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Uma releitura da obra de Elisabeth Kubler-Ross

OPINIÃO OPINION
A reappraisal of the works of Elisabeth Kubler-Ross

Selene Beviláqua Chaves Afonso 1


Maria Cecília de Souza Minayo 2

Abstract This article presents a reappraisal of Resumo Este artigo apresenta uma releitura de
part of the works of Elizabeth Kubler-Ross, one of parte da obra de Elizabeth Ross, uma das autoras
the most quoted authors addressing the end of life mais citadas sobre a questão da terminalidade da
process, mourning and dying. Her work has con- vida, do luto e do morrer. Sua obra tem sido de
tributed to a clearer understanding of these issues grande contribuição tanto para os profissionais
by health professionals, families, religious and lay de saúde como para pais, mães, filhos, parentes,
people who handle and/or experience mourning. leigos e religiosos que vivenciam o luto. Também
She has also been the subject of controversy relat- tem sido alvo de controvérsias relacionadas a ques-
ed to ethical issues and the scientific rigor of her tões éticas e quanto a seu rigor científico. Os li-
work. The books analyzed in this article are: On vros aqui comentados são: On death and dying
death and dying (1969); Questions and answers (Sobre A morte e o morrer, de 1969); Questions
on death and dying (1971); Living with death and answers on death and dying (Perguntas e
and dying (1981); On children and death (1983); respostas sobre a morte e o morrer, de 1971); Li-
On life after death (1991) and Life lessons (2000). ving with death and dying (Vivendo com a morte
Key words Terminally ill patient, Palliative care e os moribundos, de 1981); On children and de-
during the end of life process, Children ath (Sobre as crianças e a morte, de 1983); On
life after death (Sobre a vida depois da morte, de
1991) e Life lessons (Lições de vida, de 2000).
Palavras-chave Doente terminal, Cuidados pa-
liativos na terminalidade da vida, Criança

1
Serviço de Psicologia
Médica, Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz. Av. Ruy
Barbosa 716, Flamengo.
22.250-020 Rio de Janeiro
RJ. selene.zero@gmail.com
2
Claves, ENSP, Fundação
Oswaldo Cruz.
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Afonso SBC, Minayo MCS

Elisabeth Kubler-Ross, psiquiatra suíço-america- mento do primeiro livro, durante os cerca de se-
na, uma entre trigêmeos, nascida com pouco mais tecentos grupos de trabalho, seminários e con-
de novecentos gramas, desde o início da vida sen- gressos que ministrou.
tiu que precisaria trabalhar duro para provar que Nesse livro, Kubler-Ross aborda assuntos
merecia viver. Marcada na adolescência pelos hor- importantes como a interdisciplinaridade, os as-
rores da Segunda Guerra, prometeu – e cumpriu pectos comunicacionais envolvidos na transmis-
– trabalhar na Polônia e na Rússia, ajudando nos são de notícias difíceis, o respeito à autonomia
primeiros socorros aos necessitados. Aí começa- dos pacientes e a importância da família como
va seu interesse pela morte e o morrer. parte da equipe em coparticipação para a cons-
Ela viu de perto os campos de concentração, trução de projetos terapêuticos singulares, entre
os crematórios, os vagões de milhares de sapati- outros. E ainda que não utilize qualquer desses
nhos de bebês e de cabelos de vítimas do holo- termos, ela foi além da teoria, mostrando, com
causto que serviriam de enchimento para traves- os relatos de suas vivências na clínica, o âmago
seiros na Alemanha. Depois disso, nunca mais foi dinâmico de cada um desses conceitos.
a mesma. Mais que isso, percebeu a desumanida- Em Living with death and dying3 de 1981, pela
de do ser humano e o potencial de cada indivíduo via dos exemplos da prática clínica, Kubler-Ross
para, segundo suas palavras, se tornar um mons- repete o formato de livros anteriores, mostran-
tro nazista ou uma Madre Teresa de Calcutá. do os entraves e as soluções para a melhor abor-
Considerava que todos nós temos que tomar co- dagem junto a essas pessoas. O livro traz uma
nhecimento desses aspectos internos, bons e maus. reflexão não só sobre pacientes terminais, mas
Kubler-Ross planejava trabalhar na Índia, sobre adultos, crianças saudáveis e seus familia-
mas foi demovida de seu plano original por ter- res em outras situações críticas, tais como diante
se casado com um americano que a levou para da perda inesperada dos entes queridos, por de-
residir em Nova Iorque, último lugar em sua lis- saparecimento, acidente, assassinato ou suicídio.
ta de preferências. Lá, insatisfeita e infeliz, identi- Naquele final de século XX, a autora já discu-
ficou-se com a solidão desesperada dos pacien- tia a transição do modelo de assistência em saúde
tes que atendia em um hospital de emergências. estritamente hospitalar e biomédico para o mo-
Diante de sua presença e disponibilidade, eles delo domiciliar ou de hospices. Reforçava a im-
começavam a falar e a compartilhar seus senti- portância do tratamento holístico e discutia a re-
mentos e histórias. Ela tinha dificuldades em lutância das equipes em administrar todos os re-
compreender o inglês que eles falavam, mas – e cursos possíveis para aliviar as insuportáveis do-
ainda que soubesse pouco de psiquiatria – en- res físicas e emocionais dos doentes. Dizia que a
tendeu a linguagem da alma daquelas pessoas. regra de ouro nesse novo modelo de atendimento
Para Kubler-Ross, aquelas vivências não foram era levar em conta a opinião dos pacientes sem
mera coincidência e prenunciavam o trabalho que julgá-los, mas ajudando-os a fazer suas escolhas.
viria a fazer mais tarde em sua carreira. Ressaltava também que os membros da família
Em 1969, publicou o livro intitulado On death precisam ser tão cuidados e orientados quanto o
and dying1, o primeiro de uma série que iria pro- próprio paciente, para que se evite seu adoeci-
jetá-la pelo mundo como especialista num assun- mento emocional ao longo de todo o processo,
to tabu para as sociedades ocidentais. Traduzido do diagnóstico ao tratamento e no evento final.
para trinta línguas, sua obra foi além da descri- Em sua obra, a autora não sistematiza seu
ção dos cinco estágios (negação, raiva, barganha, conhecimento nem propõem fórmulas ou pro-
depressão e aceitação) pelos quais passam os pa- tocolos: o que ela faz é uma alusão à necessidade
cientes diante de uma doença fatal ou que poten- de preparo dos profissionais para lidar com es-
cialmente ameace a vida. Em seus estudos de caso, sas circunstâncias, sem, no entanto, explicitar
dissecou situações relacionais entre a equipe, os como prepará-los – provavelmente (se depreen-
pacientes, seus familiares e entre os próprios pro- de) utilizando seu modelo de seminários, con-
fissionais. A autora considerava que o conheci- gressos e mesmo fitas e livros publicados. Tudo
mento teórico era importante, mas que ele de nada indica que, pela maneira com que lidava com a
valia se não se trabalhasse com o coração e a alma. linguagem simbólica (especialmente no caso dos
Seu livro Questions and answers on death and desenhos de crianças) e pela forma como tinha
dying2, publicado em 1974, contém exemplos de acesso ao inconsciente dessas pessoas, possa ter
situações vividas em sua atividade na clínica. havido uma formação em psicanálise clássica
Compila as perguntas mais frequentes respon- ampliando, assim, sua visão do mundo emocio-
didas por ela nos cinco anos seguintes ao lança- nal para além das teorias da psiquiatria.
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Ciência & Saúde Coletiva, 18(9):2729-2732, 2013


Nesse último livro, o capítulo escrito pela mãe mento; onde só há beleza, prazer e plenitude; onde
de um paciente já alerta para a importância da a pessoa é recebida por um ente querido que já
simetria nas relações com a equipe, especialmente tenha feito o que ela chamava de transição, e onde
nos casos mais graves e com reinternações pro- nunca se está só. Essas ideias provocaram rea-
longadas, quando a exposição dos diversos ato- ções da comunidade científica, que considerava
res é ainda maior. Percebe-se que, naquele tempo, estar Kubler-Ross se afastando dos rigores me-
Kubler-Ross colocava ênfase no que hoje, segun- todológicos acadêmicos. A autora também abor-
do a humanização em saúde, chamaríamos de da as consequências trágicas do luto mal elabo-
projeto terapêutico singular e de clínica ampliada. rado dos pais e irmãos e a necessidade de tratá-
Em 1983, a autora dedica On children and los por meio da escuta acurada e de orientação
death4 aos casos de crianças, no qual aborda as familiar para prevenir o adoecimento emocio-
mudanças das sociedades ocidentais diante do nal, ajudando-os a superar a perda. No mesmo
nascimento de um novo membro da família. O livro, há um capítulo com várias cartas e depoi-
que antes era um acontecimento compartilhado mentos de pais narrando suas lutas internas para
pela comunidade agora é vivido como uma in- compreender a morte dos filhos, para dar desti-
terrupção dos planos dos pais. Do ponto de vis- no a seus sentimentos e continuar a viver.
ta de Kluber-Ross, o parto foi medicalizado e, no Quando a autora escreve sobre os profissio-
fundo, ela aponta para a diminuição do contato nais, suas vicissitudes, erros e acertos, oferece-
entre os seres humanos, sobretudo quando as nos uma detalhada descrição do que hoje cha-
situações críticas da vida e da morte não são dis- mamos e esperamos que seja a reflexão em busca
cutidas e elaboradas pelos que as vivenciam. No- do atendimento humanizado em saúde.
vamente utilizando como exemplos os casos que On life after death5, de 1991, foi escrito na vi-
acompanhou e depoimentos pessoais – presta- gência das sequelas dos acidentes vasculares ce-
dos em seus seminários ou mesmo em cartas rebrais sofridos pela autora. Naquele momento,
que recebia –, a autora discorre sobre o adoeci- ela se encontrava em uma cadeira de rodas, fisi-
mento e os vários tipos de morte em crianças e camente dependente para realizar várias ativida-
adolescentes: das resultantes de doenças graves des diárias. Na abertura do livro ela endereça um
às inesperadas, e suas respectivas repercussões ácido recado a seus detratores: ao invés de tentar
sobre as famílias. convencê-los quanto à existência de vida após a
Kubler-Ross abordava os pequenos por meio morte, Kubler-Ross escreve que provavelmente
de desenhos que eles produziam durante os con- estará presente na outra vida no momento em
tatos com ela, e os interpretava como sonhos, que eles irão constatar, pessoalmente, as convic-
numa alusão não explícita à provável influência ções dela sobre o além.
dos estudos de Freud sobre o inconsciente e a Os estudos da autora sobre as experiências
interpretação dos sonhos. Usando uma lingua- de quase morte fortaleceram sua crença numa
gem simbólica, metafórica, Kubler-Ross respon- instância superior e etérea, descrita por pessoas
dia às perguntas das crianças à medida que elas que estiveram clinicamente em estado crítico, as-
iam se apercebendo de suas dramáticas realida- sunto estudado até hoje. E, em razão dessa abor-
des. A autora considerava que as crianças tinham dagem, Kubler-Ross foi questionada pela comu-
mais clareza quanto ao seu estado do que se su- nidade científica. Contra o argumento – que en-
punha e, portanto, estavam expostas também a tão prevalecia – de que essa experiência se devia à
uma dor e a um sofrimento maiores pelo fato de falta de aporte de oxigênio ao cérebro, causando
não poderem partilhar suas dúvidas, angústias e ilusões preenchidas por desejos do paciente, ela
pensamentos com outras pessoas. citava os casos de pessoas cegas que durante o
Nesse livro ela começa a revelar sua interpre- estado de quase morte puderam ver e, posterior-
tação espiritualizada da morte e do morrer. É na mente, descrever os profissionais que haviam
conversa com as crianças – que, para a autora, atuado em seu socorro. Sofrendo as pressões da
precisam ser respeitadas como pessoas e têm o comunidade científica e na iminência de abando-
direito de conhecer sua condição por meio de nar a coordenação de seus famosos seminários,
informação honesta e aberta – que Ross começa ela própria diz ter vivido o encontro com uma de
a usar a metáfora do casulo e da borboleta. suas pacientes, morta dez anos antes, que lhe pediu
Para ela, o corpo físico é a morada temporá- para não encerrar a atividade naquele momento.
ria da alma ou entidade que se liberta, como uma Além dessa, a autora descreve outra experiên-
borboleta do casulo, para habitar uma dimen- cia pessoal naquilo que chamava de consciência
são atemporal, na qual não há dor nem sofri- cósmica, citando haver caminhado por um vale
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Afonso SBC, Minayo MCS

sem tocar os pés no chão. Saindo desse estado também referem seu isolamento e dificuldades em
mental lhe vieram à mente as palavras Shanti trabalhar com os demais profissionais que vinham
Nilaya, que – mais tarde veio a saber – significa- lutando pela melhoria no atendimento e cuidado
vam “última morada da paz”. A expressão tor- dos pacientes terminais8.
nou-se depois o nome da instituição fundada por Para seus defensores, debater os detalhes e a
ela na Califórnia para cuidar de pacientes termi- validade de suas teses ou seu flerte com a espiri-
nais e das vítimas da então novíssima e pouco tualidade é perder de vista o centro do seu traba-
conhecida epidemia de Aids. lho. Com um único livro e uma vigorosa campa-
Life lessons6, de 2000, escrito em parceria com nha proselitista, Kubler-Ross permitiu o debate
Davi Kessler – também especialista no tema da mais aberto sobre nosso maior medo e única
morte e do morrer –, é seu primeiro livro sobre a certeza: a morte9.
vida e o viver. Das experiências com os pacientes Se há um valor incontestável em seus livros é
e familiares ela tira lições sobre autenticidade, o de colocar em relevo a subjetividade das pesso-
amor, relações pessoais, perda, força, tempo, as, lidando corajosamente com ela. Não há teo-
medo, raiva, lazer, paciência, rendição, perdão e rias, estatísticas, esquemas, protocolos ou recei-
felicidade. Os autores mantêm a fórmula dos li- tas de como lidar com a dor da perda, embora a
vros anteriores de Ross, repletos de exemplos de autora admita a necessidade de haver um prepa-
situações vividas por pessoas diante de uma per- ro dos profissionais para que eles possam atuar
da ou de outros acontecimentos trágicos. Ku- em tal função.
bler-Ross conclui que, ao estudar a morte, ela O que há são tocantes histórias de sofrimen-
aprendeu mais sobre a vida e seus mistérios. to e superação, de compartilhamento e amadu-
A autora foi acusada pela comunidade científi- recimento sobre os quais ela trabalha, lançando
ca de se ter autopromovido por meios pouco éti- luz sobre a prática e tornando os debates sobre
cos, acusação que recai no fato de apenas na bibli- os assuntos sobre a morte e o morrer tangíveis
ografia ela ter citado os profissionais pioneiros nes- para profissionais e leigos. Para Elisabeth Ku-
se campo que já vinham trabalhando e publican- bler-Ross, essas experiências são, sobretudo,
do estudos sobre as mudanças necessárias no tra- oportunidades de crescimento pessoal.
tamento de pacientes terminais. Com isso, segun-
do seus críticos, a autora fez com que leitores apres-
sados e menos criteriosos atribuíssem a ela todos
os méritos sobre o assunto. Mesmo os cinco está-
gios experimentados por doentes diante da morte Colaboradores
teriam sido uma apropriação de trabalhos de Ro-
bertson e Bolby7 sobre a reação de crianças afas- SBC Afonso e MCS Minayo participaram igual-
tadas de suas mães. Os críticos de Kubler-Ross mente da elaboração do artigo.

Referências

1. Kubler-Ross E. On death and dying. New York: Scrib- 8. Parkes CM. Elisabeth Kubler-Ross, On death and
ner; 1969. dying: a reapprasail. Mortality 2013; 18(1):94-97.
2. Kubler-Ross E. Questions and answers on death and 9. Black and White Photograph [obituary]. Time 2004;
dying. New York: Touchstone; 1971. 164(10):20.
3. Kubler-Ross E. Living with death and dying. New
York: Touchstone; 1981.
4. Kubler-Ross E. On children and death. New York:
Touchstone; 1983.
5. Kubler-Ross E. On life and death. Celestial Arts.
New York: Touchstone; 1991.
6. Kubler-Ross E, Kessler D. Life lessons. New York:
Scribner; 2000.
7. Robertson J, Bowlby J. Responses of young chil-
dren to separation from their mothers. II Observa-
tions of the sequence of response of children aged
18 to 24 months during the course of separation. Artigo apresentado em 30/04/2013
Courrier du Centre International de l’Enfance 1952; Aprovado em 22/05/2013
3:131-142. Versão final apresentada em 10/06/2013

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