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ARTE E ANCESTRALIDADES: ENSINO E PESQUISA A PARTIR

DA CAIXA DE MEMÓRIAS DOS ALUNOS.

Edvandro Luise Sombrio de Souza, Eliane Mattozo de Mattos, Olívia Samara


Negrão Cavalcanti, Viviane Viana de Souza – Colégio Pedro II

RESUMO
O trabalho aqui apresentado, desenvolvido nas salas de aula do Colégio Pedro II, do bairro de São Cristóvão, na
cidade do Rio de Janeiro, está se construindo a partir de confrontações cotidianas que surgem das contribuições dos
alunos e suas histórias, inseridas em sala de aula através das respostas dos questionários enviados a suas famílias e do
envio de um objeto significativo desta história, suscitando a construção coletiva das aulas e das práticas apresentadas
pelo professor.

PALAVRAS-CHAVE
Interculturalidade; Arte; Educação; Relações étnico-raciais; Memória; Patrimônio.

INTRODUÇÃO
Desde que o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira foram incluídos nos
currículos escolares, muitos esforços para a implementação da Lei 10.639/03 tem sido feitos, e já
podemos constatar inúmeros resultados bem sucedidos. A criação do sistema educacional brasileiro
teve suas raízes fincadas no processo de colonização do país - o que favoreceu, e muito, a
estruturação das desigualdades socioculturais, e o cerceamento de oportunidades em caráter de
igualdade aos negros e indígenas, muito aquém das oferecidas aos brancos. A valorização
exagerada da cultura branca-europeia trazida pela Família Imperial, na qual todos os paradigmas de
formação educacional brasileira foram estruturados, e posteriormente da cultura norte-americana,
em detrimento das culturas dos grupos étnicos nativos indígenas, e os trazidos do continente
africano, tem efeitos desastrosos sobre a organização social, distribuição de rendas e oportunidades
profissionais para estes grupos de nossa sociedade. Com efeito, sem assumir nenhum complexo de
culpa, não podemos esquecer que como produtos de uma educação eurocêntrica e, em função desta,
podemos reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa
sociedade (MUNANGA, 2005, p. 15). Por estes e muitos outros motivos, processos educativos e
leis que amparam a construção de currículos educacionais, vem sendo repensados e reavaliados de
maneira a dar voz a estes sujeitos que ficaram por tanto tempo excluídos de sua própria história.
Além disso, uma série de ações afirmativas e de caráter reparador têm sido promovidas
incansavelmente pelos militantes da igualdade de direitos e oportunidades para as etnias que
sofreram esse massacre de negligência colonialista no Brasil.

“Sem minimizar o impacto da situação sócio-econômica dos pais dos alunos no


processo de aprendizagem, deveríamos aceitar que a questão da memória coletiva,
da história, da cultura e da identidade dos alunos afrodescendentes, apagadas no
sistema educativo baseado no modelo eurocêntrico, oferece parcialmente a
explicação desse elevado índice de repetência e evasão escolares. Todos, ou pelo
menos os educadores conscientes, sabem que a história da população negra
quando é contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de vista do
“Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana. Como escreveu o
historiador Joseph Kizerbo, um povo sem história é como um indivíduo sem
memória, um eterno errante”. (MUNANGA, 2005, p. 15)

Dentro deste panorama se encontra também o ensino da arte. Seus antecedentes de origem no
Brasil constam da vinda da Missão Artística Francesa em 1816, e toda fundamentação de formação
de artistas e professores nesse campo tiveram uma base muito fortemente estruturada na Escola
Francesa de Belas Artes. Até os dias atuais a formação docente dos profissionais que atuam no
campo das artes ainda tem essa forte influência. No entanto, algumas modificações nesse
direcionamento já foram alcançadas e podemos dizer que as mudanças estão começando a aparecer.
Primeiro porque a obrigatoriedade do ensino de Arte na educação pública básica é também recente,
tendo início no começo do século XX, mas consolidando-se na sua segunda metade, e enfrentando
uma carência de profissionais especializados muito grande, ainda hoje. Segundo, porque ainda
temos um direcionamento do currículo para abordagens e temáticas de origem europeia, em
detrimento das produções culturais populares, regionais e étnicas, que somente depois da
implementação das Leis 10.639/03 e, posteriormente modificada pela Lei 11.645/08, começam a ser
valorizadas e regulamentadas nos currículos e planos de cursos escolares.

Sabemos que a dívida histórica gerada com 500 anos de escravidão e massacres a povos
nativos do Brasil, não pode de ser paga nem amenizada, até porque esse massacre continua a
acontecer em outras instâncias e ações que incluem disputa de terras, justiça social, segurança
pública, educação, saúde, evasão escolar, e muitas outras situações. Dentro desse contexto,
entendemos que ações pedagógicas são necessárias para fortalecer um movimento de reorganização
de nossa sociedade, com menos desigualdade e mais respeito nas relações étnico-raciais. Nessa
perspectiva, no início do século XXI, as políticas educacionais voltam-se para multiculturalidade
como forma de garantir a igualdade de direitos e acesso à educação. Foram criadas no Brasil as leis
10.639, de 2003, e 11.645, de 2008, abordando, na 1ª lei, o ensino da história africana e afro-
brasileira, e incluindo, posteriormente na 2ª, os estudos das culturas indígenas brasileiras, nas
escolas. Um marco na história da educação no Brasil, após mais de quinhentos anos de dívida
histórica para com estas populações que participaram e participam ativamente da constituição da
cultura brasileira e da identidade nacional.

No entanto, como reverter quinhentos anos de negação, preconceito e esquecimento em


respeito e valorização da diversidade? Embora a criação da Lei seja um instrumento legal
imprescindível a este processo, ela sozinha não garante sua implementação prática no cotidiano
escolar. É preciso lembrar que o corpo docente, mediador dos conteúdos curriculares, traz consigo a
memória dessa exclusão, uma vez que foi também formado por uma academia de tradição
predominantemente europeia/norte-americana (MEC-SECAD, 2006, p. 55).

Foi a partir dessas e de outras discussões acerca de educação das relações étnico-raciais, que
as questões que envolvem o ensino de arte e cultura popular brasileira começaram a ser revistas
pelas equipes de professores de Artes Visuais do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental, do
Colégio Pedro II. Foram muitas reuniões de planejamento, de trocas, em que cada coordenação
trazia as demandas de seu grupo para as demais coordenadoras; e em encontros de colegiados, com
todos os professores do segmento educacional, muitas alterações foram aprovadas em nosso
currículo escolar de Artes Visuais no Ensino Fundamental I. O formato atual da proposta curricular
tem uma história de construção coletiva, nutrida pelos estudos de diversos artigos e materiais
educacionais como os do projeto “A Cor da Cultura”, que foi o primeiro material escrito que
chegou às nossas mãos para uso com alunos, depois da implementação da Lei 10.639/03. Antes
disso, os materiais eram desenvolvidos pelos próprios professores que coletavam artigos, imagens e
preparavam suas aulas de modo a contemplar os pressupostos da multiculturalidade, e tentando
resguardar as especificidades de cada aspecto da cultura popular brasileira, no que diz respeito à
diversidade artística e forte influência e presença das etnias indígenas e africanas. Mesmo antes da
promulgação das referidas leis já havia um trabalho pedagógico com esses objetivos, mas o
abastecimento do repertório era provido pelas iniciativas individuais dos professores numa
articulação de coletividade e compartilhamento de saberes e estudos. Hoje, já podemos comemorar
a grande e farta produção de livros e materiais pedagógicos, acadêmicos, literários, infanto-juvenis
e adultos, com altíssima qualidade e de muito maior acesso. Percebemos uma mudança radical no
oferecimento editorial livreiro, de materiais que tanto auxiliam os professores em suas buscas e
pesquisas diárias. Há, também, um oferecimento bastante diversificado de cursos de extensão, pós-
graduação e, principalmente, mestrado e doutorado voltados para o estudo das relações étnico-
raciais – o que é comemorado com bastante alegria devido à busca cada vez maior de professores e
outros especialistas, por esta formação.
Desde a última alteração curricular, de âmbito departamental, proposta pelas coordenações
pedagógicas do EF1, ocorrida em 2008, o plano de curso de Artes Visuais de nosso colégio é
desenvolvido a partir de eixos temáticos, e nele temos as demandas de estudos das relações étnico-
raciais encaminhadas junto com os alunos e seus perfis culturais nos diferentes campi do Colégio
Pedro II. O relato de experiência que será aqui apresentado é mais uma das muitas maneiras como o
trabalho pelo eixo temático “Arte e Ancestralidade” vem sendo desenvolvido ao longo dos últimos
anos no Campus São Cristóvão I, e, especialmente, neste ano de 2014. Em anos anteriores esse eixo
foi encaminhado da mesma maneira, mas tomou outros rumos, também bastante interessantes, que
trouxeram para a cena da aula as identidades, os valores culturais, o entendimento dos conceitos de
ancestralidade e herança cultural, patrimônio material e imaterial, a partir do acervo imagético e
artístico representado pelas muitas e variadas expressões artísticas regionais do Brasil, em especial
dos alunos e suas famílias.

O intuito é possibilitar que de maneira concreta, a partir de suas próprias histórias familiares,
os alunos localizem suas heranças culturais e entendam como estes conceitos os acompanham, por
onde quer que caminhem, e apontam para uma identidade e pertencimento que favorecem a uma
autonomia e autoestima como sujeitos e cidadãos.

“Quem ensinou meu avô,


Me conta através do tambor,
Que povo sem sua cultura
É escravo esperando o feitor.”
(ponto de Jongo – Marcus Bárbaro)

CAIXAS DE MEMÓRIAS: VALORIZANDO AS HERANÇAS E CULTURAS EM SALA DE


AULA
Os/as educadores/as devem criar ambientes de aprendizagem que promovam a
alfabetização cultural de seus/suas alunos/as em diferentes códigos culturais, a
compreensão da existência de processos culturais comuns às culturas, e a
identificação do contexto cultural em que a escola e a família estão imersas. Este
último aspecto não deve ser descuidado, pois a escola, como instituição formal,
deve também desenvolver capacidades específicas, voltadas para a atuação na
sociedade em que o/a estudante está, vive e à qual pertence (RICHTER, 2000,
p.15).

Há um garoto que mora no Morro da Mangueira, outro num apartamento em Copacabana, a


garota que mora em Duque de Caxias e a outra no Centro; os pais de um vieram de Alagoas, de
outro do Pará, o pai daquela é sueco e os avós da outra vieram do Rio Grande do Sul; em um núcleo
familiar se come acarajé e vatapá, no outro, lasanha e macarrão, tem também queijo minas, banana
frita, todos regados a arroz e feijão. Ah, e há quem já tenha comido carne de tartaruga, macaco e um
tanto de frutas que chega a ser difícil decorar os nomes. Tem gente do samba, do jongo, do forró,
tem caipira, indígena, afro-brasileiro, e descendente de europeu e asiático. E tem tudo isso
misturado também. Essa é a realidade das salas de aula do campus do Colégio Pedro II, do bairro de
São Cristóvão, na zona norte do Rio de Janeiro.

O trabalho aqui apresentado está se construindo a partir de confrontações cotidianas que


surgem destas diferenças; do reconhecimento de que a escola vem, historicamente, se abstendo de
“dar voz” às diversas culturas, em nome de formas hegemônicas (predominantemente branco-
europeias) de ensinar/aprender conteúdos; da necessidade de criar estratégias de aprendizagem da
arte que levem em consideração estas diferenças e culturas etc; e da própria organização curricular
dos “Pedrinhos” – campi de Primeiro Segmento do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II –
organizados por eixos temáticos ligados a conceitos pós-modernos de arte e de arte-educação, tais
como “Arte e Corpo” (1ºs anos), “Arte e Natureza” (2ºs anos), “Arte e Representação” (4ºs anos),
dentre outros.

No primeiro capítulo de “Inquietações e mudanças no Ensino da Arte”, Ana Mae Barbosa


(2012, p. 18-23) aponta algumas características comuns às diversas linhas pedagógicas do trabalho
arte/educativo pós-moderno: 1) Maior compromisso com a cultura e com a história; 2) Ênfase na
inter-relação entre o fazer, a leitura da obra de Arte e a contextualização; 3) Inter-relacionar arte
como expressão pessoal e identificação cultural; 4) Ampliação do conceito de criatividade
(superando o conceito de “originalidade” da modernidade, para a “elaboração e a flexibilidade”); 5)
A necessidade de uma “alfabetização visual”, de leituras da “cultura visual” e da história da arte; 6)
O compromisso com a diversidade cultural, expresso pelas teorias da “multiculturalidade,
pluriculturalidade e interculturalidade” (necessidade de entendimento de que culturas variadas se
relacionam constantemente, entender o outro para respeitá-lo e conhecer melhor a si mesmo); e 7)
Entendimento de que o conhecimento da imagem pode melhorar diversas atividades profissionais.

Os eixos temáticos do 3º ano são: “Arte e Ancestralidade”; “Arte e Mitologia”; “Arte Afro-
brasileira”. Tendo em vista estes pontos acima levantados por Ana Mae, a equipe de professores do
campus propôs a prática a que batizamos, temporariamente, de “Caixa de Memórias”. A ideia é
imbricar estes três eixos em um só trabalho, a partir dos materiais e das questões que os alunos
trouxerem à tona, como “bagagem cultural”. Para tanto, o processo foi organizado da seguinte
forma:

1) Coleta de questionário para as crianças e responsáveis responderem conjuntamente, com


informações como: localidade de onde vieram as duas gerações anteriores à da criança, costumes
diversos, uma história antiga da família e um objeto com sua história (parte da caixa de memórias);
2) Apresentação dos objetos pelos alunos aos colegas da turma; o professor seleciona
imagens, vídeos e práticas relacionadas com as respostas dos questionários e traz para análises
coletivas com a turma; os alunos experienciam outras histórias sobre seus objetos contadas por seus
colegas; uma série de propostas de desenhos, pinturas, e interpretações estéticas são desenvolvidas a
partir desses objetos; diferentes conteúdos do currículo de Arte são associados aos elementos
culturais sinalizados pelas famílias;
3) Contação e filmagem das histórias dos objetos.

As produções plásticas, musicais e/ou cênicas advindas deste processo são suscitadas pelas
respostas dos questionários. O principal objetivo deste trabalho é apresentar aos alunos uma gama
variada de manifestações culturais e artísticas, identificadas com o cotidiano, com as práticas a que
seus ancestrais diretos estão habituados, valorizando-as. No decorrer do processo, também estão
sendo apresentados artistas, produções da cultura popular e imagens da cultura visual que se
comunicam com este repertório “provocado” pelos questionários e pela caixa.

O ato de se apropriar de objetos de família e buscar sentidos, elaborações e ressignificações


também nos abrirá portas para discutir com os alunos formas como a arte tem sido feita, as ideias
que as crianças têm sobre essas dinâmicas e sobre suas formas de se apropriar deste “fazer pós-
moderno”. Rossi (2009, p. 58) afirma que “outro avanço importante [no 3º ano do EF] é a
discussão sobre a necessidade da manualidade na produção da obra (...) algumas crianças já
aceitam que o artista possa „apenas‟ ter a ideia, mas não realizar a obra com suas mãos”. A autora
defende a valorização de ideias e teorias intuitivas dos alunos sobre arte e estética, no processo de
contato com as obras. O currículo dos Pedrinhos é organizado de forma que o aluno “tenha voz” e
que as formas de perceber e interpretar da criança sejam valorizadas no processo de trabalho.

Enfim, este “work in progress” que aqui se apresenta tem dois objetivos principais: a)
compartilhar a estrutura curricular de Artes Visuais do EF1 do Colégio Pedro II, para outros
educadores e pesquisadores em arte-educação e, b) discutir e analisar, em processo, uma forma de
trabalho que objetiva o reconhecimento e a valorização da cultura que cada aluno traz para a escola,
o entendimento concreto, a partir de referências pessoais, de conceitos como ancestralidade,
herança cultural e artística, patrimônio material e imaterial, imprimir valor a estas expressões e
efetivar uma educação pública que tem como foco o aluno tal qual ele é/está, propondo ações e
conteúdos que tenham e que criem sentido e significado na sua relação com o mundo.
[Figura 1].

O CURRÍCULO DOS “PEDRINHOS” E A INTERCULTURALIDADE NO ENSINO DE


ARTE

Uma das características mais marcantes do ensino de arte nos Pedrinhos (nome carinhoso
informalmente usado para se referir ao campus de Ensino Fundamental I) é a prática cotidiana das
"rodas de conversa”. No começo, no meio e/ou no final das aulas. Todo o processo de trabalho é
realizado de forma dialógica. Todos têm direito à palavra. Procuramos estimular o exercício deste
direito. A prática do diálogo é vivenciada in loco. As maneiras de exercitar este diálogo são próprias
da forma como a criança o faz. Caos e ordem se alternam. Jogo e brincadeira permeiam as
discussões. Propostas, possibilidades, perguntas e respostas são encontradas em meio ao caos
aparente. Olhos cruzam com olhos, o tempo todo. Palavras e gritos daqui e dali. Questões de poder
e silenciamentos vão e vem. Professores e professoras têm o papel de mediador, um dos
propositores, articulador. Ou seja, os conhecimentos sobre arte e cultura que trazem para a sala de
aula são mais um dos componentes culturais em jogo naquele espaço privilegiado para o
aprendizado dos alunos. A ideia é que os objetos e práticas artísticos trazidos se comuniquem com o
universo cultural dos alunos. E numa realidade multi, inter ou pluricultural, as negociações são
constantes.

Omar Ribeiro Thomaz (apud RICHTER, 2000, p. 4) afirma que a cultura “é um processo
dinâmico de reinvenção contínua de significados e tradições”. Na contemporaneidade, a escola é
um dos grandes responsáveis por estas reinvenções e negociações. Diálogos e apropriações entre a
cultura popular, a cultura de massa e as instituições artísticas estão por todo o lado e as formas
como a arte é ensinada na escola é uma das questões decisivas na formação das relações que cada
sujeito/aluno fará com os símbolos que tem à sua volta e com os sistemas de “valoração” das
manifestações culturais.

Ivone M. Richter (2000, p. 4), ao construir o conceito de cultura que permeia suas ideias
sobre interculturalidade e estética do cotidiano, nos atesta para o fato de que as relações culturais
“supõem relações de poder, desigualdades, contradições, e de que todas as modalidades de
transmissão de cultura implicam, portanto, algum tipo de dominação”. A figura do mestre, do
professor, nesta relação é vista nas correntes hegemônicas de educação como a dominante, e uma
série de outras relações permeiam as dominações que ocorrem entre os alunos. Relações sociais,
econômicas, étnicas, de gênero, físicas, psicológicas, intelectuais; formas de organizar o tempo e o
espaço na sala de aula; as curadorias que o professor realiza para seu trabalho; a organização dos
currículos etc.

Fruto de um longo processo, o currículo dos Pedrinhos, atualmente, reflete esta necessidade
de ensinar/aprender arte e cultura de uma perspectiva intercultural, na qual o aluno e suas
experiências cotidianas estão diretamente envolvidos, e o professor tem liberdade para fazer as mais
variadas relações com artistas, imagens da história da arte e da cultura visual ou práticas da cultura
popular, sem, contudo, trabalhar estas instâncias separadamente. Os eixos temáticos são ligados a
conteúdos e objetivos, as relações são propostas por cada professor em sua turma, e a articulação
deles também é dinâmica e orgânica. Por exemplo, para trabalhar “Arte e Ancestralidade”, no 3º
ano, conteúdos relativos à “Arte Indígena”, do 2º ano são retomados. No 1º ano, quando
investigamos “Arte e Corpo”, por exemplo, o “Trabalho do Artista na Contemporaneidade” é
abordado. Vale lembrar que não se trata de ensinar “conteúdos” ou discursos sobre a arte (e a
cultura), como ocorre em muitas linhas de ensino de arte nas quais determinadas formas de
“escrever a história da arte” são privilegiadas. Nossa proposta é suscitar organizações espaciais e
temporais, olhares sobre as imagens, os símbolos e as manifestações artísticas e/ou culturais com as
quais nos defrontamos cotidianamente, enfim, negociar/confrontar percepções e interpretações.

Segundo Richter (2000, p. 11), “a tendência no ensino das artes visuais, ainda hoje, é
reproduzir conceitos modernistas de arte largamente aceitos nos meios acadêmicos. Este enfoque
exclui todas as artes chamadas „menores‟, e com a exclusão delas, toda a possibilidade de um
trabalho intercultural em arte”. A autora trata sobre preconceitos muito recorrentes contra as
culturas populares e o artesanato, por exemplo, e atesta para o fato de que estas, muitas vezes, são
vistas como formas menores por terem “menos elaboração”. O currículo que exercitamos está
ligado a necessidades urgentes de desvelar uma série de histórias que vem sendo silenciadas por
visões hegemônicas de arte, estética, história, cultura etc.

Possíveis histórias da arte brasileira; dos povos indígenas, sem tratá-los como “um único
povo”; dos africanos e afro-brasileiros; das mitologias brasileiras e sul-americanas. Histórias de
sujeitos, de mulheres e de homens, regionalismos, modos de viver e de fazer. Enfim, um dos
objetivos do currículo de Artes Visuais dos “Pedrinhos” e, especificamente, da “Caixa de
Memórias”, é lançar olhar para a diversidade de manifestações que nos rodeiam, aprender a “dar
nomes” e construir discursos, conhecimentos, poéticas e fazeres que não sejam apenas aqueles
considerados hegemônicos, suscitar observações para o não-visto, o não-analisado, dar significado
ao vivido, ao experienciado, ao experimentado no cotidiano. Revisitar memórias, recriá-las;
apropriar-se do mundo, das coisas, das técnicas, das possíveis identidades; abrir e se aventurar no
“baú da arte contemporânea”.

A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO NO ENSINO FUNDAMENTAL

Dentro da proposta desse trabalho com as turmas de 3º ano no Colégio Pedro II, temas como
patrimônio, natureza e cultura também são ingredientes que compõem a caixa de memórias.
Possibilitar ao aluno entendimentos de si e de seu grupo social, exercitando as múltiplas faces
étnicas que compõem nossas famílias e, por consequência, nossos ancestrais. Nesse sentido, vamos
gradativamente abordando as formações familiares, descendências, como pais, avós, bisavós e
culminamos em usos e costumes dos quais fazemos parte. As histórias plasmadas nos objetos que
compõem a caixa são tesouros vivos e patrimônio de cada família.

O “patrimônio genético” é o que primeiramente tínhamos, pode ser melhor entendido e


explicado a partir da “Caixa de memórias”, pois nele, podemos entender algumas das características
físicas que possuímos, como a cor dos olhos, tipo de cabelo, cor de pele, entre outros. Um exemplo
de objeto trazido foi uma fotografia antiga em família. Passamos então a atentar para outros
patrimônios que nos são ensinados ao longo da vida, como hábitos de reunir a família aos
domingos, pedir a benção aos familiares mais velhos etc. Esses acervos muito variados e
diversificados de expressões de diferentes áreas (línguas, danças, festas, músicas, técnicas) são
muito importantes porque compõe o registro de patrimônio cultural imaterial ou intangível de
grupos de pessoas ou até de museus (ABREU & CHAGAS, 2009), à identidade, ação e memória
que hoje compõe a sociedade brasileira.
Os patrimônios apresentados a partir da caixa podem também fazer menção a festas, lugares,
músicas, culinária, dança, saberes populares, etc; valorizando múltiplos estilos de vida, que estão
cotidianamente se confrontando na escola. Este acervo servirá como base de entendimento para
podermos observar e discutir, por exemplo, como se dão essas manifestações hoje, se houve
transformações, em que regiões se repetem e como podemos preservá-los. Como aponta Gonçalves
(in ABREU & CHAGAS, 2009, p. 28), ao tratar da categoria imaterial ou intangível do patrimônio,
“a ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e valorativos dessas
formas de vida (...). A proposta existe no sentido de registrar essas práticas e representações e
acompanhá-los para verificar sua permanência e suas transformações”.

Esses símbolos trazidos estão repletos de histórias, de representações, de subjetividades, de


tradições e de cultura de cada família. Eles trazem consigo uma construção de valores intangíveis
que se convertem, neste trabalho, em princípio para a ação. Agir no pensar, respeitar e preservar
todos os tipos diferentes de patrimônios, genético ou imaterial, começando por si, familiares,
amigos, índios, negros, portugueses, holandeses etc; e museus, ou seja, há uma contribuição de
todas as expressões culturais e consequente transformação de todas as culturas e saberes. O objetivo
principal é estimular a valorização do patrimônio pela via do reconhecimento dos alunos e das suas
famílias, no decorrer dos séculos e a partir de rastreamentos de suas ancestralidades, de que estas
pequenas histórias se ligam a contextos mais amplos, e que existem infindas possibilidades de
construir e conhecer a história, que não apenas as ditadas por categorias hegemônicas, a saber, as
eurocêntricas, e que privilegiam uma visão linear, evolutiva de história.

FAZERES E REFLEXÕES

A construção das aulas a partir das contribuições dos alunos através dos questionários tem se
mostrado extremamente proveitosa e significativa. Valorizar as vivências de cada aluno, suas
tradições familiares e principalmente dar voz e importância ao que os estudantes têm a dizer são
importantes ações que esse trabalho tem possibilitado, proporcionando aulas que tenham sentido e
significado para as turmas, para cada indivíduo. A descoberta de novas possibilidades e caminhos
apontados pela análise dos questionários ainda é um processo em andamento, conforme a leitura e
releitura dos questionários, ao passo que os alunos falam de seus objetos e que a equipe de artes se
reúne para trocar experiências. Como um projeto que está sendo posto em prática neste ano letivo
de 2014 ainda em curso, contudo, algumas reflexões e práticas já foram realizadas pelos conjuntos
das turmas, juntamente com seus professores e professoras:
Turmas 303 e 304: o primeiro passo foi mostrar imagens e vídeos acerca das
manifestações culturais descritas nos questionários. Nas discussões, ambas as turmas reconheceram
uma predominância de três matrizes na formação do povo brasileiro – a indígena, a africana e a
europeia (representada principalmente pelos portugueses). Na turma 304, muitos alunos são
descendentes de portugueses, por isso, iniciamos os trabalhos abordando os azulejos portugueses,
tratando da presença destes na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil, e de sua importância para a
cultura portuguesa como identidade estética. Este trabalho foi realizado, também, com a turma 303,
para que pudéssemos compartilhar os trabalhos de uma turma com a outra, dinamizando processos
de apresentação de propostas. Os painéis de uma turma são apresentados à outra, sofrendo um
processo de avaliação coletiva. Os trabalhos são dispostos para que os alunos falem sobre sua
própria criação e as dos colegas, analisando semelhanças e diferenças com a proposta apresentada, e
formas de organização interna de cada grupo, que se refletem nos resultados do trabalho. Foram
dois trabalhos coletivos: 1) A partir do desenho, criado ou copiado de azulejos projetados na parede
(à la Vik Muniz), em papel 40 kg, os grupos criaram seus painéis (1 aula); 2) A partir do recorte em
A4 branco, trabalhando a ideia de rebatimento e a de simetria, os grupos criaram painéis, em
cartolina colorida, posteriormente utilizando guache e acabamento em cola glitter (4 aulas).

[Figura 2]

Turmas 301, 305 e 306: após discussões sobre os questionários, o trabalho foi
direcionado para as matrizes africanas e afro-brasileiras. Após assistir à animação Kiriku e a
Feiticeira, os alunos se interessaram pela produção e pesquisa sobre as máscaras rituais.
Pesquisamos as máscaras em culturas diferentes, e suas funções de proteção, ritualização, disfarce
etc; além da presença de características das máscaras africanas em produções da arte moderna,
especialmente no Cubismo, a partir da obra Las Demoiselles D‟Avignon, de Pablo Picasso. Neste
momento, falamos sobre as apropriações que algumas culturas fazem de outras e da construção de
uma história “oficial” que nega alguns sujeitos em detrimento de outros, como ocorre
frequentemente com os povos indígenas, ameríndios, africanos e com características da arte oriental
claramente presentes nas produções ocidentais.

Turmas 307 e 308: a partir dos questionários, os alunos tiveram acesso a uma série de
manifestações da cultura popular brasileira que foram mapeadas nas palavras colhidas nas respostas
das famílias. Os objetos foram apresentados um a um, em roda de conversa, pelos alunos. Fizeram
vários exercícios de análise estética e formal desses objetos, recontaram suas histórias trocando os
narradores, criaram outros cenários de pertencimento para estes objetos, e os trouxeram de volta no
tempo numa fala viva e dinâmica sobre a importância deles como patrimônio material de família,
que guarda uma memória de patrimônio imaterial com forte referência e identidade para o aluno.
Em seguida, a partir de discussões, também em roda, verificamos que algumas gravações que
havíamos feito com os alunos narrando sobre seus objetos, e memórias afetivas dos mesmos, não
haviam ficado boas. Então os alunos da turma 307 sugeriram que criássemos bonecos que contarão
a história dos objetos. Esta produção apresentou uma questão: como este boneco deve representar a
família de cada aluno? Como seria pintada a cor da pele do mesmo? Esta questão de representação
dos sujeitos aparece bastante nas aulas de artes, pois os materiais plásticos não oferecem variações
de tonalidades de cores. Por isso, os alunos estão produzindo tintas (gouache) que possam dar conta
da diversidade de possibilidades que eles mesmos diagnosticaram. Já os alunos da turma 308
optaram por regravar pessoalmente suas apresentações de seus objetos. As duas turmas estão
investigando, paralelamente a este diálogo com suas Caixas de Memórias, além das expressões
culturais brasileiras de referenciais de matriz africana, artistas que preservam estes referenciais
culturais na sua identidade estética de sua arte, como Heitor dos Prazeres e Mestre Didi.

[Figura 3]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Visuais. (tese de Doutorado) Campinas: Faculdade de Educação, 2000.

ROSSI, Maria Helena Wagner. A Estética no Ensino das Artes Visuais. In Revista Educação e
Realidade: Revista da Faculdade de Educação da UFRGS – RS, jul-dez/2005, p. 49-69. Disponível
em: <http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/12415>.

ÍNDICE DE IMAGENS

[Figura 1]: Mosaico com imagens de alguns objetos das Caixas


de Memórias. Foto: Olívia Samara Negrão Cavalcanti ...........Erro!
Indicador não definido.
[Figura 2]: Trabalhos a partir dos azulejos portugueses –
Turmas 303 e 304. Foto: Ed Sombrio.Erro! Indicador não
definido.
[Figura 3] Preparação de tintas, da Turma 308. Foto: Eliane
Mattozo de Mattos ........................... Erro! Indicador não definido.

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