvidam perguntem
À moçada do rincão.

 Autor desconhecido

* Doutor em Arquitetura, Coordenador do Curso de


Arquitetura e Urbanismo, UFSM.
“ – Olha Zé Otávio (...) não esqueças que tudo quanto vocês têm agora aqui em matéria de confor-
to, reputação, crédito, tradição só foi possível porque durante quarenta anos um homem chamado
Henrique Bertaso teve fé em alguma coisa e trabalhou duro para realizar seus sonhos.”
Breve Crônica duma Editora de Província
Breve Crônica duma
Editora dE Província

Erico Verissimo

Dia desses, uma conversa entre o bibliófilo José Mindlin e o pro-


fessor Luiz Eugênio Véscio suscitou no primeiro a vontade de encontrar
alguns originais entre o seu vasto acervo. Procurou aqui, procurou ali e
terminou encontrando um conjunto de páginas datilografadas e cor-
rigidas à mão pelo escritor Erico Verissimo.
Ao que tudo indica, um achado fruto do acaso. Afinal não era este
o texto que o bibliófilo procurava. Mas foi a sorte de todos nós, leitores
de Erico. Empenhado na publicação desse livro comemorativo aos
cinqüenta anos de O tempo e o vento, o professor Luiz Eugênio não
titubeou. "Precisamos publicar isto", ele disse. E logo acertou os deta-
lhes com o bibliófilo, tratou de entrar em contato com o filho do autor
e cá estamos nós diante desse conjunto de páginas fac-similadas...
Uma pequena delícia para todos os que admiram – além dos textos
dos grandes autores – a própria história desses textos, as marcas da sua
construção, a sua gênese.

Vitor Biasoli
288 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 289

BREVE CRÔNICA DUMA EDITORA DE PROVÍNCIA

Não podendo, por motivos óbvios, começar esta crônica


com a frase bíblica de S. João que tanto me fascina – No princí-
pio era o verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus – eu me
limitarei a escrever que no princípio era uma pequena casa de
aspecto colonial com fachada de porta e vitrina, situada num
dos pontos mais centrais da cidade de Porto Alegre. Identifica-
vam-na letreiros pintados na fachada: Livraria do Globo – Livra-
ria. Papelaria. Tipografia.
Se S. João não pôde datar exatamente o seu princípio de
acordo com qualquer calendário eu posso dizer, modéstia à par-
te, que minha crônica começa no ano de 1883 com essa casa de
negócio de propriedade dum certo Sr. Laudelino P. Barcellos,
cidadão de origem portuguesa.
E agora, dando aquele pulo a que comodamente recorrem
os romancistas – e passaram-se muitos anos – deixamos para trás
umas quatro décadas e aqui estamos no mesmo lugar da Rua da
Praia, diante dum edifício de três andares, de fachada um tan-
to pretenciosa, com esculturas, relevos e alguns mármores. É
ainda a Livraria do Globo, em cujas oficinas já existem máquinas
litográficas, e cujo salão principal, onde se vendem livros e arti-
gos de papelaria, é considerado um dos maiores do Brasil. O ve-
lho Laudelino morreu, e a razão social da firma passou a ser
Barcellos, Bertaso & Cia. Esse Bertaso, homem madurão come-
çara a trabalhar na Livraria como varredor, aos doze anos, gra-
ças à sua diligência e à sua inteligência, tornou-se gerente. An-
tes do começo da primeira Guerra teve visão suficiente [para]
importar da Europa, várias toneladas de papel, prevendo a ca-
rência desse artigo que o conflito mundial ia causar no Brasil.
Seu jogo deu certo e a Casa (que já começava a ser no espírito
do “velho Bertaso” uma entidade quase mística)
290 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 291

ganhou um impulso fabuloso.

II

Deve ter sido lá por 1923 que comecei a prestar uma aten-
ção especial à Livraria do Globo, através dos raros livros que ela
publicava. Claro, eu os achava um tanto provincianos, quando
os comparava às edições européias ou mesmo às que se faziam
no Rio de Janeiro e São Paulo, onde Monteiro Lobato já havia
começado a sua notável revolução editorial.
Em matéria de edições a Livraria do Globo deve tudo quan-
to fez na década de 20 a Mansueto Bernardi, poeta e prosador,
que exercia então na Casa as funções de orientador intelectual.
Tinha ele o seu “reino” no famoso “primeiro andar”, onde se
encontravam livros e revistas estrangeiros, em sua maioria im-
portados da França, da Espanha e da Itália. O inglês era então
uma espécie de língua vagamente bárbara. Quanto ao alemão,
na capital dum Estado de forte imigração teutônica, era natu-
ral que houvesse livrarias especializadas na venda de livros nes-
sa língua. Os intelectuais da cidade costumavam reunir-se, a cer-
tas horas do dia, no “salão” de Mansueto Bernardi. Ocasional-
mente ali aparecia um que outro literato de alheios climas, que
era devidamente festejado.
Nascido em Treviso, Itália, Mansueto viera muito menino
para a nossa terra, e se naturalizara brasileiro. Falava um portu-
guês sintaticamente correto, até com um certo sabor castiço,
mas pronunciava as palavras à maneira nítida e quadrada dos
gaúchos, e havia em sua voz uma certa musiquinha italiana, que
ele haveria de conservar até o dia de sua morte. Era uma figura
esguia, de rosto anguloso e lábios finos, desses que a gente en-
contra freqüentemente em quadro de pinturas italianas. Ocor-
re-me agora que, com um turbante na cabeça, Mansueto bem
poderia ser um doge de Veneza retratado por Giovani Bellini.
292 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 293

Era um homem inteligente, cordial e acolhedor e um de


seus sonhos mais queridos era o de transformar a Globo numa
casa editora de importância nacional e, se possível, internacional.
Essa idéia, no entanto, não encontrava muita ressonância no es-
pírito dos chefes supremos da firma, razão por que o poeta so-
nhador tinha de trabalhar com rédea curta. Católico fervoroso,
publicava livros contra o comunismo, ao tempo em que essa dou-
trina política era conhecida pelo nome de “bolchevismo” e até
“maximalismo”. (Moscovo sem Máscara, A Luz que Vem do Oriente)
Por outro lado Bernardi havia já descoberto o biógrafo alemão
Guilherme Ludwig, cujo Napoleão a Globo traduzira e publicara
no Brasil com um êxito muito significativo para a época. Graças
às suas leituras italianas, Mansueto fizera traduzir para o portu-
guês o GOG, de Giovanni Papini. Não permanecia, porém, indi-
ferente à “prata da casa”. Editava os escritores já consagrados do
Rio Grande e, quando podia, dava a mão a um “novo”. A Livraria
do Globo lançara já obras do ensaísta João Pinto da Silva, dos
poetas Pedro Vergara, Zeferino Brasil e Vargas Netto, do historia-
dor Othelo Rosa, e do ficcionista Dyonelio Machado. Os “novos”
que freqüentavam o seu “primeiro andar” eram por ele estimula-
dos e seriam mais tarde também editados não só durante o “rei-
nado” de Mansueto como nos anos que se seguiriam. Eram eles
Augusto Meyer, Moysés Vellinho, Athos Damasceno Ferreira, De
Souza Júnior, Theodomiro Tostes, Darcy Azambuja, Ernani For-
nari, Telmo Vergara, Paulo Corrêa Lopes, Reynaldo Moura, Ma-
noelito de Ornellas, Carlos Dante de Morais e Cyro Martins, para
citar apenas os primeiros nomes que me vêm à memória.
Com o triunfo da Revolução de Outubro de 1930 Mansueto
Bernardi trocou Porto Alegre pelo Rio de Janeiro e a Livraria do
Globo pela Casa da Moeda, cuja direção assumiu em 1931, a con-
vite de Getúlio Vargas, que nos tempos de deputado e mesmo de
presidente do Estado, costumava freqüentar o grupinho de inte-
lectuais que se reuniam à porta da Livraria do Globo
294 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 295

ao cair da tarde. (Foi duma sugestão do futuro Presidente da Re-


pública que em 1929 nasceu a Revista do Globo.)

III

Entra em cena agora a personagem principal da história


que estou contando. É Henrique Bertaso, o filho mais velho de
José Bertaso, e que em 1931 tinha apenas vinte e quatro anos.
Desde os 15 trabalhava no balcão da casa sem privilégios, como
qualquer empregado. Nos intervalos de folga, costumava ele ler
novelas e romances às escondidas. Habituava-se a ver no livro
não apenas papel impresso, mas um “indivíduo” com qualida-
des e defeitos e com a mágica capacidade de comunicar-se. Ima-
gino que muitas vezes Henrique tenha olhado para a chamada
Secção Editora da Casa com olhos críticos, achando-a um tanto
antiquada, não só na apresentação gráfica dos livros e no méto-
do de distribuição, como também na escolha dos autores.
Muitas coisas aconteceram naquele ano de 1931. Como já
disse, Mansueto alçou vôo para o Rio, onde foi imprimir dinhei-
ro e cunhar moedas para a nação. Henrique Bertaso tomou
conta da editora. E um boticário falido, desempregado, sem di-
nheiro e com grandes sonhos literários (mas sonhos controla-
dos, com os pés na terra, em suma, sonhos de serrano) chegou
a Porto Alegre. O sujeito tinha 25 anos e chamava-se Erico Ve-
rissimo e já havia batido em várias portas, pedindo emprego,
mas sem resultado.
Um encontro fortuito com Mansueto Bernardi, à porta da
Livraria, foi decisivo para seu destino. Depois duma conversa
curta e sem eloqüência, ficou resolvido que o recém-chegado
tomaria conta da Revista do Globo.
Entrei, por assim dizer, para a “família Globo” no dia 1° de
janeiro de 1931. Jamais vira em minha vida o interior duma ti-
pografia. Não tinha idéia de como
296 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 297

se fazia um clichê ou como se armava uma página. Mas Deus é grande.


A Revista do Globo era provinciana, mal impressa, e sua ma-
téria insossa. Eu detestava a obrigação de publicar retratos de
nossos assinantes, a bela senhorita, o galante menino, fotos que
eram “ecos do último carnaval em Cacimbinhas” e – pior ainda!
– sonetos de autoria de coronéis reformados que acontecia se-
rem bons clientes da Livraria do Globo. “Gente, meu caro, que
precisamos agradar...”
Henrique Bertaso me foi um dia apresentado. Estou certo
de que olhou para mim e pensou: “Literato. Possivelmente um
vagabundo sem noção de responsabilidade. Um boêmio.” Eu
refleti: “Eis um típico filhinho de papai rico. Um burguesote es-
nobe.” O tempo provou que ambos estávamos enganados (ou
não estávamos?)

IV

Eu observava, duma distância tímida e cautelosa, o traba-


lho e as dificuldades de Henrique Bertaso nas suas novas fun-
ções. Não tínhamos nenhuma intimidade, nem mesmo relações
normalmente cordiais[.] No entanto eu compreendia o que ele
estava tentando fazer, isto é, publicar livros populares, vendê-
los, formar um fundo que lhe permitisse editar obras de escri-
tores de maior importância literária. Começavam a aparecer os
primeiros volumes de sua Coleção Amarela composta de livros po-
liciais. As estrelas desse sangrento firmamento do crime era Ed-
gar Wallace, Van Dine, Oppenheimer, Rinehart, Sax Rohmer,
Agatha Christie.
Passou-se um ano e um dia Henrique Bertaso me convidou
para ajudá-lo na secção Editora, dedicando-lhe uma parte de
meu tempo na qualidade de assessor literário. Pagava-se por
esse serviço mais 200$000 (duzentos mil réis) o que foi uma es-
pécie de injeção de óleo canforado (coisa hoje tão obsoleta
como o mil réis) no meu orçamento doméstico.
298 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 299

Só muito mais tarde é que vim a descobrir que esse pagamen-


to extra não vinha dos cofres da firma, mas do bolso de Hen-
rique, que tirava de seu próprio ordenado, pois não ousava pe-
dir aos chefões mais dinheiro para a editora...
Em 1932, encabuladíssimo, ofereci um livro meu à Globo.
Henrique aceitou-o, generoso mas sem entusiasmo. Eu era um
desconhecido e mesmo naquele tempo a impressão dum livro
não era barata. Foi assim que apareceu Fantoches, coleção de
contos, numa tiragem de 1.500 exemplares, dos quais se vende-
ram uns quatrocentos e poucos. Os restantes exemplares fica-
ram empilhados num armazém que foi providencialmente des-
truído por um incêndio. Ora, como os livros estavam segurados
a editora se livrava do prejuízo e o autor ganhava a sua comissão
de 10% sobre todos os exemplares vendidos, isto é, queimados.
Com o tempo a minha amizade por Henrique fora cres-
cendo e o mesmo acontecera com a dele por mim. (Que dia-
bo, no fundo não somos maus sujeitos, acreditem.)
Nossas mulheres fizeram-se amigas. Nossos filhos brinca-
vam juntos. A editora atirava-se em aventuras que – recordadas
mesmo hoje – ainda nos dão um certo frio no estômago.
Seria longo registrar num artigo de jornal, em exata or-
dem cronológica, quarenta anos da vida duma casa editora. O
que me parece importante é ressaltar que a Editora Globo foi
principalmente Henrique Bertaso, por mais constrangimento
que esta declaração lhe possa causar. Foi graças a sua dedica-
ção[,] ao seu amor aos livros, à sua inteligência e à sua mansa
audácia – e manso é o adjetivo exato – que a Editora Globo
(que ficou independente da mamã Livraria em 1956) fez His-
tória no Brasil.
A idéia da criação duma coleção composta da melhor literatura
300 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 301

produzida no mundo contemporâneo foi de Henrique Bertaso. Re-


firo-me à Coleção Nobel. Não negarei que fui eu quem escolheu os
autores que nela aparecem: Thomas Mann, André Gide, Charles
Morgan, G.K. Chesterton, Willa Cather, Normam Douglas, Aldous
Huxley, Romain Rolland, Roger Martin du Gard, Sinclair Lewis, Wil-
lian Faulkner, Pearl Buck, Graham Greene, James Joyce, Katherine
Mansfield...
Foi Henrique Bertaso quem em 1934 (a TV comercial só come-
çou em 1947, nos Estados Unidos) teve a idéia de publicar um livro
de Arturo Castellani intitulado Televisão. Hoje em dia estão em pau-
ta os problemas da ecologia. Pois bem, em 1937 a Globo lançava um
livro sobre o assunto, intitulado Os Aproveitadores da Natureza.

Hoje, já sessentões, de vez em quando Henrique Bertaso e eu


nos sentamos e recordamos o nosso passado. Evocamos autores e li-
vros, pessoas que desfilaram pelos nossos escritórios, tipos que pare-
ciam ter saído de romances de Dickens ou Balzac. Falamos em nos-
sos erros e acertos. Recordo que em 1935 deixei escapar por entre os
dedos simplesmente um dos maiores bestsellers de todos os tempos.
Quando recebi o volume original para dar o meu parecer, opinei: “É
muito grande. Ninguém no Brasil vai se interessar por um romance
sobre a Guerra de Secessão americana”. Desistimos então de com-
prar os direitos de tradução. O livro era Gone With the Wind (E o Vento
Levou). Henrique Bertaso recorda um abacaxi de própria seleção: a
biografia de Trellawny, o espadachim, amigo do poeta Byron. Eu
penso em Boa Noite, Suave Príncipe, biografia de John Barrymore que
recomendei à editora e que, uma vez publicado no Brasil, bateu o
“record” dos fracassos em matéria de vendas. “Mas foste tu quem
‘descobriu’ Somerset Maugham... - consola-me Henrique. E Huxley,
Hilton, Steinbeck...” E eu então replico com uma lista dos “achados”
felizes de meu companheiro: O Livro de San Michele, de Axel Munthe;
302 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 303

Karl May, o prolífico autor de romances de viagens e aventuras;


Hendrik van Loon, o divulgador; e outros, muitos outros...
Recordamos também fatos. Uma vez, lá pelos idos e vividos
de 1932 entrei no gabinete de Henrique e perguntei: “Quer ar-
riscar a perder dinheiro mas ganhar prestígio para a Editora,
publicando um grande romance?” Henrique coçou a coroa da
cabeça, num gesto muito seu, e replicou: “Qual é o livro?” Apre-
sentei-lhe um volume alentado: “Aqui está. É o Point
Counterpoint, de Aldous Huxley, romance destinado às elites.”
Depois de breve hesitação Henrique respondeu: “Está bem.
Vamos pedir os direitos.”
De posse do contrato eu mesmo comecei a traduzir com
amor o Point Counterpoint. O livro foi lançado no Brasil, a críti-
ca começou a falar nele, principalmente (é curioso) a propósi-
to dum livro que eu publicara em 1935 (Caminhos Cruzados) e
em que todos viam, com razão, influência da técnica do
Contraponto.

Duma feita apareceu na Editora Globo com um livro de sua


autoria debaixo do braço um gaúcho do tipo nórdico, elegante
de porte, cabelos alourados, olhos azuis. Era fiscal do imposto de
consumo, voltava dum exílio político na Amazônia e oferecia à
Globo uma nova obra sua. Depois que ele saiu, eu disse a Henri-
que: “Esse alemão tem tão boa pinta que podia dar-se o luxo de
ser burro. Mas não é. Já li o livro dele, Heróis da Decadência. É
muito bom. Podemos pegar o próximo de olhos fechados.”
O homem era Vianna Moog.

VI *

Aos poucos o prestígio da Editora Globo crescia em âmbi-


to nacional.

* Optamos por inserir aqui o número VI (que se repete na página 10 do original), em função da
seqüência da crônica. (N. E.)
304 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 305

A Casa fazia trabalho de pioneiro. Em matéria de tradu-


ções mudava de certo modo a tendência do setor editorial bra-
sileiro, até então todo voltado para a França, e levava-a para o
mundo anglo-saxônico e germânico. Ora, isso não significava o
esquecimento da França. Em plena Segunda Guerra não só con-
tinuávamos a publicar um romancista do calibre de Roger Mar-
tin du Gard (Les Thibault, Jean Barois) como também, sabendo
que esse autor, que recusava colaborar com os conquistadores
nazistas, se encontrava em situação econômica precária, na sua
cidade natal, a Editora Globo convidou-o a vir morar no Brasil,
comprometendo-se a prover-lhe a subsistência independente-
mente de direitos autorias ou qualquer outra compensação. Era
apenas uma homenagem a um grande escritor. Du Gard, numa
carta comovida, recusou o convite.
Henrique Bertaso não teve medo de Virginia Wolf, pois acei-
tou um dia a minha sugestão [de] mandar traduzir e publicar os
seus admiráveis romances Mrs. Dalloway e Orlando.
Um dos meus mais antigos e queridos amigos, Mauricio
Rosenblatt, homem extremamente inteligente e de bom gosto,
trabalhava, inadaptado e quase infeliz, numa casa de discos e
aparelhos eletro-domésticos. Costumávamos encontrar-nos
num café, à tardinha, todos os dias, e cada qual despejava sobre
o outro as suas alegrias e as suas frustações. Vi em Rosenblatt o
homem ideal para trabalhar numa editora. Convidei-o a entrar
para a Família Globo. Depois de alguma hesitação, Mauricio
aceitou a proposta e mudou-se com armas e bagagens para o
território dos Bertasos. Graças a Rosenblatt foi-nos possível
apresentar de maneira decente a edição completa da Comédia
Humana de Balzac (17 volumes!). Mauricio convidou o huma-
nista Paulo Ronai para encarregar-se da parte crítica, pois o hu-
manista húngaro (hoje felizmente naturalizado brasileiro) é
um notável especialista em Balzac.
306 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 307

Henrique Bertaso não hesitou muito quando Rosenblatt,


com o meu apoio, lhe sugerimos a publicação de À la Recherche
du Temps Perdu, de Marcel Proust, para o qual ele próprio have-
ria de selecionar tradutores da importância dum Drummond de
Andrade e dum Mario Quintana.
Rosenblatt foi mais tarde nomeado “nosso homem no Rio”,
com a finalidade de melhorar a imagem da Globo entre alguns
intelectuais brasileiros que nos acusavam de estar voltados ape-
nas para os autores estrangeiros, esquecendo os nacionais. Mau-
ricio fez um excelente trabalho nesse sentido durante o tempo
em que permaneceu no Rio de Janeiro. Cedo, porém, desco-
briu que os melhores escritores nacionais preferiam ser lança-
dos por editoras cariocas e seria impossível – fútil! – querer
“destronar” o nosso amigo José Olympio, o editor que então
lançava escritores brasileiros novos, muitos dos quais já se ha-
viam tornado famosos em todo o Brasil.

A atividade de Henrique Bertaso na Casa era tentacular.


Cuidava não só da parte administrativa da editora como também
era chamado a resolver todos os outros problemas. A Globo pu-
blicava também livros didáticos, sob a direção do Eng. Alvaro
Magalhães, catedrático da Universidade do Rio Grande do Sul.
Bertaso concentrava sua atenção em livros técnicos e dicionários
e sonhava com uma enciclopédia, que ia aos poucos organizan-
do, sob a responsabilidade e orientação do Prof. Magalhães.
Durante vários anos a Globo manteve uma equipe numero-
sa de tradutores e revisores, com a finalidade de melhorar de
maneira considerável a qualidade das suas versões brasileiras de
livros estrangeiros. Havia, antes de mais nada, o tradutor pro-
priamente dito. Terminado o seu trabalho, passava este para o
encarregado de verificar a fidelidade da tradução, num con-
fronto, linha por linha, com a obra original.
308 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 309

O terceiro estágio era o em que a tradução passava pelo


“especialista” encarregado de verificar-lhe a qualidade estilísti-
ca, caso em que o tradutor era naturalmente ouvido, tendo o di-
reito de protestar quando não concordasse com qualquer suges-
tão em matéria de redação – caso em que haveria arbitragem.
Enquanto esse esquema caríssimo perdurou, foi impecável o ní-
vel das traduções da Globo.
E, por falar em traduções, uma figura se me desenha da
mente: a de Leonel Vallandro, um “homem em surdina”, cala-
dão, fechado, sério (mas com senso de humor) e que, tendo co-
meçado como tradutor de livros policiais, passou a encarregar-
se de versões de maior responsabilidade até transformar-se num
dos melhores tradutores do Brasil, tanto do inglês, como do es-
panhol, do italiano e do francês. Outra “proeza” de Vallandro
foi a de fazer, com perseverança e seriedade um Dicionário In-
glês-Português que considero, sem nenhum favor, o melhor que
existe no mundo. (Não sou homem de exageros; repito: “no
mundo”.)
De uns tempos a esta parte, a Globo edita menos obras pro-
priamente literárias para se dedicar mais a livros técnicos como
a dicionários e manuais de espécie vária. A Enciclopédia Brasilei-
ra Globo possui hoje 12 volumes e ricas ilustrações.

VII

Entrando num terreno estritamente pessoal, direi que há


quase vinte anos minhas ligações com a Globo tem sido apenas
as de editor e editado. Tempo houve – quantos anos! – em que
tive um escritório da Editora, e foi nele que escrevi o primeiro
volume de O Tempo e o Vento. E fora numa espécie de ponte so-
bre uma oficina, quente como o inferno, e onde fumegavam
umas vinte linotipos,
310 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 311

que eu escrevera Olhai os Lírios do Campo, romance que, publi-


cado em 1938[,] mudou a minha vida. Até então eu vivia do or-
denado que me pagava a Editora e do produto de traduções
que fazia para a mesma. (Traduzi uns trinta livros, de Edgar
Wallace e Sax Rohmer a Aldous Huxley e Katherine Mansfield.)
Creio que no momento em que escrevo esta crônica posso
olhar com objetividade o que a Editora Globo representou e re-
presenta na vida cultural brasileira. De certo modo ela realizou a
proeza de não só sobreviver, mas também crescer e prosperar, a
despeito de obstáculos de natureza geográfica, pois quem havia
de imaginar que pudesse manter-se economicamente uma casa
editora localizada numa remota cidade de província, no extremo
sul do Brasil, quando a vida intelectual do país estava toda con-
centrada no Rio de Janeiro e em São Paulo? Outra contribuição
importante da Editora Globo foi a de estimular outras editoras a
proporcionar ao público brasileiro, em tradução para a nossa lín-
gua, livros produzidos no resto do mundo. Não só os destinados
a uma elite intelectual como também os que em geral são consu-
midos por um numeroso público médio. Através da Coleção Pro-
víncia a Globo procurou fazer conhecido o Rio Grande – gente,
terra, História, lendas, costumes – no resto do Brasil.
Pessoalmente devo à Editora Globo, na pessoa de Henrique
Bertaso, o ter proporcionado a publicação de meus primeiros li-
vros, que [de] 1932 a 1938 tiveram vendas de más a medíocres.
Henrique Bertaso entregou o “facho” ao seu primogênio
José Otávio Bertaso, que hoje dirige a Editora Globo. E outro
dia quando me vi sentado a uma mesa, discutindo a publicação
de meu último romance, o que eu vi na minha frente não
foi um homem de quarenta e dois anos mas o menino de
quatro que conheci no primeiro dia em que visitei Henrique
312 O tempo e o vento • 50 Anos
breve crônica duma editora de província 313

Bertaso em sua casa. Como o tempo passa depressa! - pensei. Eu


estava já na medade da casa dos sessenta. Hora de ensarilhar ar-
mas? Não. O gesto não me seduzia nem me seduz agora. Um
homem que envelhece, no dizer de um velho gaúcho “peleia
em retirada, e com pouca munição”. Mas peleia.
Olhei através da janela o perfil da cidade, com seus altos
edifícios e já com a sua nuvem de poluição. Passei o olhar em
torno do belo gabinete de José Otávio, com móveis modernos,
ar condicionado... e comparei-o com os cubículos em que o
Henrique e eu trabalhávamos quando moços. Nossas janelas sem
paisagem davam para os fundos dum restaurante mal-cheiroso.
– Olha, Zé Otavio – tive vontade de dizer – uma coisa eu es-
pero de ti. É que não esqueças que tudo quanto vocês têm ago-
ra aqui em matéria de conforto, reputação, crédito, tradição só
foi possível porque durante quarenta anos um homem chama-
do Henrique Bertaso teve fé em alguma coisa e trabalhou duro
para realizar seus sonhos.
Mas na verdade o que lhe disse foi simplesmente:
– Aqui estão finalmente os originais de meu décimo quar-
to romance.

Erico Verissimo
“Na verdade o que lhe disse foi simplesmente:
– Aqui estão finalmente os originais de meu décimo quarto romance.”
Breve Crônica duma Editora de Província
POSFÁCIO

José Mindlin

O Tempo e o Vento: 50 Anos vai ser certamente um marco na


fortuna crítica do Erico Verissimo, pois comemora, com exce-
lente conteúdo, o surgimento e o sucesso de um dos grandes li-
vros e autores de nossa literatura. De meu lado, fiquei conten-
te por poder participar dessa homenagem graças ao feliz acaso
de ter mostrado aos editores a Breve Crônica duma Editora de Pro-
víncia, que vivia há muitos anos em meus guardados, aonde não
me recordo como tinha vindo parar. É um documento saboro-
so, que narra a história fascinante de como nasceu e cresceu a
Editora Globo, e do papel que tiveram, para transformá-la, da
pequena empresa provinciana em motivo de orgulho nacional,
Mansueto Bernardi, Henrique Bertaso e... o próprio Erico (a
conclusão é minha). Foi uma sorte, creio eu, além de ser um
prazer para mim, que essa Crônica pudesse ter sido incluída à úl-
tima hora neste livro. Leiam, e vão ver.
Revendo, a propósito desta homenagem, o que a bibliote-
ca de casa tem de Erico, e conversando a respeito com Antonio
316 O tempo e o vento • 50 Anos

Candido, nosso crítico maior, que também aliás admira muito o


escritor, demo-nos conta de que havia outra homenagem a ser
prestada, além da que este livro se propôs – comemoraram-se
também neste fim de século os 65 anos da premiação de Músi-
ca ao Longe, o que merece destaque pelo menos por dois moti-
vos: o Grande Prêmio Machado de Assis, concedido em 1934
pela Academia Brasileira de Letras ao jovem romancista que era
naquela época o grande escritor que depois veio a ser; e o fato
de se poder constatar que Erico Verissimo conseguiu construir
em apenas 15 anos, a contar da premiação, sua sólida e invejá-
vel reputação literária. Nesse “curto período” gaúcho, Erico
partiu dos primeiros romances (bem bons, aliás) para a obra
prima que é O Tempo e o Vento. Um detalhe curioso é a safra li-
terária excepcional que o Brasil produziu em 1934: nada menos
que quatro bons livros surgiram simultaneamente naquele ano,
tanto assim que o prêmio teve de ser dividido entre Erico, Dio-
nélio Machado, João Alphonsus e Marques Rebello. Nosso
Erico não recebeu sozinho o prêmio mas, vamos e venhamos, a
companhia foi excelente.
Ele se queixa, na Breve Crônica, das dificuldades que teve
de enfrentar de 1932 a 38, vendendo seus livros muito pouco.
Mas, olhando para trás, não parece que ele pudesse propria-
mente se queixar: o prêmio já não foi pouco importante, e,
como ele mesmo diz, quando saiu em 38 Olhai os Lírios do Cam-
po, de sucesso imediato, sua vida mudou. Afinal de contas, não
demorou tanto. Daí por diante, desfrutou, ao longo de sua
vida, de um sucesso que poucos escritores brasileiros alcança-
ram.
Isso me faz pensar no destino bem diferente da maioria
dos escritores, não só no Brasil, como no mundo inteiro. Os
exemplos seriam inúmeros, mas escolhi, para esta comparação,
Stendhal, por se tratar de um dos maiores nomes da literatura
universal. Pois bem, sabemos todos que a obra de Stendhal foi
posfácio 317

em vida dele, quase um fracasso editorial, ao ponto de ele ter


dito que ela somente seria devidamente apreciada a partir de
1880, ou seja, praticamente 50 anos depois da previsão. E que
provavelmente só seria reeditada por volta de 1910... Pergunto-
me se essa visão de futuro revela confiança no valor e perma-
nência de sua obra, ou se foi desabafo e consolo de um aparen-
te fracasso. Possivelmente uma coisa e outra, mas o fato é que
Stendhal não alcançou em vida a grande fama do escritor que
pelo jeito ambicionava. De todo modo, não foi o caso de Erico
Verissimo, pois a partir de Olhai os Lírios do Campo, foi um escri-
tor de sucesso, e de grande popularidade. Isto, aliás, curiosa-
mente teve também um reflexo negativo, pois fez com que fos-
se visto, por boa parte da crítica nacional, como “um escritor
menor”! Entrou em cena o preconceito de que popularidade
no grande público não é compatível com alta qualidade, o que,
como todo preconceito, não tem cabimento. Antonio Candido,
aliás, já naquela época, combateu, como crítico literário, essa
posição, e especificamente defendeu a obra de Erico. É claro
que grande sucesso imediato resulta freqüentemente de efi-
ciente propaganda, e não de qualidade intrínseca, mas costuma
ser, normalmente, de curta duração. Não foi o que aconteceu
com Erico Verissimo, um dos poucos escritores brasileiros que
conseguiram viver de seus livros. Isso devido ao mérito, não a
uma reputação artificial.
Meu contato pessoal com ele ficou muito aquém do que
eu teria desejado, mas acredito, assim mesmo, que chegamos a
ser amigos. Ele próprio também diz isso na dedicatória de um
de seus livros, e uma visita que lhe fiz no princípio dos anos 80
fez surgir as sempre gratificantes afinidades eletivas. Tanto as-
sim que, numa visita que fiz, uns dez anos mais tarde a Mafalda,
sua viúva, ela me emocionou ao me indicar a poltrona em que
me deveria sentar “porque foi nela que se sentou quando veio
visitar o Erico”!
318 O tempo e o vento • 50 Anos

A carreira do “boticário falido, desempregado, sem di-


nheiro e com grandes sonhos literários (mas sonhos controla-
dos, com pés na terra, em suma, sonhos de serrano)”, de que
nos fala na Breve Crônica, e que em 1931 “entrou, por assim di-
zer, para a família Globo”, é fascinante em sua pelo menos apa-
rente simplicidade e serenidade – não creio que tivesse a mes-
ma ambição de fama de que Stendhal sofria.
É possível que se ambos tivessem vivido na mesmo época,
e um soubesse do outro, Stendhal lhe invejasse o sucesso, mas
não é impossível, por outro lado, que Erico invejasse as aventu-
ras de Stendhal...
Desse capítulo nada sei, mas a leitura de Breve Crônica não
dá essa impressão.
Sobre o livro

Título O Tempo e o Vento: 50 anos


Organizador Robson Pereira Gonçalves
Produção Gráfica e Capa Renato Valderramas

Ilustrações (Capa e Miolo) João Luiz Roth

Fotógrafa Lúcia Mindlin


Revisão de Provas Vitor Biasoli
Pedro Brum Santos
Glória Maria Palma

Divulgação Mário Mazzilli

Secretaria Editorial Ester Parreira de Miranda

Formato 16 x 23 cm
Mancha 25 x 42 paicas
Tipologia New Baskerville (texto)
Trajan (Títulos)

eBook Formato PDF


Portable Document Format

Número de Páginas 320

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