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FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – USP

HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE I

VINICIUS ELLERO KIMATI DIAS – Nº USP 10340242

As identidades na América
Latina do Século XIX

SÃO PAULO

2018
A região hispano-americana no século XIX passa por um processo de
independência política da Espanha que coloca uma série de demandas para sua
consolidação. Surge, com a montagem dos Estados nacionais, a necessidade histórica de
constituir uma nação que dê legitimidade à autoridade do poder público e crie um fator
de coesão numa determinada população.

Há, nos países latino-americanos, a particularidade do surgimento de um aparato


estatal anterior ao processo da construção do processo de nação. Esta, dessa forma,
precisa ser construída a partir do Estado. Para tanto, o grupo social que hegemoniza o
poder político e as instituições de maior influência na sociedade, a elite criolla, empenha-
se no processo de criação de uma identidade nacional, notadamente que seja capaz de se
sobrepor aos conflitos de classe e seja capaz de ser elemento de coesão e que se desenhe
a partir dos interesses e da ideologia do referido grupo dominante, de forma que a
identidade nacional e o patriotismo contribuam para manter a ordem social vigente.

No entanto, é evidente a forma que, ao longo do século XIX e posteriormente, as


narrativas e símbolos identitários produzidos hegemonicamente pela elite são
dinamicamente apropriados pelas camadas populares da sociedade e ressignificados,
colocando em disputa o caráter da nação e questionando sua constituição intimamente
ligada à ordem, ao autoritarismo e aos interesses criollos.

Ao contrário do Brasil, no qual o português era língua de origem europeia


predominante em todo território, todas as localidades da Hispano-América tinham o
espanhol como idioma oficial, não havendo assim características concretas e objetivas à
totalidade da sociedade que definisse o que era ser chileno, argentino, colombiano etc.,
de forma que a identidade da América Hispânica era em diversos fatores comum a todos
seus habitantes.

Não era de interesse das elites locais, no entanto, um projeto (como proposto por
Bolívar) de construção de uma nação que unisse uma grande amplitude de territórios. A
fragmentação política das antigas possessões espanholas servia muito mais ao
caudilhismo, de forma que cada grupo dominante pudesse exercer o poder político em
sua localidade. A partir disto surge a necessidade de diferenciação entre as múltiplas
comunidades latino-americanas que acabavam de proclamar suas independências
nacionais.
O momento de ruptura política com a Espanha, apesar de ser elemento central na
construção de todas as narrativas nacionais, não presenciou em todas as localidades um
processo imediato de desenvolvimento simbólico, cultural e político de uma identidade
nacional emancipadora, uma vez que nem todas as localidades e suas Juntas de governo
anunciaram um rompimento imediato com a Coroa espanhola após a década de 1810. No
entanto, à medida que se desenha mais claramente a independência política e se conforma
uma outra correlação de classes, diferente do momento de dominação colonial, surge a
necessidade de formar novas identidades que, além de refletir o pertencimento a um ente
comum (a nação), também refletisse e afirmasse as desigualdades existentes.

Purcell, comentando o processo chileno de construção de uma simbologia


nacional, pontua que:

Por meio de ritos oficiais, foi dado o papel de protagonista a uma elite satisfeita em
participar de bailes, desfiles e cerimônias. A estruturação das celebrações protocolares
oficiais, sem embargo, deu apenas um papel secundário, de mero espectador, aos setores
mais pobres da sociedade. Os rituais nacionais reproduziram, enfim, as hierarquias sociais
próprias da nova ordem republicana.

Dessa forma, observa-se o movimento dialético de constituição de uma nação,


afirmando o pertencimento a uma identidade comum, que perpassava todas as camadas
da sociedade pós-colonial, mas também delimitando bem quem era o protagonista neste
processo e a quais interesses a nação em construção serviria.

É importante notar as ferramentas empregadas pela elite para o desenvolvimento


da identidade de nação, algumas apontadas por Purcell. Como já dito, o Estado estabelece
papel de protagonista neste momento, uma vez que a existência de um coletivo nacional
era questão essencial para a constituição de legitimidade para o aparato estatal. No
entanto, o poder público não agiu isoladamente neste processo, contando com a
participação de diversas outras instituições – notadamente, todas controladas pelos
interesses da elite.

A educação, dessa forma, teve uma função importante na construção do


sentimento pátrio. Recebendo a juventude da classe dominante que passava a constituir
os novos países, o sistema de ensino tinha tanto a tarefa de reproduzir o pensamento e a
ideologia constituintes da identidade nacional quanto de formar uma intelectualidade que
ocuparia importantes funções no governo, nas Forças Armadas, em outras instituições de
prestígio e na produção artística e cultural – pintura, teatro, músicas – de extrema
importância para a constituição de um imaginário nacional.

Também o uso de instituições com maior contato direto com o “baixo povo”, no
esforço de envolver a totalidade da sociedade na identidade nacional. A Igreja, através do
engajamento de parte importante do clero no diálogo direto com as camadas mais pobres,
e as Forças Armadas através de cerimônias grandiosas e atos públicos e solenes, muitas
vezes reforçadas e intensificadas em períodos de guerra. As festividades e cerimônias
tinham papel agitativo de grande valor para um momento pré-comunicação de massas na
função de atingir um grande número de pessoas – a maioria analfabeta – a respeito de um
projeto definido.

Importante destacar, no entanto, que as classes trabalhadoras não se colocaram de


forma totalmente passiva neste processo. Sobretudo no que se refere às festividades
oficiais, as camadas mais baixas souberam se apropriar destes momentos e ressignificá-
los num contexto popularizado, algo que foi mais ou menos aceito pelas elites à medida
em que, apesar de gerar aquilo caracterizado como “desordem” e condutas vistas como
“corrompidas” e desviantes do projeto de controle, disciplinamento e repressão do povo
(colocado em prática pelas elites como parte da identidade “oficial” de nação), elas
contribuíam para a apropriação pelos mais pobres do sentimento nacional, e passavam a
contribuir positivamente para a consolidação das sociedades republicanas pós-
independências.

Purcell destaca:

Carentes do direito à cidadania política e impossibilitados de assumir um papel de


destaque nas celebrações oficiais organizada pela classe dirigente, o baixo povo chileno
teve que expressar seus sentimentos de apego ao nacional através de formas mais
espontâneas, dando outro significado para suas próprias formas de sociabilidade como as
chinganas, que chegaram a complementar-se com as atividades oficiais desenvolvidas em
todo o país, a pedido das elites. Isto não implicou a impossibilidade de avançar na
construção de um imaginário nacional único, mas a coexistência de um projeto de ordem
social (repressor para o baixo povo) junto com um nacional de projeto aglutinador (...)

Dessa forma, vê-se que, apesar de serem processos de iniciativa e protagonizados


pelas elites, a construção das identidades no século XIX toma um caráter de disputa,
satisfazendo a interesses múltiplos e muitas vezes contraditórios, podendo apresentar
inclusive traços de resistência.

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