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Sociopoética

Volume 1 | Número 7 | Janeiro a Julho de 2010


Universidade Estadual da Paraíba
Profª. Marlene Alves Sousa Luna
Reitora
Sociopoética
Prof. Aldo Bezerra Maciel Volume 1 | Número 6 | Julho a Dezembro de 2010
Vice-Reitor

Editora da Universidade
Estadual da Paraíba
Diretor
Cidoval Morais de Sousa

Diagramação
Jéfferson Ricardo Lima Araújo Nunes

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e


Interculturalidade do Departamento de Letras

Direção Geral e Editorial


Antonio Carlos de Melo Magalhães, Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino e
Sébastien Joachim

Editor deste número


Diógenes Maciel
Dramaturgia e Teatro: Diálogos
Conselho Editorial
Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS
Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE/UEPB
Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO
Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE/UEPB
Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG
Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM)
Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL
Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC
Regina Zilberman, PUC-RS
Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II
Roland Walter, UFPE/UEPB
Sandra Nitrini, USP
Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL
Sudha Swarnakar, UEPB

Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade


Luciano Barbosa Justino
Antonio Carlos de Melo Magalhães

Revisores
Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino,
Sébastien Joachim, Antonio Magalhães

Projeto Original da Capa Campina Grande - PB


Everaldo Araújo
Sumário

Apresentação 7
Diógenes Maciel

Dramaturgia e Teatro: Diálogos

A dialética da transculturação do grupo Caixa-Preta:


Hamlet sincrético em espaço cênico não convencional_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _11
Anna Stegh Camati

A barca de ouro: desejo e morte na tragédia


popular de Hermilo Borba Filho _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _21
Augusto Rodrigues da Silva Junior

Sociedade dos Poetas Mortos:


um diálogo intertextual com Shakespeare _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _31
Célia Arns de Miranda

A Bárbara da Cólquida aportou no Brasil:


a interculturalidade entre Gota D’água e Medéia_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _43
Diógenes André Vieira Maciel
Danielle Lima Ribeiro

As representações da personagem Boca de Ouro


na peça Homônima de Nelson Rodrigues _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _55
Elton Bruno Soares de Siqueira
Casamento de Branco, de Altimar Pimentel: Apresentação
a inversão da lógica Dell’arte _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _71
Otávio Cabral
Belmira Magalhães
O presente número da Sociopoética abre espaço para o diálogo com discussões
atuais, travadas por pesquisadores oriundos de diversas instituições de ensino supe-
rior do país, que tomam como centro o par dramaturgia/teatro, considerando as suas
Metateatro e intertexto no Teatro Moderno _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _85 potencialidades interculturais e intermidiáticas Em sua grande maioria, os artigos
Sonia Aparecida Vido Pascolati aqui publicados são de autoria de membros do Grupo de Trabalho “Dramaturgia
e Teatro” da ANPOLL/Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e
Lingüística. Mesmo que este grupo venha atuando ativamente nas duas últimas
Militância sufragista e a peça de conversação no Brasil do século XIX:
décadas, ainda podemos observar que os livros didáticos, manuais de teoria literária
O voto feminino, de Josefina Álvares de Azevedo _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _97
ou mesmo a atividade crítica na área dos estudos literários ainda põem à margem o
Valéria Andrade gênero dramático: ainda é uma minoria dos alunos, professores e dos pesquisadores
que se propõe a tirar os textos de/para teatro da estante – o que se complica mais
ainda quando se faz necessário atentar para as áreas intersectivas da dramaturgia
com outras artes. Parece, até, que as obras de dramaturgia, ou mesmo o aspecto
Secção Livre
dramatúrgico construído numa cena de filme ou num espetáculo, ainda precisam
Marginália: o intelectual e as críticas nas margens _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 113 reivindicar um lugar nos fóruns de discussão. Este lugar, nesta edição, foi – e precisa
André Luís Gomes permanecer – garantido.
Dirlenvalder do Nascimento Loyolla
Os textos reunidos olham para estas questões sob diferentes perspectivas e
opções metodológicas ou teórico-críticas. Considera-se que o traço fundante da
Literatura, política e meios de comunicação nas dramaturgia é sua forma, radicada no diálogo – como aconteceu, por exemplo, no
crônicas de Rachel de Queiroz _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 125 teatro ático. É esta forma, modificada no tempo, que desperta em autores, atores,
Regma Maria dos Santos encenadores e, também, em leitores/espectadores a necessidade do debate: seja por
sua quebra, por sua “crise”, pelas tentativas de salvá-la ou de superá-la, movimentos
que marcam a própria história do teatro (ou do drama em cena, como diz Raymond
Williams) no Ocidente.

A dramaturgia, neste movimento de avanços e recuos, moderna e contem-


poraneamente, reflete sobre si e, ao fazê-lo, dialeticamente, também discute o
próprio teatro, como bem aponta, em seu artigo, Sonia Pascolatti. Por este cami-
nho, também passou-se a se considerar o texto dramatúrgico como uma parte, no
complexo sistema da encenação teatral – deslocando-o do centro: o chamado “tex-
tocentrismo”. Para a análise deste processo (a encenação) faz-se necessário entender
condições de uma dada prática artística, ou seja, as condições de performance e
aquelas outras, externas a ela – os processos socioculturais –, já incorporadas à
própria prática teatral como articulações estéticas e formais. Esta é uma discussão
convergente ao que propõe o texto de Anna Stegh Camati, ao discutir a montagem
de um Hamlet Sincrético mediante o processo de entrecruzamento de culturas e de
tradições estéticas, numa encenação que une Shakespeare com aspectos da cultura
afrobrasileira e que se deu à público num espaço teatral não-convencional. Pelo
mesmo caminho do entendimento do entrecruzamento de culturas, como uma
possibilidade de caminho interpretativo para Gota d’água – talvez um dos textos
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mais representativos da tradição brasileira –, em seus diálogos com a tradição trá-


gica antiga, passam Diógenes Maciel e Danielle Ribeiro, encontrando-se com as
discussões sobre a retomada de uma poética do trágico em um texto de Hermilo
Borba Filho – importante pesquisador, dramaturgo e encenador pernambucano
– empreendidas por Augusto Rodrigues, ou, ainda, com uma análise sobre a reto-
mada crítica da lógica dos enredos e personagens, oriundos da tradição dell’arte,
no trabalho dramatúrgico, ancorado no regional nordestino, do autor – alagoano
de nascimento, mas paraibano de adoção – Altimar Pimentel, empreendida por
Otávio Cabral e Belmira Magalhães.

No âmbito dos diálogos intermidáticos, Célia Arns de Miranda discute a rela-


ção temático-estrutural entre o cinema e o texto Sonho de uma noite verão, em suas
possibilidades poéticas, mediante a leitura da manipulação estética entre tragédia e
comédia, como dado interpretativo para o filme Sociedade dos poetas mortos. Valéria
Andrade e Elton Siqueira, cada um à sua maneira, exploram as relações estreitas
entre sociedade e atuação política, entre estética e representação da sociedade. A
primeira ao voltar à produção da (ainda, infelizmente) desconhecida militante, do
século XIX, Josefina Álvares de Azevedo. O segundo ao retomar a discussão do
canônico Nelson Rodrigues.

Esta edição traz ainda uma secção livre, na qual encontramos dois artigos, de
alguma maneira, conectados. Neles, os autores se debruçam sobre formas margi-
nais: crônicas de duas vozes que falam em tempos distantes, uma da outra: Lima
Barreto e Rachel de Queiroz.

A todos, nosso convite e o desejo de uma boa leitura – esperamos que estes diá-
logos despertem outros tantos.

Diógenes Maciel

Dramaturgia e Teatro: Diálogos


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A dialética da transculturação do grupo Caixa-Preta:


Hamlet sincrético em espaço cênico não convencional

Anna Stegh Camati1

RESUMO: Com base em críticos que estudam os processos de tradução cultural


de textos canônicos e as potencialidades do espaço cênico, este artigo investiga a
dialética da transculturação e as interferências, no espetáculo “Hamlet sincrético”,
da historicidade impregnada em locais não convencionais que alteram a percepção
do espectador no ato da recepção. Ao escolher um espaço não convencional como
o Hospital Psiquiátrico São Pedro para servir de palco para a encenação do espetá-
culo, o Grupo Caixa-Preta objetivou realizar um diálogo entre a historicidade do
local e a realização cênica, agregando a carga semântica do prédio aos conteúdos
temáticos do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Grupo Caixa-Preta, “Hamlet sincrético”, tradução cultural,
espaço não convencional, alteração de percepção.

ABSTRACT: Starting from theories by critics who study the processes of cultural
translation of canonical texts and the potentialities of theatrical space, this article
investigates the dialectics of transculturation and the interferences, in the spectacle
“Syncretic Hamlet”, of the historicity impregnated in non conventional spaces
which alter the spectator’s perception at the moment of reception. In choosing a non
conventional space such as the Psychiatric Hospital São Pedro for the performance,
the Group Caixa-Preta aimed at promoting a dialogue between the historicity of
the building and the scenic realization, thus aggregating the semantics of the space
to the thematic contents of the text.
KEY-WORDS: Group Caixa-Preta, “Syncretic Hamlet”, cultural translation, non-
conventional space, alteration of perception.

RÉSUMÉ: Établi en critiques qui étudent le processus de traduction culturelle


de textes canoniques e les potentielités de l’espace cénique, cet article recherche la
dialectique de la transculturation et les interventions dans le spectacle «  Hamlet
sincrétique  » de la historicité impregnée en locales non conventionelles comme
l’Hôpital Psiquiatrique São Pedro pour servir de scène pour la mise-en-scène
du spectacle, le Groupe Caixa-Preta a pour propos réaliser un dialogue entre la
historicité du local et la réalisatión scénique, en agrégant la charge sémantique de la
maison aux contenus tématiqes du texte.
MOTS-CLES: Groupe Caixa-Preta, « Hamlet sincrétique », traduction culturelle,
espace non-conventionnel, altération de la perception.

1 Professora Titular do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade


(UNIANDRADE).
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Introdução A retextualização e recontextualização dos clássicos na contemporaneidade

Shakespeare já conhecia os procedimentos de apropriação/adaptação textual, ou As obras de Shakespeare, hoje, são consideradas como uma espécie de escritura
seja, a retextualização e recontextualização de obras consagradas, que eram utiliza- secular da qual derivam a nossa psicologia e mitologia. Charles Marowitz acredita
das por ele como material para a criação de novas textualidades imbuídas do espírito que no caso de Hamlet,
de seu tempo. A questão que se apresenta para nós hoje é: como podemos ler seus
textos e a partir deles chegar a interpretações válidas para o nosso cotidiano? Será [...] há uma espécie de marca cultural no inconsciente coletivo das pes-
soas, de modo que crescemos tendo familiaridade com Hamlet, mesmo
que esses textos encontram ainda hoje um solo fértil nos teatros? A resposta para
que nunca tenhamos lido a peça, visto um filme ou assistido a uma
essas indagações pode ser encontrada em Hamlet sincrético, uma tradução cultural encenação. Como o ‘mito’ é mais antigo que a peça, esta sobrevive na
inspirada no Hamlet de Shakespeare. A reescritura do texto resultou de um processo imaginação da modernidade graças ao mito. (MAROWITZ, 1991, p.
de criação coletiva e a montagem, dirigida por Jessé Oliveira,2 foi apresentada em 19, minha tradução)
espaço teatral alternativo pelo grupo Caixa-Preta, uma trupe formada por artistas
negros em Porto-Alegre. O mito como raiz do gênero dramático ocidental nos remete ao conceito de
arquitexto de Gérard Genette (2005, p. 217), configurado como um modelo ideal
O espetáculo, que estreou em 20 de maio de 2005, no Hospital Psiquiátrico aberto a variações. Ao elaborarem seus temas, tomando como base o material mítico
São Pedro recebeu, no mesmo ano, seis indicações para o prêmio ‘Açorianos de difuso e complexo, os poetas gregos tinham liberdade para modificá-lo ou intro-
Teatro’, vencendo, na categoria trilha sonora, o compositor e maestro Luiz André duzir inovações. Percebe-se, portanto, que os processos de apropriação/adaptação
da Silva. Ainda em 2005, a peça também foi agraciada com o Troféu RBS de Melhor remontam ao período clássico, quando os grandes tragediógrafos gregos iniciaram a
Espetáculo pelo Júri Popular. prática de ressignificação dos mitos, imprimindo sua marca particular. Verificou-se
o mesmo procedimento nas obras dos escritores do neo-classicismo francês e, até
Em 2006, o grupo Caixa-Preta realizou novas temporadas de Hamlet sincré-
mesmo Sigmund Freud, o criador da psicanálise, vestiu com roupagem moderna
tico: em 14 de março conquistou o público uruguaio ao se apresentar no pátio do
alguns dos mais importantes mitos que encontrou na literatura, principalmente nos
prédio histórico do Cabildo (erguido no século XIX), para um público de mais de
gregos, em Shakespeare e Ibsen.
300 pessoas, dentro da programação do projeto Expresso Porto Alegre, Estação
Montevideo, promovido pelas prefeituras de Porto Alegre e de Montevideo. E, em No artigo “A representação dos clássicos: reescritura ou museu”, Anne Ubersfeld
março de 2007, o espetáculo foi levado para o Festival Shakespeare – Tradição e (2002, p. 9-10) discute as mudanças de ótica que ocorreram nas artes cênicas em
Atualidade do SESC Ribeirão Preto, no estado de São Paulo. relação à montagem dos clássicos, visto que hoje a reconstituição arqueológica cedeu
lugar à adaptação criativa. Ela argumenta que não há um corte temporal decisivo
Este ensaio objetiva discutir, em Hamlet sincrético, alguns elementos que foram
para a canonização de um texto, visto que “tudo o que se escreve hoje desliza para
ressignificados no processo de transculturação do texto shakespeariano e mostrar a
o clássico”. Acrescenta, ainda, que mesmo um texto canônico, cuja problemática
importância da escolha do local da encenação, visto que as potencialidades do espaço
permanece próxima da atualidade apesar do afastamento temporal, também exige
condicionam a percepção do público e interferem na recepção do espetáculo.
uma adaptação para tornar-se legível ao espectador de hoje.

Em face dessas perspectivas, a estética brechtiana de atualização dos clássicos


tornou-se uma prática comum. Esse procedimento altera radicalmente o sentido
atribuído às obras canônicas pela crítica tradicional, preocupada com a integridade
textual. Brecht defendia a necessidade da historicização dos clássicos, um processo
que põe em jogo pelo menos duas historicidades: a do tempo em que o texto foi
escrito e a do tempo em que ele é reescrito ou transposto para outra mídia, visto que
o passado influi no presente, e o presente modifica o passado. Portanto, um aspecto
importante a ser considerado é o diálogo via de mão dupla que é processado no
2 Jessé de Oliveira é diretor teatral, formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul entrecruzamento de situações de enunciação e/ou culturas: a do texto/cultura-fonte
(UFRGS), onde também concluiu um Curso de Especialização em Teatro Contemporâneo. Participou do e a do texto/cultura-alvo, com um olhar retrospectivo no passado, mas uma maior
processo de adaptação e dirigiu diversos clássicos, dentre eles Os fuzis da senhora Carrar, Hamlet sincrético ênfase no presente (PAVIS, 2008, p. 123-154).
e Antígona BR.
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Ubersfeld (2002, p. 12-16) também se pronuncia a esse respeito. Afirma que do processo de recodificação do cânone literário e da inserção de elementos da
uma obra clássica, inscrita no processo de comunicação, sofre modificações em três cultura, história e linguajar dos afro-descendentes brasileiros. Os elementos mitoló-
níveis diferentes – o do emissor, o da mensagem e o do receptor. A realização cênica gicos de Hamlet foram fundidos com componentes míticos provenientes da cultura
envolve emissores múltiplos (encenador, diretor, atores e equipe de criação), e os afro-brasileira. É um espetáculo estruturado a partir de uma estética negra que tran-
signos da obra em questão são filtrados de acordo com as mudanças do Zeitgeist sita pelo sincretismo cultural e religioso afro-brasileiro e, também, pelo catolicismo
e “em função da escuta atual do receptor”: ouve-se o texto em línguas diferen- popular e pentecostalismo. As personagens shakespearianas são historicizadas e
tes, concretizado em linguagens e em condições de enunciação contemporâneas. transmutadas em encarnações de tipos da mitologia cultural negra, privilegiando
Em virtude da dupla mudança do emissor e do receptor, a mensagem também é a temática da negação da identidade. Hamlet, por ser aquele que busca a justiça,
modificada. está associado ao orixá Xangô; Hamlet-pai é Oxalá; Gertrudes se assemelha a uma
rainha carnavalesca, Polônio vem a ser um ex-babalorixá que negou sua cultura ao
A mudança de tempo e lugar exige, além da transposição de um texto de uma se converter num pastor evangélico, e Cláudio, por seu caráter amoral, é uma repre-
mídia para a outra, uma tradução cultural que dialoga com a cultura-fonte, mas sentação de Zé Pelintra.
privilegia o uso de valores e ideologias da cultura-alvo, conforme argumenta Homi
Bhabha: Uma impressionante atmosfera simbólica é instaurada por meio da inserção de
referências musicais de matriz africana e dos sambas-enredo, além da interpolação
Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo atra- de cânticos religiosos do batuque e de elementos relacionados ao rap, à capoeira e a
vés do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios
umbanda e seu sincretismo.
sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas
regras habituais ou ‘inerentes’ de transformação. Ambivalência e anta- O espetáculo privilegia o aspecto ritualístico, de inspiração dionisíaca; é uma
gonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar
experiência visceral com elementos de crueza, no sentido artaudiano do termo,
com a “diferença do outro” revela uma insuficiência radical de nossos
próprios sistemas de significado e significação. (BHABHA citado em que conduzem os espectadores a um envolvimento orgânico. A linguagem física
HALL, 2006, p.71-72) do espetáculo é articulada a partir da mistura e fusão de sons, ruídos, gritos, ritmos,
música, dança, cor, luz e outros elementos visuais e sonoros. Este acúmulo de apelos
sensoriais conduz a uma percepção além dos cinco sentidos, atingindo o espectador
A dialética da transculturação em Hamlet sincrético: de imediato e acionando os fluxos energéticos que causam perturbação. Além da
a adaptação do texto canônico para o imaginário cultural afro-brasileiro ativação dos cinco sentidos, a atmosfera de desassossego ainda é intensificada pela
escolha do espaço cênico que abarca diversos segmentos do Hospital Psiquiátrico
Hamlet sincrético é uma apropriação/adaptação criativa, tanto no sentido pós- São Pedro em Porto Alegre: o pátio interno entre dois pavilhões desativados, os
colonialista do termo, como no sentido mais geral popularizado pelas teorias da corredores escuros e sombrios pelos quais os espectadores são conduzidos à luz de
recepção. A reescritura do texto shakespeariano pelo grupo Caixa-Preta privilegia vela, de onde vislumbram diversos cubículos, sem janelas e sem luz, e a ampla sala
a perspectiva da cultura alvo que se torna o foco principal, utilizando a cultura com diversas entradas e saídas onde se realiza o jogo cênico. No percurso em forma
estrangeira para seus próprios fins. Como ensina Peter Burke (2003, p. 91), a processional, pelos corredores estreitos, ouvem-se gemidos e gritos que geram ansie-
apropriação/adaptação cultural pode ser analisada como “um movimento duplo dade e um elevado grau de claustrofrobia.
de descontextualização e recontextualização” do texto canônico, gerando discursos
O espetáculo se inicia com uma personagem chamada Tranca-Rua, abrindo o
políticos alternativos que implicam no questionamento e descentramento do legado
imenso portão de ferro enferrujado da casa dos loucos por onde entram ele mesmo
cultural hegemônico. Reescrituras politizadas de obras canônicas fazem parte de um
e o público. No pátio interno entre duas alas desativadas acontece o enterro de
processo que valoriza a voz, a história e a identidade daqueles que foram explorados,
Ofélia, uma cena repetida com pequenas variações no início e no fim do espetáculo,
marginalizados e silenciados por interesses e/ou ideologias dominantes.
sugerindo a circularidade ou recorrência de vivências e de injustiças sociais.
Em Hamlet sincrético, os elementos da cultura afro-brasileira não somente assu-
Na cena intitulada “Rap”, na qual Hamlet sonda os propósitos de espionagem
mem a função de metáforas que traduzem a narrativa da peça canônica para um
de Rosencrantz e Guildenstern, o diálogo é travado na linguagem do rap; o mundo
novo contexto; eles também comentam, criticamente, a realidade de uma maneira
é descrito como uma cadeia, uma prisão com diversas celas e, o espaço cênico, o
diferente da tradicional discussão verbal sobre a negação da identidade e/ou exclu-
microcosmo que representa o macrocosmo é aludido como o pior cárcere de todos,
são social e racial. O Grupo Caixa-Preta assume a sua condição étnico-racial através
ou seja, o local da encenação em si já encerra um discurso político:
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[…] em função dos métodos ali utilizados para o tratamento dos loucos e não loucos
Hamlet: Salve Rosencrantz! Grande Guildenstern! (Inicia o diálogo entre os três encarcerados ali por serem inconvenientes para o convívio social. Assim como um
no ritmo do Rap) Sempre seguindo fortes e firmes na luta? presídio, um hospício sugere um ambiente de torturas, injustiças, crueldades, opres-
Rosencrantz: Rosencrantz e Guildenstern esse é nosso nome sões e maus tratos.
A gente ta aqui para ver o que é que houve As grades de ferro e as grossas paredes da edificação, com as marcas do tempo
Guildenstern: Tamos chegando tranqüilos e serenos inscritas no reboco, trazem à mente os sofrimentos e as injustiças sociais perpetra-
No meio da burguesia a gente é peixe pequeno. das em nome das diferenças de gênero, raça, etnia ou classe social. Como afirma o
Hamlet: Peixe pequeno não, peixe piolho, então, diretor Jessé Oliveira, em um ensaio sobre espaços teatrais alternativos, se um grupo
escolhe como cenário uma paisagem ou construção urbana pré-existente, esta será
Aquele que vive na boca do tubarão
incorporada aos signos da montagem:
Rosencrantz: Na boca do tubarão a gente vive então
Por que ele nos garante a nosso refeição Deve-se pensar no que representa um determinado espaço antes de
ser usado como local da representação cênica. Uma rua ou praça tem
Hamlet: Pois é, já morei, tô ligado na parada
um uso e um significado social e cultural predefinidos, contudo, ao ser
Por aqui o tubarão tá meio da pá virada escolhido como lugar do acontecimento cênico, este ganha outros sig-
Tudo bem bola frente cabeça pra cima, então, nificados no imaginário do espectador e dos passantes. Outros lugares
como prédios, pontes, igrejas e demais estruturas utilizadas eventual-
Guildenstern: Vamos afiar nossas mentes numa rima
mente como espaço cênico também têm seus usos preestabelecidos,
Se passa em um rap assim de repente ganhando, mais tarde, novos significados. Grupos como o Teatro da
Hamlet, Guildenstern e Rosencrantz: Do jeito que a gente fazia antigamente Vertigem quando escolhem uma igreja, um presídio ou um hospital
relocalizam, em termos simbólicos, estes lugares. (OLIVEIRA, 2008,
Hamlet: Rápido, vamos pôr o nosso cérebro à prova p. 22)
Rápido, diz aí qual é que é a rima nova
Guildenstern: Nada demais,  o resto é só o resto A incorporação da carga semântica de determinados locais onde se realiza o
A rima nova é que o mundo tá ficando honesto espetáculo aos signos da montagem tende a gerar energia e presença e, obviamente,
também vai ocasionar uma alteração de percepção no espectador. De acordo com
Hamlet: Se mundo ta ficando honesto eu não sei não
Evill Rebouças,
O que é que deu em vocês pra caírem nesta cadeia, prisão
Rosencrantz: Cadeia, prisão! Tu tá louco meu irmão Se compreendermos o termo dramaturgias como uma somatória entre
textos ditos e aqueles que se encontram entre as lacunas da encena-
Hamlet: O mundo é uma prisão com diversas celas
ção, podemos afirmar que a qualidade gerada pela carga semântica
E este lugar é o pior de todas elas [...]. do espaço passa a responder por importantes discursos do espetáculo.
(GRUPO CAIXA-PRETA, 2005, p. 18-19) O espaço historicizado contamina a encenação com uma espécie de
metatexto. As cargas semânticas embutidas nesses locais passam então a
fazer parte dos discursos dramatúrgicos. Embora não estejam materiali-
zados pela palavra em forma de diálogos ou mesmo quando os autores
O espaço cênico não convencional como elemento dramatúrgico: não consideram certas especificidades em suas escritas, a percepção do
a historicidade do lugar teatral espectador passa a impregnar-se de valores acerca do edifício público.
(REBOUÇAS, 2009, p. 174-175)
No final da citação transcrita acima, a alusão, em discurso rap, ao mundo como
Em busca da alteração de percepção, ao escolher uma ala desativada do Hospital
uma prisão com diversas celas à imagem e semelhança dos cubículos da casa dos
Psiquiátrico São Pedro como lugar teatral, o grupo Caixa-Preta incorpora, desta
loucos, escolhida como lugar teatral, desencadeia um processo de associação na
maneira, a multiplicidade de significados e significantes desta instituição na cons-
mente que altera a percepção dos espectadores. Trata-se da sobreposição e fusão de
trução da linguagem cênica. Essa mudança de foco pode ser associada à crise da
diversas especificidades que trazem a baila os elementos simbólicos implícitos no
situação de privilégio do texto dramático sobre o espetáculo, uma querela que surgiu
local: o hospital psiquiátrico é um marco arquitetônico que evoca, no imaginário
a partir dos questionamentos das vanguardas históricas no início do século XX.
cultural das pessoas, um passado que agrega uma série de significados negativos
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A exploração da estética do espaço, do Grupo Caixa-Preta, certamente levou OLIVEIRA, Jessé. Os múltiplos espaços da ação – um olhar sobre o lugar no tea-
em conta a energia e a historicidade do espaço que traz em seu bojo a presença do tro contemporâneo. Revista Artesesc, nº 3, 2008, p. 22-24.
sofrimento dos que ali permaneceram encarcerados, evocando lembranças que se
encontram enraizadas na memória coletiva. Nesse sentido, as pessoas que assistem PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento das culturas. Trad. Nanci Fernandes.
ao espetáculo são sensibilizadas por interferências de outros elementos, diferentes São Paulo: Perspectiva, 2008.
daqueles relativos ao texto e à encenação, em virtude, não apenas da carga semântica
do espaço, mas também pela proximidade física decorrente da não separação entre REBOUÇAS, Evill. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional.
palco e plateia. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

Conclusão UBERSFELD, Anne. A representação dos clássicos: reescritura ou museu? Trad.


Fátima Saadi. In: Folhetim, nº 13, abr./jun. 2002, p. 08-37.
O ato de apropriação do Hospital Psiquiátrico São Pedro como espaço cênico
constitui-se em um arrojado posicionamento ideológico que se fundamenta na his-
toricidade do espaço e interfere na dramaturgia e realização do espetáculo teatral.
Ao eleger a casa dos loucos para situar o jogo de vida e morte do justiceiro-vingador
Hamlet/Xangô – que ora ostenta e ora esconde a máscara da loucura –, o grupo
Caixa-Preto objetivou realizar um diálogo entre a historicidade do prédio e a reali-
zação cênica. A carga semântica do prédio dialoga com os conteúdos temáticos do
texto traduzido, evocando todo um passado de opressão sofrido pelos africanos e
afro-descendentes no Brasil que redimensiona o assunto abordado na peça.

Referências bibliográficas

BURKE. Peter. Hibridismo cultural. Trad. Leila Souza Mendes. São Leopoldo,
RS: Editora Unisinos, 2006.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos tra-


duzidos do francês por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho.
Cadernos do Departamento de Letras Vernáculas. Belo Horizonte: UFMG/
Faculdade de Letras, 2005.

GRUPO CAIXA-PRETA. Hamlet sincrético. Criação coletiva a partir da obra


Hamlet de William Shakespeare. Porto Alegre, 2005. (Texto inédito em mídia
eletrônica).

_____. Hamlet sincrético. Criação coletiva a partir da obra Hamlet de William


Shakespeare. Porto Alegre, 2005. (Registro do espetáculo em DVD).

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de


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MAROWITZ, Charles. Recycling Shakespeare. Lindo: Macmillan, 1991.


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A barca de ouro: desejo e morte na


tragédia popular de Hermilo Borba Filho

Augusto Rodrigues da Silva Junior1*

RESUMO: Este trabalho analisa A Barca de Ouro, de Hermilo Borba Filho [TEP,
1949]. O tema geral: morte de pescadores – seduzidos pela “Moça Loura”. O mo-
tivo trágico: o incesto. Uma família deseja e disputa a mesma mulher. Pai, filho e
filha habitam esta tragédia popular que articula elementos da tragédia grega com
o imaginário do cancioneiro popular nordestino. Coros de pescadores, donzelas e
viúvas representam uma comunidade de ilhéus e certa dinâmica dramatúrgica/míti-
ca encadeia as ações. Enfim, a palavra encenada permite avaliar situações históricas
e estéticas brasileiras, bem como uma questão universal: as contradições humanas
nascidas de tabus e desejos.
PALAVRAS-CHAVE: Borba Filho, tragédia popular, Dramaturgia.

ABSTRACT: This work is an analysis of the play A Barca de Ouro, from Hermilo
Borba Filho [TEP, 1949]. The general subject: Fishermen’s death – seduced by the
phantastic blond girl. The tragic reason: the incest. A family wants and fight for the
same woman. Father, son and daughter are part of this popular tragedy that articulates
elements of the tradicional Greek tragedy with the oral poetries northeastern popular
imaginary. Choruses of fishermen, ladies and widows represent a community of
islanders and certain theatrical/mythical environment that link the story actions.
Finally, the staged word allows to value Brazilian historical and esthetic situation as
well as a typical universal question: the real human contradictions: taboo and wishes.
KEYWORDS: Borba Filho, popular tragedy, dramaturgy.

RÉSUMÉ : Ce travail est une analyse du jeu A Barca de Ouro, de Hermilo Borba
Filho [TEP, 1949]. Le sujet général : la mort de pêcheurs – séduit par la floklorique
fille blonde. La raison tragique: l’inceste. Une famille veut et la lutte pour la même
femme. Le père, le fils et la fille sont partie de cette tragédie populaire qui articule des
éléments de la tragédie grecque avec l’imaginaire populaire du nordest (les poésies
orales). Les choeurs de pêcheurs, dames et veuves représentent une communauté
d’insulaires et d’un certain environnement dramaturgique/mythique qui relient
les actions d’histoire. Finalement, le mot organisé permet d’évaluer la situation
historique et esthétique brésilienne aussi bien qu’une question universelle typique:
les contradictions humaines réelles: tabou et voeux.
MOTS CLÉS: Borba Filho, tragédie populaire, dramaturgie.

1 Professor Adjunto de Literatura Brasileira, Universidade de Brasília/UnB.


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Hermilo Borba Filho foi um homem atuante. No sentido mais amplo do termo, populares no Século XX e seus livros de história do teatro, do espetáculo e até uma
pode-se dizer que atuou nas diversas áreas do conhecimento e que fez da atua- biografia-crítica de Henry Miller comprovam isso. Aproximou-se da tragédia clás-
ção a sua vida e a sua obra. O escritor e dramaturgo pernambucano percorreu o sica e do drama moderno europeu e optou por um jogo entre o realismo e a fantasia
seu tempo como agitador e promotor ativo da cultura teatral e popular nos palcos (deixando até mesmo sua prosa ser alimentada pela dramaturgia – como na sua
e no mundo. Participou de vários grupos, montou espetáculos, deambulou pelo novela Os ambulantes de Deus, cujo tema da Barca da Morte será retomado [1978].
Nordeste, fomentou cenas e fez pesquisas nos mais diversos campos da arte: danças,
mamulengos, bumba-meu-boi, cordel, dentre outros. Tudo isso refletiu nos livros No seu caminho estético há sempre uma voz dramatúrgica que deseja repre-
que deixou para a posteridade. Suas obras tiveram certa repercussão nacional e ren- sentar o cotidiano sem nunca perder de vista o elemento poético da voz. O caráter
deram, ao combatente escritor, a alcunha de maldito, visto que “fazia subversão”. trágico concentra-se, por vezes, em elementos engajados que denunciam a condição
Suas montagens e pesquisas “etnográficas” fizeram dele uma figura importante do indivíduo. Porém, isso não impede que a fantasia apareça em sua obra dando
entre as décadas de 40 à 70 e seus discursos ainda ecoam na história da dramaturgia um colorido universal aos elementos aparentemente locais. O folclore é o mito e a
brasileira. desmedida reside nas próprias contradições humanas. Ao recuperar o coro, Borba
Filho aproxima a tragédia Ática da dramaturgia do século XX – que ele estudou,
Neste sentido é possível afirmar que Hermilo faz parte de uma longa tradição traduziu e tantas vezes montou.
de escritores que sempre optaram por fazer da literatura uma missão. No século
XIX Macedo e Alencar foram precursores de uma literatura como projeto e aturam A base deste Teatro Popular é sempre uma referência aristotélica. Mas os perso-
nos campos mais diversificados da pesquisa e produção literária que abarcava vários nagens “imitados” não são seres superiores, são pessoas comuns. Há também jogos
gêneros literários. Outros referenciais no Século XX seriam Oswald de Andrade, que envolvem genealogias, variações de maldições de família, grandes vinganças,
Ariano Suassuna e Vinícius de Moraes. No entanto, o maior paradigma é Mário relações incestuosas e amores fatais, exatamente como ocorria nas encenações gre-
de Andrade – figura que empresta a ideia de literatura como missão: “Não tenho a gas. Mas Borba Filho apropria-se destes males que afligem os seres “mitológicos”
mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a como destinos de todo e qualquer indivíduo e os transporta para o cotidiano. Seja
problemas do meu tempo e minha terra” (ANDRADE, 1943, p.252). Sendo assim, em ambiente circense como acontece em Electra no Circo [1944], seja no confronte
a aproximação entre literatura e cultura, a ligação entre a história e a representação entre campesinos e usineiros, como em João sem Terra [1947] ou ainda, com os
teatral e, principalmente, a posição que o popular pode alcançar na luta do seu trabalhadores do mar de A Barca da Morte, ocorre a representação de fatos comuns
tempo, definem o universalismo e o destino humano em A Barca de Ouro – peça (passionais, no sentido da Poética de Aristóteles) que afligem pessoas simples de um
de 1949, editada pelo Teatro do Estudante de Pernambuco em 1952 e que será o universo cosmicamente simples.
tema central deste artigo.
Sua tragédia popular transforma os elementos trágicos em eventos cotidianos
As obras de Hermilo, de modo geral, projetaram elementos que penetravam e fados assolam os indivíduos justamente por não controlarem seus desejos, por
a sua realidade contemporânea, mas que sempre se mediram por outra escala – a viverem reféns de um destino opressor, por vezes, violento e imutável. Assim sendo,
literária. Ele retratou a cisão entre sociedade e indivíduo, a solidão no século XX e suas peças permitem sempre uma dupla leitura: a) um plano dialético, cuja repre-
a aparente perda da crença na totalidade da vida enquanto tragédia social e pessoal. sentação realista de um Nordeste de sofrimento e luta diária são retratados dentro
Mas as questões simbólicas ampliam-se em um outro plano, ou seja, o universa- de uma perspectiva que denuncia e mobiliza forças sociais, agregando, inclusive,
lismo do destino humano, na sua dramaturgia, articula dramas sociais e erige uma marcas de um discurso em tom de denúncia; b) um plano simbólico, cuja represen-
obra para o povo, onde o povo é o principal personagem: tação movimenta crenças e narrativas populares que ampliam o entendimento de
determinadas comunidades e, ainda, permitem retratar mitos folclóricos e a cultura
DONA: Ouve como cantam, tio? Não, você não ouve. As donzelas popular e sua teatralidade no contexto teatral.
acreditam no amor e cantam alegres. Os pescadores vivem esperando
a morte, estão tristes. E o pai, lá no meio deles. Agourando. Ah, eu Ao cultivar o discurso popular, Hermilo movimenta em suas obras, o cordel,
queria chorar antes, esgotar as lágrimas, pra sorrir mais tarde! (BORBA estilizações de oralidade e detalhes do processo produtivo, realizando uma dramatur-
FILHO, 1952, p. 354). gia diferente daquela produzida no Sudeste, sempre mais difundida. Sua produção
agrega elementos típicos de uma realidade bem definida e institui uma representa-
Como no exemplo, desde seus primeiros trabalhos, ainda no TEP, o escritor tividade que se liga à literatura brasileira como um todo, sem nunca perder de vista
articula a dramaturgia como reflexão cultural e a arte popular do nordeste com a o tablado de onde – espaço de fala e cena:
história ocidental do teatro. Como profundo conhecedor do drama e dos gêneros
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Sua pesquisa estética que, ao aproximar do popular nordestino, tocava Na apresentação das figuras constitutivas da peça este tom pode ser melhor
outras concepções de estética e alimentava todo um pensamento que enxergado.
aparecia no seu trabalho como encenador e, claro, como dramaturgo,
na medida em que tais elementos de encenação começam a compa- No plano social e trágico: os Coros dos Pescadores, das Donzelas e das Viúvas;
recer de modo bastante determinante e íntegro em sua dramaturgia
(MACIEL, p. 102. In: GOMES, 2010). No plano cotidiano-familiar e dramático: Anselmo (o marido); O Pai (sem
nome!); Corina (irmã de Anselmo, cujo nome se liga aos coros, algo como uma
Enfim, Hermilo destacou-se pela sua postura atuante na articulação da cultura variante de um “Coriféia”); Dona (a esposa de Anselmo e desencadeadora do pathos
em Pernambuco e os elementos determinantes de sua dramaturgia aparecem nos – paixão doentia de todos por ela).
campos teatrais, prosaicos e no trabalho engajado a favor do artista e do povo.
Hermilo distinguiu-se das demais representações nos últimos sessenta anos pela No plano simbólico (mítico): A Moça Loura. Complementando este quadro
capacidade de articular paradigmas do projeto modernista, somando-se a isso, ele- ligado ao imaginário consideramos ainda, o Corpo-do-Avô-Morto (no 1º ato) e
mentos do imaginário nordestino e fomentando uma tradição localizada, mas nem o Mar (em certo momento, personificado) e o Tio Mudo, personagem silenciosa-
por isso menos atuante, como os exemplos contemporâneos de Lurdes Ramalho e mente significativo. Na memória dos agentes desta trama residem dois defuntos: a
Ariano Suassuna. Mãe (“matada” pelo Pai, aos moldes da violência sertaneja de Paulo Honório de São
Bernardo) e Zé Pinga, assassinado por Anselmo em duelo por Dona.
Tudo sempre funcionando numa estrutura simbólica de forma analítica do
cânone nacional e ocidental enforma aquilo que vimos chamando de tragédia popu- No contexto cotidiano, pode-se dizer realista, o cenário é uma ilha de pescadores
lar na sua dramaturgia. Seus temas são atuais e seus escritos ainda têm muito a dizer cuja sina é perder os homens para o mar. O enredo concentra-se na família agregada
– sejam eles impressos ou representados. Neste sentido, pode-se dizer que esta aná- de Anselmo e na atração de todos por Dona. Pai, Filho e Filha compartilham um
lise d’A Barca de Ouro faz parte de um projeto de leitura exógena (dialogando com tabu: querem a mesma pessoa e travam, de forma violenta, uma disputa interna
Diógenes Maciel) que pretende difundir esse teatro, de certa forma, desconhecido (literalmente, dentro de casa) pelo corpo e coração da mulher que todos desejam.
pela crítica nacional, dialogando assim, com um capítulo da historiografia literária
brasileira. Entendendo o tabu como certa proibição ligada à organização social e exten-
siva a certas crenças, e que sua violação certamente será punida (FREUD, p. 31),
Na epígrafe, que abre o texto impresso prenúncios de sua marca: “Vejo uma pode-se dizer que este desafio do incesto “trágico”, por parte dos personagens é,
barca de ouro/ nas ondas verdes do mar...” – Cancioneiro Popular (BORBA FILHO, neste primeiro plano, aquilo que os condenará.
1952, p. 273). Desde a abertura o leitor entra em contato com a fonte do título e do
tema da obra. Os dois versos e a indicação do cancioneiro anunciam o tom drama- À roda dessa trama tem-se o agravante de o Pai não ter morrido afogado e ter
túrgico do discurso. Ao mesmo tempo, aponta para a presença peculiar da cultura envelhecido ao lado de seus familiares, como é tradição, e o fato de Corina, negar-se
nordestina e a base literária calcada na cultura popular. Segundo Nelly Novaes a casar com homem, como era tradição entre as mulheres. Anselmo, por sua vez,
Coelho “[...] as epígrafes que sulcam toda a obra de Hermilo são um excelente farol acredita resistir ao Destino de não morrer enfeitiçado pela Moça Loura que vem
‘iluminador’ de sua intencionalidade básica e oculta” (1981, p. 22). Neste intróito na barca de ouro e leva os pescadores. Enquanto luta com o elemento mítico-fol-
estratégico, estão delineados os modos de angariar o leitor e as reflexões sobre a clórico, nem sonha com a rede fatal dentro de sua própria casa. A articulação entre
criação dramatúrgica, objetivando uma interação dialógica com outros discursos desejo e tabu (o incesto trágico) é o tema central que encadeia as ações. Ao longo
(populares) e seus destinatários hipotéticos. Ela antecipa réplicas e conjuga o cru- de três atos, a disputa acentua-se, e isto conduz ao esfacelamento da família – com
zamento de vozes trágicas e populares. Essa estratégia infiltra-se nos interstícios dos morte fatal de alguns personagens.
outros discursos e prevê sua inserção em um cânone diferenciado. Na posição de No plano da fantasia (mítico-popular), Borba Filho parte da imagem desta
abertura da obra, há sempre um olhar crítico e movente, desdobrado da visão desse “Moça Loura” que atrai os pescadores para as profundezas. Uma variante da Mãe
outro ampliado pelo “cancioneiro popular” com seus inúmeros valores articula- d’Água, esta sereia nordestina, enreda o Destino da família de pescadores (e for-
dos. Assim, a autoconsciência dramatúrgica faz desta epígrafe um microcosmo que nicadores). Por mais que Anselmo se esforce, ele cederá aos encantos da “mulher
revela o macrocosmo. Nela, encontramos pulsões e desejos, dimensões do trabalho salgada” – mantendo a tradição dos pescadores perdidos, literalmente, no mar. Sua
e da fantasia que, com suas especificidades, conduzem a humanidade à uma eterna entrega será, desta ótica, o fim da trama e esfacelamento do enredo. Ao longo da
barca de ouro. peça muitos serão os cadáveres e muitos serão os cultos aos mortos.
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Ainda nesta perspectiva da tragédia popular, todas as imagens da peça agregam entoam um canto tão sedutor quanto o da Moça Loura, mas sem a força das ondas
a duplicidade – realismo e fantasia. Os coros são bons exemplos disso: do mar – que balança e atrai o corpo de morar. Por outro lado, são a imagem femi-
nina que Corina nega, pois se submetem à condição casadoira e vivem à espera das
O Coro dos Pescadores representa trabalhadores do mar. Eles abrem a peça núpcias.
durante o velório do Avô-Morto (1º ato) e comentam o fato deste pescador (como
O Pai que fará parte da trama) ter fugido à regra, ou seja, de não ter morrido no O Coro das Viúvas constitui-se da força religiosa católica-nordestina, como um
mar. Bebem continuamente e conversam sobre o tempo e as marés prenunciando conjunto de carpideiras e poder emblemático, como nos coros esquilianos. Elas car-
o próximo ser naufragado. Ao longo dos atos eles cantam a condição de ilhéu, con- regam a ausência dos maridos, perdidos para o mar, angariados pela Moça Loura:
denados à pesca “eterna”. No plano mítico este coro representa uma predominante “[...] hirtas, impassíveis, apenas os lábios transmitindo as palavras das lamentações
masculina, cujo patriarcalismo impera, e suas vozes articulam a chegada iminente pelo homem que já viu a barca de ouro e vai partir (1952, p. 365). Centradas na
da sedutora Moça Loura – representação da morte como desejo fatal: condição dessa perda iminente, o discurso delas está prenhe de morte e ausência
total de desejo:
1º Pescador: Desceu a noite medonha...
Coro: Breve e veloz!
Coro: desceu
1ª Viúva: O tempo mau e traiçoeiro...!
1º Pescador: Um raio o peixe cegou... Coro: Mau e traiçoeiro!
Coro: Morte chegando 1ª Viúva: O tempo curto e tristonho...!
1º Pescador: Do mar subiu um lamento Coro: Curto e tristonho!
Coro: Morte chegando! 1ª Viúva: Homens louros e morenos...
Coro: Viagem bem Longa!
1º Pescador: Uma estrela cai nas águas... (1952, p. 326).
1ª Viúva: Deixando tristonhas...
Coro: Viagem bem longa!
Pensando na estilização dramatúrgica, Hermilo utiliza estas vozes para lançar 1ª Viúva: Mulheres viúvas.
um tom mais poético (no sentido do cancioneiro) para o texto. Ao mesmo tempo, Coro: Viagem bem longa!
enquanto na casa, os fatos tem sua sequência, estas vozes, de “fora” e próximas, 1ª Viúva: Do fundo do mar...
permitem, como no coro trágico Ático, que determinadas ações ocorram longe dos Coro: Viagem bem longa! (1952, p. 382).
olhos do expectador: por exemplo, enquanto o coro dos homens canta, Dona faz
carinhos em Corina; enquanto o coro das moças canta, Dona perde a virgindade Com seus andrajos pretos e lamentações, são anti-ninfas que prenunciam mais
com Anselmo; enquanto o coro das viúvas entoa a ladainha, Dona (viúva) desespe- uma viúva ao longo do terceiro ato. Por outro lado, entoam uma sabedoria antiga,
ra-se trancada no quarto... Os coros também aparecem entrecruzados: no segundo uma sapiência do feminino que sabe que tudo morre. Elas acompanham o esface-
ato, por exemplo, enquanto as donzelas celebram o desejo e o casamento, os homens lamento do casamento de Anselmo com Dona, e ampliam o desejo da morte do
bebem e entoam a iminência de morte logo após o matrimônio. filho – almejado pelo Pai.

O Coro das Donzelas, por sua vez, é formado por uma espécie de coro de bacan- A partir dos estudos de Raymond Willians sobre a Tragédia Moderna européia
tes – a sugestão é de Hermilo nas marcações dramatúrgicas (1952, p. 317). (no século XX) pode-se dizer que esta recuperação do coro, por parte de Hermilo,
ultrapassa “o estreitamento da dimensão do humano” (2002, p. 15), pois seu tea-
As moças solteiras da ilha cantam, bebem e dançam em cena. Eufóricas, quanto tro não se restringe à representação naturalista de tipos e à representação burguesa
ao casamento (2º ato) de Anselmo e Dona, elas esperam o próprio tempo de casar. de figuras entediadas. Buscando a voz do cancioneiro, seu coro amplia o caráter
Aos gritinhos e risinhos, correm pelas cenas e deixam transparecer a submissão às esquiliano e religioso desse conjunto cênico, embora reforce o elemento trágico de
leis da ilha: sujeitar-se ao matrimônio e, posteriormente, à espera do marido, sem- um motivo, concentrando toda a população em um único lugar (aos moldes de
pre rezando e desejando sua volta. São jovens mulheres que se curvam diante da Ésquilo). O problema do personagem principal envolve todo o lugarejo. Anselmo,
tradição sem cogitarem a possibilidade de mudança. tal como Édipo, enfrenta um problema que mobiliza todas as pessoas à sua volta e
seu Destino envolve toda a família.
No plano mítico, a presença delas reforça o feminino como imagem de desejo.
Na condição de ninfas e ninfetas, elas entram e saem do palco – correm pela casa, Porém, o caráter de discurso popular, na relação entre coro e personagem, ultra-
correm nas areias da praia. No auge da juventude, encenam a promessa de felici- passa a condição do herói como representante de um Estado ou de uma genealogia
dade, mesmo que momentânea, oferecida pelo laço com um homem. Leves e ébrias (de seres superiores). Uma desordem que agrega desigualdade, violência, privação,
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injustiça etc., permite a concentração no herói, mas diferentemente da tragédia dramaturgicamente, em diálogos, argumentos e marcações que levam ao ápice de
grega, a tragédia popular hermilliana não só concebe o indivíduo isolado que sofre tensão. Tensões, mais exatamente, que cercam o Destino dos envolvidos na trama.
com seu destino, mas amplia-se na relação entre coro e atores – numa arquitetônica Hermilo explora a proximidade do espectador com o personagem e o leva a acom-
da respondibilidade cujo foco é o homem do povo. Neste sentido, Borba Filho panhar a dor deste outro semelhante. Um mundo (aparentemente) harmônico e
constrói uma tensão que é técnica e dramatúrgica, pois “está enraizada numa expe- ideal esfacela-se diante do inexplicável e do incontrolável. Já não é o herói quem não
riência coletiva e compartilhada” (WILLIANS, 2002, p. 16). Com isto, por meio vê saída para seu Destino, mas o homem comum fadado ao sofrimento e à morte.
do mito (folclore) e a voz coletiva (da tradição) seu teatro extrai significados pro- Como diz o próprio dramaturgo em um texto teórico:
fundos das questões humanas regidas por um imaginário que se expande no palco
simbólico dos acontecimentos. [...] se, finalmente, o teatro representa do indivíduo o que há nele de
mais profundo e verdadeiro, o cenário tem que tornar presente um
O desfecho articula o popular e o trágico. Na casa, a irmã, a pedido do pai, já universo particular no qual se avistam as lutas de consciência. E porque
havia denunciado o irmão à polícia que chegava para buscá-lo. Anselmo, o marido, a vontade humana ambiciona construir o seu ideal, reveste-se do poder
determinante das formas: a luz do horizonte plástico é o brandão do
por sua vez, não se contém diante da Moça Loura (Destino de todo pescador) e
espírito criador (BORBA FILHO, 1960, p. 174).
morre afogado. Dona, a esposa, joguete na mão dessa trama incestuosa rende-se
ao seu Destino. O diálogo final traz o diálogo de Anselmo com Moça da Barca de Esta tragédia popular de Hermilo Borba Filho articula as lutas de consciência,
Ouro, a expectativa do Pai e de Corina, o Coro das Viúvas figurando como voz tendo como “cenário” dialógico o tablado. A partir disso, constrói um teatro de
trágica que dialoga indiretamente com toda a cena e com Dona: ideias com o recurso do sangue tragicamente derramado. Assim, A Barca de Ouro
articula o sagrado das tragédias Áticas e o destino humano, falível e mundano,
1ª Viúva: Já morreu, já se acabou...
Coro: Adeus, para sempre adeus! curva-se diante dos tabus, dos desejos e, consequentemente, da morte.
1ª Viúva: Corpo Boiando nas águas...
[...]
Coro: Adeus, para sempre adeus! Referências bibliográficas
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Coro: Adeus, para sempre adeus! ANDRADE, MÁRIO DE. O movimento modernista. In: __. Aspectos da litera-
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Coro: Adeus, para sempre adeus!
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(Faz-se uma pausa e do quarto vem o grito de Dona)
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Dona (De dentro do quarto): Adeus, para nunca mais!
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BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o con-
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popular o mito aparece não tão somente com sua força histórica, mas com sua força
______. A Barca de Ouro [1949]. In: Teatro. Recife: Edições TEP, 1952.
cotidiana – o passado longínquo da tradição (de pescadores, atores circenses etc.)
presentifica-se na opção dramatúrgica que faz a fusão entre o trágico clássico e o
______. (Org.). Teoria e prática do Teatro. São Paulo: Ed. Íris, 1960.
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O problema do homem não é feito apenas de enigmas, mas de sua sobrevivên- ______. História do espetáculo. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1968.
cia como resposta. O herói trágico-popular também está preso à rígida unidade de
______. Os ambulantes de Deus: novela. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
lugar, ação e tempo. Mas a interioridade dos personagens, por sua vez, estende-se
1976.
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Through a thematic-structural game, the director explores the fragile separation
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KEY-WORDS: Midsummer Night’s Dreams; Dead Poets Society; Intertextuality;
Tragedy; Comedy.

RESUMEN: La inserción de la representación del Sueño de una noche de verano

1 * Universidade Federal do Paraná (UFPR).


2 “I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life, and see
if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I had not lived. /…/ I
wanted to live deep and suck out the marrow of life, to live so sturdily and Spartan-like as to put to rout
all that was not life.” (FAWCETT, p.85) Todas as traduções que estão inseridas no artigo foram realizadas
pela autora da presente pesquisa.
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en la película Sociedad de los poetas muertos (1989), dirigido por Peter Weir, O filme Sociedade dos poetas mortos pode ser interpretado como uma metáfora
establece un diálogo intertextual con la comedia shakespeariana. Los jóvenes rebeldes da tenacidade do espírito humano que não pode ser controlado face à opressão. O
de la Universidad de Welton encuentran en Sociedad de los Poetas Muertos el filme examina a evolução emocional de um grupo de estudantes na prestigiosa e
mismo estímulo y liberación de sus emociones sentidos por los cuatro amantes de bastante respeitada Academia de Welton em Vermont que era conhecida por seu
la pieza shakespeariana: éstos consiguen superar las intransigencias sociales mientras regulamento severo e extremamente inflexível, baseado nos quatro sustentáculos do
que en la película, el personaje Neil Perry se suicida cuando se da cuenta que su programa pedagógico – tradição, honra, disciplina e excelência. Na verdade, esses
sueño de seguir con la carrera artística será interrumpido por su padre. A través estudantes eram controlados pelos desejos de seus pais que ambicionavam, para seus
de una trama temática-estructural, el director explota la débil separación existente filhos, carreiras proeminentes como Direito, Medicina, Engenharia e Administração
entre la comedia y la tragedia. tendo em vista a preservação e o enaltecimento do nome da família. Este era uma
PALABRAS-LLAVE: Sueño de una noche de verano; Sociedad de los poetas espécie de um acordo silencioso − implícito e inquestionável − entre pais e filhos.
muertos; Intertextualidad; Tragedia; Comedia. Entretanto, quando John Keating (Robin Williams), um professor de literatura
nada convencional, chega na instituição e tenta reverter o processo usual e já ultra-
passado de aprendizagem ao incutir na cabeça de seus alunos que o pensamento
próprio e livre é vital nas suas vidas, produz um efeito profundo nos seus alunos.
Para que seus alunos percebam que eles podem e devem enxergar o mundo sob um
ângulo diferente a partir de seus próprios pontos-de-vista, Keating instiga-os a fica-
rem de pé em suas carteiras e desafia o pensamento convencional ao introduzir em
suas aulas poetas e filósofos favoráveis às idéias liberais tais como Walt Whitman,
Robert Herrick, Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau, dentre outros.

Muitos críticos consideram que Sociedade dos poetas mortos seja um dos filmes
clássicos sobre poesia uma vez que vários trechos de poesia são lidos e discutidos
generosamente durante todo o filme, além de se tornarem uma importante referên-
cia temática do mesmo. O roteirista Tom Schulman incorporou não apenas essas
associações intertextuais, como também um outro hipotexto, a comédia shakes-
peariana Sonho de uma noite de verão que se torna central no filme. Apesar das
similaridades entre esta peça e o filme serem evidentes, as várias correspondências
intermidiáticas tornam-se flagrantes apenas a partir da representação da peça no
final do filme. Essa alusão shakespeariana tem o poder de atualizar a peça para o
novo contexto que está sendo apresentado no filme. É compreensível que grande
parte dos espectadores não compreenda, de uma forma plena, as aproximações
temáticas e estruturais entre a peça e o filme uma vez que essas associações exigem,
por um lado, um conhecimento razoável da própria peça e, por outro, uma cons-
ciência intertextual apurada por parte dos espectadores. Pode-se, portanto, inferir
a partir desses comentários iniciais que Sociedade dos Poetas Mortos é um hipertexto
que incorpora através das citações dos poetas e filósofos e da alusão shakespeariana
vários hipotextos que acabam por fazer parte de sua constituição.

A partir da análise das cenas iniciais do filme Sociedade dos Poetas Mortos já é
possível estabelecer alguns parâmetros temáticos que irão nortear a presente pes-
quisa. No seu primeiro encontro com os alunos na Academia de Welton, Keating
demonstra que ele não está lá apenas para transmitir informação acadêmica mas,
sobretudo, para fazer com que seus alunos saibam como aplicar esse conhecimento
em suas vidas. Depois de introduzir os famosos versos do poema Às virgens, para
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aproveitarem o tempo, escrito por Robert Herrick, “Colham enquanto podem seus Nós não lemos e escrevemos poesia porque é bonito. Nós lemos e
botões de rosa, // A velhice vem voando: // E esta flor hoje viçosa, // Amanhã estará escrevemos poesia porque nós somos membros da raça humana. E a
raça humana está cheia de paixão. Medicina, Direito, Administração,
murchando”,3 Keating pergunta aos seus alunos,
Engenharia, estas são nobres e necessárias para sustentar a vida. Mas
poesia, romance, amor, estas são necessárias para manter a vida. /.../
Por que um poeta escreve estas linhas? Porque nós somos comida
Sem a poesia nós estamos condenados.5
para os vermes, rapazes! Porque nós iremos experimentar apenas um
limitado número de primaveras, verões, e outonos. Um dia, é difícil
acreditar, mas cada um de nós irá parar de respirar e morrer! Carpe Os estudantes descobrem que quando Keating tinha sido um aluno em Welton,
Diem, lads! Seize the day! Aproveitem o dia, rapazes! Tornem suas vidas ele fazia parte de uma misteriosa Sociedade dos Poetas Mortos. Ao perguntarem sobre
extraordinárias!4 o que aquela sociedade representava, Keating explica que

Em seguida, Keating pede para que seus alunos olhem as fotografias dos antigos A Sociedade dos Poetas Mortos era dedicada a sugar a essência da vida.
estudantes da Academia de Welton que estavam decorando o saguão onde eles esta- Esta frase é de Thoreau e era invocada a cada reunião. Um pequeno
grupo de alunos encontrava-se numa caverna e lá nós líamos Shelley,
vam tendo a primeira aula e menciona que também havia muita esperança nos olhos
Thoreau, Whitman, nossos próprios versos − um grande número de
deles e que eles também acreditavam que estavam destinados a grandes realizações
poetas − e, no encantamento do momento, deixávamos a sua magia
como muitos dos estudantes naquele exato momento. Mas, o que havia acontecido agir sobre nós. /.../ E, acreditem-me, nós não simplesmente líamos os
com os seus sorrisos? Provavelmente, na busca da divindade onipotente do sucesso, seus versos. Nós deixávamos eles tocarem os nossos lábios como se fos-
os antigos alunos haviam se esquecido de seus sonhos da juventude. Keating com- sem mel.6
plementa os seus comentários afirmando que a maioria daqueles cavalheiros estavam
agora fertilizando narcisos silvestres e pede para que seus alunos cheguem mais perto Os alunos, liderados por Neil Perry (Robert Sean Leonard), concordam em
das fotografias para escutarem o sussurro dos antigos estudantes: “Carpe diem, lads! ressuscitar a Sociedade dos Poetas Mortos e, embora eles soubessem que a atual
Seize the day!” (“Aproveitem o dia! Tornem suas vidas extraordinárias!”). As palavras diretoria administrativa não seria favorável a essa iniciativa, eles re-descobrem a
de Keating produziram um forte efeito nos sentimentos dos jovens estudantes e caverna na floresta e começam a se encontrar frequentemente nesse local. Durante
Carpe diem tornou-se uma firme referência nas suas reflexões e atividades. as reuniões eles lêem poesia, discutem as diversas atividades que estão realizando,
combinam olhadelas nas revistas de Playboy com textos clássicos, e ainda plane-
Grande parte dos alunos em Welton pertence a famílias ricas que presumem que jam trazer algumas meninas da cidade próxima. No decorrer do filme nós vamos,
seus filhos seguirão as carreiras de seus pais. Esses pressupostos eram integralmente gradualmente, percebendo as transformações que vão acontecendo para o grupo
apoiados pela instituição através da imposição de regras rígidas que não permi- de estudantes que estão no centro do enredo. As idéias liberais de Keating e a sua
tiam que os jovens estudantes se afastassem das metas estipuladas por seus pais. insistência na atitude corajosa de seus estudantes para aproveitarem as oportuni-
Considerando todas essas circunstâncias, uma disciplina como literatura inglesa e dades (Carpe Diem! Seize the day!) e confiarem em si próprios como indivíduos,
americana era julgada secundária entre os estudos acadêmicos, alguma coisa para além da experiência enriquecedora na Sociedade dos Poetas Mortos, causa uma
ser aprendida com o mesmo espírito que os estudantes aprendem boas maneiras e, mudança profunda no sentimento, pensamento e comportamento dos estudantes.
talvez, uma língua estrangeira. Os alunos eram encorajados a dedicar o seu tempo Neil Perry, por exemplo, que é um estudante e sonha em tornar-se um ator, decide
e esforços para disciplinas mais sérias e importantes como matemática e química. aceitar, como uma atividade extra-curricular, o papel de Puck na comédia shakes-
Keating tenta enfraquecer esse conceito já amplamente alastrado em Welton e pro- peariana Um Sonho de uma Noite de Verão, apesar das objeções de seu pai para uma
cura convencer os alunos que, de fato, a poesia ocupa uma posição central de uma carreira como esta. O seu pai autoritário e arrogante não tolera qualquer desvio
vida equilibrada e harmoniosa:
5 “We don’t read and write poetry because it’s cute. We read and write poetry because we are members of the
human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are
3 “Gather the rosebuds while ye may, // Old time is still a-flying // And this same flower that smiles today, noble and necessary to sustain life. But poetry, romance, love, these are what we stay alive for. /…/ Poetry
// To-morrow will be dying.” is rupture, lads. Without it we are doomed.”
4 “Why does the poet write these lines? Because we are food for worms, lads! Because we’re only going to 6 “The Dead Poets Society was dedicated to sucking the marrow out of life. That phrase is by Thoreau and
experience a limited number of springs, summers, and falls. One day, hard as it is to believe, each and every was invoked at every meeting. A small group of us would meet at a cave and there we would take turns
one of us is going to stop breathing, turn cold, and die! Carpe Diem, lads! Seize the day! Make your lives reading Shelly, Thoreau, Whitman, our own verse − any number of poets − and, in the enchantment of
extraordinary!” Todas as citações, com exceção dos poemas ou pensamentos filosóficos, foram retiradas the moment, let them work their magic on us. /…/ And, believe me, we did not simply read. We let it drip
diretamente do filme através de transcrições parciais na Internet. from our tongues like honey.”
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dos planos profissionais que ele já havia traçado para o seu filho. Todd Anderson TESEU:
(Ethan Hawke), companheiro de quarto de Neil, vence a sua timidez e isolamento Hérmia, você precisa preparar-se
Pra submeter seus sonhos a seu pai;
social ao permitir que seus sentimentos e idéias sejam expressos. Know Overstreet
Senão a lei de Atenas a entrega
(Josh Charles) sente-se confiante ao declarar o seu amor para a Chris (Alexandra
(E não podemos nunca atenuá-la)
Powers), apesar de estar consciente de que as probabilidades estivessem contra ele. À morte ou ao voto de celibatária. (I, i)
Steve Meeks (Allelon Ruggiero) é um intelectual que aprende a usar o seu coração (SHAKESPEARE, 1991, p.49)7
tão bem quanto a sua cabeça. Charles Dalton (Gale Hansen), filho de um ban-
queiro, alegre e confiante, descobre o poder inspirador de uma poesia e o ambicioso Entretanto, é no mundo encantado e enluarado da floresta que, de acordo com
Richard Cameron (Dylan Kussman), o personagem bad guy do grupo, que acredita Norrie Epstein, as diferenciações tradicionais tornam-se embaçadas e desaparecem.
na autoridade e disciplina. Quando os amantes abandonam o mundo da luz do dia, tal como é representado
pela Atenas civilizada, e entram no mundo mágico da noite, eles penetram numa
É possível, a partir dessas colocações iniciais, estabelecer um importante foco paisagem mental, no reino oculto do subconsciente, um mundo alarmante de trans-
temático que será determinante para a compreensão do desdobramento estrutu- formações e de revelações. Exatamente como a loucura, a poesia e os sonhos têm a
ral do filme que está espelhado na comédia shakespeariana Sonho de uma Noite sua própria lógica fantástica e revelam uma visão verdadeira da vida, porém ainda
de Verão. O filme alinha em campos antagônicos, representantes que defendem não completamente definida, da mesma forma, as florestas escuras, tal como pode
posicionamentos, princípios pedagógicos e atitudes opostas em relação ao sistema ser constatado nos incontáveis mitos e contos de fada, expõem o reverso da civili-
acadêmico da instituição e aos valores que norteiam a visão de mundo dos perso- zação e revelam a tênue fronteira que distingue razão e loucura, a luxúria e amor
nagens: em um dos extremos podem ser agrupados o Sr. Nolan (Norman Lloyd), (EPSTEIN, 1993, p.111).
diretor de Welton, defensor da tradição e da disciplina, e o Sr. Perry (Kurtwood
Smith), o pai autoritário e inflexível de Neil; no outro extremo, o Sr. Keating, o mundo da floresta tem afinidades com o que chamamos de parte
professor e defensor da liberdade de pensamento de seus alunos e os próprios estu- inconsciente ou subconsciente da mente, uma parte subjacente ao
dantes, dando-se uma evidência especial para Neil Perry que assumiu uma atitude encontro da razão com a realidade objetiva, e mesmo assim ligada aos
extremada de não-conformismo às imposições paternas. Esses posicionamentos poderes ocultos e criativos da mente. Se ficar a cargo de Puck ou de
Titânia, é um mundo de ilusão, de desejos aleatórios e de identidades
diferenciados e conflitantes podem ser agrupados como um conjunto de diretrizes
mutatórias. Com Oberon no poder, torna-se o mundo no qual se fazem
que irão caracterizar os dois núcleos em questão: autoridade, disciplina, imposição sérias escolhas que decidem o curso da vida. (FRYE, 1992, p. 66).
de regras, sucesso incondicional, ordem, razão, estudos acadêmicos, por um lado,
e individualismo, não conformismo, liberdade de pensamento, intuição e sonhos, No último ato da peça (V, i), Teseu que é o mais racional dos personagens em
sentimento e paixão, poesia, por outro. Sonho de uma Noite de Verão, demonstra ter uma compreensão cautelosa do que os
pares de amantes lhe expõem, entretanto, ele esclarece que o mundo da floresta é o
Esse choque entre os dois conjuntos de valores é um dos aspectos que estabelece
mundo do poeta, lunático e amante:
uma aproximação temática com Sonho de uma Noite de Verão. A peça shakespe-
ariana, como em um sonho, apresenta uma mistura surpreendente de elementos TESEU:
disparatados: personagens simples e realistas são colocados dentro de um enredo “eu nunca fui
fantástico, quase surrealista, os níveis sociais mais baixos misturam-se com os mais De crer em fadas ou em fantasias.
altos, uma linguagem corriqueira e trivial é pronunciada junto com versos poéticos, Loucos e amantes têm mentes que fervem
os mundos humano, sobrenatural e bestial mesclam-se (EPSTEIN,1993, p.110). Mais que a razão é capaz de apreender.
O poeta, o lunático e o amante
Entretanto, exatamente da mesma forma como ocorre na Sociedade dos Poetas
São todos feitos de imaginação;” (V. I., p.119)
Mortos, há vários indícios na comédia shakespeariana que poderiam ter desencade-
ado um enredo trágico: a ordem, a razão, a inflexibilidade também prevalecem na
A ordem e a razão prevalecem em Atenas (Teseu e Egeu) enquanto que na
Atenas de Teseu quando o duque, em solidariedade a Egeu, pai de Hérmia, impõe
floresta encantada o amor e a fantasia estão no seu auge. Bobina que é o menos
a realização do casamento de Hérmia com Demétrio apesar dos sentimentos dela
perspicaz dos personagens, professa uma verdade que sintetiza a temática da peça:
apontarem para uma outra direção:

7 Todas as referências à comédia Sonho de uma Noite de Verão serão realizadas a partir da tradução por
Bárbara Heliodora (1991).
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“hoje em dia a razão e o amor não costumam andar muito juntos. É uma pena respeito de seus planos para Keating, seu professor aconselha-o a falar com o seu
que algum dia algum amigo não obrigue os dois a serem amigos” (III, i, p.83). pai para que ele pudesse conhecer o seu pensamento e sonhos. Entretanto, Neil
Obviamente, a mudança de afeição de Titânia não pode ser explicada racional- não ousa conversar com o Sr. Perry porque ele estava convicto que seu pai não o
mente. Percebe-se que Shakespeare, deliberadamente, realça certos contrastes entre entenderia. Além disso, ele está plenamente convencido de que ele não iria suportar
Atenas (razão e autoridade) e a floresta encantada (amor e emoções) para tornar o tolhimento de suas experiências enriquecedoras com a representação da peça. Ele,
evidente essa temática. Quando a ação se desloca para a floresta encantada, as leis inclusive, tinha numa ocasião falado com um sentimento veemente: “Ser ou não ser
ordinárias da natureza não se aplicam. De acordo com Northrop Frye, uma das − eis a questão”, o que indica, por um lado, a importância da carreira de ator para
últimas falas de Bobina na peça, “o muro que separava os dois caiu” (V.i, p.134), ele e, por outro lado, expressa o tênue limite entre a vida e a morte em momentos
é bastante intrigante. Aparentemente, ele está se referindo ao muro que dividia as decisivos da vida. Enquanto Neil estava envolvido nos ensaios do papel de Puck na
famílias de Tisbe e de Píramo embora também possa ser considerada uma referência peça shakespeariana, ele havia dito para o seu companheiro de quarto: “Deus, pela
ao muro que existia entre os mundos representados por Teseu e Oberon, o muro primeira vez em toda a minha vida eu me sinto plenamente vivo!”8
que Teseu acreditava estar consistentemente fixo (FRYE, 1992, p.69). O quadro
disposto a seguir ilustra, por um lado, os parâmetros antagônicos que estabelecem A representação da peça no final do filme desencadeia a tragédia final. Ao des-
a temática da comédia shakespeariana e, por outro, tornam evidente essa aproxima- cobrir o que havia acontecido, o Sr. Perry assiste ao seu filho representar, com
ção temática entre o filme Sociedade dos Poetas Mortos e a peça. grande sucesso, o papel de Puck em Sonho de uma Noite de Verão. Entretanto, ele
não esconde o seu furor quando leva o seu filho para casa e lhe conta que ele já
(Ilustração 1) estava matriculado na Escola Militar de Braden, objetivando a sua aceitação em
Harvard para tornar-se um médico. O Sr. Perry dá uma ênfase especial exatamente
para o fato que irá se tornar, no filme, uma ironia dramática: ele diz que ele não
será desencorajado de perseguir o melhor para a vida de Neil mas, infelizmente, ele
não percebe que o melhor para seu filho era dar a ele o seu consentimento e enco-
rajamento para que ele pudesse escutar e seguir a sua própria voz interior. Sob uma
tremenda pressão, Neil toma a sua decisão e comete o suicídio: viver ou morrer − eis
a questão!

Como já foi mencionado anteriormente, a representação da peça no final do


filme permite que várias associações e aproximações entre a peça e o filme possam
ser efetivadas. A ação de Sonho de uma Noite de Verão começa em um mundo repre-
sentado como um mundo normal, desloca-se para um mundo verde onde sofre
uma metamorfose e, no qual a resolução cômica é realizada e retorna para o mundo
real. Por sua vez, é bastante significativo que a sociedade secreta, conhecida como
Sociedade dos Poetas Mortos, onde os estudantes se encontram para ler e discutir
poesia, seja numa caverna na floresta. Este e vários outros pressupostos, alguns já
comentados num espaço anterior, possibilitam que se fale a respeito de um diálogo
intermidiático a partir de uma identidade estrutural entre a peça teatral e o filme
que estão dispostos de uma forma bastante simétrica tal como está disposto na ilus-
tração a seguir:

A mensagem emersoniana acerca da importância de nós obedecermos as nossas


intuições mais íntimas tornou-se ainda mais efetiva no caso de Neil Perry porque
ela sugere que ele desobedeça às diretrizes estabelecidas por seu pai e persiga aquilo
que ele mais apaixonadamente deseja para si − representar papel de Puck na peça
shakespeariana e, possivelmente, seguir a carreira de ator. Quando ele explica a
8 “God, for the first time in my life I feel completely alive!”
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(Ilustração 2) poderiam ter causado um final trágico como aconteceu com Romeu e Julieta uma
vez que há várias ressonâncias a este amor trágico dentro da peça. Entretanto, o
casal vence todos os obstáculos e o seu casamento, no retorno a Atenas, não só é
aceito por Teseu e Egeu, como é abençoado pelo rei e a rainha das fadas, Oberon
e Titânia. Apesar das implicações trágicas em toda a peça, todos os problemas são
resolvidos uma vez que se trata de uma comédia. Barbara Heliodora menciona,
contudo, que em Shakespeare “todas as comédias, até mesmo nas mais poéticas e
encantadoras, está presente, de um modo ou de outro, o lado mais sombrio da vida:
o mal, a tristeza, a própria morte, sempre tocam, com maior ou menor impacto, o
processo da comédia, tornando-a mais rica e complexa” (HELIODORA, 2004, p.
69).

A estrutura mítica de Sonho de uma Noite de Verão que prevê a partida dos
amantes, o enfrentamento das provas e o retorno a Atenas está também presente na
Sociedade dos Poetas Mortos. No filme, os jovens estudantes são inseridos na jornada
mitológica ao receberem “o chamado da aventura”: eles são convocados por Keating
e são transferidos da Academia de Welton para uma região desconhecida que, no
(Ilustração 3) caso específico, é a caverna onde as reuniões da Sociedade dos Poetas Mortos aconte-
cem e que exercem uma ação transformadora nos jovens estudantes. Em Sonho de
uma Noite de Verão, no retorno dos amantes para Atenas, acontece uma integração
entre os dois mundos, após a finalização do estágio no mundo verde encantado, o
que resulta num equilíbrio harmônico e numa resolução cômica. Na Sociedade dos
Poetas Mortos, apesar do aprendizado e da transformação dos jovens estudantes a
partir do deslocamento para a caverna na floresta, o desfecho é trágico, felizmente,
não absoluto. O retorno, que prevê a façanha transformadora daqueles que circun-
dam os que passaram pela experiência renovadora, não aconteceu efetivamente: não
houve a tão almejada integração dos dois mundos que, apesar de díspares perderam
a oportunidade de se harmonizarem, tal qual ocorreu na comédia shakespeariana
− o mundo acadêmico e o familiar permanecem intransponíveis, o que causa a tra-
gédia final.

Referências bibliográficas

Quando em Sonho de uma Noite de Verão nós escutamos as palavras de Lisandro, BRAMANN, J. The Educating Rita Workbook. 2004. (htttp://faculty.frost-
“Em tudo aquilo que até hoje eu li, // Ou em lendas e estórias que eu ouvi, // O burg.edu/phil/forum/DeadPoets.htm)
amor nunca trilhou caminhos fáceis: // Seja por desavença de famílias” (I. i., p.50),
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Cultrix / Pensamento,
percebe-se que ele está fazendo uma importante referência a muitas histórias de
2005.
amor que enfrentaram semelhantes dificuldades. Depois dessa pequena introdução,
o casal prossegue enumerando as dificuldades que os amantes, de maneira geral,
DINIZ, Thaís F. N. Literatura e cinema: da semiótica à tradução. Ouro Preto:
precisam enfrentar. Essa passagem é emblemática da situação na qual eles próprios
UFOP, 1999.
estão inseridos: a racionalidade do amor, a imposição da velha ordem, e a arrogân-
cia de Teseu e Egeu que desconsideram completamente os sentimentos e o amor EPSTEIN, Norrie. The Friendly Shakespeare: a thoroughly painless guide to
do casal. Quando a velha geração não aceita o casamento dos jovens amantes, eles the best of the bard. New York: Penguin Books, 1993.
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FAWCETT, J. B. (Org.) An American Reader. Rio de Janeiro: Agência de A Bárbara da Cólquida aportou no Brasil:
Corretagem de Livros e Revistas, s.d. a interculturalidade entre Gota D’água e Medéia
FRYE, N. Sobre Shakespeare. (Trad.) Simone Lopes de Mello. São Paulo:
EDUSP, 1992. (Criação & Crítica nº 9) Diógenes André Vieira Maciel1
Danielle Lima Ribeiro2
HELIODORA, B. Reflexões shakespearianas. (Org.) Célia Arns de Miranda e
Liana de Camargo Leão. Rio de Janeiro: Lacerda: 2004.
RESUMO: Trata-se da análise-interpretação da peça Gota D’água (1975), de Pau-
SHAKESPEARE, W. Sonho de uma Noite de Verão. (Trad.) Barbara Heliodora. lo Pontes e Chico Buarque, em suas relações com a tragédia grega Medéia, de Eu-
Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1991. rípedes, passando além dos liames comparativos, já tão discutidos entre essas obras,
para encontrar uma leitura a partir do que propõe Patrice Pavis (2008) – ou seja,
WEIR, Peter. (diretor) SCHULMAN, Tom. (roteirista) Sociedade dos Poetas como uma peça em que se cruzam culturas, mediante uma perspectiva intercultural
Mortos. 1989. verificável em elementos estético-culturais. Propõe-se, também, a discussão sobre o
processo de adaptação – todavia, aqui visto como aquele que não visa à fidelidade
de uma obra adaptante à adaptada, mas que sugere um dialogismo em prol do sur-
gimento de algo novo, estética e culturalmente.
PALAVRAS-CHAVE: Interculturalidade; Adaptação; Dialogismo.

ABSTRACT: This is an analysis-interpretation of the play Gota D’Água (1975)


by Paulo Pontes and Chico Buarque, in its relations with the euripidean tragedy
Medea, going beyond the bonds of comparison, so much discussed between these
works, to find a reading from the proposal of Patrice Pavis (2008) – in other words,
as a play in which cross cultures, through a verifiable intercultural perspective in
aesthetic-cultural elements. It is also proposed the discussion of the adaptation
process - however, it is seen here as one which does not aim the fidelity to an
adaptable work to the adapted, but suggests a dialogism in favor of the emergence
of something new, aesthetically and culturally.
KEYWORDS: Interculturality; Adaptation; Dialogism.

RESUMEN: Trátase de un análisis-interpretación de la pieza Gota D´água (1975),


de Paulo Pontes y Chico Buarque, en sus relaciones con la tragedia griega Medea,
de Eurípedes, superando los límites comparativos, muy discutidos en esas obras, en
la búsqueda por una lectura como la propuesta por Patrice Pavis (2008) – es decir,
como una pieza donde se cruzan las culturas, frente a una perspectiva intercultural
comprobada por elementos estético-culturales. Es propuesta, también, la discusión
sobre el proceso de adaptación – todavía, aquí visto como aquél que no prioriza la
fidelidad de una obra adaptadora a otra adaptable, pero que sugiere un dialogismo
del cual proviene algo nuevo, estética y culturalmente.
PALABRAS-LLAVE: Interculturalidad; Adaptación; Dialogismo.

1 Professor da Universidade Estadual da Paraíba/UEPB, atuando no Programa de Pós-Graduação em


Literatura e Interculturalidade/PPGLI.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade/PPGLI – UEPB.
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No prefácio à edição brasileira de seu livro, O teatro no cruzamento de culturas, sentido, procurar-se-á realizar, neste trabalho, uma análise-interpretação da peça
Patrice Pavis (2008) fala da convicção geral de que o fenômeno da uniformização Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque, em suas relações com a tragédia
das diversas práticas culturais teria como principal responsável a Globalização, o grega Medéia, de Eurípides, passando além dos liames comparativos já tão discuti-
que nos faz pensar na hipótese de que, algum dia, as culturas já foram puras e dos entre essas obras. É assim que buscaremos entender se Gota d’água pode ser lida
autênticas e que a uniformização apagou as diferenças. Se pensarmos em práticas à luz do que propõe Pavis – ou seja, como uma peça em que se cruzam culturas,
teatrais, notadamente aquelas contemporâneas, podemos afirmar que, no tocante mediante uma perspectiva intercultural verificável em elementos estético-culturais
ao cruzamento de culturas, o “modelo [analítico] da intertextualidade proveniente traduzidos no meio verbal, na caracterização de personagens e de espaços –, ou se
do estruturalismo e da semiologia, cede lugar ao da interculturalidade”, isto porque ela se insere, como a tradição crítica normalmente propõe, como um processo de
a mera descrição das relações entre os textos ou espetáculos ou, ainda, a compre- adaptação – todavia, aqui visto como aquele que não tem por fim a fidelidade de
ensão de seu funcionamento interno, tornam-se, na atualidade, insuficientes, uma uma obra adaptante à adaptada, mas que sugere um dialogismo em prol do surgi-
vez que a compreensão destas relações em diversos contextos e culturas, bem como mento de algo novo, estética e culturalmente.
a análise-interpretação da produção cultural resultante desses deslocamentos, faz-se
imprescindível, sobretudo para situar-se a dialética de trocas existente entre as cul- Linda Hutcheon (2006), teorizando em torno da adaptação, discorre sobre a influência dos contex-

turas, em processos nos quais podemos chamar uma de cultura-fonte e outra de tos – de produção ou de recepção – neste processo, afirmando que embora uma obra adaptada possa não

cultura-alvo (Cf. PAVIS, 2008). fazer qualquer tipo de alteração ou atualização em relação ao tempo ou à cultura, o seu contexto pode
alterar a maneira como o enredo é recebido, principalmente no que tange à sua (re)interpretação. Isto
O autor sugere, então, que este modelo intercultural de análise deva superar a porque uma adaptação está sempre relacionada a um contexto, ou seja, situada dentro de um determi-
semiologia descritiva e asséptica, o sociologismo, a antropologia e o modelo sociosse- nado tempo e lugar, sociedade e cultura. Desta feita, a autora afirma que a adaptação, como um produto,
miótico, que, através de um modelo de historicidade, procurava integrar as diversas possui um tipo de “tema e variação” ou uma repetição diferente em sua estrutura formal que podem
experiências culturais recorrendo ao ritual, ao mito e à antropologia. Assim, Pavis ser causados por demandas formais, pela visão do adaptador, pelo público ou mesmo pelos contextos
propõe um modelo a partir da metáfora da ampulheta, que é variados e vastos de recepção e criação.

[...] um estranho objeto que tem um funil e o molinete. Na bola supe- De outro lado, mesmo que o processo de adaptação de textos de uma cultura para outra não seja
rior encontra-se a cultura estrangeira, a cultura-fonte que está mais ou recente – veja-se, por exemplo, que os romanos adaptaram as tragédias gregas que, depois, também
menos codificada e solidificada em diversas modelizações antropológi- reapareceram no teatro neoclássico francês, para citar uma apenas uma parte destes caminhos –, em
cas, socioculturais ou artísticas. Essa cultura deve passar, para podermos tempos de cultura globalizada, conforme discute Hutcheon, as mudanças de linguagem, de tempo e
absorvê-la, através de um estreito gargalo de afunilamento. Se os grãos
espaço, podem comparecer, ainda que, em certas situações, não se consiga apreender as mudanças ocor-
da cultura, o seu conglomerado, forem suficientemente finos, escoarão
sem problemas, ainda que lentamente, para a bola inferior, a cultura ridas no andamento do processo histórico-social, mantendo-se estereótipos de gênero e cultura, como
destinatária, ou cultura-alvo, a partir da qual observamos o lento esco- é o caso da ópera Madama Butterfly (1904), de Giacomo Puccini, adaptada para o musical Miss
amento. Tais grãos se incorporarão a um agrupamento que pareceria Saigon (1989), de Alain Boublil, Richard Maltby Jr. e Claude-Michel Schönberg, em que o amor de
gratuito, mas que no entanto é regulado, em parte, pela passagem por cunho melodramático entre o representante das forças invasoras estadunidenses (no Japão, depois no
entre a dezena de filtros colocados pela cultura-alvo e pelo observa- Vietnã) e a moça asiática, culmina no sacrifício final daquela pelo suicídio, em favor do filho, símbolo
dor. Com efeito, a transferência cultural não apresenta um escoamento da cultura dominada e também da mestiçagem, o que ganha amplas implicações ideológicas e políticas
automático, passivo, de uma cultura para outra. Ao contrário, é uma
na contemporaneidade.
atividade comandada muito mais pela bola “inferior” da cultura-alvo e
que consiste em ir procurar ativamente na cultura-fonte, como que por
Desde a estréia de Gota d’água, em 1975, uma série de críticos têm discu-
imantação, aquilo de que necessita para responder às suas necessidades
concretas (PAVIS, 2008, p. 03).
tido este texto a partir das suas relações intertextuais com a tragédia Medéia, de
Eurípides, destacando-se, sempre, a nova roupagem que o mito antigo, em que se
Contudo, deve-se encontrar um equilíbrio, de modo que a cultura-fonte man- cruzam os heróis argonautas e a feiticeira matricida da Cólquida, ganhou no Brasil.
tenha suas modelizações de origem ao remodelar-se visando à cultura-alvo, da Se Eurípides já era o mais moderno dos tragediógrafos, representando a condição
mesma maneira que esta deve absorver aquilo que achar necessário daquela, fil- feminina de sua época – com destaque para a mulher bárbara, não-grega, de alguma
trando, reconstruindo e adaptando. Neste modelo dito interativo, a transferência maneira invasora ou estrangeira no âmbito da polis, mas, por isso mesmo, tida como
intercultural entre cultura-fonte e cultura-alvo ocorre com reciprocidade, uma vez aquela capaz de trair, matar, assassinar os próprios familiares e filhos –, para além
que “cada etapa pode projetar-se e deslizar nas outras” (PAVIS, 2008, p. 03). Neste da inexorabilidade do Destino, pois esta mulher “responde por si mesma e não por
circunstâncias que a ultrapassam”, como bem afirma Fernando Marques (2000),
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destacando que, por essa razão, esta personagem “se presta a atualizações”, tendo Por certo entendimento, pode parecer que “atualizar” seria meramente a
em vista já ser antecipadora da passagem da tragédia para o drama, considerando-se adequação a uma linha de tempo ou a passagem de dados culturais do contexto
que as engrenagens metafísicas se reduzem às motivações humanas. representado para aqueles do contexto de recepção. Entretanto, no caso em estudo,
podemos observar a transformação do enredo, que começa a se dar na medida em
Tais motivações, reveladoras de uma vontade individual, que apenas aparen- que a substância de expressão muda, pela atualização, plasmando-se em soluções
temente não são detonadoras do desenlace, estão relacionadas às entranhas do formais também novas e que se erigem em um enredo igualmente novo, adequados
mito, que une, sob o manto da mãe-assassina, a esposa devotada, a sacerdotisa de pelos adaptadores ao público-receptor, cuja visão de mundo, conforme Magaldi,
Hécate e neta do deus Hélio, que retoma sua identidade abandonada na Cólquida imporia outras regras de verossimilhança. Assim, no caso de Joana, a Medéia bra-
ao utilizar-se do deus ex-machina (o tão famoso carro do Sol) para a fuga rumo à sileira, num contexto em que o divino – pela necessidade de realismo que o teatro
Atenas. Todavia, a ação já estava finalizada pelo concurso dos impulsos de vingança daquele período demandava, em analogia ao tempo histórico e a condições socio-
pessoal da bárbara, contra seu casamento aviltado e pela quebra do juramento de políticas do Brasil sob regime militar – não tinha mais a possibilidade de interferir
Jasão – antes necessário para que ele tivesse acesso ao velocino de ouro, sob a guarda na ação, destaca-se a solidão da personagem diante da convulsão social, restando-lhe
dos cólquidos, cujo furto, engendrado com Medéia, tomada de amor, lhe traria a não seu orgulho pela identidade régia e sua estirpe divina, mas a humilhação que lhe
perspectiva de retomada de seu trono, no país natal – em favor de seu novo enlace, empurra ao suicídio, fuga de sua própria tragédia diária.
agora com Glauce, filha do rei Creonte, em Corinto. O mecanismo divino é soli-
citado apenas como signo de sua passagem para aquele estado identitário anterior De outro lado, se concordamos com a afirmação de Fernando Marques (2000) de
à sua estada com Jasão e, ao mesmo tempo, novo, na medida em que toca as áreas que a modernidade estética da tragédia euripidiana reside na abordagem da represen-
profundas de seu próprio eu, ao sacrificar sua prole. tação feminina em suas tensões com uma sociedade majoritariamente androcêntrica,
fator este que a torna suscetível a atualizações tendo em vista ainda as questões em
É este recurso ao deus ex-machina, criticado desde Aristóteles como algo externo torno do patriarcado nas sociedades ocidentais contemporâneas. Assumimos que a
à ação, que aparecerá em algumas críticas da época da estréia de Gota d’água, como ênfase neste processo incidiria fortemente no âmbito da temporalidade, sobretudo
uma das dificuldades impostas à “atualização”, mas, ao mesmo tempo, como um quando tratamos de Gota d’água mediante sua contextualização política nos entornos
desafio vencido pelos adaptadores, como bem pontua Sábato Magaldi: do “milagre brasileiro”, metaforizado nas personagens Creonte e Jasão, representan-
Pelo desfecho de uma fuga em carro celeste, Medéia poderia parecer a tes, cada um à sua maneira, de faces do regime autoritário em oposição aos habitantes
tragédia grega de mais problemática adaptação à cena contemporânea. da Vila do Meio Dia, presença orgânica das classes subalternas no texto.
[...]
Chico Buarque e Paulo Pontes souberam tecer uma trama brasileira e Ou seja, ler a peça brasileira como adaptação não é buscar fidelidade ao texto
carioca sem sacrificar a força mítica de Eurípedes. A feiticeira Medéia grego, mas implica na percepção de uma atitude dialógica em prol do surgimento
grega, capaz de preparar o veneno que incendiará os inimigos, conver- de um novo texto, que, se deve algo ao anterior – notadamente em aspetos do
te-se na macumbeira nacional, que lida com outros mundos e manipula enredo, da ambientação e da construção das personagens –, ao mesmo tempo apa-
as ervas destinadas ao crime. O Jasão brasileiro ascende socialmente por rece como algo original e independente, aventurando-se no entrelaçamento deste
meio de seu samba Gota d’água, que estoura nas paradas de sucesso.
enredo ao panorama cultural, histórico e social do seu contexto de recepção, como
Creonte é um rei dos tempos atuais, dono de um império imobiliário
e lúcido na defesa de seus privilégios. Afinal de contas, não há uma
podemos ler nesta crítica de Fernando Peixoto:
grande distância entre humanos fundamentais filtrados pela Grécia e
aqueles que animam a mitologia popular de hoje. Gota d’água (1975) retoma inúmeras colocações do texto de Eurípedes.
Pode-se afirmar que os autores se mostraram muito hábeis na adapta- Mas sem submissão. Chico e Paulo conseguem reter o fundamento
ção de passagens difíceis do original. A solução mais feliz encontra-se trágico do original grego mas realizam, em todos os sentidos, uma
no próprio desfecho. [...] Chico Buarque e Paulo Pontes obedeceram às adaptação conseqüente. Gota d’água possui a rapidez de uma tragédia
regras da verossimilhança atual, sem trair o espírito euripediano (aliás, clássica mas atesta o significado da recriação inteligente. [...] O tema
o mais realista entre os dos trágicos gregos). Joana (Medéia) presenteia da peça é o choque ideológico. Neste sentido é preciso reconhecer a
ao casal de noivos, como se estivesse reconciliada, um prato especial. grande vitória do texto. [...] No momento em que o teatro brasileiro
Creonte, desconfiado da aparente generosidade, devolve a oferta. O se debate em quase agonia, Gota d’água inunda o palco com a postura
bolo preparado por Joana é o instrumento de seu suicídio e da morte crítica que procura revelar a realidade em suas contradições básicas,
dos filhos. Um final muito mais adequado às nossas exigências de elucidando-as assumindo um ponto de vista popular e nacional, entre-
racionalidade e que, por outro lado, não perde a grandeza trágica do gando ao teatro do país seu maior momento como texto dramático em
desfecho de Eurípedes. (MAGALDI, 1976) versos. (PEIXOTO, 1989)
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É nessa construção de um entendimento a partir da idéia de dialogismo que a [...] A teoria da intertextualidade de Kristeva, com raízes no “dialo-
fidelidade ao texto-adaptante se torna um critério menos importante do que a inter- gismo” de Bakhtin, enfatizou a interminável permutação de traços
textuais, e não a “fidelidade” de um texto posterior em relação a um
pretação particular e singular do adaptador, que reinterpreta um texto aliado ao
anterior, o que facilitou uma abordagem menos discriminatória. [...]
contexto do processo de adaptação e recepção. Quase sempre estas discussões sobre
A atitude bakhtiniana diante do autor literário enquanto situado num
adaptação acabam se voltando à relação entre literatura e cinema. Obviamente, esta- “território interindividual” sugere uma atitude de reavaliação no que
mos aqui considerando produtiva a analogia com os processos adaptativos dentro se refere à “originalidade” artística. [...] A originalidade total, conse-
de uma mesma linguagem artística, neste caso a dramaturgia, pois, como discuti- qüentemente, não é possível nem mesmo desejável. E se na literatura
remos adiante, na passagem para outra linguagem – como é o caso da passagem a “originalidade” já não é tão valorizada, a “ofensa” de se “trair” um
da página ao palco, por exemplo –, conforme Pavis (2008), mediante a encenação, original, por exemplo, através de uma adaptação “infiel”, é um pecado
ainda menor. (STAM, 2008, p. 20-21)
o espectador/receptor tem acesso a um espetáculo, no qual o texto é apenas mais
um dos elementos do sistema, contíguo a tantos outros. A adaptação neste caso
A partir de agora vamos buscar uma aproximação com a teoria de Pavis de um
que tratamos é, pois, uma etapa anterior à encenação, travada na discussão sobre a
teatro intercultural, procurando compreender como se dá o cruzamento de culturas
passagem da cultura-fonte para a cultura-alvo, empreendida pelo adaptador; que
entre as peças em análise, a partir de discursos críticos sobre a encenação de Gabriel
só depois passaria pelos processos de encenação, sobre os quais também incidem os
Villela das mesmas.3 Neste percurso, há uma série de implicações teóricas envolvi-
intercruzamentos culturais.
das como o já citado entendimento do deslizamento entre culturas, que passa de um
Daí, ser valido o que nos diz Robert Stam (2008, p. 20), ao discutir a crítica modelo baseado na intertextualidade para o da interculturalidade; como também o
usual sobre adaptações fílmicas de romances: uso do termo cruzamento, que é tanto um “entrecruzar de caminhos, quanto uma
hibridização de raças e tradições”, dando conta de que as culturas se “interpene-
[...] Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, tram, seja uma passando para o lado da outra, seja reproduzindo-se e reforçando-se
“vulgarização”, “adulteração” e “profanação” proliferam e veiculam graças à mestiçagem” (PAVIS, 2008, p. 06).
sua própria carga de opróbrio. Apesar da variedade de acusações, sua
motriz parece ser sempre a mesma – o livro era melhor. Assim, ao lidar com um objeto, que é a encenação intercultural, Pavis traba-
lha com a definição semiótica de cultura de Lotman e Uspênski, que a tomam
É partindo dessa afirmativa que poderíamos discutir aspectos que aparecem nas como “memória não-hereditária da comunidade”, afirmando que se a cultura é
recensões críticas a Gota d’água, em que surgem termos como “submissão”, “adap- definida como “apropriação semiótica da realidade social, a sua tradução é outro
tação conseqüente”, tida como aquela que consegue “reter” o “fundamento” do sistema semiótico que não apresentará problemas desde que uma relação de inter-
“original”. Só para o cotejo de mais elementos, vejamos o que Maddaluno (1991), pretância tenha sido proposta”. Para tanto, deve-se decidir que atitude deverá ser
num ensaio que propõe uma discussão sobre a intertextualidade entre textos gregos tomada frente à cultura-fonte, uma vez que esta deverá ser adaptada, de acordo com
e textos de língua portuguesa, afirma: uma visão “sociopolítica da cultura”, avaliando a sua distância para a cultura-alvo.
(PAVIS, 2008, p. 145).
[...] Gota d’água não se preocupa em reproduzir a história de reis e
feiticeiros de países distantes: é uma tragédia ambientada na periferia
Essas atitudes para com a tradução de uma cultura em outra, de que fala o
carioca, que denuncia as contradições vividas pelas classes desfavoreci-
autor (Cf. PAVIS, 2008, p. 146-7), podem ser divididas em três modelos. O pri-
das do Brasil, na década de 70.
A deformação do mito pelo novo texto instaura a descontinuidade, e meiro prioriza a cultura-fonte, não permitindo que os “ideologemas e os conceitos
o diálogo intertextual entre Gota d’água e as anteriores manifestações filosóficos” da cultura-fonte sejam adaptados à cultura-alvo. O segundo modelo é
do mito realiza-se a partir das diferenças e não das semelhanças. [...] o inverso do primeiro, consiste numa adaptação total da cultura-fonte na cultura
(MADDALUNO, 1991, p. 31). alvo: “adaptar a cultura-fonte para a cultura alvo, aplainando-lhes as diferenças,
eliminando-lhes os aspectos exóticos, ‘normalizando-lhe’ a situação cultural”, de
Ou seja, segundo nosso entendimento, ainda verifica-se a velha querela sobre forma que o texto, antes estranho, passe a soar familiar. Por sua vez, o terceiro
fontes, originalidade e a (in)fidelidade a elas, quando num processo de análise, seja modelo, que é o mais utilizado, recorre a um equilíbrio entre as duas culturas, pois,
a partir dos próprios liames da intertextualidade, seja mediante a compreensão de ao transitar entre elas, dá forma a uma tradução que funciona como um “corpo
que estamos diante de um processo de adaptação, tais questões não mais se tor-
nam pertinentes. Para fecharmos esta discussão, podemos voltar ao mesmo texto de
3 Trata-se da encenação, estreada em setembro de 2001, em São Paulo, com a Cia. de Repertório Musical
Robert Stam:
do TBC/Teatro Brasileiro de Comédia, tendo como protagonista a atriz Cleide Queiroz.
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condutor” entre essas experiências culturais, respeitando a proximidade e o afas- Nesta encenação, na concepção cenográfica de J. C. Serroni, a Vila do Meio-Dia
tamento, a familiaridade e a estranheza. Este “caminho intermediário” da terceira era construída com um amontoado de camas hospitalares que conduzia, por uma
tradução seria o melhor modelo a se seguir, uma vez que o importante seria tra- rampa, a uma réplica do Palácio do Planalto, para onde o povo se deslocava – ale-
var uma comunicação, estabelecer um contato entre as culturas, respeitando suas goria de uma vida à sombra do poder, mesmo quando em péssimas condições, para
diferenças e peculiariedades. Neste sentido, os outros modelos encontraram algu- que haja uma chance de sobrevivência. As mulheres portavam bacias de alumínio,
mas dissidências. No primeiro tipo de tradução, as diferenças entre as culturas são dessas usadas domesticamente para lavar roupas, e os homens empunhavam tacos
acentuadas, o que pode gerar uma incompreensão ou rejeição do público, uma vez de bilhar, tudo isso combinado a movimentos físicos dos atores que, simulando um
que, ao optar por restituir muito da cultura-fonte termina-se por torná-la ilegível coro, reproduziam imagens de vasos gregos. É assim que o cruzamento de culturas
para a cultura-alvo. Já o segundo tipo pode “trair uma atitude condescendente com já operado no texto, acaba por ser traduzido em outro sistema de significação em
relação ao texto e à cultura fonte”, visto que uma adaptação total de um contexto que voltam a se cruzar, pelo processo de encenação, referências culturais – uma
cultural a outro seria encontrar equivalentes lingüísticos, culturais, enfim, de todo visão sobre a Grécia, sobre Commedia dell’Arte, sobre teatro musical, sobre a cultura
um pensamento para outra cultura, o que, para Pavis, seria uma “traição” porque brasileira, etc. – que vão se adequando ao contexto de recepção, no movimento
não há como uma cultura abarcar outra absolutamente. especular entre cultura-fonte e cultura-alvo.

Gota d’água, e ainda estamos tratando do terreno da dramaturgia, parece seguir Todavia, o discurso crítico vai acabar exigindo da encenação um compromisso
esse caminho intermediário proposto por Pavis, pois, ao atualizar e contextualizar histórico e ético, seja com a dramaturgia, seja com a própria tradição de encenações
a tragédia grega, adaptando-a à realidade brasileira mediante cruzamento de cultu- desse texto, conforme podemos atestar a seguir:
ras, apesar das semelhanças estruturais, gera um novo texto, que apesar do inegável
diálogo travado com texto euripidiano, acaba por traduzir-se de maneira indepen- [...] A montagem poderia ser vista como um saudável deboche ico-
noclasta, se o esforço de Villela em impor sua genialidade não lhe
dente daquele. As duas peças, excetuando-se o desfecho, apresentam basicamente o
tolhesse o humor. Mais que uma “desconstrução”, que demanda um
mesmo desenvolvimento do enredo, inclusive com a manutenção de alguns nomes maior embasamento intelectual, Villela é mais honesto ao se inserir
de personagens, sobretudo, das personagens masculinas, Creonte, Jasão e Egeu; no universo kitsch, com seus simulacros pífios e histérico acúmulo de
mas altera de maneira significativa o contexto temporal e espacial, na passagem da referências. O embaraçoso é que se subentende assim que a obra de
Grécia heróica para o Rio de Janeiro da década de 1970. Chico Buarque é algo como um pingüim de geladeira, cujo valor artís-
tico se deve à ousadia de quem o expõe deslocado de seu contexto. [...]
Assim, o enredo clássico é transposto para o subúrbio carioca, onde acompa- Opinião compartilhada por quem pôde assistir às montagens originais,
nhamos a vida num conjunto residencial precário, cujo proprietário é Creonte, ou por quem lê os textos, tendo acesso assim a uma obra que, infeliz-
que devido ao seu prestígio social e financeiro, consegue ajudar no lançamento do mente, permanece distante para quem só a vê nessa “desconstrução”.
samba “Gota d’água” de Jasão, noivo de sua filha Alma. O samba aparece aqui tal [...] (COELHO, 22 set. 2001, p. E6).

qual o velocino de ouro na tragédia grega, pois constitui o meio de ascensão social
Tal concepção esquece, por certo carrancismo em relação à encenação e/ou ao
de Jasão, ex-marido de Joana, uma devota do candomblé, face brasileira, portanto,
encenador, que estes já não mais deveriam se confundir, no momento da recepção,
da feiticeira bárbara.
não exigindo que a encenação em questão tornasse-se memória concreta das anterio-
A encenação de Gabriel Villela deste texto foi recebida pela crítica sob diferentes res, pois um mesmo texto dramático, encenado em momentos históricos diferentes
pontos de vista, sendo caracterizada, na maioria das vezes, com um vocabulário bem se traduz em diferentes encenações, que acabam por não dar a ler o mesmo texto.
ao gosto pós-moderno: “bricolagem”, “simulacro”, “desconstrução”, “impostura Esta atitude crítica também não autoriza a defesa de questões sobre valor artístico
kitsch”. Para além disso, a questão é que Villela não montou ‘apenas’ Gota d’água, em relação à compreensão do encenador, ou do autor da obra dramática, dos seus
ele costurou ao texto outras canções de Chico Buarque e, ainda, fragmentos da contextos plasmados nas obras. Também não é produtivo querer comparar esta
Medeamaterial, do alemão Heiner Müller, como também certas imagens do filme encenação a outras, na medida em que se exige, por esta comparação, fidelidade ao
Medéia, de Pasolini. Tudo isso, independentemente de critérios de gosto, assenta-se texto, encontrável, talvez, conforme o articulista, na encenação de 1975, o que esta-
na idéia de que, como já afirmou Pavis (2008, p. 153), a tradução teatral “mudou ria distante de ser verificável na de 2001. Tal compreensão exige, justamente, aquilo
de paradigma: não está mais assimilada a um mecanismo de produção de equiva- com o que a encenação não tem compromisso, a fidelidade seja ao texto, seja a uma
lências semânticas calcadas mecanicamente no texto-fonte: ela se concebe como tradição de representação, critério este insuficiente para avaliar novas encenações
apropriação de um texto para outro, em função da recepção concreta do público (Cf. PAVIS, 2008). Assim, este entendimento das diversas perspectivas do discurso
teatral”.
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crítico acaba por nos deixar às claras que aquilo que para um é problema, para outro MADDALUNO, Fernanda Bastos Moraes. A intertextualidade no teatro e
pode ser a solução criativa: outros ensaios. Niterói: EDUFF, 1991.

O espetáculo foi concebido por contrastes. É ultramoderno e, ao mesmo MAGALDI, Sábato. Uma ovação para a tragédia brasileira, Jornal da tarde, 30
tempo, caipira, porque Villela, artista “bricoleur”, toma emprestadas jan. 1976, disponível em: <www.chicobuarque.com.br>, acesso em 28 de jan.
imagens de várias naturezas para compor a alegoria da realidade nacio-
2001.
nal do texto de Buarque e Pontes. [...] Na pele dos atores, o diretor
costura o “Jersey ordinário à seda inglesa” (comenta o co-autor do figu-
rino Leopoldo Pacheco), a máscara do teatro medieval e os anjos das
MARQUES, Fernando. O banquete da meia dúzia: fontes e estruturas de Gota
igrejas barrocas ao couro punk sadomasoquista usados no figurino. [...] d’água. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 8, Brasília-DF, p.
(COSTA, 22 set. 2001, p. E6.). 03-14, jul.-agt. 2000.

Ao lermos Gota d’água diante dessas propostas teóricas, confirmamos a hipótese PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes.
de que na tessitura deste texto ou mesmo nas suas encenações – mesmo que aqui São Paulo: Perspectiva, 2008.
estejamos analisando casos bastante específicos – cruzam-se culturas, mediante a
perspectiva intercultural que, se não se coloca como contraditória à intertextual, PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaços. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989.
abre novas maneiras de interpretar esta obra para além das relações entre textos e
espetáculos, na realidade, insuficientes para a análise-interpretação dos contextos de STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e arte da adap-
produção-recepção formalizados esteticamente. De outro lado, lemos a passagem tação. Trad. Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
da tragédia grega para a tragédia carioca como um processo de adaptação, tam- Editora UFMG, 2008.
bém cunhado no cruzamento cultural, visto os diálogos entre a obra adaptante e a
adaptada travarem-se a partir da reinterpretação dos adaptadores dos personagens,
de soluções cênicas e do enredo diante da cultura-alvo. Seja na adaptação drama-
túrgica, seja nas encenações, não mais podemos exigir o critério de fidelidade: a
um texto-fonte ou a uma cultura-fonte. Nos dois momentos, o criador está aberto
à revelação de suas próprias percepções da cultura, da história do texto, do próprio
teatro.

Referências bibliográficas

BUARQUE, Chico, PONTES, Paulo. Gota d’água. Inspirado em concepção de


Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

COELHO, Sérgio Salvia. Villela faz da peça uma impostura kitsch. Folha de São
Paulo, São Paulo, 22 set. 2001. Folha Ilustrada, p. E6.

COSTA, Mônica Rodrigues da. Artista “bricoleur”, diretor une ultramoderno e


caipira. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 set. 2001. Folha Ilustrada, p. E6.

EURÍPIDES. Medéia, Hipólito, As troianas. Trad. do grego, introd. e notas


Mário da Gama Kury. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. Nova Iorque: Routledge, 2006.


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As representações da personagem Boca de Ouro


na peça Homônima de Nelson Rodrigues

Elton Bruno Soares de Siqueira1*

RESUMO: O texto que constitui, no presente trabalho, o foco de nosso interesse


é Boca de Ouro, uma peça de 1959. Nosso objetivo é analisar as representações do
marginal Boca de Ouro nas narrativas de Dona Guigui, protagonista da peça rodri-
guiana, levando em consideração as formações imaginárias desenvolvidas por esta
personagem em todo o processo interativo em que está envolvida. A análise se nor-
teia pelo princípio semiótico de que os sistemas de signos constroem representações
que estão ancoradas na experiência concreta dos sujeitos sociais. Para abordarmos as
representações sociais na peça de Nelson Rodrigues, valemo-nos das considerações
teóricas de Sá (1995) e de Jovchelovitch (2000).
PALAVRAS-CHAVE: texto dramático; narrativa; signo; representações sociais.

ABSTRACT: Boca de Ouro, a play written in 1959, is the Carioca playwriter’s


text which constitutes the focus of our interest in the present paper. Our aim is to
analyze the delinquent Boca de Ouro’s representations in D. Guigui’s narratives,
the text’s female protagonist, considering the imaginary formations developed by
this character in all interactive process in which she is involved. The analysis is
based on the semiotics principle according to which the sign systems construct
representations that are anchored in social subjects’ concrete experience. To
approach the social representations in Nelson Rodrigues’ text, we consult Sá’s
(1995) and Jovchelovitch’s (2000) theoretical researches.
KEY-WORDS: dramatic text; narrative; sign; social representations.

RESUMEN: El texto que constituye, en el presente trabajo, el foco de nuestro


interés es Boca de Oro, una pieza de 1959. Nuestro objetivo es analisar las
representaciones del marginal Boca de Oro a través de las narrativas de Doña
Guigui, protagonista de la pieza rodriguiana, llevando en consideración las
formaciones imaginarias desarrolladas por este personaje a lo largo del proceso
interactivo en el cual está envuelto. El análisis está basado en el principio semiótico
que comprende los sistemas de signos como constructores de las representaciones
que son fijadas por la experiencia concreta de los sujetos sociales. Para explanarmos
sobre las representaciones sociales en la pieza de Nelson Rodrigues, utilizamos las
consideraciones teóricas de Sá (1995) y también de Jovchelovitch (2000).
PALABRAS-LLAVE: Texto dramático; Narrativa; Signo; Representaciones
sociales.

1 Prof. Adjunto do Dep. de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco/
UFPE.
SocioPoética - Volume 1 | Número 6 SocioPoética - Volume 1 | Número 6
56 Julho a Dezembro de 2010 Julho a Dezembro de 2010 57

Nelson Rodrigues é considerado o precursor do teatro moderno no Brasil. Não principais formas discursivas nas quais as representações sociais se desenvolvem”
obstante a trilogia O Rei da Vela, O Homem e o Cavalo e A Morta, de Oswald de (2000, p. 143).
Andrade, ter sido publicada na década de trinta, foi somente com a encenação de
Vestido de Noiva, por Ziembinski, em 1943, que se deu a grande renovação moder- A narrativa é um tipo textual que faz parte da história de todos os povos.
nista dos palcos brasileiros. Manifestando-se no cotidiano, a narração demonstra haver uma necessidade de o
homem contar estórias. Assim, grupos e indivíduos humanos podem dar ordem
A carreira do dramaturgo carioca foi marcada, as mais das vezes, por uma rea- e sentido à experiência existencial e organizar a cadeia de eventos que formam a
ção negativa violenta por parte do público burguês, que se sentia agredido pelos vida social e individual. Ao colocar a si mesmo e sua vida social numa estória, o
assuntos abordados no palco e, sobretudo, pela forma como Nelson Rodrigues homem apresenta imagens que recriam e redefinem o mundo. Dialeticamente, estas
apresentava os temas considerados, até então, tabus em nossa sociedade. A sua obra estórias criam atores que definem o tecido social e provocam a sua transformação
pode ser dividida em três blocos, classificados por Sábato Magaldi (1993) como (Jovchelovitch, 2000, p. 144).
Peças Psicológicas, Peças Míticas e Tragédias Cariocas. O texto que será objeto de
nossa análise pertence às chamadas Tragédias Cariocas. Boca de Ouro, publicada em De acordo com Bartlet (apud Jovchelovitch, 2000, p. 144), “forma e conteúdo
1959, é uma peça em três atos, ambientada no subúrbio carioca, e tem como perso- da narrativa estão diretamente ligados, e se constituem através das múltiplas e sutis
nagem central o Boca de Ouro, bicheiro cafajeste da Zona Norte do Rio de Janeiro, relações entre o contador de estória, o grupo e as preocupações da comunidade”.
temido e respeitado pelos seus conterrâneos. Dessa maneira, a narrativa é responsável pela produção e difusão de representações
sociais.
Nosso trabalho tem por objetivo analisar as representações do marginal Boca de
Ouro nas narrativas de Dona Guigui, protagonista da peça rodriguiana, levando em O problema da narrativa está relacionado ao acesso humano à realidade, ou
consideração as formações imaginárias desenvolvidas por esta personagem em todo seja, o homem apreende os fatos objetivos do mundo, processa-os mediante a sub-
o processo interativo em que está envolvida. Considerando que o drama apresenta jetividade, recria-os e os dispõe numa configuração cronológica, estabelecendo um
três versões de um mesmo fato narradas por D. Guigui, perguntamo-nos: por que começo, um meio e um fim. Nesse sentido, vale lembrar o conceito de mímese em
a personagem nos apresenta as três versões? Quais são as representações que da per- Aristóteles (1987), segundo o qual o homem, ao imitar, apresenta uma versão da
sonagem Boca de Ouro, tema-pivô de seus relatos, faz D. Guigui? realidade. De acordo com o filósofo grego, a imitação é congênita ao homem, que,
em contato com a natureza, procura imitar suas formas e seus movimentos. No
Para proceder à análise, faremos uso das contribuições teóricas de Sá (1995) e entanto, ao contrário do pensamento platônico, esta imitação não se dá pela cópia
de Jovchelovitch (2000), que empreendem uma análise psicossocial das represen- da natureza, senão pela transformação, uma vez que o homem filtra o real pela
tações sociais. Essa última, num capítulo intitulado “Estórias do Espaço Público: subjetividade, processa-o e o transforma. No dizer de Jovchelovitch (2000, p. 146),
Representações Sociais em Narrativas”, estuda as representações sociais em narra- “quando sujeitos sociais falam sobre sua realidade, seja ela passada ou futura, eles
tivas de experiência pessoal e vicária, o que nos motivou a estabelecer um diálogo impregnam a narrativa com o seu modo atual de viver, experienciar e sentir”.
entre as representações sociais e a narrativa literária. A análise adotará uma perspec-
tiva semiótica, na medida em que conceberemos as narrativas de D. Guigui como Para proceder à análise da relação dialética entre narrativa e relações sociais,
sistemas de signos responsáveis, respectivamente, pela organização particular dos Jovchelovitch (2000) utiliza-se de três características: a referencialidade da narrativa;
fatos, de modo que se construam, deles, representações sociais determinadas. os laços entre o ordinário e o extraordinário; e a dimensão temporal da narrativa.O
discurso narrativo é feito de linguagem, ou seja, é constituído de signos, portanto
ele se reporta a um mundo de objetos que se encontra além dos próprios signos.
Uma nota sobre as Representações Sociais Os sujeitos sociais atribuem valores a este mundo mediante a linguagem, o que leva
Bakhtin (1990) a caracterizar o signo como ideológico. Sem considerarmos a rea-
A partir dos anos cinqüenta do século XX, os estudos sobre as representa- lidade concreta do homem mediada pela linguagem, corremos o risco de perceber
ções sociais começam a ganhar vulto nos meios acadêmicos, sobretudo nas áreas apenas o corpo nu da palavra, desprovido de qualquer sentido social. Dessa forma,
de Sociologia e de Psicologia. Tomaremos, para fins de exemplificação, trabalhos não podemos pensar em narrativa sem relacioná-la a um exterior, que é social,
mais recentes, como os de Jovichelovitch (2000) e de Sá (1995). Em seu capítulo mesmo sendo ela imaginária, uma vez que o imaginário não emerge de um vácuo,
“Estórias do Espaço Público: Representações Sociais em Narrativas”, Jovchelovitch mas está ancorado num mundo localizado além do sujeito. A narrativa estabelece,
tem por objetivo central demonstrar a relação íntima entre o contar estórias e a também, laços entre a trivialidade do dia-a-dia e a excepcionalidade de situações
formação das representações sociais, considerando que “as narrativas são uma das inesperadas. Neste sentido, as representações sociais dialogam com as narrativas, na
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medida em que se empenham em fazer do desconhecido algo familiar, tornando a .Além disso, a carpintaria textual, a escolha de determinados elementos em vez de
existência mais compreensível e mais suportável. Por último, a narrativa é construída outros, a seleção de certas palavras ou de certa linguagem constituem sintomas das
numa base temporal. No entanto, o tempo da narrativa não pode ser interpretado representações sociais (valores, ideologias, imagens, preconceitos) que estão sendo
apenas como sucessão de acontecimentos. Ricoeur (apud Jovchelovitch, 2000, p. criadas ou reproduzidas na e pela obra, ou seja, o estilo da obra marca uma posição
148) salienta as implicações temporais que surgem das estruturas narrativas, ale- ideológica. Uma investigação destes elementos também pode nos levar a resultados
gando que confiáveis.

‘o tempo da narrativa é um tempo público’, um tempo que traz à luz


o problema de seres que compartilham experiências não apenas com As várias imagens de Boca de Ouro
seres vivos, mas também com aqueles que vieram antes e aqueles que
ainda devem vir. Mais do que serem localizadas no tempo, narrativas A primeira cena do primeiro ato de Boca de Ouro mostra a personagem-título
tendem a construir a história.
sentada na cadeira de um catedrático de Odontologia, exigindo que o médico lhe
tirasse os dentes perfeitos, substituindo-os por uma prótese de ouro. Mesmo contra
As representações sociais também fazem a história a partir de interações cotidia-
sua vontade, o dentista satisfaz o desejo do cliente. Temos, pois, justificado o nome
nas. Esses três elementos da forma narrativa compreendem alguns dos problemas
Boca de Ouro. A cena é cortada e acende-se a luz sobre a redação de O Sol, onde
cruciais que a teoria das representações sociais tenta responder: 1) as mediações
o secretário recebe a notícia do assassinato do bicheiro. O jornal, sensacionalista,
entre sujeitos sociais e o mundo social; 2) os processos que subjazem à confrontação
resolve “espinafrar” Boca de Ouro, entrevistando d. Guigui, ex-amante do bicheiro,
com o desconhecido; e 3) o tempo como história (Jovchelovitch, 2000, p. 149).
por ele abandonada. Chega à casa de d. Guigui, em Lins de Vasconcelos, o repórter
Para uma compreensão mais exata de representações sociais, valemo-nos da con- Caveirinha e um fotógrafo. A dona de casa não esconde seu ressentimento em rela-
cepção de Sá (1995, p. 26), segundo o qual as representações sociais não podem ção ao ex-amante e, sem saber que Boca de Ouro havia morrido, relata ao jornalista
ser entendidas somente como as opiniões dos sujeitos sobre assuntos os mais diver- os crimes praticados pelo bicheiro, especialmente um, que é narrado em flashback,
sos; o conceito deve levar em conta, sobretudo, “uma articulação ou combinação dando lugar à cena em que o próprio Boca de Ouro protagoniza um assassinato.
de diferentes questões ou objetos, segundo uma lógica própria, em uma estrutura A ação dramática permite configurar a personalidade de Boca de Ouro, um sujeito
globalizante de implicações, para a qual contribuem informações e julgamentos cruel, violento, que não mede esforço para alcançar seus intentos. Encerra-se o pri-
valorativos colhidos nas mais variadas fontes e experiências pessoais e grupais”. Os meiro ato.
dois processos básicos da representação social, segundo Moscovici (apud Sá, 1995),
No segundo ato, d. Guigui toma conhecimento da morte do ex-amante e fica
são a ancoragem e a objetivação, ou seja, tornar o que é estranho algo familiar
desolada. Pede ao jornalista para não publicar a entrevista e retoma o depoimento
− ancorar o desconhecido em representações já existentes − e transformar uma abs-
anterior, traçando outro perfil de Boca de Ouro, agora mais humano e vítima da
tração em algo físico − noções abstratas são transformadas em imagens, que formam
crueldade alheia. Alguns dos elementos da narrativa anterior são retificados e apre-
um núcleo figurativo, para, enfim, se tornarem elementos da realidade. Em confor-
sentados pela ação das personagens. Fim do ato.
midade com Sá, Jovchelovitch (2000, p. 149) considera que “a ancoragem é um dos
processos das representações sociais que mais freqüentemente pode ser encontrado O terceiro ato traz a reconciliação de d. Guigui com seu marido, que tinha deci-
em narrativas, já que o contar de estórias permanentemente recupera cânones cul- dido abandonar a esposa porque ela tinha exprimido, na frente do repórter, a paixão
turais, padrões de ação e conversação, velhos ditados, mitos, lendas, etc.” que ainda sentia por Boca de Ouro. Incitada por Caveirinha a revelar se era autên-
tica a história do assassinato de mulheres, d. Guigui começa a terceira narrativa
Como procurou demonstrar Jovchelovitch (2000) em todo o seu texto, as
sobre Boca de Ouro, pintando-o como um covarde. De acordo com a didascália
representações sociais estão intimamente relacionadas com o contar estórias.
que encabeça o terceiro ato, percebe-se que, de ato para ato, o bicheiro “pertence
Considerando que o texto literário é uma das formas em que o ato de narrar está
muito mais a uma mitologia suburbana do que à realidade normal” (Rodrigues,
presente, poderíamos empreender um estudo das representações sociais no texto
1993, p. 919). Findo o flashback, as luzes se apagam e outra é acesa para iluminar
narrativo literário. No entanto, não podemos realizar uma transposição de métodos
a porta do IML, em frente à qual um locutor está fazendo um flash radiofônico,
de análise de um gênero de discurso a outro, sem que se observem as propriedades
anunciando a morte de Boca de Ouro por Maria Luísa, personagem que figurou na
de cada gênero. No caso do texto literário, uma análise dos discursos das persona-
terceira narrativa como amante do bicheiro. Boca de Ouro fora encontrado morto,
gens associada à análise do sistema narrativo literário podem nos oferecer resultados
sem os dentes. Fim do terceiro ato.
satisfatórios para uma discussão a respeito das representações sociais em literatura
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Como se vê, temos três narrativas para um mesmo fato: a relação mesquinha e conformada com o abandono, muito ressentida, a personagem quer apresentar ao
venal entre Boca de Ouro e mais duas personagens, Celeste e Leleco. Este fato vai jornalista uma imagem desfavorável de Boca de Ouro. Vejamos o momento que
sendo trabalhado diferentemente pelos discursos de d. Guigui, conforme suas moti- precede o relato:
vações emocionais e seus interesses particulares. Em cada discurso, novos elementos
vão sendo introduzidos e outros eliminados.

Quando os homens falam sobre sua realidade, constroem narrativas conforme


seu modo atual de viver, experienciar e sentir. Nelson Rodrigues parece nos mostrar
essa realidade ao colocar em cena uma personagem que impregna suas narrativas
com as suas próprias emoções. Considerando que as didascálias indicam elementos
cênicos e comentam a fala e as atitudes das personagens, vejamos algumas delas na
peça rodriguiana:

1ª Narrativa – 1º ATO:
(Trevas. Luz sobre a casa de “Boca de Ouro”. Toda a evocação que
D. Guigui faz, para o “Caveirinha”, tem um sentido único e taxa-
tivo: degradar “Boca de Ouro”, física e moralmente. O banqueiro de
bicho aparece de uma maneira monstruosa. Em cena, “Boca de Ouro”
e Guigui. Ele fala ao telefone e procura adotar um falsíssimo jeito fig.1 – 1º. Relato
patriarcal.) (RODRIGUES, 1993, p. 890)

2ª Narrativa – 2º ATO: Boca de Ouro é assim representado: “cachorro”; “não é flor que se cheire”;
(Trevas. Luz sobre a casa do “Boca de Ouro”. Já informada da morte costuma “mandar um pro Caju”; mete medo nas pessoas; já cometeu mais de vinte
do antigo amante, D. Guigui apresenta uma nova versão dos fatos e crimes. Quanto a Celeste, é “bonitinha e boa menina”, donde o qualitativo “boa
das pessoas. A figura do “Boca de Ouro” aparece retificada, retocada, menina é intensificado pela repetição. Leleco, marido da Celeste, era um “garotão”.
transfigurada. Tem a chamada “pinta lorde” que ela empresta ao ser O substantivo no aumentativo sinaliza, neste contexto, afeto, simpatia, compaixão.
amado, no início do segundo ato. Em cena, “Boca de Ouro”. Celeste
O quadro pintado por d. Guigui parece colocar Boca de Ouro como um vilão em
aparece na porta.) (RODRIGUES, 1993, p. 908)
oposição às vítimas, Celeste e Leleco.
3ª Narrativa – 3º ATO:
(De ato para ato, mais se percebe que “Boca de Ouro” pertence muito A narrativa propriamente dita, dramatizada em flashback, organiza os fatos da
mais a uma mitologia suburbana do que à realidade normal da zona seguinte maneira:
Norte. Cada versão de D. Guigui é uma imagem diferente dos mesmos
fatos e das mesmas pessoas. No terceiro ato, sob um novo estímulo 1. Celeste chega em casa e Leleco está se acordando;
emocional, ela se prepara para desfigurar “Boca de Ouro” outra vez.)
(RODRIGUES, 1993, p. 919) 2. Leleco está desempregado e diz que precisa conseguir dinheiro;
3. Luz sobre a casa de Boca de Ouro: Guigui conversa com Boca de Ouro;
Nelson Rodrigues se encarrega de explicitar, nas didascálias, o ponto fulcral de 4. Guigui sugere que Boca de Ouro está seduzindo Celeste;
cada estória contada por d. Guigui, ou seja, qual a razão de ser de cada narrativa2.
Na primeira, como se percebe, o objetivo é denegrir a imagem do ex-amante. Não 5. Boca de Ouro recebe Leleco em casa;
6. Leleco pede-lhe dinheiro;
7. Boca de Ouro diz que dará o dinheiro a Celeste, se ela vier a sua casa pegar;
2 Sobre a noção de ponto fulcral da narrativa, consultar Labov & Waletzky (1976) e Labov (1972). Os
autores estudaram a narrativa de experiência pessoal em textos orais. Para eles, a estrutura global da nar- 8. Leleco traz Celeste à casa de Boca de Ouro;
rativa pode conter as seguintes seções: orientação; ação de complicação, avaliação; resolução; e coda. A 9. Celeste fica sozinha com Boca de Ouro;
avaliação está relacionada aos meios usados pelo narrador a fim de indicar a relevância da história, o point
(ponto fulcral) daquilo que está sendo narrado. As estratégias avaliativas apontam, pois, para a razão de ser 10. Boca de Ouro seduz Celeste
da narrativa, ou aonde o narrador está querendo chegar.
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11. Celeste reage; 3. Luz sobre a casa de Celeste e Leleco;


12. Celeste cede e se dirige ao quarto de Boca de Ouro; 4. O diálogo entre o casal é travado de maneira hostil;
13. Leleco chega à cena; 5. Leleco acusa Celeste de adultério;
14. Leleco discute com Boca de Ouro; 6. Leleco exige que a esposa vá pedir dinheiro a Boca de Ouro;
15. Boca de Ouro mata Leleco na ausência de Celeste; 7. Celeste chega à casa de Boca de Ouro;
16. Fim da narrativa; fim do 1º Ato. 8. Boca de Ouro a recebe cordialmente;
9. Boca de Ouro recebe um grupo de grã-finas;
Vê-se, pela seqüência dos acontecimentos, que Boca de Ouro se aproveitou da
situação miserável do “casal feliz” para conseguir seu objetivo mesquinho: seduzir 10. As grã-finas humilham Boca de Ouro;
Celeste, forçando-a a manter relações sexuais em troca de dinheiro. A representação 11. Boca de Ouro e Celeste expulsam as grã-finas;
que d. Guigui faz do bicheiro é, de fato, “monstruosa”. 12. Boca de Ouro fica a sós com Celeste;
No segundo ato, tomando conhecimento da morte de Boca de Ouro, d. Guigui 13. Leleco chega à casa de Boca de Ouro;
humaniza a figura do bicheiro, atribuindo-lhe a imagem de lorde (“pinta de lorde”) 14. Leleco discute com o bicheiro e o ameaça;
e sugerindo que seu ex-amante, na verdade, era vítima da situação miserável em que
se encontrava. Observe-se o diálogo que antecede a segunda narrativa: 15. Celeste apunhala o marido pelas costas e o mata;
16. Fim da Narrativa; Fim do 2º Ato.

O início da narrativa, como podemos ver, traz o diálogo entre Boca de Ouro e
um Preto, em que o bicheiro mostra uma necessidade angustiada de saber detalhes
da vida da própria mãe. Toda a cena sugere um homem sensível, carente pela falta
da mãe. A imagem do bicheiro é construída com certa generosidade. A cena de
Leleco e Celeste, no entanto, nos apresenta uma imagem destas personagens que
não condiz com aquela formada pelo discurso de d. Guigui no primeiro ato. A con-
versa se desenvolve de modo muito mais hostil do que a da primeira narrativa. Além
disso, Celeste age de maneira dissimulada, “circunspecta”, aparentando um caráter
“sonso”. Nesta versão, é uma adúltera. Leleco, por sua vez, não é mais o “garotão”;
mostra-se agressivo, com “um riso surdo e mau” (RODRIGUES, 1993, p. 906).
fig.2 – 2º. relato
Movido pelo interesse mesquinho, estimula a esposa a extorquir dinheiro do suposto
amante. Vê-se que a representação destas personagens, na segunda narrativa, é bem
Boca de Ouro é mencionado como “meu amor”, expressão repetida duas vezes. distinta em relação à primeira.Neste relato, é Celeste quem primeiramente vai à
Mais adiante, temos o designativo “o meu Boquinha”, também repetido duas vezes. casa de Boca de Ouro, ao contrário do primeiro, em que o bicheiro exige a presença
O diminutivo “Boquinha” revela uma afetividade muito forte, expressando o cari- da esposa de Leleco. Boca de Ouro, agora, é vítima da extorsão do casal, não mais
nho e o amor que a personagem ainda sente pelo ex-amante. Em negociação com um ser monstruoso, “deflorador de esposa recatada”. Ele aparece cheio de critérios
Caveirinha, d. Guigui deixa implícito que os fatos relatados não eram fiéis, pois e valores.
uma “mulher com dor de cotovelo é um caso sério”, é um “bicho ruim, danado
(...)” (RODRIGUES, 1993, p. 903). Passa a narrar a segunda versão − também Quando as grã-finas humilham o bicheiro, ele reage com um “riso soluçante”,
numa dramatização em flashback −, apresentando os fatos na seguinte ordem: misto de sorriso e choro, passando-nos uma imagem de homem sensível. É somente
por esse comportamento das grã-finas que se vê justificada a atitude de humilhação
1. Boca de Ouro dialoga com um Preto; por que Boca de Ouro vai fazê-las passar. Tudo nos leva a crer que Boca de Ouro é
vítima do sistema, que estaria reagindo aos insultos lançados pelas pessoas.
2. O Preto conta a Boca de Ouro que conhecera a mãe do bicheiro e insinua
que era uma mulher propensa aos prazeres;
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Com a saída das grãs-finas, Celeste desabafa sobre a sua vida miserável, e Boca 10. Celeste informa a Maria Luísa que matara o próprio marido com a ajuda de
de Ouro se mostra compreensivo. Neste momento, chega Leleco, que começa a Boca de Ouro;
discutir e a ameaçar o bicheiro. Este se mantém numa atitude conciliatória, até que 11. Boca de Ouro mata Celeste com uma navalha;
Celeste crava um punhal nas costas do marido. Ao contrário da primeira narrativa,
na segunda quem mata Leleco é a própria esposa. 12. Fim da narrativa.
A terceira versão confirma a história de que Boca de Ouro é assassino de mulhe-
Por fim, no terceiro ato, d. Guigui, procurando se reconciliar com o esposo,
res. O bicheiro é representado, desta vez, como um ser degradante. Celeste se
narra a terceira versão dos fatos. Desta feita, o ponto fulcral da narrativa é descons-
mantém representada como mulher adúltera, “sonsa” e dissimulada, contrariamente
truir novamente a imagem de Boca de Ouro, representado como covarde, como se
à primeira narrativa de d. Guigui. Leleco, motivado pelo ódio de ter sido traído,
lê na terceira didascália supracitada. Verifique-se a fala que antecede o contar da
mostra-se agressivo, passando-nos uma imagem de um marido que sabe defender a
estória:
sua honra. Mais uma vez constatamos uma alteração dos elementos da narrativa de
acordo com os interesses particulares de d. Guigui.

As representações sociais sobre o bicheiro

O jogo do bicho foi uma atividade criada no início do século XX pelo Barão
de Drummond, diretor da Companhia Ferro-Carril de Vila Izabel e criador do
Jardim Zoológico no Rio de Janeiro. O objetivo maior do barão era arrecadar recur-
sos para manutenção do Jardim Zoológico. Segundo Câmara, o jogo consistia no
seguinte:
fig.3 – 3º. relato

Drumond criou uma lista de bichos (só os nomes de animais – não


O adjetivo “covarde” é firmado e intensificado por d. Guigui, que acusa o havia números) e, todos os dias colocava o nome de um deles numa
gaiola, escrito num papel. A gaiola era alçada ao topo de uma arvore
bicheiro de matar mulheres. Percebe-se, nesta fala, a construção favorável da ima-
[sic] (no local onde é hoje a Praça Barão de Drummond ). Durante o
gem de Agenor − o marido − pela esposa, que reconhece a valentia do esposo, a dia as apostas (adivinhações) eram feitas e no fim da tarde a gaiola era
ponto de falar que Boca de Ouro nunca tivera coragem de se envolver com ele. Os descida e cotejado o “bicho do dia” com as apostas feitas: quem acer-
acontecimentos da nova versão dos fatos estão assim dispostos: tou, recebia seu prêmio – quem perdeu, voltava no dia seguinte com
nova aposta... tostão, fazia suas apostas diárias (baseadas em seus sonhos
1. Leleco ameaça Celeste pela traição da esposa; noturnos, na visão das formas das nuvens nas quais “viam” silhuetas do
2. Celeste informa ao marido que pode conseguir dinheiro com Boca de bicho que iria dar “na cabeça”, ou na adivinhação dada pela chama de
Ouro; um palito de fósforo aceso mergulhado numa chícara [sic] de café...) e
passava o dia (feliz – e a felicidade custa tão pouco...) na expectativa do
3. Luz sobre a casa de Boca de Ouro; chega Celeste; “resultado” que, no fim do dia, era afixado a um poste de iluminação,
ou mesmo numa parede ou muro...3
4. Celeste informa a Boca de Ouro que o marido está sabendo de sua relação
com o bicheiro;
No entanto, passada esta fase lúdica e um tanto quanto pueril, o jogo do bicho
5. Chega Leleco e ameaça Boca de Ouro; começou a ser associado à contravenção, pela ligação dos bicheiros a atividades
6. Celeste, que estava escondida, aparece; ilícitas, como contrabando, assassinatos, subvenção concedida aos marginais. Os
cambistas, funcionários que “passavam” o bicho, começaram a ser perseguidos vio-
7. Boca de Ouro aproveita a distração de Leleco e dá-lhe uma coronhada na
lentamente pela polícia.
cabeça;
8. Boca de Ouro induz Celeste a terminar de matar o marido;
9. Chega Maria Luísa, grã-fina, ex-rival de Celeste; 3 CAMARA, E.A. Jogo do bicho, um eterno retorno... In: http://www.terravista.pt/FerNoronha/2897/
jogodobicho.htm, consultado em 12/07/2004.
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Apesar de boa parte da população brasileira, sobretudo os indivíduos de uma que esta narrativa venha a ser contradita pela segunda, as imagens do bicheiro não
camada desfavorecida economicamente, gostar de apostar no bicho, as novas deter- são de todo falsas. Há um fundo de verdade na descrição de traços comportamen-
minações judiciais começaram a criar representações deste tipo de atividade que tais de Boca de Ouro, se levarmos em consideração que as representações sociais de
possibilitaram a associação direta da imagem do bicheiro com a de um marginal. um bicheiro convergem para a de um homem grosseiro, leviano, assassino.
Nada obstante, o banqueiro de bicho conseguia obter uma ascensão econômica
extraordinária, o que lhe dava condições de exercer um poder de decisão e de ordem Paralela a estas representações, temos, também, a imagem do contraventor como
sobre as pessoas que faziam parte de sua comunidade. vítima da sociedade. Esta representação provém de outras espécies de discurso de
exclusão: os discursos científico e religioso.
Conferindo o objeto de nossa análise, vamos perceber que Boca de Ouro é um
personagem “astuto, sensual e cruel” (RODRIGUES, 1993, p. 881). O bicheiro Desde final do século XIX, reproduzimos as idéias positivista de Taine, cuja
era temido e respeitado por todos. No entanto, ao lado de suas atitudes criminosas, teoria sociológica se desenvolve a partir da tese central: o homem é produto da raça,
Boca de Ouro realizava atos caritativos, como dar dinheiro às pessoas que necessi- do meio social e do momento histórico. Não sendo o homem marginal por uma
tavam de auxílio. questão de caráter, mas em virtude das determinações de fatores externos, isto viria
a lhe eximir da culpa de ser um contraventor.Além disso, o discurso religioso de
Em nenhum momento da peça encontramos alguma intervenção policial, mas origem cristã explora elementos como humildade, piedade e fé. Devemos, a partir
Nelson Rodrigues nos apresenta, na única cena em que o personagem se encontra dessas injunções discursivas, ter pena do marginal, pois ele não se encontra nestas
vivo, uma imagem do bicheiro próxima à marginalidade. Logo na rubrica inicial, condições porque quer; ele é fruto da miséria, do desespero, da revolta, da falta
lemos o seguinte comentário: “Ao iniciar-se a peça Boca de Ouro ainda não tem o de perspectiva diante de um país com desigualdades sociais alarmantes. O que ele
seu nome legendário. Agora é que, com audácia e imaginação, começa a exterminar precisa é de compreensão, de orientação. A fé se estabelece na expectativa de trans-
os seus adversários” (RODRIGUES, 1993, p. 881). A menção ao extermínio dos formação desse sujeito.
adversários, somada ao comportamento arrogante do bicheiro no consultório do
dentista, mostram atitudes do bicheiro representadas pelo homem médio brasileiro D. Guigui faz uso dessas representações em sua segunda narrativa, oferecendo-
como as de um bandido. A operação cognitiva se realiza por associação: tem-se a nos uma imagem de Boca de Ouro como vítima da sociedade. O bicheiro nasceu
idéia de que o bandido é arrogante e assassino, logo Boca de Ouro é bandido. numa pia de gafieira da periferia, foi criado longe dos cuidados da mãe, teve de cons-
truir seus próprios meios de sobrevivência numa cidade do subúrbio carioca. Todas
A mídia é um dos aparelhos ideológicos responsáveis por criar e propagar repre- as qualidades de vítima são, pois, salientadas por d. Guigui em sua narrativa.
sentações sociais. No caso específico da peça rodriguiana, é muito significativa a
crítica implícita feita pelo autor quanto ao papel sensacionalista de alguns órgãos Logo na primeira cena da narrativa, Boca de Ouro demonstra sua ansiedade e
de imprensa. Quando tomam conhecimento da morte de Boca de Ouro, os jor- angústia para saber do Preto informações a respeito da mãe. Temos, pois, a imagem
nalistas da redação do Sol não sabem como agir e decidem telefonar para o diretor de um bicheiro frágil, sensível. Da mesma forma o encontramos no final da narra-
do jornal. Apesar de terem, no dia anterior, elogiado o bicheiro, recebem a ordem tiva, quando é humilhado pelas grã-finas e reage, num primeiro momento, com um
de espinafrar Boca de Ouro, qualificando-o de “contraventor”, de “cancro social” “riso soluçante”. A passagem de um riso soluçante para um comportamento arro-
(RODRIGUES, 1993, p. 884). Decidem, então, entrevistar d. Guigui, ex-amante gante, grosseiro, é muito significativa, pois demonstra muito bem a relação causal
do marginal, com o intuito de chamar a atenção para o caso Boca de Ouro. As pala- que se estabelece entre a sociedade que oprime o sujeito (causa) e o sujeito que é
vras usadas pelos repórteres fazem parte de um discurso de exclusão, que, propagado agressivo (conseqüência).
pela mídia, gera informações e julgamentos valorativos, como nos demonstra Sá
Percebemos, mais uma vez, que d. Guigui não nos apresenta uma imagem dis-
(1995)4.
tante das representações sociais que se têm do empresário do jogo do bicho no
Quando d. Guigui narra sua primeira versão dos fatos que envolvem Boca de contexto brasileiro. Pelo contrário, essas qualidades do bicheiro que despontam na
Ouro, ainda muito ressentida com o abandono do ex-amante, apresenta, como já segunda narrativa estão arraigadas no nosso imaginário social.
constatamos, uma imagem degradante do bicheiro. Ora, mesmo sob a interferência
Por fim, a última narrativa de d. Guigui apresenta a figura de um anti-herói
de fatores subjetivos ligados à afetividade, a narrativa de d. Guigui se utiliza de repre-
covarde, assassino de mulheres. Como já observamos, para se reconciliar com
sentações que a população brasileira faz da figura de um banqueiro de bicho. Ainda
o marido, d. Guigui conta a terceira versão dos fatos, procurando oferecer uma

4 A respeito do discurso de exclusão, consultar Foucault (1996).


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imagem degradante do ex-amante. Para tanto, faz uso de elementos valorativos de um mesmo personagem, Boca de Ouro; por outro lado, a narradora, d. Guigui,
geradores de representações sociais. reproduz algumas das representações que a sociedade, de maneira geral, faz de um
bicheiro: homem agressivo, contraventor, assassino, mas uma vítima da sociedade.
A imagem da mulher sempre foi associada, no Ocidente, ao anjo e ao demônio.
No verso de Gregório de Matos Guerra (s/d: p. 202), isso fica muito claro: “Anjo O que de fato ocorreu durante a vida de Boca de Ouro nos escapa, pois as narra-
no nome, Angélica na cara!”. No Brasil, sociedade fundamentalmente patriarcalista, tivas são divergentes, não nos oferecendo um relato seguro e fiel dos acontecimentos.
a mulher se torna, gradativamente, um ser intocável, inviolável. Recorrendo ainda No entanto, não constitui interesse do dramaturgo apresentar objetivamente os
mais ao imaginário popular, deparamo-nos com uma marchinha carnavalesca de fatos que motivam as três versões de d. Guigui. A peça nos dá a possibilidade de
Capiba, em cujos versos encontramos a seguinte mensagem: “Sempre ouvi dizer analisar a forma como o sujeito-narrador vai manipulando estes mesmos fatos, em
que numa mulher/ Não se bate nem com uma flor/ Loura ou morena, não importa conformidade com as disposições afetivas, e como se utiliza de representações sociais
a cor/ Não se bate nem com uma flor”. Bem se vê que, se a agressão física se tornou para construir uma imagem da personagem que faz parte da sua história.
um comportamento nem um pouco civilizado no Ocidente, a agressão contra a
mulher constitui, nos dias de hoje, um ato imperdoável. Com esta peça, Nelson Rodrigues conseguiu expressar muito claramente a rela-
tividade dos fatos veiculados pelas narrativas e, ao mesmo tempo, mostrar que as
A representação que se faz de um homem agressivo, que mata ou bate em narrativas podem ser verossímeis quando levam em consideração informações e
mulher, é a de um ser covarde, pois, em princípio, a mulher não teria as mesmas julgamentos valorativos colhidos, em sociedade, nas mais variadas fontes e expe-
condições físicas para reagir a uma agressão masculina. Assim, na medida em que riências pessoais e grupais (Sá, 1995). Tudo isso promove um efeito dramático
Boca de Ouro, na terceira narrativa de d. Guigui, mata Celeste com uma navalha, de valor inestimável. Se o dramaturgo se baseou no Assim é se lhe parece, peça de
para agradar Maria Luísa, é qualificado pela narradora como um homem covarde: Pirandello, ou em Rashomon, filme de Akira Kurossawa, isto não lhe tira o mérito
“O ‘Boca de Ouro’ era covarde! Covarde, sim, senhor! É muito bom dizer que o de ter elaborado um drama que faz as pessoas refletirem sobre a própria noção de
sujeito faz e acontece, mas com mulher, não é vantagem” (RODRIGUES, 1993, verdade. A verdade não é algo que preexiste ao discurso, mas algo que o constitui e
p. 922-923). Esse juízo de valor pertence às representações da mulher e do homem é constituído por ele.
que mata ou bate em mulher.

Dessa forma, podemos encontrar, na peça rodriguiana, uma constelação de ima- Referências bibliográficas
gens referentes ao bicheiro, que fazem parte das representações sociais criadas para
esta categoria de sujeito, contribuindo para se constituir, nas palavras do próprio ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. V.II. São Paulo: Nova
Nelson Rodrigues, uma mitologia suburbana. Cultural, 1987. (Os Pensadores).

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo,


Considerações Finais HUCITEC, 1990.

As narrativas de d. Guigui demonstram, a partir de nossa análise, que o ato de BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural das Narrativas. A aventura
contar história está entrelaçado com o modo atual de viver, experenciar e sentir semiológica. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1987.
da personagem, o que nos permite estabelecer um contato estreito entre a narra-
tiva literária e a teoria das representações sociais, tal como foi desenvolvida por CAMARA, E.A. Jogo do bicho, um eterno retorno... In: http://www.terravista.pt/
Jovchelovitch. Pudemos observar representações sociais a respeito do banqueiro de FerNoronha/2897/jogodobicho.htm
jogo do bicho nas narrativas da ex-amante de Boca de Ouro, o que nos leva a
confirmar a idéia de que o discurso narrativo cria e veicula representações sociais, FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
mediante a organização dos fatos vivenciados pelo sujeito-narrador. A ordenação
dos acontecimentos está atravessada por juízos de valor, fatores emocionais, interes- GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra. (Org.). Textos em
ses particulares da personagem que conta a história. representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2003.

Se, por um lado, as três versões de um mesmo acontecimento foram motivadas por GUERRA, Gregório de Matos. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, s/d.
fatores psicológicos, emocionais, responsáveis por oferecer imagens contraditórias
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JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública – a cons- Casamento de Branco, de Altimar Pimentel:
trução simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. a inversão da lógica Dell’Arte
MAGALDI, Sábato. A Peça que a Vida Prega. Prefácio. In RODRIGUES, N. Otávio Cabral1
Teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. Belmira Magalhães2

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.


RESUMO: Este trabalho abordará a peça de Altimar Pimentel, “Casamento de
SÁ, Celso Pereira de. Representações Sociais: O Conceito e O Estado Atual da Branco”, inserida no universo da Commedia Dell’Arte e da literatura e sociedade.
Teoria. In: SPINK, Mary Jane (org.). O conhecimento do cotidiano: as repre- A marca primordial das personagens Dell’Arte era o uso da esperteza como recurso
sentações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, exclusivo de proteção, sem nenhuma preocupação com o outro. Nessa peça o autor
1995. promove o caminho inverso, coloca sua personagem Benedito, em confronto com
o coronel João Redondo, a figura opressora, na defesa dos seus iguais. Seu prota-
gonista, diferentemente dos aparentados distantes, mostra-se preocupado com o
coletivo, nesse sentido, sem se distanciar da tradição,a peça se insere na discussão
mais abrangente do mundo moderno.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Sociedade, Poder – Riso – Ridículo.

ABSTRACT: This work addresses Altimar Pimentel’s play “Casamento de Branco”,


which belongs to the world of both Commedia Dell’Arte and literature and society.
The use of cunning was the primary mark of the characters of Dell’Arte and was the
sole resource for protection, with no concern for others. In the play, however, the
author encourages the opposite way, for he leads his character Benedito to confront
Colonel João Redondo, an oppressive figure, for the sake of defending his like. The
protagonist, unlike his distant kin, is concerned with the collective, in this sense,
without distancing itself from the tradition, the play fits in the broader discussion
of the modern world.
KEYWORDS: Literature and Society, Power – Laughter – The Ridiculous.

RESUMEN: El presente trabajo discutirá la pieza de Altimar Pimentel, “Casamiento


de Blanco” insertada en el universo de la Comedia Del Arte y de la literatura y
sociedad. La señal característica de los personajes Del Arte era la demostración de
astucia como instrumento de protección, por no hablar de su desprecio con la dicha
de otros. En esta historia el autor promueve el camino contrario, dando a su personaje
Benedito, un enfrentamiento con el coronel João Redondo, el representante de la
opresión, por la defensa de sus compañeros. Su protagonista, diferentemente de los
parientes lejanos, muéstrase aprensivo por la mayoría, en este caso, sin alejarse de la
tradición la pieza se introduce en la discusión más amplia del mundo moderno.
PALABRAS-LLAVE: Literatura y Sociedad, Poder – Risa – Ridículo.

1 Professor dos cursos de Artes Cênicas e de Letras e do Programa de Pós-Graduação Em Letras e Linguística
(PPGLL), da Universidade Federal de Alagoas/UFAL.
2 Professora/pesquisadora do Mestrado em Sociologia (PPS) e do Programa de Pós-Graduação Em Letras e
Linguística (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas/UFAL.
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Altimar Pimentel (1936-2008), dramaturgo alagoano, nascido em Maceió, no A estrutura narrativa está construída em dois planos: o primeiro é o interior da
distrito de Fernão Velho, radicou-se na Paraíba desde 1952, para onde se mudou casa do Capitão João Redondo, e o segundo, a sala de estar. Desta forma, a peça se
aos 16 anos de idade, e onde construiu uma extensa dramaturgia capaz de inseri-lo insere na visão moderna dos anos 1960 e seguintes, influenciada, provavelmente,
na história do teatro brasileiro como um pesquisador atento e acurado observador pelos três planos da peça de estreia de Nelson Rodrigues, “Vestido de Noiva”. Ao
das nossas raízes populares. Seu teatro reflete exatamente essa preocupação, já que abrir-se o pano, o espectador toma contato com as duas personagens que represen-
suas personagens são oriundas, na sua grande maioria, das pesquisas empreendidas tam os empregados da fazenda, Benedito e Maroca, dançando no segundo plano,
no terreno da cultura popular e trazidas para se movimentarem no espaço teatral, enquanto o Capitão João Redondo entra no primeiro, aos berros, chamando por
possibilitando assim a materialização discursiva de sua proposta.3 Rosinha, sua mulher, e Marquesinha, sua filha. Por si só o cenário inicial apresen-
tado reflete o conflito de classes, cada uma em seu devido lugar, e o berro do coronel
Este trabalho se concentrará na sua primeira peça, Casamento de Branco, estabelece o lugar do mando:
escrita em 1965, cuja construção nos transporta ao universo da Commedia Dell’Arte
através de um conjunto de personagens que trazem consigo essa marca original de CENÁRIO – O PALCO É DIVIDIDO EM DOIS PLANOS: O
uma ação comportamental com traços de uma subjetividade característica de socie- PRIMEIRO PLANO É O TERREIRO DA CASA DO CAPITÃO
dades pré-capitalistas. Por outro lado, contraditoriamente, a peça avança para um JOÃO REDONDO; O SEGUNDO É A SALA DE ESTAR. NÃO
do ponto de vista de classe, expresso na visão coletiva manifestada pela personagem DEVE HAVER MÓVEIS, MAS, SE OS HOUVER, QUE SEJAM
ESTILIZADOS, INDEFINIDOS, HARMONIZANDO-SE COM
Benedito, de origem Dell’Arte, em contraponto com outras similares e de idêntica
O ESPÍRITO DESPOJADO DA PEÇA.
origem, cuja visão é individualista.
(MÚSICA. ENTRA BENEDITO, COM UM CACETE NA MÃO,
Casamento de Branco é uma peça, como já dissemos, calcada na cultura popu-
4
ACOMPANHADO DE MAROCA. DANÇAM AO SOM DA
lar, o que, aliás, constituiu uma marca autoral, de onde ressaltam duas personagens: MÚSICA)
a primeira, Benedito, um negro namorador, apaixonado por Maroca, empregado BENEDITO – (DANÇANDO) Ui, ui, ui! Eita gaita! Arrocha aí
da fazenda do coronel João Redondo, que se nega peremptoriamente a casar, ape- – (DANÇA COM MAROCA) – Segura, menina! Aiii! Arrocha, negui-
sar da insistência e das ameaças da namorada; a segunda personagem é o próprio nha! Ui, ui, ui! Eita gaita! Afolega ai! Segura, neguinha!
João Redondo, proprietário rural, casado com Rosinha, pai de Marquesinha, que − (CANTA) – Pirão! Pirão! Pirão!
pretende casar-se com Paulo, mas o pai insiste no casamento com Mané Contente, Pirão! Pirão! Pirão!
Pirão! Pirão! Pirão!
seu primo, a quem ela detesta, para atender a conveniências de ordem econômica,
ou seja, para que a fortuna continue na família. Além dessas personagens, há uma (JOÃO REDONDO ENTRA NO PRIMEIRO PLANO E
outra, Porrote, contratado por João Redondo para vigiar o açude, em decorrência PASSEIA DE UM LADO PARA O OUTRO, VISIVELMENTE
dos constantes roubos de peixe, que se apresenta como a personagem encarregada NERVOSO.)
de fazer o jogo sujo, além de se constituir no “saco de pancadas”, o que é uma carac- JOÃO REDONDO – (GRITA) – Rosinha! Marquesinha!
terística bem evidente da Commedia Dell’Arte e do gênero cômico como um todo.
(A MÚSICA PARA. BENEDITO E MAROCA FOGEM PARA O
O enredo da peça, ou seja, os quiproquós construídos, são ingredientes fun- INTERIOR DA CASA, DANDO A ENTENDER QUE VÃO SAIR
PELOS FUNDOS.) (PIMENTEL, 1983, p. 27)
damentais para a construção do riso e, se vistos por um olhar menos atento, podem
até obter o rótulo de um enredo banal e despretensioso, porém, em se tratando
Nesse momento inicial, em que Benedito e Maroca dançam na sala de estar da
de Altimar Pimentel, isso não pode ser considerado, dada a aguçada preocupação
casa do coronel, percebe-se uma ousadia praticada por duas personagens social-
social manifesta em toda a obra.
mente subalternas, ao desafiarem o elemento opressor em seu próprio domínio.
Essa forma de representação, através da exposição do outro ao ridículo, e conse-
3 Com esta análise, além de prestarmos uma homenagem, cumprimos também um desejo de Altimar quentemente à submissão do riso, cumpre efetivamente aquela função punitiva dos
Pimentel, que, por reiteradas vezes, nos solicitou que expressássemos nossa visão sobre a peça. costumes, atribuída por Molière ao gênero cômico:
4 Para a nossa análise optamos pela versão original da peça e não pela edição revista pelo autor, em 2003, ao
dar inicio à edição dos volumes de sua obra completa, intitulada Teatro de Raízes Populares. Nessa edi-
ção, o autor resolveu promover algumas modificações no texto, até mesmo mudando o nome de algumas
personagens oriundas do universo da cultura popular. Por entender que as alterações promovidas em nada
alteram o teor do texto é que resolvemos analisá-lo em sua versão original.
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BASTIÃO – Como é que eu vou vigiar um açude onde eu mesmo pego melhor, de acordo com os princípios de uma subjetividade que ainda não percebe a
peixe junto com os outros? possibilidade de enfrentamento coletivo da exploração.
BENEDITO – Vigiando, ora! Agora, só você pesca, sem se
preocupar.
A marca transgressora de Altimar Pimentel nessa peça reside na utilização da
estrutura dramática da Commedia Dell’Arte, ao mesmo tempo que inova na posição
BASTIÃO – Eu não posso fazer isso! Como vou proibir os outros de crítica do protagonista, isto é, incorpora aspectos conservadores da cultura popular
pescar? Eles têm tanta precisão quanto eu.
a uma leitura crítica de seu tempo, possível, na narrativa. Nesse sentido, o riso pro-
BENEDITO – Tem uma coisa que você precisa entender: se você não move a reflexão, fazendo com que haja reconhecimento da realidade da exploração
aceitar o emprego, outro aceita. Qualquer um desses que pescam com de classe. Para Bergson (2001), o riso é essencialmente social; seu meio natural é a
você. E, depois, você pode muito bem fazer um acordo com o pessoal: sociedade, onde deve corresponder a certas exigências da vida em comum e onde
você vigia e eles pescam. Quando o Capitão se aproximar, você faz um
cumpre sua função social.
sinal e eles se escondem.

BASTIÃO – É. Assim pode dar certo. Quer dizer que em vez de vigiar Vladímir Propp (1992), no estudo sobre comicidade e riso, afirma que o riso
o açude para o Capitão, eu vou vigiar o Capitão para o povo poder que zomba provém sempre do desmascaramento da vida interior, espiritual, do
pescar ... (PIMENTEL, 1983, p. 33) homem, que necessariamente se constitui a partir das ideologias nascidas das rela-
ções sociais de produção, de cada sociabilidade e em um tempo específico. Nesse
sentido, o riso precisa atingir para se fazer crítico às subjetividades singulares, pois,
Considerando ser a arte um elemento intrinsecamente associado ao cotidiano
como diz Propp (1992, p. 175):
dos seres humanos, verificamos que ao tratar do cômico ela nos informa que a
matéria de que se nutre a comédia é, sem dúvida, “o que contrasta com as idéias de O riso é suscitado por certa dedução inconsciente que parte do visível
norma, decência, ordem e natureza” (ALBERT,1999, p.122). O ridículo é, pois, para chegar ao que se esconde atrás desta aparência. [...] O riso surge
aquilo que contrasta com os princípios embasadores da normalidade, da dignidade quando a esta descoberta se chega de repente e de modo inesperado,
e das leis. Talvez por isso, Molière, ao fazer a defesa do seu Tartufo, no prólogo quando ela tem o caráter de uma descoberta primordial e não de uma
especialmente escrito após cinco anos de censura, tenha sido tão veemente quanto observação cotidiana, e quando ela adquire o caráter de um desmasca-
à função da comédia: ramento mais ou menos repentino.

Majestade: é costume ouvir-se que a comédia Em Casamento de Branco essa função será prioritariamente exercida por
Corrige divertindo; uma plateia pede-a Benedito, personagem que tem consciência da exploração e procura direcionar suas
Não só para sorrir de máscaras fingidas ações para satisfazer os interesses dos seus iguais, direcionando-as sempre contraria-
Que moram noutro mundo e mostram outras vidas mente ao Coronel João Redondo, seu patrão. Na verdade, o patrão é usado como
Mas para descobrir, atrás das fantasias,
instrumento para pôr fim à exploração, ou melhor, para punir quem os explora.
A verdade que roça em nós todos os dias.
Benedito se utiliza das armas do patrão voltando-as contra ele mesmo. Primeiro,
(MOLIÈRE,1975, p. 1-2)
atende ao pedido do coronel para contratar alguém que vigie o açude e evite o furto
Desta forma, a peça de Altimar Pimentel procura punir os costumes ao denun- dos peixes, e leva Bastião, seu amigo, um reconhecido preguiçoso, para exercer tal
ciar a exploração da sociedade de classes, expondo ao riso e à galhofa o elemento tarefa. É claro que o coronel aceita a indicação, e Bastião vai exercer o seu ofício
explorador, mas ao mesmo tempo dá um salto qualitativo, se compararmos com sob a orientação de Benedito, facilitando o furto para beneficiar seus amigos, ou
outros autores que transitam pela mesma vertente Dell’Arte, ao colocar a persona- seja, exercendo uma ação fiscalizadora contra os olhos, sempre atentos, de João
gem Benedito agindo em favor dos seus iguais, ou seja, pensando coletivamente, o Redondo, principalmente contra Porrote, que é uma personagem aliada do coronel,
que não acontece com boa parte de personagens de outras peças,5 que agem uni- encarregada de espancar, sempre maltratando os trabalhadores:
camente para se defender das agressões, sem nenhuma preocupação com o outro,
BASTIÃO – Benedito, o que você quer comigo? Por onde eu passei
ou seja, agem como seus antepassados Dell’Arte, ou como os pícaros espanhóis, ou encontrei recado que você estava me procurando.
BENEDITO – Eu arranjei um trabalho para você.
BASTIÃO – (DESMAIO) – Oh, meu Deus!
BENEDITO – Mas é maneiro. Não precisa fazer força... Não precisa
5 Tais como João Grilo e Chicó, de Ariano Suassuna; Garcia e Militão, de Volney Leite e Gercino Souza; mesmo fazer nada. É só ganhar o dinheiro...
Cancão de Fogo, de Jairo Lima.
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BASTIÃO – (RECOBRA O ÂNIMO) – Nada? Que trabalho é esse? JOÃO REDONDO – Duzentos cruzeiros.
BENEDITO – De vigia. Você vai vigiar o açude do Capitão João BENEDITO – Quinhentos.
Redondo. Ele não quer que ninguém pesque no açude. JOÃO REDONDO – É um roubo. Trezentos.
BASTIÃO – Isso é muito trabalhoso... Eu não tenho experiência... BENEDITO – Quinhentos.
BENEDITO – Está aí uma coisa que a gente só ganha JOÃO REDONDO – Quatrocentos. Nem mais um tostão. – (SAI
experimentando. PARA O INTERIOR DA CASA). (PIMENTEL, 1983, p. 29)
BASTIÃO – E se o Capitão descobrir que eu nunca trabalhei de
vigia? Pouco a pouco, o autor vai revelando o grau de desconfiança de Benedito
BENEDITO – Ele só vai descobrir se você disser. e a justificativa para o seu comportamento. De fato, o Coronel não poupa esfor-
BASTIÃO – Eu não posso enganar o Capitão.
ços para subtrair sempre mais e, consequentemente, lucrar mais, e essa subtração
BENEDITO – O que é que não pode? Claro que pode. Escute aqui: o
que é que o Capitão tem feito a vida toda? Enganar. A mim, a você, a
resulta sempre em penalização sobre os trabalhadores. Na verdade, trata-se de um
todos aqui. Como foi que ele ficou rico? Comprando terras de viúvas reflexo estético6 do comportamento da classe dominante na periferia da periferia do
dos vizinhos que mandou matar. (PIMENTEL, 1983, p. 32) capitalismo, que tem na utilização da mais-valia absoluta − o tempo exorbitante da
atividade do trabalhador (MARX, 1968) − o centro da sua exploração no Nordeste
Como se vê, a estratégia de Benedito é devolver ao Capitão tudo o que é brasileiro. A personagem João Redondo representa a figura Tipo (LUKÁCS, 1966)
desferido contra os trabalhadores. Seu comportamento é voltado inteiramente para que consegue congregar os principais traços da atuação dos donos de terra no
o coletivo, diferentemente do comportamento que acompanha as personagens da Brasil.
mesma raiz. Não satisfeita em colocar alguém para vigiar o Coronel, a personagem
utiliza toda sua esperteza no sentido de promover estratégias que àquele acarretem No entanto − não podemos esquecer −, estamos diante de uma personagem
prejuízo e beneficiem os oprimidos. cuja raiz repousa na Commedia Dell’Arte, e essa raiz reproduz o comportamento dos
excluídos, principalmente através dos Zanni, as personagens subalternas, os servos,
Casamento de Branco é uma comédia que não apenas expõe as fraturas e fissuras Arlequim e Briguela. É típico da comédia − como falamos − fomentar o riso para
da sociedade de classe, mas, acima de tudo, se propõe a revelar a fragilidade a que a punição dos costumes, visando chamar atenção da sociedade ao que precisa ser
está sempre exposta a classe dominada, ao mesmo tempo que demonstra que, em mudado, e é também função desse gênero punir o opressor, expondo-o ao ridículo
situações adversas como a que ocorre no campo brasileiro, onde o enfrentamento e exercendo a vingança de classe:
direto entre as classes ainda não se tornara possível, a esperteza, comumente, deve
ser usada como estratégia de sobrevivência ante a exploração do dominante, que [...]
BENEDITO – [...] Quanto ele vai ganhar?
convive diretamente com os dominados:
[...]
JOÃO REDONDO – O salário mínimo. – (VAI SAINDO)
JOÃO REDONDO – (CORTA) Eu preciso que você me arranje um
JOÃO REDONDO – [...] O que você quer ainda? [...]
vigia para cuidar do açude. Agora eu quero um cabra disposto. Cabra
BENEDITO – É que Bastião está precisando de um adiantamento.
de mandar e ele cumprir.
Deixou a família em casa com fome, desprevenida de um tudo.
BENEDITO – Sei.
JOÃO REDONDO – Dinheiro, não. Se quiser posso mandar despa-
JOÃO REDONDO – Sabe de alguém?
char alguma coisa no barracão.
BENEDITO – Bem... E a gratificação?
[...]
JOÃO REDONDO – (FAZENDO-SE DE DESENTENDIDO) –
JOÃO REDONDO – (RECEBE O BLOCO DE PAPEL E O LÁPIS.)
Gratificação? Que gratificação?
– Está bem. De que está precisando?
BENEDITO – A que o senhor falou: “Se Benedito me arranjasse um
(DURANTE TODA A CENA QUE SE SEGUE,
vigia eu dava uma boa gratificação a ele”.
BENEDITO INSINUA O QUE BASTIÃO DEVE PEDIR,
[...]
ESTIMULANDO-O.)
JOÃO REDONDO – Arranje um vigia e depois a gente vê essa histó-
BASTIÃO – (ESTIMULADO POR BENEDITO) – Dois litros de
ria de gratificação.
feijão.
BENEDITO – Está aí um negócio que eu não faço nem com meu pai
– que Deus o tenha lá! – Primeiro a gente acerta a gratificação e depois
eu arranjo o vigia.
[...]
BENEDITO – [...] Quanto? 6 Reflexo estético no sentido lukacsiano, que compreende a obra de arte como uma reflexão sobre a reali-
dade, ao trazer necessariamente os componentes da própria realidade. Ver LUKÁCS, 1966.
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JOÃO REDONDO – (TOMANDO NOTA) – Um litro de feijão. Graciliano Ramos, em Vidas secas, já havia representado a submissão do traba-
Que mais? lhador que a qualquer reivindicação sobre as contas acertadas é ameaçado com a
BASTIÃO – Dois quilos de carne-seca.
perda do emprego, o que faz com que os trabalhadores se calem. Em Casamento de
JOÃO REDONDO – Um quilo de carne seca. Mais alguma coisa?
Branco também não há um enfretamento direto, em relação ao patrão que quebra
(PIMENTEL,1983, p.34-35)
o acerto anterior. Benedito percebe a diferença de forças e ataca com as ferramentas
O diálogo vem demonstrar que a exploração do poder se dá de formas diferen- possíveis para aquela realidade: trapaceia, levando as outras personagens, o leitor e
tes, mas sempre pagando ao trabalhador menos do que o produzido, utilizando-se o público em geral a ficar do seu lado contra o poder.7 Este tipo de comportamento
de trapaças nas solicitações dos empregados, que, em sua maioria, não sabem ler, e não é o que se percebe na realidade, mas a arte, mediante a forma escolhida para
também superfaturando no preço dos produtos adquiridos nas vendas, barracões de problematizar o cotidiano, consegue reverter a realidade e apresentar possibilidades
propriedade do próprio dono das fazendas. que poderão se tornar realidade. No caso particular da narrativa analisada, a forma
cômica produz uma sensação catártica em todos que tomam contato com a peça e
Seguindo o “aparente” diálogo entre as classes, temos novamente o uso da burla acabam se identificando com os injustiçados da sociedade, torcendo para o infortú-
por parte do poder, rompendo os tratos ao sabor de sua conveniência. A menor nio de João Redondo.
tentativa de reivindicação é rechaçada imediatamente pelo patrão.
As figuras encarregadas de promover a burla, a trapaça, são sempre os domina-
[...] dos, constituindo-se no grande esteio do elemento cômico, Por outro lado, para
BENEDITO – (IMPEDE A SAIDA DE JOÃO REDONDO.) – que os jogos cômicos surtam efeito são necessários um alvo e o objeto, sempre tra-
Espere, Capitão. O senhor está esquecendo o principal. paceados, tornando-se caricaturas grotescas de si mesmos e representando figuras
JOÃO REDONDO – (IRRITADO) [...] O que quer ainda? do poder.
BENDITO – O nosso trato.
JOÃO REDONDO – Que trato? Não sei de que está falando! A partir do comportamento de quem vive constantemente entre o gume e o
BENEDITO – Dos quatrocentos cruzeiros que o senhor me prome-
corte, pronto a explodir a qualquer momento, Benedito vai tirar proveito e exercitar
teu se eu arranjasse um vigia. Eu arranjei o vigia. Agora quero meu
dinheiro.
sua esperteza, como o faziam seus ascendentes mais distantes, Briguela e Arlequim.
JOÃO REDONDO – Ora, está conversando! Não está vendo que não No entanto, em Altimar Pimentel esse tipo de atitude não é apenas a reprodução
vou dar dinheiro nenhum a você. Você não fez nada. Foi ali, encontrou do modelo da Commedia Dell’Arte; aqui, não se trata tão somente de uma forma de
uma pessoa e quer ganhar uma gratificação de quatrocentos cruzeiros! escapar de situações embaraçosas, dando asas à esperteza, mas de um enfrentamento
Eu não posso jogar dinheiro fora assim não. E tem mais: você deve ser às ações do capitão em relação aos seus empregados.
agradecido por toda a atenção que lhe tenho, pelo emprego que lhe
dou. Isso, sim. Benedito − como vimos − faz constantemente o uso da esperteza, sua melhor
BENEDITO – Mas, Capitão... o senhor fez um trato!... arma, como forma de se proteger das agressões externas direcionadas a sua classe.
JOÃO REDONDO – Você ainda está resmungando! Quer perder o
Age, como agiu Pedro Malasartes, para escapar das esparrelas montadas pelo fazen-
emprego? – (SAI.)
BENEDITO – [...] tentei ajudar os três.
deiro. Porém o grande diferencial é que Benedito não o faz movido apenas por um
BASTIÃO – Três? pensamento individual, e sim coletivo. Seus atos não visam agradar o capitão João
BENEDITO – A mim também, claro, que estou precisando de Redondo, mas proteger a si e a seus companheiros. A receita de Benedito afasta-se
dinheiro. Mas ele vai me pagar. Dê cá essa nota. da de Malasartes, pois suas ações objetivam atingir a todos os que necessitam se
[...] “arranjar” (CANDIDO, 1993) para sobreviver na sociedade desigual. Essa forma
BASTIÃO – Está bem... – (SAI) de agir através da exposição do outro à galhofa torna evidente o conflito entre as
BENEDITO – (SOZINHO) – Vamos ver esta nota. É só acrescentar
classes e a impossibilidade de comunhão entre elas. A exposição do poder ao ridí-
um na frente de cada número. – (ALTERANDO A NOTA) – Um litro
de feijão, com um na frente, temos onze litros. Muito bem. Justo. Um
culo explicita a exploração sobre os dominados.
quilo de carne, com um na frente, aumenta para onze. – (ENTRAM,
Esse é, aliás, um dos primordiais objetivos do riso, segundo Bakhtin; ao
NO SEGUNDO PLANO, MARQUESINHA E ROSINHA.) – Um
quilo de arroz, com um na frente... tratar do Renascimento: “o riso é ou um divertimento ligeiro, ou uma espécie de
(AO PERCEBER A PRESENÇA DAS DUAS, BENEDITO FAZ
UMA MESURA COM O CHAPÉU, E SAI ALTERANDO A
7 Todos os movimentos dos trabalhadores rurais no Brasil foram atacados pela imprensa e pelo poder como
NOTA.) (PIMENTEL, 1983, p. 36-37)
formas ilegais de reivindicações, cf. MAGALHÃES e SILVA SOBRINHO, 2010.
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castigo útil que a sociedade usa para os seres inferiores e corrompidos” (BAKHTIN, Vladímir Propp (1992, p. 99) lança mão do termo odurátchivanie para
1987, p. 58). O riso tem, assim, um profundo valor de concepção de mundo; é uma caracterizar alguém que é feito de bobo, princípio, aliás, que é frequentemente uti-
das formas pelas quais se manifesta a verdade sobre o mundo na sua totalidade e lizado pelas personagens da cultura popular, como o João Redondo, do teatro de
onde este é percebido de uma forma diferente, por meio de um ponto de vista uni- bonecos. O João Redondo da peça não chega a ser propriamente um bobo; Bendito
versal, mostrando a importância de se compreender cada ser humano como parte da é que o torna assim a partir de suas ações. Seu ridículo é ressaltado em razão de sua
humanidade, sem a intermediação de posições sociais. Todos podem ser ridículos posição perante a sociedade.
ou não.
Segundo Propp (1992), o riso de zombaria é um dos que mais diretamente se
Na verdade, o que o riso contraria são os códigos não escritos e estipulados ligam à comicidade; esta, por sua vez, associa-se a um desnudamento dos defeitos
socialmente; quando esses códigos são transgredidos, confrontamo-nos com “certos que estão à vista ou daqueles mais íntimos, mais secretos e que, de uma forma ou de
ideais coletivos”, como define Propp (1992), e passamos a percebê-los como defei- outra, conduzem ao riso. O cômico, afirma Propp, está associado a uma contradi-
tos, sendo essa descoberta conduzida então invariavelmente ao riso. A humanidade ção que não deve ser procurada exclusivamente no interior do objeto ou no sujeito
necessita, portanto, da comédia para se separar alegremente de seu passado; essa do riso, mas na relação recíproca entre ambos, tanto no sujeito que dá risada quanto
forma de separação é, em si, um exercício catártico de libertação, não significando naquele que está à sua frente e que é o objeto do riso.
dizer que, através do riso, a humanidade se desligará do seu passado; muito pelo
contrário, o passado é algo que se entranha, se incorpora, porém, ao ridicularizá-lo, Essa característica do cômico é plenamente utilizada em “Casamento de Branco”,
estamos construindo as condições para questionar o presente. que é finalizada fazendo o capitão virar um ser que não consegue conduzir mais sua
vida e ao mesmo tempo dá ao sujeito provocador do infortúnio, Benedito, a opor-
Segundo Propp (1992, p. 99), “a causa do riso é inerente às características tunidade de rir da própria situação e de seu algoz:
daquele que é objeto do riso. O revés é provocado por ele mesmo. Atua ele mesmo.
Mas o revés ou o malogro da vontade pode ser intencionalmente suscitado por MAROCA – Calma, seu Mané! Deve estar por ai, passeando.
outrem; nesse caso agem duas pessoas”. Ou seja, ações desse tipo objetivam fazer MANÉ – Uma noiva passeando na hora do casamento? Quem já ouviu
alguém de bobo. falar numa coisa dessas! – (GRITA, HISTÉRICO.) – Dona Rosinha!
Dona Rosinha!!!
(ENTRA PORROTE.) ROSINHA – (ENTRA APRESSADA.) – O que houve? Onde está
PORROTE – Capitão! Capitão, o açude está cheio de gente Marquesinha?
pescando! MANÉ – Fugiu! Fugiu!
JOÃO REDONDO – O quê? O que é que você está dizendo? E o ROSINHA – Meu Deus! Não é possível. Vamos. Vamos atrás dela.
vigia? BENEDITO – (RINDO) – A noiva fugiu e ele ainda vai atrás. Isso é
PORROTE – Está lá. Organizou uma fila. Cada turma de pescadores que é ser besta! Em vez de aproveitar e se livrar!...
pode pescar durante uma hora. Depois dá lugar a outra turma. Ele fica MAROCA – O quê? O que é que você está dizendo? Abra seu olho!
vigiando. BENEDITO – Eu só queria dançar com você, nêga. Vamos, sacudir,
JOÃO REDONDO – Vigiando o quê? nêga!
PORROTE – O senhor, para avisar o pessoal para se esconder. (ENTRA O CAPITÃO JOÃO REDONDO, EM PIJAMA,
JOÃO REDONDO – E por que você não trouxe esse desgraçado aqui GRITANDO. ATRAVESSA SEGUNDO PLANO, COMO SE
como eu mandei? NÃO VISSE NINGUÉM.)
PORROTE – Achei melhor vir avisar. O senhor pode querer ver o JOÃO REDONDO – Ladrões! Ladrões! Estão roubando meus pei-
estrago que estão fazendo.... xes! Roubam no barracão! Ladrões! Deixem meus peixes! Meus peixes!
JOÃO REDONDO – (APOPLÉTICO) – Não quero ver nada! Vá Minhas mercadorias! Ladrões! Porrote! Porrote! Atira! Atira! Mete fogo
atrás daquele desgraçado e quebre no pau! Mas, muito pau mesmo, no rabo desses ladrões! – (SAI GRITANDO. POR ALGUM TEMPO
ouviu? AINDA SE OUVEM OS SEUS GRITOS FORA DE CENA.)
PORROTE – O senhor manda, Capitão. Pode deixar. – (VAI BENEDITO – Esse pirou duma vez!
SAINDO.) (MÚSICA. BENEDITO E MAROCA CANTAM E DANÇAM.)
JOÃO REDONDO – (OFEGANTE) – Depois, passe lá na casa dele e (PIMENTEL, 1983, p. 55)
tome tudo o que ele apanhou no barracão. Não deixe nada!
PORROTE – Fique sossegado. – (SAI) Como vimos, Altimar Pimentel nessa peça não contemporiza em nenhum
(PIMENTEL, 1983, p.49) momento com o opressor, fazendo-o perder o dinheiro, perder a filha e perder
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o juízo, enquanto Benedito, que o enfrenta, a partir de seus quiproquós, termina PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
vencedor e feliz, tendo como único problema conseguir se livrar do casamento com
Marocas. O ponto alto do texto, que o separa da maioria do mesmo gênero, é a PIMENTEL, Altimar. Casamento de Branco. In: Teatro de raízes populares.
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Julho a Dezembro de 2010 85

Metateatro e intertexto no Teatro Moderno

Sonia Aparecida Vido Pascolati1*

RESUMO: O presente artigo apresenta uma proposta de pesquisa acerca das rela-
ções entre metateatro e intertextualidade, tomando ambos os procedimentos como
possível fator de modernização do drama na primeira metade do século XX. Para
tanto, proponho a análise de obras de três dramaturgos – Luigi Pirandello, Bertolt
Brecht e Jean Anouilh – e revisito as propostas teóricas de Peter Szondi sobre a “epi-
cização” como recurso preponderante no processo de criação do drama moderno
e de Manfred Schmeling no que tange à associação entre metateatro e intertexto a
partir da paródia e sob uma perspectiva formal.
PALAVRAS-CHAVE: metateatro; intertextualidade; drama moderno.

ABSTRACT: This paper presents a research proposal about the relationship


between intertextuality and metatheatre, taking both procedures as a possible factor
in the modernization of drama in the first half of the twentieth century. To that
end, I propose the analysis of works of three playwrights – Luigi Pirandello, Bertolt
Brecht and Jean Anouilh – and revisit the theoretical proposals of Peter Szondi
on the presence of the epic element in the creation process of modern drama and
Manfred Schmeling in regard to association between metatheatre and intertext
from parody and under a formal perspective.
KEYWORDS: metatheatre; intertextuality; modern drama.

RESUME: Cet article présente une proposition de recherche sur la relation entre
l’intertextualité et métathéâtre, en prenant les deux procédures en tant que facteur
possible de la modernisation de la dramaturgie dans la première moitié du XXe
siècle. Pour atteindre cet objectif, je propose l’analyse des œuvres de trois auteurs –
Luigi Pirandello, Bertolt Brecht et Jean Anouilh – et de reconsidérer les propositions
théoriques de Peter Szondi sur la direction du drame vers l´epique comme élément
prédominant dans le processus de création du drame moderne et de Manfred
Schmeling en ce qui concerne l´association entre métathéâtre et intertexte a partir
de la parodie et sous un point de vue formel.
MOTS CLÉS: métathéâtre; intertextualité; drame moderne.

1* Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas e do Programa de Pós-Graduação


em Letras da UEL – Universidade Estadual de Londrina.
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Introdução peça sejam metateatralmente recriadas, isto é, a reescritura de um texto (intertexto)


adquire aporte crítico; desse modo, a “dupla função cômica e crítica do teatro no
Estudos sobre modernidade teatral no mundo e no Brasil têm se intensificado teatro torna-se paródia” (SCHMELING, 1982, p.23).2 O estudo do autor prussiano
nas últimas décadas, em particular porque a distância temporal em relação ao fenô- fornece as bases para o aprofundamento da reflexão pretendida por mim, afinal,
meno estético permite considerações mais objetivas e conclusões mais sólidas. Nos ele contempla Pirandello e Brecht em seu livro e centra sua atenção em questões
últimos três anos (2007 a 2010) dediquei-me ao estudo da dramaturgia de Oswald formais, o que mais interessa na relação metateatro/ intertexto, visto que ambos os
de Andrade a partir da perspectiva da revisitação do marco da modernidade teatral procedimentos esgarçam os limites das formas dramáticas convencionais, permitem
brasileira e tendo como questão central a participação do metateatro como ele- revisões conceituais e incluem a recepção (relação leitor-texto, palco-plateia) no
mento de renovação dramatúrgica e teatral. bojo da problemática. Resta ampliar essas relações a fim de verificar a possibilidade
de reconhecimento desse traço do teatro do século XX como elemento do processo
O estudo das três peças principais do ponta de lança do Modernismo brasileiro de modernização do drama.
– O rei da vela (1933), O homem e o cavalo (1934) e A morta (1937) – permitiu o
levantamento e a análise de recursos metateatrais que vão além da ruptura da ilusão A produção dramatúrgica da primeira metade do século configura um momento
teatral, comumente seu principal efeito, remetendo particularmente à inserção de impar da história do teatro ocidental, visto que, por influência estética das van-
um discurso crítico no texto dramático. A presença do discurso crítico não se limita guardas e em função da reconfiguração econômica e política provocada pelas duas
a influir no conteúdo da peça, contemplando também uma questão formal, pois grandes guerras, a arte em geral toma novos rumos e se propõe novas questões.
à medida que o texto dramático se abre para a reflexão sobre seu próprio fazer-se, Perguntas sobre o estatuto da arte e sua função social perpassam a produção literá-
abandona ao menos parcialmente seu caráter fechado, absoluto. Mas essa abertura ria e pictórica e não escapam, obviamente, do olhar arguto de muitos dramaturgos;
torna-se ainda mais significativa quando a presença do intertexto é relacionada a é nesse terreno de autoreflexividade da arte que o metateatro surge como recurso
recursos metateatrais de composição dramatúrgica. necessário para a revisão de certos postulados, tal como o do teatro ser reprodução
da realidade (paradigma naturalista). A questão da ilusão teatral ocupa a cena dos
As peças de Oswald se constroem a partir do diálogo com textos da tradição (o debates e os autores, em particular os selecionados para este estudo, encontram no
casal medieval Abelardo e Heloísa em O rei da vela; a Divina comédia em A morta e metateatro o recurso ideal para desenvolver esse questionamento.
personagens literárias e personalidades históricas variadas em O homem e o cavalo).
Estudos sobre paródia e demais recursos intertextuais apontaram uma relação mais A presença do intertexto no teatro moderno parece apontar para duas direções:
estreita do que a imaginada inicialmente entre metateatro e intertexto. Portanto, a primeira é o diálogo com a tradição, essencial num momento em que a arte teatral
o projeto de pesquisa “Metateatro e intertexto no teatro moderno”, iniciado em se questiona acerca de seus limites e possibilidades. Resgatar a tradição é revisitar
agosto de 2010, pretende aprofundar o estudo dessa relação. temas, valores, postulados estéticos e, como quer Brecht, colocar épocas históricas
diversas em diálogo a fim de que o passado possa ser revisto e o presente saiba
O escopo da reflexão sobre modernidade teatral foi ampliado para além da tra- assimilar – antropofagicamente – lições do passado. A segunda direção é o resgate
jetória brasileira, pois a renovação dramatúrgica tem como ponto inicial a produção de formas dramáticas, tal como acontece com a tragédia retomada por Brecht e
de autores do fim do século XIX e início do século XX e procurei estabelecer, como Anouilh. Personagens brechtianas como Antígona, Joana D´Arc e Galileu Galilei
foco de estudo, aqueles que mais significativamente contribuem para o processo de são inseridas no contexto da sociedade capitalista, portanto, levadas a assumir novos
modernização teatral: Luigi Pirandello e Bertolt Brecht. Além da obra desses pilares posicionamentos; exemplo disso é a transformação sofrida pelos conceitos de des-
da dramaturgia moderna, contemplarei também o estudo de peças do francês Jean tino e heroísmo, típicos da tragédia grega, nas mãos de Brecht. Pirandello faz algo
Anouilh, menos conhecido e estudado no Brasil, mas cuja dramaturgia é, de meu ainda mais radical: questiona a forma dramática como possibilidade de representa-
ponto de vista, um ponto de convergência entre os procedimentos metateatrais piran- ção do mundo de seu próprio interior, fazendo da reflexão sobre o drama a temática
dellianos e os intertextuais brechtianos. O objetivo do projeto é, portanto, o estudo do do próprio drama. Por isso suas peças não se “encaixam” nas classificações for-
processo de modernização do drama no século XX a partir de dois aspectos centrais: mais canônicas (tragédia, comédia, drama) e inspiram autores como Lionel Abel
a presença do metateatro e a recorrência do intertexto, focando o modo como esses (1968) a defenderem a tese de que o metateatro ultrapassa o escopo de um recurso
procedimentos se conjugam para a modernização formal e temática do drama. de composição de peças, alcançando o status de forma dramática. Anouilh, por
Manfred Schmeling (1982) associa metateatro e intertexto a partir da paródia sua vez, resgata formas cômicas populares como o vaudeville e o boulevard como
e sob uma perspectiva formal. Segundo ele, é possível que, por meio da paródia e
do travestimento, intriga (plano do conteúdo) e expressão (plano da forma) de uma
2 “[...] cette double fonction comique et critique du théâtre dans le théâtre devenu parodie”.
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matéria-prima de suas incursões metateatrais. A mistura de gêneros, redundando ação dramática é que, diferentemente do diálogo – cuja função é provocar desdo-
em novas formas dramáticas, raras vezes conheceu um praticante tão inventivo, irô- bramentos, fazer a ação caminhar, dar a conhecer as personagens e suas motivações
nico e renovador quanto o dramaturgo francês cuja produção se estende por quase – a conversação “não tem uma origem subjetiva e uma meta objetiva: ela não leva
todo o século XX. a outra coisa, não passa para a ação” (SZONDI, 2003, p.106), procedimento uti-
lizado por Beckett em Esperando Godot; 3. a peça de um só ato, que se concentra
Por fim, as teorias acerca de metateatro e intertextualidade, por recentes e provo- no momento de tensão e apresenta no palco mais uma situação do que o evolver
cativas que são, merecem atenção por parte de pesquisadores, não havendo método de uma ação. Por essa razão, essa forma inviabiliza o processo de transformação
melhor, em minha opinião, do que tomar a produção literária, na condição de res- da personagem e captação de seu todo, visto que o público e/ou leitor a conhece
posta a desafios estéticos e históricos específicos, como ponto de partida para a (re) apenas imersa em uma situação limite; 4. e a situação de confinamento, na qual as
formulação de premissas teóricas. Esse é o critério que norteou a escolha dos drama- personagens encontram-se isoladas e se vêem obrigadas a dialogar e relacionar-se
turgos, afinal, eles são paradigmáticos para a reflexão sobre metateatro e intertexto intersubjetivamente. Impedidas de aderir ao silêncio ou ao monólogo, as perso-
em estudos de teoria do drama. nagens fazem do diálogo um modo de ferir-se mutuamente, configuração típica
de peças de teor existencialista como Entre quatro paredes de Sartre ou do confina-
mento voluntário das mulheres de A casa de Bernarda Alba de Lorca.
Especulações teóricas iniciais
Surgem também algumas “tentativas de solução” da crise, dentre as quais desta-
Peter Szondi (2003), na obra Teoria do drama moderno, parte da premissa da camos apenas 1. a dramaturgia do eu, de cunho expressionista, em que o indivíduo
ocorrência de uma crise da forma do drama na passagem do século XIX para o XX, está isolado e mergulhado em sua própria subjetividade, inviabilizando o diálogo e
crise que exige, por parte dos dramaturgos, a experimentação de formas de reno- fragilizando a ação dramática, o que leva Szondi (2003, p.126-127) a afirmar que,
vação dramatúrgica. Para Szondi (2003, p.29), a característica do drama da época “com a renúncia altiva às relações intersubjetivas, que devem velar ‘a imagem do
moderna, surgido no Renascimento, é a “reprodução das relações intersubjetivas” humano’, sucede a recusa da forma dramática, que para o dramaturgo moderno
como modo de representação dramática do mundo; sua base, portanto, é o diálogo. se nega a si mesma porque aquelas relações se tornaram frágeis”; 2. o monólogo
A conseqüência dessa afirmação é que “da possibilidade do diálogo depende a pos- interior, cujo funcionamento dramático parece derivar do aparte na medida em que
sibilidade do drama” (SZONDI, 2003, p. 34). ambos revelam a interioridade da personagem, mas se distanciam porque o aparte só
faz sentido quando as personagens estão em diálogo, ao passo que o monólogo inte-
As transformações sociais e econômicas da segunda metade do século XIX levam
rior empurra o diálogo para fora da forma dramática, substituindo-o pela revelação
o drama a adotar novas temáticas, colocando em cena personagens para as quais
individual de pensamentos íntimos; 3. a impossibilidade do drama transformada
as relações intersubjetivas perdem espaço para a exposição de sua interioridade;
em tema do próprio drama, como faz Pirandello em Seis personagens à procura de um
o drama sofre um processo de interiorização. Dramaturgos como Henrik Ibsen,
autor, peça na qual a tentativa de dramatização da história vivida pelas personagens
Anton Tchékhov e August Strindberg criam personagens e intrigas que já não são
durante o ensaio de uma trupe revela claramente a inadequação entre conteúdo e
abarcadas pela forma dramática tradicional. Szondi (2003, p. 91) considera esse um
forma, com aponta Szondi (2003, p.147): “[...] Pirandello viu claramente a resis-
momento de crise do drama: “Enquanto forma poética do fato presente e intersub-
tência da matéria e de seus pressupostos intelectuais à forma dramática. [...] Assim
jetivo, o drama entrou em crise por volta do final do século XIX”. Assim, o fato
surgiu uma obra que substitui a planejada, tratando-a como uma peça impossível”;
perde espaço para uma situação com menor concretude, o presente é substituído
4. o eu-épico como diretor de cena, procedimento no qual a unidade da intriga
pelo sonho e pelo retorno ao passado, e o conteúdo intersubjetivo é banido em
não se dá pelo encadeamento causal da ação dramática, mas pela presença de um
favor da presença do intrasubjetivo e monológico.
narrador épico representado por um diretor de cena, como faz Wilder. O efeito da
Detonada a crise, o teórico pontua algumas “tentativas de salvamento” como 1. inserção dessa instância mediadora é o fim do caráter absoluto do drama, a ruptura
o naturalismo que, trazendo ao palco uma nova categoria de herói, representante da ilusão dramática e a inserção do elemento épico no drama.
do campesinato e proletariado, fixa-se no presente e torna objetivas (vetor social)
São essas tentativas de solução que configurarão os contornos da modernidade
as relações intersubjetivas; 2. a peça de conversação e sua busca pela manutenção
teatral. Dentre elas, num esforço de abarcar a complexidade do homem e do mundo
do diálogo, mas, diante do desaparecimento da “relação intersubjetiva, o diálogo
moderno e de tornar dramática (representável no palco) a representação de conflitos
se despedaça em monólogos”, assim como “quando o passado predomina, ele se
sociais, figura o teatro épico de Bertolt Brecht. De feição social e política, essa forma
torna a sede monológica da reminiscência” (SZONDI, 2003, p.105), o que leva
dramática procura, a partir do efeito de distanciamento, rever todos os elementos
o diálogo a tornar-se conversação. A diferença fundamental no que diz respeito à
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que participam do espetáculo teatral, considerando até mesmo o espectador, obri- a fragmentação da cena épica possibilita ao espectador a visualização da personagem
gado a adotar novas posturas na plateia. Szondi (2003, p. 139) localiza com precisão em diferentes situações e com comportamentos diversificados de acordo com as
a mudança fundamental proposta pelo teatro épico: circunstâncias. Isso não quer dizer que o drama épico despreze qualquer nexo entre
as ações; a intenção é que os nexos sejam estabelecidos pelo espectador e não dados
A forma dramática baseia-se na relação intersubjetiva; a temática do de antemão pelo espetáculo.
drama é constituída pelos conflitos que aquela relação permite desen-
volver. Aqui, pelo contrário, a relação intersubjetiva como um todo é O teatro épico brechtiano é influenciado por uma concepção materialista da
tematicamente deslocada, como que passando da falta de problemati- história: o homem é um ser histórico e determinado pelas condições materiais de
cidade da forma para a problematicidade do conteúdo.
sua existência. Assim, as mudanças fundamentais propostas por ele em relação ao
teatro aristotélico se resumem a três pontos básicos: todas as ações humanas são his-
Há uma estreita ligação entre o metateatro e os recursos cênicos próprios do
tóricas e se pode compreendê-las apenas historicamente; não há lugar para a noção
teatro épico, a começar pelo efeito de distanciamento. Esse efeito é conseguido com
de destino num teatro materialista, já que o homem traça seus próprios caminhos,
o uso de canções intercaladas na representação; a presença de cartazes anunciando
sem se submeter a nenhuma força transcendental; não cabe mais ao teatro narrar
e esclarecendo a cena; o uso de técnicas especiais de iluminação concentradas no
uma história cujos artífices não sejam homens e mulheres do povo, pois eles podem
esforço de diminuir os efeitos ilusionistas do palco; a intenção de manter o espec-
mudar a história e é do ponto de vista dos oprimidos e marginalizados que interessa
tador alerta todo o tempo a fim de reconhecer intelectualmente sua realidade
contá-la.
projetada no palco; a introdução de recursos narrativos como a personagem que
conta sua ação em vez de representá-la. Todas essas técnicas também são formas de A obra de Brecht, além de ser o ponto central da teoria de Szondi sobre o teatro
inserir no texto e na representação reflexões sobre o fazer teatral, tornando o teatro moderno – afinal, ele argumenta que o drama se moderniza à medida que caminha
tema do próprio teatro. para um processo de “epicização” – apresenta um outro ponto fundamental para a
caracterização da produção dramatúrgica na primeira metade do século XX: a inter-
Brecht constrói sua dramaturgia paralelamente à elaboração da teoria do tea-
textualidade. Das peças do dramaturgo alemão, ao menos metade retoma textos
tro épico, cujo ponto de partida é a oposição à forma dramática, chamada pelo
clássicos ou contemporâneos ou toma como protagonistas personagens da tradição
dramaturgo de drama aristotélico. A forma dramática, por representar ações em
literária ou da história, com destaque para A ópera dos três vinténs (1928), A Santa
vez de apresentá-las, investe num maior envolvimento emocional do espectador,
Joana dos matadouros (1929-31), A Mãe (1931), Vida de Galileu (1938-39), As
levando-o a vivenciar as ações desenroladas no palco, isto é, o espectador é arras-
visões de Simone Machard (1941-43), Schweyk na Segunda Guerra Mundial (1943),
tado para dentro da cena. Envolvido pela ação, o espectador deixa transbordar seus
A Antígona de Sófocles (1948), O processo de Joana D’Arc en Rouen, 1431 (1952),
sentimentos, identificando-se com as alegrias e tristezas das personagens. No que
Don Juan (1953).
diz respeito à concepção de homem e de mundo, segundo Brecht, o teatro de forma
dramática apresenta o mundo e os homens como entidades imutáveis, dados já Esse diálogo intertextual se faz, prioritariamente, via paródia, procedimento que
conhecidos. Já a forma épica de teatro, por seus expedientes narrativos, transforma a consiste na retomada de um ou mais textos que acabam sofrendo algum tipo de
posição do espectador: agora ele não mais se envolve na ação, mas a presencia como inversão ou desvio, seja em relação a seu sentido original, seja em relação a sua
testemunha, observando os fatos à distância, sem se envolver com eles. Desse modo, forma ou ao tratamento dado ao tema. A paródia – recurso inter e metatextual –,
o teatro estimula a atividade intelectual do público e em vez de exigir envolvimento trabalhando no eixo da inversão do sentido, gera uma sensação de estranhamento
emocional com o que é mostrado no palco, pede que ele analise os fatos a fim de diante do texto. Recorrendo à etimologia do termo paródia, temos que o sufixo odos
questionar as bases sociais e políticas sobre as quais eles se assentam. Mais do que significa canto e remete claramente à natureza textual ou discursiva da paródia. Já
as sensações despertadas pelo espetáculo, importa o conhecimento dele derivado. o prefixo para aponta para dois significados: o primeiro de algo que gera oposição,
O homem no teatro épico é objeto de análise e “suscetível de ser modificado e de que está “contra” alguma coisa (“contra-canto”, portanto), sendo esse o sentido mais
modificar” (BRECHT, [19- ], p. 24), logo, homem e mundo são transformáveis, comumente divulgado; o segundo significado do elemento para é “ao lado de”, o
mutáveis. Quanto à estrutura do espetáculo épico, ela deve se organizar de modo que investe a paródia do sentido de “canto paralelo”. Ignorar essa duplicidade de
que a atenção do espectador se fixe no processo, no desenrolar da ação e não na sentido do prefixo para leva muitos críticos a definirem de maneira reducionista a
sua conclusão, em seu desfecho. Por isso a ação é toda fragmentada, interrompida, paródia, acentuando apenas seu caráter desmistificador, satírico e caricatural, como
construída com saltos e curvas, cada cena tendo um valor independente no con- um recurso que retoma a tradição literária para colocá-la em xeque. Considerar o
junto da ação. Ao passo que o encadeamento retilíneo da forma dramática apresenta segundo sentido do termo para é uma maneira de ampliar o alcance pragmático da
uma situação predeterminada, para a qual a personagem caminha inevitavelmente, paródia, significado este que sugere uma aproximação de textos, ao invés de um
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contraste caricaturizante. Segundo Hutcheon (1985), acentuar essa intenção mais ao Diretor da troupe, procurando convencê-lo da necessidade que têm de represen-
“reverenciadora” do que “desabonadora” da tradição por parte da paródia é essen- tar cada qual seu papel, de cumprir a função de figuras ficcionais, de criaturas da
cial para a compreensão dos processos de composição na arte moderna (literatura, ficção: “O drama está em nós; somos nós! E é grande a nossa impaciência, o nosso
pintura, música, arquitetura, etc.). desejo de representá-lo, impelidos que somos pela paixão que ferve dentro de nós
e não nos dá trégua!...” (PIRANDELLO, 1978, p. 326). A ênfase com que o Pai
O alvo da paródia pode ser tanto o conteúdo de um texto quanto sua forma; se expressa acentua a força de vida habitando essas personagens – mesmo que a
dessa maneira pode-se parodiar o texto de um autor transpondo-o para um novo afirmação pareça paradoxal. A maneira como as seis personagens são construídas e
contexto, alterando-lhe o sentido e criando uma sensação de estranhamento, de o modo como irrompem no palco as dotam de “uma realidade mais verdadeira que
que as coisas estão “fora do lugar”; nesse caso, a paródia trabalha sobre o conteúdo a dos frágeis seres humanos, e confere à sua criação um valor de permanência não
do texto. Por outro lado, a paródia pode intencionar a alteração não do conteúdo existente na finitude das criaturas comuns.” (MAGALDI, 1977, p. 77). Há uma
de um texto, mas ter como alvo o exagero de todo um conjunto de características perversão do grau de realidade entre pessoas, atores e personagens, já que o mais
de um autor, de um período ou gênero literário até a sua caricaturização; aqui, a “real” passa a ser o mais duvidoso diante da realidade indiscutível das personagens.
inversão do sentido recai sobre o código do discurso e não sobre o seu conteúdo Por trás de tudo isso, uma única questão ressoa como eco na leitura do teatro de
(FIKER, 1983). Pirandello: quais os limites entre realidade e ficção? A vida é algo mais do que a
representação incessante de papéis impostos pelo convívio social?
Enquanto efeito metalingüístico, “a paródia é uma forma de a linguagem se vol-
tar sobre si mesma” (SANT’ANNA, 1995, p. 8). A paródia, devido a sua natureza Peter Szondi (2003, p. 146 et seq.) analisa Seis personagens de modo um tanto
questionadora dos cânones e das convenções literárias, tem a força concentrada na diverso. Segundo ele, a criação de Pirandello busca uma saída para a crise do drama
capacidade de reflexão sobre a própria constituição do texto. Conforme postula e encontra como solução fazer da impossibilidade do drama o tema da peça. A
Hutcheon (1985, p. 13), “a paródia é uma das formas mais importantes da moderna recusa das personagens por seu autor pode ser interpretada como a consciência de
auto-reflexividade; é uma forma de discurso interartístico”. Portanto, como base que o conteúdo do drama das seis personagens não é adequado à forma dramática
das análises dos textos dramáticos e da compreensão do processo de modernização convencional, por isso a saída é incluí-las numa forma que questiona a possibilidade
do drama, tomamos a seguinte premissa: a intertextualidade, em particular a paró- do drama canônico na dramaturgia moderna. Desse modo, “crítica do drama, Seis
dia, é um recurso fundamental para a construção da metateatralidade, isto é, da personagens à procura de um autor não é uma obra dramática, mas épica. Como para
configuração da autoreflexividade do drama moderno, o que justifica uma análise toda dramática épica, o que normalmente constitui a forma do drama é para ela
que reúna o metateatro ao estudo do intertexto. algo temático.” (SZONDI, 2003, p. 151). Vislumbramos nas palavras de Szondi
uma aproximação de sua concepção de teatro épico à conceituação de metateatro.
Por isso o estudo da obra dramática de Luigi Pirandello é fundamental para
O metateatro se define, essencialmente e como toda forma reflexiva de arte, por
o desenvolvimento deste projeto. As peças mais declaradamente metateatrais do
eleger o fazer teatral como tema. Para Szondi, o épico também torna o teatro objeto
escritor italiano são Seis personagens à procura de um autor (1921), Cada qual à sua
de si mesmo, e aí reside o ponto que possibilita a aproximação da concepção de
maneira (1924) e Esta noite improvisamos (1930); todas recorrem ao teatro dentro do
metateatro e o pensamento do teórico alemão.
teatro, ou seja, à peça dentro da peça. Como é característico do metateatro, os textos
insistem na reflexão sobre a natureza do próprio teatro, destacando questões como: A dramaturgia de Jean Anouilh é tomada como ponto de intersecção entre a
a) as relações entre pessoa (ser real), personagem (ser ficcional) e ator (ser real repre- obra de Pirandello e Brecht. Do último, investigaremos em que medida o recurso
sentando ser ficcional). Nesse contexto, o próprio conceito de realidade é posto em ao intertexto é utilizado do mesmo modo, pois nossa hipótese é que, enquanto
xeque, o que leva a outras reflexões: b) os limites entre real/ficcional, arte/vida e o Brecht utiliza o intertexto para reforçar o caráter épico e político de seu teatro,
conceito de verossimilhança; c) limites do controle do autor sobre personagens e Anouilh está mais preocupado em, tal com Pirandello, investigar os limites entre
enredo, somado à discussão da interferência do diretor sobre o texto do autor. formas dramáticas, como a tragédia, o drama e a comédia. Dito de outro modo, o
intertexto, em Anouilh, parece ser uma forma de reflexão metateatral.
Em Seis personagens, Pirandello cria um dos jogos teatrais mais instigantes do
teatro moderno fazendo irromper, durante o ensaio de uma trupe, seis personagens Mas é de Pirandello que Anouilh herda a vocação metateatral, elevando-a a ené-
desprezadas por seu autor em busca de alguém que lhes dê vida. Ao decidirem sima potência. O próprio autor declara, em texto de fevereiro de 1951: “Eis tudo:
representar o drama relatado pelas personagens, os atores e o diretor enfrentam eu descendo de Pirandello. Seis personagens à procura de um autor. Não criei nada
um sério problema: por mais que se esforcem, a encenação não as satisfaz, ficando,
segundo elas, muito aquém do “real”. É o que o Pai, uma das personagens, explica
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diferente disso”3 (GINESTIER, 1974, p.179). O principal ponto de convergência Há uma estreita relação entre os três dramaturgos e a investigação teórica preten-
entre Pirandello e o dramaturgo francês são as reflexões sobre o fenômeno teatral, o dida pelo projeto, afinal, o estudo de suas obras dramáticas permite compreender
pendor para o metateatro que caracteriza a obra de ambos (BISHOP, 1977, p.91); melhor o papel do metateatro e do intertexto no processo de modernização do
creio que isso seja suficiente para propor o entrecruzamento entre os procedimentos drama. Brecht e o teatro épico são fundamentais para compreender a função polí-
metateatrais de um e outro autor. tica do metateatro, o pendor crítico do intertexto e a renovação da forma dramática
pela inserção de elementos narrativos; Pirandello não explora o intertexto, entre-
Paul Ginestier (1974, p.33) esboça possíveis aproximações entre Pirandello e o tanto estabelece as bases para as mais profundas reflexões sobre a natureza do teatro;
então jovem dramaturgo francês quando analisa uma das primeiras peças, Le voya- e Jean Anouilh incorpora tanto o intertexto como o metateatro em sua produção
geur sans bagage (1937). Para o crítico, a peça dramática, instigando uma reflexão teórica sobre os contornos das formas dramáti-
cas tradicionais quando recontextualizadas e reconfiguradas.
[...] apresenta uma variação sobre uma das fórmulas dramatúrgicas
mais estranhas de Pirandello : a separação da história e dos persona-
gens. De um lado, a biografia de Jacques (história sem personagem
atual) e, de outro, Gaston (personagem atual sem história). Pode-se ver Expectativas
a peça como o confronto de duas séries de forças : as da verdade que
impulsionam a biografia passada sobre o personagem no presente e as O objetivo da pesquisa que apresento aqui é, partindo de análises e reflexões
do livre-arbítrio graças às quais o personagem se recusa a assumi-las. teóricas, encontrar respostas para a seguinte questão: por serem recorrentes na obra
É possível reconhecer, sob uma nova forma, o tema de A cada um sua de dramaturgos modernos, o intertexto e o metateatro podem ser tomados como
verdade, Seis personagens à procura de autor e Henrique IV4. um princípio de modernização formal e temática do drama no século XX? Pensar o
processo de modernização do drama obriga a tomar o estudo de Peter Szondi como
Como Pirandello, Anouilh transita entre tragédia e comédia sem que seja pos- ponto de partida, mas permite também ir além de suas reflexões. O teórico aponta
sível delimitar os contornos exatos entre um e outro gênero. As personagens, na pertinentemente o épico como caminho encontrado por dramaturgos do início do
maioria das vezes, estão imersas em situações penosas e desconcertantes como é o século XX como possibilidade de modernização formal, mas acredito que o metate-
caso de Gaston em Le voyageur sans bagage. A princípio, sua condição o aproxima do atro, assim como o intertexto, também deem contribuições significativas.
trágico, pois se trata de alguém que perdeu a memória em função da guerra. O tom
trágico se mantém quando ele encontra sua verdadeira família e resiste a aceitar uma Espera-se que o projeto desperte reflexões teóricas que possibilitem avançar os
nova identidade. Tudo seria constrangedor não fosse a presença de algumas perso- estudos acerca do metateatro e estabeleça uma relação entre procedimentos meta-
nagens como a Duchesse Dupont-Dufort, que obriga Gaston a insistir na busca por teatrais, recursos intertextuais e modernidade teatral, considerando, em particular,
sua verdadeira identidade e, mais do que isso, seleciona cuidadosamente as famílias em que medida a forma canônica do drama é renovada seja pelo diálogo com a
a serem visitadas para não haver risco de Gaston pertencer a um clã de poucas posses tradição (intertexto), seja pela auto-reflexividade (metateatro). Além disso, a obra
e baixo extrato social. Seus gestos são excessivamente teatrais, artificialmente cons- dos dramaturgos (Pirandello, Brecht e Anouilh) é tomada não apenas como texto
truídos, o que cria situações cômicas. Some-se a essa personagem o grupo de criados ficcional, mas em especial como espaço de depreensão de conceitos teóricos e con-
da verdadeira família de Gaston. Os criados fazem comentários jocosos a respeito da cepções de criação dramatúrgica.
vida pregressa de seu antigo patrão, sem poupar insinuações acerca de seu péssimo
caráter. O leitor/espectador da peça se surpreende frequentemente tomado pelo riso
ao passo que se desenrola um drama com a personagem central. Referências

ABEL, Lionel. Metateatro: uma nova visão da forma dramática. Tradução de


Bárbara Heliodora. Apresentação de Paulo Francis. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

3 “Je descends de Pirandello, c´est tout; Six personnages en quête d´auteur. Je n´ai rien inventé depuis.” BISHOP, Thomas. À l´école de Pirandello. In: BEUGNOT, Bernard (Org.). Les
4 “ [...] [présente une variation sur une des formules dramaturgiques les plus étranges de Pirandello, la séparation de critiques de notre temps et Anouilh. Paris: Garnier, 1977. p. 90-2.
l´histoire et des personnages. D´un côté la biographie de Jacques (histoire sans personnage actuel) et, de l´autre,
Gaston (personnage actuel sans histoire) : on peut voir la pièce comme l´affrontement de deux séries de forces, BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Coligidos por Siegfried Unseld.
celles de la vérité qui poussent la biographie passée sur le personnage actuel, celles du libre-arbitre grâce auxquelles
Portugal: Portugália Editora, [19- ].
celui-ci refuse le transfert. On reconnaît, sous une forme nouvelle, le thème de Chacun sa vérité, Six personna-
gens en quête d´auteur et d´Henri IV”.
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FIKER, Raul. Mito e paródia: sua estrutura e função no texto literário. 1983. Militância sufragista e a peça de conversação no Brasil do
Dissertação (Mestrado). UNICAMP, Campinas, 1983. século XIX: O voto feminino, de Josefina Álvares de Azevedo
GINESTIER, Paul. Jean Anouilh. 2. ed. entièrement refondue. Paris: Seghers,
1974. (Colléction Théâtre de tous les temps, 10). Valéria Andrade1*

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia – ensinamentos das formas de arte


RESUMO: Trata-se de uma reflexão crítica sobre o percurso militante da jornalista
do século XX. Tradução Teresa Louro Pérez. Portugal, Lisboa: Edições 70, 1985.
pernambucana Josefina Álvares de Azevedo (1851-1905?) e as estratégias de ação
MAGALDI, Sábato. Princípios estéticos desentranhados das peças de Pirandello feminista que desenvolveu pioneiramente em torno da demanda sufragista no Bra-
sobre teatro. In:______. O cenário no avesso: Gide e Pirandello. São Paulo: sil. Ao escrever e publicar, como texto impresso e texto cênico, a comédia O voto
Perspectiva, 1977. p. 73-102. feminino (1890), a autora distende os espaços de seu ativismo político, enfrentando
o desafio de discutir, no palco, um novo lugar social para as mulheres. Barrada pelas
PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal; Seis personagens à procura limitações formais da estética teatral burguesa, a autora traz à cena brasileira uma
de um autor. Tradução Mário da Silva, Brutus Pedreira e Elvira Rina Malerbi experiência próxima dos “experimentos formais” (SZONDI, 2001) surgidos em
Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1978. meio à crise formal do drama na Europa como tentativas de salvamento da forma
– a peça de conversação –, inserindo-a na linha espaço-temporal da crise e inade-
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. 5. ed. São Paulo: quação da forma teatral burguesa ao Brasil, figurada exemplarmente na realização
Ática, 1995. (Série Princípios). postiça do nosso drama romântico.
PALAVRAS-CHAVE: militância feminina; sufrágio; teatro brasileiro.
SCHMELING, Manfred. Métathéâtre et intertexte: aspects du théâtre dans
le théâtre. Paris: Lettres Modernes, 1982. (Colléction Archives des Lettres
Modernes, 204). ABSTRACT: This is a critical reflection on the militant route of the publicist, native
of Pernambuco, Josefina Álvares de Azevedo (1851-1905?) and on her pioneering
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Tradução Luiz feminist strategies developed around the suffragist demand in Brazil. In writing an
Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. publishing both as printed and scenic texts, the comedy O voto feminino (1890),
the author stretches the spaces of her political activism, facing the challenge of
discussing on stage a new social position for women. Barred by the limitations of
formal bourgeois theatrical aesthetic, the author brings to the Brazilian stage an
experience close to the “formal experiments” (SZONDI, 2001) which emerged
during the crisis of formal drama in Europe and attempts to save the form, i.e.,
the piece of conversation, by inserting itself in the space-time line of the crisis and
the inadequacy of bourgeois theatrical form to Brazil, exemplary illustrated by the
artificial realization of our romantic drama.
KEYWORDS: feminist activism; suffrage; brazilian theater.

1* Doutora em Letras e professora da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, no Centro de


Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA).
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RESUMEN: Se trata de una reflexión crítica sobre la ruta militante de la periodista Embora surgido no Brasil, de forma organizada, na segunda década do século
natural de Pernambuco, Josefina Álvares de Azevedo (1851-1905?) y las estrategias XX, o movimento sufragista faz seus primeiros ensaios já em meados do século XIX,
de acción feminista que se ha llevado a cabo en torno de la demanda sufragista quando, por entre as dobras do projeto modernizador que começara a se implantar
pionera en Brasil. Al escribir y publicar, como texto impreso y texto escénico, la no país, tem início o processo de formação de uma nova consciência das relações
comedia O voto feminino (1890), la autora extiende los espacios de su activismo sociais de gênero. Assim, podem ser identificadas vozes femininas que prenunciam a
político, afronta el reto de debatir, en el escenario, un nuevo sitio social para las militância pelo direito eleitoral das mulheres, exercida amplamente por Bertha Lutz
mujeres. Impedida por las limitaciones formales de la estética teatral burguesa la (1894-1976) e suas contemporâneas (Cf. SOIHET, 2006). Vozes ilhadas, que nem
autora presenta a la escena brasileña una experiencia cercana a los “experimentos por isso se intimidaram, as pioneiras do sufragismo em nosso país se pronunciaram
formales” (SZONDI, 2001) surgidos en medio a la crisis del teatro convencional del por meio de seus muitos escritos, que faziam circular pela imprensa, buscando for-
drama en Europa como los intentos de salvar a la forma – la pieza de conversación mar uma opinião pública a favor do seu ideário, prática de tantos outros grupos da
– mediante la inserción de dicha experiencia en la línea espacio-tiempo de la crisis época interessados em apresentar à sociedade suas novas idéias.
y inadecuación de la forma teatral burguesa en Brasil, figurada de manera ejemplar
en una falsa realización de nuestro drama romántico. Um nome a guardar na memória, neste sentido, é o da mineira Francisca
Senhorinha da Mota Diniz (séc. XIX-?) (Cf. BERNARDES, 1989). Fundadora,
PALABRAS-CLAVE: activismo feminista; sufragio; teatro brasileño.
editora e redatora de um dos vários jornais de orientação feminista, surgidos no país
a partir das três últimas décadas do século XIX – O Sexo Feminino –, a professora
INÊS – Ora, até que enfim, já se pode ser mulher nesta terra! Francisca Mota, já nos idos de 1875, não perdeu a chance de informar o público
leitor da época sobre uma proposta relativa ao sufrágio feminino feita no país déca-
Josefina Álvares de Azevedo,
das antes pelo senador Manoel Alves Branco (1797-1855). E já no final da década
O voto feminino
de 1880, seu jornal (rebatizado como O Quinze de Novembro do Sexo Feminino
quando da instalação da República no país) abre uma coluna exclusiva para tratar
da questão. No primeiro semestre de 1890, publica um artigo intitulado “Igualdade
de direitos”, em que afirma: “Desejamos que os senhores do sexo forte saibam que
se nos podem mandar, em suas leis, subir ao cadafalso, mesmo pelas idéias políticas
que tivermos, [...], também nos devem a justiça de igualdade de direitos, tocante ao
direito de votar e o de sermos votadas.”

É de se lembrar também o nome da gaúcha Ana Eurídice Eufrosina de Barandas


(1806-?) (Cf. MUZART, 1999, p. 162-174), uma das nossas primeiras escritoras a
reivindicar publicamente (embora não no espaço da imprensa jornalística) a liber-
dade de expressão em questões políticas para suas contemporâneas. Num texto que
escreve em 1836 – Diálogos, publicado em 1845, como parte de uma coletânea –,
Ana Eurídice recrimina duramente a atitude repressiva dos homens frente à partici-
pação das mulheres no debate político que agitava a Porto Alegre da época em torno
da Guerra dos Farrapos.

Digno também de compor esta memória é o nome da cirurgiã-dentista, também


gaúcha, Isabel de Sousa Matos (séc. XIX, Cf. SCHUMAHER; VITAL BRAZIL,
2000). Amparada por um princípio legal que garantia o direito de voto ao portador
de títulos científicos – Lei Saraiva, de 1881 –, a dentista requereu, em 1885, seu
alistamento eleitoral em São José do Norte-RS, sua cidade natal. Com o advento
da República e a convocação de eleições para a Assembléia Constituinte, Isabel
Matos, então transferida para o Rio de Janeiro, procura a comissão encarregada do
alistamento na capital federal para tentar garantir novamente o exercício dos seus
direitos. O parecer do governo, contrário ao pleito da Dra. Isabel Matos, incita os
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ânimos feministas em torno da inclusão das mulheres no espaço político, particu- Saindo de Recife por volta de 1877, Josefina, então com 26 anos, segue para São
larmente os da professora e jornalista Josefina Álvares de Azevedo (1851-?), cujas Paulo. Fixando residência nesta cidade, no ano seguinte a “infatigável feminista,
iniciativas, desde o 15 de Novembro, vinham se formalizando numa militância [...], num livro que fez sensação, anunciou que se levantava uma voz de mulher
explícita pelo acesso das mulheres ao direito do voto, como veremos adiante. para a grande reivindicação,” segundo palavras de Barros Vidal (1944, p. 162).
No final de 1888, ainda em São Paulo, Josefina funda o jornal A Família.2 Seis
Seja pelo percurso intelectual-literário de ativista devotada a projetos emanci- meses depois, se transfere para o Rio de Janeiro, onde suas expectativas de mais
patórios para suas contemporâneas, seja pelo papel inquestionável no âmbito das espaço para divulgar seu ideário emancipatório não se frustram. Sua folha circula
discussões pelos direitos eleitorais das mulheres na Constituição brasileira de 1891, na cidade, ininterruptamente, até 1897, ano de publicação de seu terceiro e último
o nome da pernambucana Josefina Álvares de Azevedo está também gravado na livro de que se tem notícia, Galleria illustre (Mulheres celebres). Em 1898, A Família
história do sufragismo em sua fase de formação no Brasil. Quase tudo que se sabe volta a circular em “nova fase”, conforme anota a redatora da revista A Mensageira.
sobre esta brasileira admirável está, porém, circunscrito a sua trajetória como escri- Depois disto, ao que se sabe, não há registros sobre os caminhos, seja profissio-
tora e intelectual, muito embora, para além do parentesco com um dos expoentes nais, seja pessoais, percorridos por essa mulher que, embora se auto-avaliasse como
da nossa poesia – o ultra-romântico Álvares de Azevedo –, tenha tido um papel de “pouco hábil em esgrimir a pena” (AZEVEDO, 1891, p. 133), o fez com maestria,
relevância na vanguarda do feminismo no Brasil, cotejável ao desempenhado pela muita coragem e verdadeira devoção, na luta pela cidadania das brasileiras.
rio-grandense-do-norte Nísia Floresta (1810-1885).
Nas páginas do jornal A Família, a educação foi a primeira causa defendida pela
Seu perfil biográfico, em termos de vida pessoal, está quase todo por desvendar. ativista, sem a qual, conforme seu próprio argumento, inviabilizava-se inteiramente
A data de seu nascimento, 5 de março de 1851, é, por ora, o único dado incon- a emancipação pretendida. Sua postura arrojada evidencia-se, de início, por rei-
teste de que se dispõe. Os demais são obscuros e/ou divergentes. Não se sabe, por vindicar para as mulheres uma “educação sólida e desenvolvida”, que as preparasse
exemplo, onde Josefina Álvares de Azevedo fez seus estudos, como foi sua infância “não para ornamento de sala”, como de hábito se fazia até então, mas “para todos
e juventude, ou se foi casada. Há alusões sobre o fato de ter sido mãe, embora sem os misteres da vida, como dignas e leais companheiras do homem, tão capazes de
qualquer menção direta à sua prole. Registra-se, igualmente, sua morte em 1905, desempenhar altas funções do estado, como as secundárias obrigações que lhe com-
sem referência, contudo, a local, circunstâncias e data completa. Já as divergên- petem na família.” (AF, 23 fev. 1889, p. 1.).
cias são quanto à filiação e naturalidade, apesar das declarações da própria autora,
que localizei, há alguns anos, em artigos publicados no jornal A Família, de sua Em pouco tempo, porém, seu ativismo vai pautar-se por atitudes incisivas,
propriedade. Os dados que aí se registram indicam, com todas as letras, que sua beirando a agressividade. Em outubro de 1890, por exemplo, quando Benjamim
terra natal foi Recife-PE e que Manuel Antonio Álvares de Azevedo era seu primo, Constant, então Ministro dos Correios e Instrução, vetou o acesso feminino às
contrariando, pois, a maioria das referências biobibliográficas a respeito, que repe- escolas de nível superior, Josefina de Azevedo atacou-o frontalmente, criticando a
tem passivamente e com apego acrítico ao critério de autoridade estabelecido por “velha doutrina” positivista que o inspirava. Enfatizando que seus preceitos faziam
Sacramento Blake, em seu Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Nesta obra, indica-se da mulher “um ente descerebrado, um animal sem desenvolvimento, um pobre
Itaboraí-RJ como o local de seu nascimento e Inácio Manuel Álvares de Azevedo camelo do deserto, destinado a servir o homem eternamente. bestialmente, sem um
(?-1873) como seu pai, referindo-se ao poeta como seu meio-irmão e, por outro estímulo de revolta, sem um sinal de enfado, resignado, sombrio e indiferente”, a
lado, silenciando qualquer referência a sua mãe. Seria, obviamente, ingenuidade feminista não usou meias palavras para recriminar o autor do veto nas páginas do
descartar a hipótese de que, para não se expor socialmente na condição de filha seu jornal, afirmando que:
ilegítima, a escritora tenha preferido assumir-se como prima do poeta. Contudo, o
caráter testemunhal e público das informações veiculadas na imprensa impõe-lhes [...] a bagagem de todo o positivismo comteano que lhe anda a sara-
cotear no cérebro, não pode sair da aula, da cátedra, do livro, para os
um grau de veracidade que seria, no mínimo, imprudente subestimar.
bancos do ministério, sob pena de usar mal da confiança de um povo,
Em contrapartida, sua obra jornalístico-literária, produzida em torno dos direi- que pode pedir-lhe que tudo derroque, menos as conquistas modernas
dos direitos da mulher na sociedade emancipada (AF, 16 out. 1890,
tos femininos, é como um retrato de corpo inteiro da sua vida. As narrativas (contos,
p. 1).
artigos, esboços biográficos), os versos, as traduções, o texto teatral – praticamente
tudo que escreveu e publicou foi com o objetivo primeiro de intervir na ordem
social e política do seu tempo, contribuindo para criar condições mais justas e igua-
litárias para mulheres e homens. 2 As citações a artigos de Josefina, publicados neste jornal, serão indicadas pela sigla AF, seguida da data de
publicação.
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As colaboradoras do avançado jornal,3 de uma perspectiva bem menos radical, Fortaleza, buscando ativamente mais adesões para sua causa e, naturalmente, mais
não deixavam de enfatizar que somente com uma educação completa poder-se-ia assinantes para A Família,4 até então o único instrumento da sua militância. No iní-
elevar o status da mulher na sociedade, inclusive fora do lar. Algumas, destas colabo- cio desse mesmo ano, ainda residindo em São Paulo, Josefina anunciara esta viagem
radoras, como Narcisa Amália (1852-1924), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) de trabalho, informando que, com objetivo idêntico, iria também Portugal, França,
e Inês Sabino (1853-?), eram escritoras de renome. Outras eram educadoras de des- Espanha, Estados Unidos e Argentina (AF, 19 jan. 1889, p. 8).
taque, como Anália Franco (1859-1919). A maior parte residia no Rio de Janeiro
ou São Paulo, mas havia colaborações do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Para além de abrir uma nova fase da mobilização pela emancipação feminina
Pernambuco, como também de fora do país, vindas de Portugal e da França, envia- no Brasil, a instauração do regime republicano foi também a ‘deixa’ para a femi-
das, respectivamente, por Guiomar Torrezão (1844-1898) e Eugénie Potonié Pierre nista entrar em cena, ofensivamente, em busca do direito de voto para as mulheres.
(séc. XIX-?), respectivamente. Tal era a extensão da teia formada pelos grupos de Mantendo a proposta de lutar pela emancipação feminina via educação, A Família
escritoras. Mantida por fortes relações de solidariedade e intensa interlocução, essa passa a reivindicar para as mulheres também “o direito de intervir nas eleições, de
rede permitia-lhes construir uma imagem, inclusive para si próprias, de sujeitos, eleger e ser eleitas, como os homens, em igualdade de condições”. Daí em diante,
plenamente capazes de equiparar-se socialmente aos homens. Significativo, neste o jornal é redesenhado para incorporar a militância sufragista como matéria de
sentido, é o artigo de Eugénie Pierre, traduzido por Josefina de Azevedo e publicado primeira página. Através dele, inclusive, a ativista tenta convencer suas contemporâ-
na revista A Mensageira, em 1899, sob o título “A solidariedade feminina”, em que neas da urgência de cada uma tornar-se também, em seus lares, uma “propagandista
as mulheres são convidadas a unir-se, não apenas para proveito próprio, mas para acérrima” da causa, da qual, segundo sua percepção, dependia sua “elevação na
benefício e renovação de toda a sociedade (PIERRE, 1899). sociedade” (AF, 30 nov. 1889, p. 1; 19 abr. 1890, p. 1). Escreve então uma série
intitulada O direito de voto, incluindo em sua argumentação a denúncia quanto ao
Transferido A Família para o Rio de Janeiro, em maio de 1889, suas colabo- caráter quimérico da igualdade prometida pelo novo regime caso as mulheres con-
radoras, a par do que fazia a redatora-chefe, utilizavam suas páginas para protestar tinuassem impedidas de exercer seu direito de voto. No artigo de abertura da série,
contra a opressão social sobre as mulheres, aí incluída a precariedade da educação suas palavras não fazem concessão: “Ou estaremos fora do regime das leis criadas
que recebiam. Ao mesmo tempo, este era o espaço que tinham para dar vazão, agora pelos homens, ou teremos também o direito de legislar para todas. Fora disso, a
publicamente, a vocações literárias, tal como muitas outras faziam em vários perió- igualdade é uma utopia, senão um sarcasmo atirado a todas nós.” (AF, 30 nov.
dicos então surgidos sob a editoria de mulheres. 1889, p. 1).

Desde o início das atividades à frente do jornal, Josefina Álvares de Azevedo A partir desse momento, a luta pela imprensa periódica parece não bastar e
viu-se confrontada com muitas dificuldades, em especial a indiferença das próprias Josefina busca espaços alternativos para a militância. Já no início de 1890, faz
mulheres que preferiam, em geral, leituras amenas, com direito a figurinos de moda, imprimir um opúsculo, intitulado Retalhos,5 reeditando artigos seus publicados em
dicas de beleza e culinária, ao invés de matéria politizada em torno da emancipação A Família: os da série “O direito de voto”, os relativos à questão da educação da
feminina. Mantinha, ainda assim, sua obstinação em “levar adiante uma propa- mulher, reunidos sob o título “A mulher moderna”, além de uma crítica à comédia
ganda acérrima em prol da educação das minhas patrícias, uma propaganda eficaz, A Doutora, em que ataca duramente seu autor, Silva Lopes, por pretender “chegar
que as liberte dos estólidos preconceitos da acanhada rotina a que temos sempre à conclusão absurda de que a profissão médica é incompatível com a honra de uma
obedecido.” (AF, 30 jan. 1890, p. 1). E conseguir manter uma folha redigida exclu- moça.” (AF, 9 nov. 1889, p. 4). A inclusão de textos pouco relacionados à temática
sivamente por mulheres aparecia-lhe como prova cabal da capacidade feminina de central da coletânea sugere seu objetivo primeiro de fortalecer a propaganda sufra-
construir sua autonomia. gista, fixando-a em páginas mais permanentes que as de jornal. Bastante elogiado
pela imprensa local, a publicação foi saudada pelo redator da Gazeta de Notícias,
Com o duplo objetivo de difundir mais amplamente seu projeto emancipatório comparada a um “projétil que fere cheio […] nalgum preconceito social contra a
e observar o sistema educacional voltado para meninas, a militante faz uma viagem, mulher e o derroca com vigoroso impulso” e, por isso mesmo, bem poderia intitu-
em meados de 1889, ao norte e nordeste do país. Em seu roteiro, inclui as capitais lar-se “Estilhaços” (AF, 14 jun. 1890, p. 3).
da Bahia, Pernambuco, Ceará e Pará, onde jornalistas locais a acompanham em visi-
tas a educandários e a órgãos públicos, como as Assembléias Provinciais de Recife e
4 Ver o Carnet de Voyage, AF nas edições de 30 nov. 1889, p. 2; 7 dez. 1889, p. 2; 14 dez. 1889, p. 2; 21 dez.
3 Aberto à colaboração de “todas as senhoras”, A Família distinguia-se dos jornais editados por mulheres na 1889, p. 6.
segunda metade do século XIX no Brasil, que, em geral, não se fechavam à colaboração masculina, cf. 5 Cf. AF, em diferentes dias: 20 fev. 1890, p. 7-8; 9 mar. 1890, p. 7-8; 16 mar. 1890, p. 8; 23 mar. 1890, p.
BICALHO, 1988. 8; 14 jun. 1890, p. 3.
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Pouco depois, em abril do mesmo ano, a jornalista decide levar o debate dos jor- forma misturada de drama burguês e comédia de costumes. O híbrido deste for-
nais para o palco, tomando a cena teatral como tribuna, numa estratégia semelhante mato revela-se já nas rubricas do cenário (“Sala em casa do Conselheiro Anastácio.
à adotada na cena brasileira entre 1855 e 1865, quando vários problemas sociais Mobília rica. Decoração de luxo.”), indicadoras da atmosfera de drama burguês, a
da burguesia então recém-emergente foram discutidos cenicamente (Cf. FARIA, que se juntam o risível do marido rico avarento, o Conselheiro Anastácio, ocupado
1993).6 Impelida pelo parecer negativo do então ministro Cesário Alvim à consulta numa inusitada aferição de contas do armazém e, logo a seguir, a desenvoltura da
feita pela comissão de alistamento eleitoral em relação ao pleito de Isabel de Matos, esposa insubordinada, Sra. D. Inês, vinda à sala a seu chamado. Há, desde então,
referido no início deste texto, Josefina de Azevedo escreve a comédia O voto femi- uma ruptura irremediável do clima doméstico-burguês. A esposa, em resposta à
nino, encenada no final do mês seguinte, no palco do Recreio Dramático (AF, 24 reclamação do marido por ela não priorizar os afazeres da casa, ocupada antes com
maio 1890, p. 3), teatro dos mais populares do Rio de Janeiro na época. a leitura das notícias do dia publicadas nos jornais, retruca-lhe, irreverente e impe-
riosa: “Naturalmente. Então queria o senhor que assim não fosse?”
Uma querela doméstica – gerada pela expectativa em torno da posição do
governo sobre a procedência ou não do alistamento eleitoral das mulheres – compõe Arquétipo da “mulher moderna”, consciente dos seus direitos e deveres como
a ação dramática criada pela ativista para sensibilizar os parlamentares da República cidadã dos novos tempos republicanos, Inês entra em cena como metonímia da
recém-instituída quanto ao pleno exercício da cidadania feminina. Enfatizando a recusa feminista ao papel da esposa-dócil-mãe-devotada, modelo do ser-feminino
confiança que as mulheres podiam depositar nos congressistas encarregados de ela- prefigurado para defender os valores instituídos pela burguesia, em especial a famí-
borar a nova constituição do país no semestre seguinte, é especialmente na cena final lia. Seu protagonismo na pseudo-fábula de O voto feminino sinaliza a necessidade
da comédia que se revela inequivocamente esta intenção, já veiculada na imprensa, de se relativizar a forma do drama burguês, que por si só não pode dar conta da
de seguir “compelindo os constituintes a firmarem de uma vez para sempre o nosso dimensão política das relações de gênero, embora, por outro lado, não seja ainda
direito obscurecido.” (19 abr. 1890, p. 1; 26 abr. 1890, p. 1). Diante da euforia dispensável. Como tratar dos limites impostos às mulheres pela ideologia burguesa
da maioria masculina, comemorando a manutenção da exclusão das mulheres do num formato dramático burguês – eis o dilema posto à ativista.
universo de eleitores, uma das personagens femininas adverte o grupo antagônico:
“Não se entusiasmem tanto. Ainda temos um recurso. Aguardemos a Constituinte!” A contradição entre o lugar social reivindicado politicamente pelas mulheres
Inserida nesta proposta inequivocamente política, é evidente a sátira à resistência neste fim de século e o drama doméstico, ou seja, entre um conteúdo novo e uma
masculina frente à nascente demanda sufragista no Brasil. forma antiga, levaria a autora a incorporar recursos no sentido de tentar equacionar
o impasse. Abrindo espaços na forma tradicional para tratar deste assunto novo,
Bastante aplaudida pelo público que lotou o Recreio Dramático na noite da Josefina de Azevedo traz à cena brasileira uma experiência muito próxima daquilo
estréia – e saudada calorosamente pela imprensa antes de ir à cena –, O voto femi- que Peter Szondi (2001) inclui entre os “experimentos formais” que emergem em
nino, entretanto, não sobe ao palco de novo e a urgência de continuar o lobby meio à crise formal do drama na Europa, como tentativas de solucioná-la ou, nou-
junto aos constituintes leva a ativista a buscar novas possibilidades de exibição da tra vertente, de salvamento da forma – a peça de conversação.
sua comédia. Assim, ainda em 1890, o texto vem a público outras duas vezes: nos
rodapés do jornal A Família e, segundo consta, em forma de livro (BLAKE, v. 5, No contexto europeu da segunda metade do século XIX, entre as tentativas
p. 238). No ano seguinte, quando a Constituinte encontrava-se ainda reunida, a de salvamento do drama, figura esse tipo de texto, em que se investe no diálogo
comédia é reeditada na coletânea A mulher moderna: trabalhos de propaganda, a como recurso, com base na premissa de que a competência do dramaturgo se com-
segunda organizada por Josefina. Em cada uma das oportunidades, é notável o provava pelos bons diálogos que escrevesse. No entanto, como ressalta Szondi, os
senso estratégico da autora no sentido de fortalecer a propaganda sufragista para diálogos entre as personagens das peças de conversação, autonomizado dos sujeitos
que a omissão da Constituição de 1824 quanto à cidadania das mulheres não se que os travam, não se estabelecem efetivamente como espaço de intersubjetividade.
repetisse no novo texto. Esvaziado, esse espaço dialógico é preenchido com temas do dia e, não por acaso,
as peças de conversação tratam de questões como direito das mulheres ao voto,
A intenção de sensibilizar também a opinião pública, o mais amplamente pos- direito ao divórcio, amor livre, socialismo e industrialização, dando aparência de
sível, terá indicado à ativista o teatro musicado, de grande popularidade na época, modernidade àquilo que, na verdade, opunha-se ao processo histórico e, em termos
como inspiração de um texto com uns poucos números musicais, incluídos numa formais, aparência de dramático àquilo que, pela carência de origem subjetiva e
meta objetiva, não conduzia a outra coisa e, portanto, não passava para a ação. Para
6 Integrada ao movimento de renovação da nossa cena teatral neste período, Maria Ribeiro (1829-1880)
além de ser citação dos problemas do dia, a peça de conversação, prossegue Szondi,
deflagra o processo de formação da nossa dramaturgia de autoria feminina. Sobre esta autora e sua produ- não possuindo um tempo próprio, acaba por participar apenas do decurso “real”
ção, ver ANDRADE, 2008, p. 13-32. do tempo. De outro lado, dada sua incapacidade de definir os homens (por não ter
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uma origem subjetiva), também suas personagens são citação de tipos da sociedade reduplicação de dois modelos opostos: a mulher progressista e politizada e o homem
real. A aparência de peça-bem-feita a ser apresentada pela peça de conversação exi- reacionário e retrógrado, cada um dos quais apresentados com nuanças relativas
ge-lhe uma ação, que, entretanto, por não se efetivar, é tomada de empréstimo do a nível social e faixa etária, representadas, respectivamente, pelos casais Joaquina-
lado de fora, incidindo sem motivação no drama, com a forma de acontecimentos Antônio, de classe subalterna, e Esmeralda-Rafael, da geração jovem.
inesperados (SZONDI, 2001, p. 106-107).
Buscando fazer a mediação entre estes opostos, vem à cena um tipo ímpar, seja
Revelador antes da ativista, ocupada em apresentar ao público menos uma trama por não ter um par, nem um duplo, seja por encarnar, taticamente, a imagem sin-
bem urdida que um rápido flagrante de cenas do cotidiano doméstico do seu tempo, gular do homem público consciente, sensato e progressista, idealizado pela ativista
O voto feminino constrói-se como uma sucessão de quinze cenas. Frouxamente amar- para apresentar no Congresso propostas de extensão da cidadania plena às mulheres:
radas entre si, as cenas compõem não propriamente um enredo, mas um conjunto o jurista amigo da família.7 No papel de raisonneur, Florêncio expõe racionalmente
de discussões entre casais, todas, ao final, relacionadas à questão do direito de voto o argumento sufragista, defendendo-o junto às outras personagens e, claro, junto ao
das mulheres. Durante um espaço de tempo, anterior à hora do jantar, sete perso- público. Suas intervenções, mesmo algo sentenciosas, se fazem por meio de frases
nagens – os donos da casa, sua filha e o marido, uma criada e seu noivo, criado de curtas, muitas vezes interrogativas, que se afinam perfeitamente ao ritmo ágil do
um amigo da família, jurista e solteiro, defensor da causa das mulheres – conversam diálogo da comédia e, como um jogo de pergunta-e-resposta, evocam a dinâmica
entre si. O assunto lhes entra casa adentro, mediado pela imprensa jornalística. Já de uma disputa forense. Pela argúcia da autora, temos um raisonneur a salvo das
na abertura da comédia, é Inês que entra em cena, vinda da biblioteca da casa, onde infindáveis pregações em defesa de uma tese, o pior defeito do modelo francês. A
estivera a ler as notícias do dia. Na Cena 4ª, temos Esmeralda, que lê em voz alta, brevidade do discurso de Florêncio, somada à destreza argumentativa, garante-lhe
para sua mãe, trechos de um artigo, assinado pelo jurista amigo da família e publi- imunidade ao mal que tanto comprometeu a qualidade formal da comédia realista.
cado no Correio do Povo. E na cena final, Anastácio “entra [em casa] esbaforido, Típica da desgastada peça de tese, a figura do raisonneur teve, no entanto, sua vali-
com um jornal na mão”, como explicita a rubrica, anunciando novidades e, em dade estratégica reconhecida e bem aproveitada pela ativista, na medida em que
seguida, lendo em voz alta, letra por letra, o veto ministerial ao alistamento eleitoral também Inês e Esmeralda, ambas mais qualificadas que seus pares masculinos, são
das mulheres, recém-publicado na imprensa. investidas das características de porta-voz autoral ao longo do texto.

Citação explícita de um contexto ‘real’ – o enfrentamento político entre mulhe- Sem predecessores que lhe indicassem o caminho do teatro político, Josefina
res e homens, deflagrado na sociedade brasileira desde a mudança do regime de Azevedo dá, de algum modo, seguimento à experiência de Martins Pena (1815-
monárquico para o republicano –, O voto feminino não se efetiva enquanto ação 1847), autor que conseguiu, com a comédia de costumes, representar “o cotidiano
dramática, pela ausência seja da dimensão intersubjetiva, seja da meta objetiva. Os das classes populares, enxergando, como já apontou Iná Camargo Costa, a enorme
planos quixotescos de Anastácio, de fazer uma “guerra de honra” contra as mulhe- distância que havia entre os pressupostos sociais que davam suporte às exigências
res, desmancham-se ante a própria inconsistência, desaparecendo como fumaça formais do drama francês e a ‘matéria social com que os candidatos a dramaturgo no
com a chegada do Dr. Florêncio, em sua habitual visita à família. Do lado oposto, Brasil podiam trabalhar’” (MACIEL, 2004, p. 27). Empurrada por finalidades polí-
a “grande vitória” aludida por Inês, que incluía a candidatura e posterior eleição de ticas, mas barrada pelas limitações formais de representação da demanda feminista
sua filha como deputada, também se desmancha no ar, com a divulgação do veto sufragista no espaço da estética teatral burguesa, Josefina de Azevedo consegue, em
sobre a inclusão dos direitos eleitorais das mulheres na legislação. Noutra ponta, o meio a esta tensão, delimitar, com O voto feminino, uma zona de negociação entre
ambiente da privacidade familiar burguesa, a sala de estar da casa do Conselheiro a forma da comédia realista de inspiração francesa e a da comédia de costumes à
Anastácio, com sua “mobília rica” e “decoração de luxo”, agora desprovida da possi- brasileira, já então contagiada pelo gênero musicado europeu adaptado aos trópicos
bilidade de expressão subjetiva, não alcança foros de espaço dramático, reduzindo-se pelo engenho de Artur Azevedo. Inserida na linha espaço-temporal da crise e ina-
a ante-sala, onde apenas se conversa, enquanto se aguarda o resultado de um evento dequação da forma teatral burguesa ao Brasil – em que o nosso drama romântico,
externo e alheio à família, instituição de base dos ideais burgueses. por exemplo, realiza-se de forma postiça, pela indisponibilidade da matéria social
exigida pela forma do drama francês, a alta burguesia –, a comédia de Josefina de
Não fazendo a passagem para a ação, a conversação entre as personagens de O voto
feminino, desenvolvida fora do campo intersubjetivo, refrata suas dramatis personae
em tipos sociais, divididos em blocos antagônicos: o das mulheres – inteligentes,
7 Personagem inspirada no médico e jornalista Lopes Trovão (1848-1925), deputado no Congresso
fortes e decididas – e o dos homens – quase todos, egoístas, tolos, oportunistas Constituinte, onde apresentou emendas a favor direito de voto das mulheres e do divórcio. Em seus artigos
e inescrupulosos. Liderados por Inês e Anastácio, os dois grupos instauram um da série “O voto feminino”, a autora refere-se a “opiniões respeitáveis” na imprensa a favor da causa sufra-
maniqueísmo radical, enfatizado pelos personagens secundários, que atuam como gista, embora sem citá-lo nominalmente, como fizera quando da sua candidatura.
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Azevedo evidencia que, se não tivesse sido uma experiência tão isolada, seu nome, direitos de cidadãs.9 No palco, a autora não poderia ter sido mais feliz ao materiali-
anunciador da fase de transição para o teatro de preocupações políticas, estaria, cer- zar esse egoísmo, já na cena de abertura da comédia, na figura ridícula e desprezível
tamente, entre as grandes influências do teatro brasileiro. do homem avarento que, apesar de riquíssimo, se dá ao trabalho mesquinho de
conferir uma pequena nota de compras do armazém, item por item, preço por
Neste sentido, não se pode deixar de anotar a incorporação, na estrutura de O preço e, ao final, descobrindo a mísera diferença de onze vinténs, arma um escân-
voto feminino, de alguns dos recursos formais que, mais tarde, seriam utilizados dalo, exigindo a presença e as explicações da esposa. Um cacoete linguístico é outro
no teatro de agitprop (Cf. GARCIA, 1990), tais como a tipificação hiperbólica e traço risível da figura de Anastácio. Um vago “ora figas”, repetido inúmeras vezes
maniqueísta das personagens, a inclusão de números musicais e a substituição da pela personagem, denuncia a inconsistência dos argumentos masculinos contrários
organicidade dramática pela sucessão de cenas. A adoção destes procedimentos faz ao voto das mulheres. Considerados outros exemplos referidos acima, como Inês,
da pequena comédia uma manifestação embrionária da experiência mais efetiva alter-ego da autora, e Dr. Florêncio, é de se pensar que a militante, ao escrever sua
desse teatro no Brasil, desenvolvida no início dos anos de 1960, por autores que já comédia, tenha buscado nos próprios artigos a matéria-prima para desenhar seus
então haviam assimilado o arsenal técnico brechtiano, entre eles Oduvaldo Vianna tipos mais marcantes.
Filho, um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos
Estudantes (CPC da UNE).8 Escrita por uma autora comprometida com valores éticos de equidade e eman-
cipação, O voto feminino situa-se historicamente como uma pequena ilha, perdida
Deve-se anotar que, para além dos aspectos de ordem formal, o texto de Josefina no mar dos nomes canônicos do teatro brasileiro, onde, entretanto, cruzam-se tri-
da Azevedo e o repertório agit-propista do CPC aproximam-se no que se refere lhas iniciais de dois importantes percursos do nosso universo sociocultural: o do
a sua eficiência em relação aos objetivos imediatos de cada um e, neste sentido, teatro político e o do ativismo sufragista.
seria leviano apontá-los como experiências bem-sucedidas. Ou seja, nos dois casos
superestimou-se o poder do teatro como instrumento de ação política de efeitos
imediatos. Em termos absolutos, poder-se-ia pensar que o CPC não em fez a revo- Referências bibliográficas
lução e tampouco criou a arte revolucionária, como também a agenda sufragista da
autora de O voto feminino não passou de ação frustrada, já que os direitos políticos [ALMEIDA, Presciliana Duarte de.] A Mensageira, São Paulo, p. 240, 15 maio,
das mulheres só passaram a ser exercidos quase meio século mais tarde, em 1932. 1898.
Este ‘insucesso’, todavia, só confirma o caráter de vanguarda da sua militância. No
caso da produção cepecista e da arte política de um modo geral em nosso país, há ANDRADE, Valéria. Maria Ribeiro: a vanguarda feminista no palco brasileiro do
que se relativizar igualmente sobre o alcance da sua influência, que foi, na verdade, século XIX. In: RIBEIRO, Maria. Teatro quase completo. Organização e intro-
profunda e estendeu-se por mais de uma geração, imprimindo mudanças em nossa dução de Valéria Andrade. Florianópolis: Mulheres, 2008. p. 13-32.
arte teatral.
AZEVEDO, Josephina Alvares de A mulher moderna: trabalhos de propaganda.
Já quanto ao uso das técnicas de dramaturgia, não há como colocar em causa o Rio de Janeiro: Montenegro, 1891.
sucesso alcançado pela comédia. O fôlego curto e certas fraquezas de composição
não interferem na linha de vivacidade das falas, no desenho das personagens, nem AZEVEDO, Josephina Alvares. Galleria illustre (Mulheres celebres). Rio de Janeiro:
na elaboração de um humor afiado e inteligente, tal como se vê na caracteriza- A Vapor, 1897.
ção de Anastácio. Desenhado como o mais medíocre dos homens, preconceituoso,
autoritário, retrógrado, inescrupuloso e limitado intelectualmente, Anastácio age BERNARDES, Maria Thereza C. Crescenti. Mulheres de ontem? São Paulo: T.
no contexto de O voto feminino como metonímia do egoísmo masculino. Percebido A. Queiroz, 1989.
por Josefina de Azevedo como uma perturbação do espírito dos homens, que os
tornava “inaptos para as grandes generosidades”, o egoísmo dos homens já fora BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade femi-
apontado nos seus artigos sobre o voto feminino, com insistência, como a única nina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do XX. 1988. Dissertação
razão pela qual as mulheres ainda estavam impedidas do pleno exercício dos seus (Mestrado em Antropologia Social). Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ. 1988.

8 Para uma abordagem detalhada desta experiência que anuncia o teatro de agit-prop no Brasil, ver SOUTO- 9 Conferir artigos publicados pela autora: AF, 14 dez. 1889, 21 dez. 1889, 19 abr. 1890. p. 1; 26 abr. 1890.
MAIOR, 1997. p. 1; 31 maio 1890. p. 1; 11 dez. 1890. p.1.
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Julho a Dezembro de 2010 113

Marginália: o intelectual e as críticas nas margens

André Luís Gomes1


Dirlenvalder do Nascimento Loyolla2

RESUMO: A obra Marginália reúne crônicas escritas por Lima Barreto entre 1914
e 1922 e o título corresponde, tão somente, às anotações que são feitas sobre as mar-
gens de um texto durante uma leitura crítica. Entretanto, faz-se importante notar
que a marginália operada pela verve crítica e violenta de Lima Barreto desenvolve-
se, com efeito, também a partir de seu ponto de vista “marginal” quanto a tudo o
que escolhe para analisar. Nosso objetivo é destacar e analisar trechos de algumas
dessas escolhas, demonstrando o quanto este suburbano e injustiçado mulato esteve
atento às mudanças sociais no início do século XX e utilizou o espaço jornalístico
para expor suas críticas e ideias.
PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto, crônicas, intelectual, crítica social.

ABSTRACT: Marginália gathers chronicles written by Lima Barreto between 1914


and 1922 and its title corresponds to notes that are made on the margins of a
text for a critical reading. However, it is important to note that the “marginalia”
operated by the violent and critical verve of Lima Barreto can be seen, in fact, as
a product of his “marginal” perspective as a chronicler who chooses problematic
questions or texts to analyze. Our objective is to highlight and analyze excerpts
from some of these choices, showing how this suburban and wronged mulatto was
always attentive to the social changes in the early twentieth century and used the
journalistic space to exhibit his criticism and ideas.
KEYWORDS: Lima Barreto, chronics, intellectual, social criticism.

RESUMEN: La obra Marginalia es compuesta de crónicas escritas por Lima Barreto


desde 1914 hasta 1922 y su título corresponde solamente a las anotaciones hechas
sobre las márgenes de un texto durante una lectura crítica. Sin Embargo es importante
destacar que la marginalia orientada por la vena crítica y violenta de Lima Barreto
se desarrolla, con efecto, desde su punto de vista “marginal” cuanto a todo lo que
se elige para analisar. Nuestro objetivo es subrayar y analisar fragmentos de esas
composiciones, demostrando el grado de percepción de este suburbano e injusticiado
mulato sobre los cambios sociales ocurridos a comienzos del siglo XX, y además la
forma como utilizó el espacio periodístico para exponer sus críticas e ideas.
PALABRAS-LLAVE: Lima Barreto, Marginalia, Crónicas, Intelectual, Crítica
Social.

1 ∗ Doutor (FFLCH-USP) em Literatura Brasileira. Professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura


da Universidade de Brasília (UnB)
2 Mestre (UFMG) em Estudos Literários, Professor da Universidade Estadual de Montes Claros –
**

UNIMONTES, Coordenador do Campus avançado da UNIMONTES em Unaí – MG.


SocioPoética - Volume 1 | Número 6 SocioPoética - Volume 1 | Número 6
114 Julho a Dezembro de 2010 Julho a Dezembro de 2010 115

A obra Marginália, do escritor pré-modernista Lima Barreto (1881-1922), Lima Barreto sempre viveu num eterno conflito com a sua sociedade. Desde
reúne mais de 100 textos publicados originalmente pelo autor entre 1914 e o ano que percebera que sua origem humilde e sua cor serviam como entraves às suas con-
da sua morte. Lançado apenas em 1953, pela Editora Mérito, sendo reorganizado e quistas profissionais e materiais, o jornalista/escritor/livre-pensador, “exilando-se”,
relançado pela Brasiliense em 1956, o volume constitui uma expressiva amostra da passou a investir contra todos aqueles que o marginalizavam. E os que concorriam
atuação de Barreto enquanto profícuo jornalista; Marginália compreende crônicas para a sua marginalização eram os mesmos que representavam a mentalidade comum
e artigos publicados em 16 periódicos diferentes, entre jornais e revistas, como O da sociedade ilustrada e hipócrita de seu tempo. Ao analisarmos o seu caso sob
País, A Folha, O Debate, A Lanterna, Correio da Noite, Gazeta de Notícias, Hoje, essa perspectiva, Barreto acomoda-se perfeitamente ao enquadramento de exilado
Careta, Revista Contemporânea, Comédia, A.B.C., Revista Sousa Cruz, Livros Novos, metafísico proposto por Said em seu estudo. Com efeito, para um tipo intelectual
Atualidade, Argos e O Estado. como ele, no contexto da República Velha, seu “exílio” funcionava como “o desas-
sossego, o movimento, a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação
A despeito do que, de imediato, um título como “Marginália” possa sugerir ao nos outros” (SAID, 2005, p. 60). Daí a constância, a irredutibilidade de suas obser-
leitor contemporâneo, tendo em vista o parentesco do termo com a palavra margi- vações ao longo de tantos anos de crítica jornalística as quais podem ser facilmente
nal, cumpre observar que a expressão-título da obra corresponde, tão somente, às detectadas nas crônicas reunidas em sua Marginália.
anotações que são feitas sobre as margens de um texto durante uma leitura crítica.
O volume, nesse sentido, tem como característica central a perspectiva de um Lima Excelente conhecedor dos desarranjos políticos e das desigualdades sociais da
Barreto leitor, intelectual atento às notícias de seu tempo e também crítico pontual realidade brasileira, o cronista investe contra o Poder através de várias críticas à
de tudo o que se produzia no âmbito artístico-cultural da Primeira República. elite pensante do Brasil. Assim, tendo como um de seus primeiros objetos de crítica
aquilo que chama de “acanhado desenvolvimento intelectual” demonstrado pelos
No primeiro texto da coletânea, intitulado “A questão dos ‘poveiros’”, o próprio brasileiros do início do século XX, o escritor condena:
autor explica o método crítico-redacional desenvolvido por ele em relação a todos os
outros trabalhos ali reunidos; segundo Barreto, ante a gama de informações que ia A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de inde-
consumindo sobre variados assuntos, recorreu à seguinte solução prática: “[...] cortar pendência [...]. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de
as notícias dos jornais, colar os retalhos num caderno e anotar à margem as reflexões espírito e inteligência (“Elogio da morte” in: BARRETO, 1956a, p. 42).
que esta e aquela passagem me sugerissem. Organizei assim uma Marginália a esses Vem disto a nossa esterilidade mental, a nossa falta de originalidade
artigos e notícias” (“A questão dos ‘poveiros’” in: BARRETO, 1956a, p. 32). intelectual, a pobreza da nossa paisagem moral e a desgraça que se nota
no geral da nossa população (“A política republicana” in: BARRETO,
Malgrado o fato de a expressão-título da obra ter sido cunhada no sentido 1956a, p. 79).
exposto acima, faz-se importante notar que a marginália operada pela verve crí-
tica e violenta de Lima Barreto desenvolve-se, com efeito, também a partir de seu Sempre atento aos artifícios retóricos criados pela aristocracia para subjugar
ponto de vista “marginal” quanto a tudo o que escolhe para analisar. A marginali- a grande massa de pobres e analfabetos de nosso território, Barreto chama a atenção
dade desse suburbano e injustiçado intelectual mulato configura-se, de certo modo, para a “invenção” do indianismo efetivada pela intelligentsia brasileira do século
dentro daquela condição metafórica do exílio apregoada por Edward Said em sua XIX. Em “O nosso caboclismo”, crônica redigida em 1919, o autor afirma que:
conferência “Exílio intelectual: expatriados e marginais”. Para este autor, os intelec-
tuais que não se deslocam fisicamente para fora de seus países podem ser divididos Uma das manias mais curiosas da nossa mentalidade é o caboclismo.
Chama-se isto a cisma que tem todo o brasileiro de que é caboclo ou
em dois grupos: o primeiro é o dos conformados (ou consonantes); o segundo, dos
descende de caboclo.
inconformados (ou dissonantes):
Nada justifica semelhante aristocracia, porquanto o caboclo, o tupi,
De um lado, há os que pertencem plenamente à sociedade tal como era, nas nossas origens, a raça mais atrasada; contudo toda a gente quer
ela é, que crescem nela sem um sentimento esmagador de discordância ser caboclo. [...]
ou incongruência e que podem ser chamados de consonantes: os que
sempre dizem “sim”; e, de outro, os dissonantes, indivíduos em con- A mania, porém, percorreu o Brasil; e, quando um sujeito se quer
flito com sua sociedade e, em conseqüência, inconformados e exilados fazer nobre, diz-se caboclo ou descendente de caboclo (“O nosso cabo-
no que se refere aos privilégios, ao poder e às honrarias (SAID, 2005, clismo” in: BARRETO, 1956a, p. 69).
p. 60).
Segundo o autor, os escritores indianistas e, sobretudo, o político José de Alencar,
“primeiro romancista do Brasil, que nada tinha de tupinambá” (BARRETO, 1956a,
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p. 69), foram os grandes responsáveis por essa tendência ideológica que perdurava [...] por todo este vasto Rio de Janeiro se deram conflitos, alguns san-
até a sua época. O que irritava o autor era justamente o fato de os intelectuais brasi- grentos, por causa do football (“Divertimento?” in: BARRETO, 1956a,
p. 116).
leiros louvarem o “atraso” de possuírem sangue indígena. Mostra-se evidente, nesse
caso, uma peculiaridade do discurso limabarretiano que se faz notar pelo apreço O football é uma escola de violência e brutalidade e não merece nenhuma
incontinente à tradição cultural europeia, sobretudo por aquela tradição “filtrada” proteção dos poderes públicos, a menos que estes nos queiram ensinar
pela conservadora vertente filosófica francesa. o assassinato (“Não queria, mas...” in: BARRETO, 1956a, p. 150).

Em Marginália, conseguimos identificar em diversos textos uma clara aversão O futebol ganhou, ao longo dos anos, status profissional e espetacular.
do autor aos alemães, aos ingleses e, principalmente, aos norte-americanos. No Atualmente, as críticas de Lima Barreto causariam revolta nas torcidas organizadas e
campo das ideias, ataca nos alemães sua tendência à alienação popular e ao culto ao nos aficionados pelo esporte que reúne milhares de torcedores e fez do Brasil o país
militarismo em detrimento da emancipação do povo: do futebol com a conquista do pentacampeonato. Do ponto de vista econômico,
o futebol é, sem dúvida alguma, o esporte em que as transações financeiras são
Essa mania militar que se apossou de quase todos os países do globo, extremamente rentáveis e o jogador de destaque, ou seja, o “craque” e, nos últimos
inclusive o nosso, levou todos eles a examinar e a imitar a poderosa
anos, o “fenômeno”, tem seu passe inflacionado a cada conquista de um título ou a
máquina guerreira alemã. Os seus códigos e regulamentos militares vão
cada gol marcado. Imbuídos da euforia por esse esporte, elegemos e aceitamos um
sendo mais ou menos estudados e imitados, quando não são copia-
dos. Não se fica só nisso. A tendência alemã, ou melhor, prussiana, “Rei” numa demonstração de que, nesse campo, um certo saudosismo monarquista
de militarizar tudo, os mais elementares atos da nossa vida civil, por impera e, neste sentido, Lima Barreto teria, nos dias atuais, assunto para tantas
meio de códigos, regulamentos, penas e multas, vai‑se também apos- outras crônicas...
sando dos cérebros dos governantes [...] (“A questão dos ‘poveiros’” in:
BARRETO, 1956a, p. 28-29). Se, atualmente, o futebol não é visto como o “primado da ignorância e da imbe-
cilidade”, há que se reconhecer que alguns torcedores, inclusive aqueles que atuam
Agora, parece, a Alemanha ficará por muito tempo diminuída e os
seus idiotas partidos guerreiros que se crêem eleitos e com a missão de
como cronistas esportivos, centram todas as expectativas e esperanças no seu time
dominar o mundo, não encontrarão na massa de camponeses homens de futebol ou no seu astro, afinal, jogadores ganharam as páginas das revistas e de
em que se apóiem, com auxílio de amuletos patrióticos; e os homens jornais e, além da habilidade no campo, têm de manter condicionamento físico
que criam o futuro, poderão agir (“Sobre a guerra” in: BARRETO, digno de virar pôster da página central. E o trágico passa a ser o rebaixamento do
1956a, p. 46). time e não as más condições dos postos de saúde; e o sonho de alguns pais é ver
o seu filho em campo com a camisa dez, mesmo que para isso ele tenha que ver o
A crítica desferida aos ingleses e norte-americanos, mais a estes do que àqueles, filhote deixar a escola.
tem muitas vezes o futebol, o pragmatismo e a prática desportiva em geral (objetos
de ódio particular do cronista) como legitimação da tendência anglo-saxã à barbá- Nosso cronista ainda é atualíssimo quando relaciona o futebol com a violência,
rie. Seja enaltecendo o livro O esporte está deseducando a Mocidade, de Süssekind afinal, os jornais veiculam as rivalidades entre as torcidas que, geralmente, resultam
de Mendonça, ou relembrando a fundação da “Liga Brasileira contra o Futebol”, em confrontos sangrentos e assassinatos que também ocorrem. Os desordeiros se
encabeçada por ele mesmo, o cronista faz afirmações do seguinte teor: juntam e depredam bens públicos e, principalmente nos finais de semana, a lei
fica nas mãos dos líderes das torcidas que deveriam ser organizadas, mas agem de
[...] o sport é o “primado da ignorância e da imbecilidade”. E acrescento forma desrespeitosa e nada civilizadas. Quando organizadas, o que se assiste, como
mais: da pretensão. É ler uma crônica esportiva para nos convencermos
afirma Lima Barreto, são blocos a “festejarem a vitória sobre um rival, cantando
disso. Os seus autores falam do assunto como se tratassem de saúde
os vencedores pelas ruas” e, ao comentar os cantos, o cronista já utiliza o termo
pública ou de instrução (“Como resposta” in: BARRETO, 1956a, p.
73). “hibridização”:

Não é possível deixar de falar no tal esporte que dizem ser bretão. Todo Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridização do samba, mais
dia e toda a hora ele enche o noticiário dos jornais com notas de malefí- ou menos africano com o futebol anglo-saxônico, se haja hoje genera-
cios, e mais do que isto, de assassinatos. O Rio de Janeiro é uma cidade lizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto
civilizada e não pode estar entregue a certa malta de desordeiros que afiançar (“Bailes e divertimentos suburbanos” in: BARRETO, 1956a,
se querem intitular sportmen [...] Tudo tem um limite e o football não p. 67).
goza do privilégio de cousa inteligente (“O Football” in: BARRETO,
1956a, p. 153).
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Conclui o cronista que o subúrbio não se diverte mais depois de descrever as O almirante não é um contemplativo; é um homem de ação e não poderá
mudanças sociais e culturais, que acabaram com os “teatrinhos amadores” e afe- levar muito tempo nesse quietismo enervante (“Coisas Americanas I”
in: BARRETO, 1956a, p. 195).
taram os antigos bailes para os quais amplas salas eram construídas. No subúrbio,
segundo o autor, o que se vê são cômodos estreitos, onde mal cabe um “piano”.
A crítica de Lima Barreto pautava-se na razão de que os brasileiros não
A diversão do momento, continua o cronista, são as salas de cinema, que abrigam
deviam bajular e exaltar um povo que, historicamente, havia dados provas cabais de
pessoas “cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora
que não gostava de mestiços, sobretudo de latinos:
e tanto” ou os clubes de futebol, que “pupulam e os há em cada terreno baldio de
certa extensão”. E o futebol continua sendo criticado, principalmente, por ser uma É preciso lembrar, para provocar o amor dos brasileiros, de todos eles,
diversão importada dos Estados Unidos. pela grande república dos dois oceanos, que a teoria yankee a respeito
[do racismo] é a mais simples possível; e pode ser resumida naquela
O meu amigo Süssekind de Mendonça, no seu interessante livro – O frase nossa e muito comum nos bate-bolas jornalísticos e de estala-
esporte está deseducando a Mocidade – refere-se à licenciosidade das gem: quem escapou de branco, negro é (“Coisas Americanas II” in:
danças modernas. [...] Mendonça atribui o “andaço” dessas danças BARRETO, 1956a, p. 198).
desavergonhadas ao futebol. [...] O Senhor Antônio Leão Veloso achou
isso exagerado. Pode haver exagero – não ponho em dúvida tal coisa De maneira muito clara, o que o cronista também insiste em condenar no
– mas o tal de futebol pôs tanta grosseria no ambiente, tanto desdém
American way of life é a maneira visceral com que os americanos desenvolvem a prá-
pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de
maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de tica capitalista. Incansável crítico do estilo de vida burguês, Lima Barreto censura
culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxu- mais de uma vez o lado não ético do pragmático provérbio yankee: “make Money,
riosas que os hipócritas estadunidenses foram buscar entre os negros e honestly if you can; but make money” [“ganhe dinheiro, honestamente, se possível;
apaches (“Bailes e divertimentos suburbanos” in: BARRETO, 1956a, mas ganhe dinheiro”] (“No próximo centenário” in: BARRETO, 1956a, p. 151).
p. 62-63).
O ódio declarado do cronista à voragem burguesa, às vezes representada pelos
Mas, os norte-americanos são responsáveis, de acordo com o parágrafo conclu- EUA, às vezes pelos capitalistas nacionais, estende-se também à classe política
sivo da crônica, pelo fim da diversão inocente, afinal “o subúrbio se atordoa e se brasileira, a qual, às vistas claras, utilizava-se ilicitamente da República como um
embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi mecanismo para o próprio enriquecimento. Quanto a essa questão, Barreto lem-
buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana” (“Bailes e divertimentos suburba- bra o caso de um certo senador Victoman, que, queixando-se de que os carros da
nos” in: BARRETO, 1956a, p. 68). estrada de ferro feriam o couro de seus bois e vacas, apresentou um projeto de lei
que concedia “um crédito de dois mil contos para acolchoar os carros das estradas
Como é possível notar, a crítica específica ao “brutal e odioso Estados Unidos” federais” que tivessem de transportar o seu gado vacum (“Interesse público” in:
é embalada por um tom mais político e nacionalista: “Fui estudar alguma coisa da BARRETO, 1956a, p. 264-265).
história das relações yankees com outros Estados estrangeiros; é deplorável, é cheia
de felonias. Lembrei‑me também como lá se procede com os negros e mulatos (“A Em suas crônicas, além de seus ataques pessoais ao Prefeito do Rio, Carlos
questão dos ‘poveiros’” in: BARRETO, 1956a, p. 32). Sampaio (gestão 1920-1922), acusado por ele como administrador incompetente e
frívolo, Barreto costumava atacar políticos e intelectuais de todos os calibres. Mas o
Questões como o racismo e a política externa americana são temas recorrentes que salta aos olhos em suas críticas é o tom constante de denúncia da ganância dos
em todos os textos nos quais o nome do referido país se faz presente. Nas crônicas poderosos em relação apenas ao dinheiro, e nunca à aquisição de cultura:
“Coisas americanas”, I e II, publicadas no jornal O Debate, em 06 e 27 de outubro
de 1917, respectivamente, há um claro alerta aos brasileiros idólatras dos EUA. Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar idéias; ninguém quer dar a
Segundo o escritor, o Brasil estava sendo vigiado, naquele período, por 2 ou 3 emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem “comer”.
navios comandados pelo temido Almirante Caperton, homem de guerra que, havia “Comem” os juristas, “comem” os filósofos, “comem” os médicos,
pouco, impusera seu poderio militar na República Dominicana: “comem” os advogados, “comem” os poetas, “comem” os romancistas,
“comem” os engenheiros, “comem” os jornalistas: o Brasil é uma vasta
Especialista em intervenções na vida íntima das fracas repúblicas de “comilança”.
origem ibérica é de crer que Sua Excelência [Caperton] esteja se abor-
recendo de contemplar as belezas da Guanabara e com gana de fazer
qualquer coisa bem americana.
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Esse aspecto da nossa terra para quem analisa o seu estado atual, com Nacionalista convicto, que louvava intelectuais do passado e as grandezas
toda independência de espírito, nasceu-lhe depois da república (“A nacionais, Barreto não era um republicano que criticava a República, mas sim um
política republicana” in: BARRETO, 1956a, p. 79).
republicano que criticava aquela República em especial, aquele modelo escandalosa-
mente deturpado de governo que se desenvolvia em terras brasileiras.
Nasce, com efeito, desse raciocínio, a estranha relação que esse intelectual
desenvolve com a República. Mesmo que se afirmasse favorável a ela, várias são suas Candido e Castello (1964) enxergaram na tendência panfletária de Barreto
declarações, espalhadas por suas crônicas, nas quais sentencia o status quo republi- resquícios de seu forte ideal patriótico, ideal este traduzido por aquilo que chamam
cano e louva os tempos da Monarquia: de visão quixotesca e caricatural com que expressou sua crítica aos valores e ins-
tituições nacionais (principalmente no que respeita aos políticos, aos militares, à
Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regímen da
imprensa e ao funcionalismo público).
fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu [novo-rico],
tendo como repoussoir [suporte] a miséria em geral? (“15 de Novembro”
Cremos que o quixotismo das afirmações de Lima Barreto pode, na verdade, ser
in: BARRETO, 1956a, p. 35).
entendido como uma espécie de “romantismo” arraigado desse escritor; romantismo,
Não há assunto que mais me repugne do que aquilo que se chama afirme-se desde já, no sentido de uma idealização da pátria, do Povo/Civilização e da
habitualmente de política. Eu a encaro, como todo o povo a vê, isto é, política enquanto temas altamente valorizados do ponto de vista ético e moral. Isso
um ajuntamento de piratas mais ou menos diplomados que exploram
talvez esteja ligado à própria formação intelectual de Barreto e a alguns traços de sua
a desgraça e a miséria dos humildes. [...] No império, apesar de tudo,
biografia dos quais julgamos importante lançar mão.
ela tinha alguma grandeza e beleza. As fórmulas eram mais ou menos
respeitadas; os homens tinham elevação moral [...] (“A política republi-
Dados biográficos de Lima Barreto revelam a trajetória de um jovem pobre que,
cana” in: BARRETO, 1956a, p. 78).
graças à intervenção do padrinho, o ilustrado político monarquista Afonso Celso
Foi o novo regímen que lhe deu [ao Brasil] tão nojenta feição para de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Preto, conseguiu adquirir boa educação
os seus homens públicos de todos os matizes. Parecia que o império escolar. Em certo sentido, Barreto parece ter incorporado à sua formação cultu-
reprimia tanta sordidez nas nossas almas. Ele tinha a virtude da modés-
ral (evidente em seu europeísmo latente) traços de uma tendência aristocrática de
tia e implantou em nós essa mesma virtude; mas, proclamada que foi
a república, ali, no Campo de Sant’Ana, por três batalhões, o Brasil
conceber a ideia de conhecimento, tendência esta, por sua vez, bastaste comum à
perdeu a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os Nobreza ou aos beneficiários de um regime monárquico.
cofres públicos, desta ou daquela forma (“A política republicana” in:
BARRETO, 1956a, p. 79). Numa crônica de 1920, não pertencente ao volume de Marginália, o autor, em
tom confessional, cita uma dado de sua intimidade que nos ajuda a compreender a
Críticos da obra de Lima Barreto, como Botelho (2001) e Tavares (2006), questão suscitada acima: “Nasci pobre, mas gosto de mármores, estátuas, quadros e
caracterizaram-no como um escritor contraditório. Sua oscilação no que tange ao tapetes. Tenho o direito a isso pela minha educação e instrução. O que elas trans-
seu posicionamento político ou à sua visão em relação à emancipação feminina formaram na minha natureza, a culpa não é minha; é daqueles que, com sacrifício e
pode ser vista como exemplo dessa aparente contradição. generosidade, me trouxeram” (“Carta aberta, ao jeito dos bilhetes de João do Rio”
in: BARRETO, 1956b, p. 241).
Em Marginália, o que convém notar, antes de mais nada, é que Barreto simula
determinada postura em relação à nação brasileira que tanto amava; era severo, Pelo que se pode depreender de suas críticas à prática desportiva e ao fute-
acusador e sarcástico com o Brasil somente quando desejava atingir a elite inte- bol, verificamos que Barreto tende a repetir uma clássica visão acadêmica a qual,
lectual republicana, responsável pela realidade caótica do país de seu tempo. Em remontando à velha segregação entre atenienses e espartanos, louva o culto à mente
sua posição de “exilado”, o intelectual desfechava golpes ao Poder republicano em detrimento do culto ao corpo. Daí sua preferência, evidente, pela filosofia (de
querendo, em verdade, atingir, particularmente, cada político aburguesado que se Atenas) e não pelo militarismo (de Esparta).
aproveitava ilicitamente das riquezas da Nação. Bem educado e culto, apesar de
Toda a sua discussão em torno de questões políticas está enredada em refle-
pobre, importava ao dissonante Lima Barreto desferir seus ataques à nata da intelec-
xões sobre os conceitos de Civilização e de Barbárie, temas bastante comuns a
tualidade brasileira, a qual, sempre afeita aos ditames da burguesia, era acomodada
certo humanismo romântico de forte conformação clássica. Importante notar que
àquela situação.
mundo pós-Revolução Francesa observou, no campo da arte e das ideias, o cres-
cimento de uma enorme contenda entre os seguidores dos ideais emergentes da
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classe burguesa e os adeptos dos antigos parâmetros de refinamento intelectual da Pouco freqüento a Biblioteca Nacional, sobretudo depois que se mudou
Nobreza decadente. Tal querela marcou tão fortemente a mentalidade do fim do para a avenida e ocupou um palácio americano.
século XVIII e início do XIX que há quem identifique no Romantismo, como o fez A minha alma é de bandido tímido; quando vejo desses monumentos,
Karl Mannheim (apud BOSI, 2006, p. 91), uma expressão dos “sentimentos dos olho-os, talvez, um pouco, como um burro; mas, por cima de tudo,
descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já caiu, e a pequena burguesia como uma pessoa que se estarrece de admiração diante de suntuosida-
que ainda não subiu: de onde, as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pon- des desnecessárias.
tuam todo o movimento”. O Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de ins-
trução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das
Dada a sua formação intelectual que possui um pendor eminentemente fran- mais curiosas (“A biblioteca” in: BARRETO, 1956a, p. 38).
cês, Lima Barreto parece ter absorvido o tradicionalismo crítico dessa academia de
uma maneira bastante natural. Ele é o rapaz humilde que, em contato direto com Ao criticar o fato de o Estado abrigar uma casa de instrução originalmente des-
a boa educação, absorve os ideais da “humanidade civilizada” à qual aludia Octave tinada “aos pobres-diabos” em um “palácio intimidador”, o jornalista evidencia os
Feuillet em seu Romance de um jovem pobre. De acordo com Arnold Hauser, em sua erros de uma administração pública que jamais se importou, de fato, com as classes
História social da arte e da literatura, Feuillet acreditava que menos favorecidas.

[...] a boa educação é sinônimo de uma nobre disposição, e uma ati- Pontuando os gastos desnecessários do Governo com suntuosidades inúteis, o
tude de lealdade às classes superiores é prova de que a pessoa é, em si, intelectual deixa aflorar sua verve humanista; há nele uma clara preocupação com
“algo melhor”. O herói de seu Romance de um homem pobre (1858) é
a educação do homem brasileiro e com sua (consequente) emancipação enquanto
a personificação dessa boa criação e nobreza; ele é generoso e bonito,
cidadão. O cronista censura, desse modo, aquilo que enxerga como um claro arti-
desembaraçado e inteligente, virtuoso e sensível, e apenas prova por sua
pobreza que a distribuição dos bens materiais da vida não fixa limites fício do Poder: tentar, de todas as formas, restringir o acesso ao conhecimento por
para a realização dos ideais aristocráticos. [...] Os ditames da morali- parte das pessoas comuns. A burguesia republicana podia ser burra, como apontava
dade cristã, do conservadorismo político e do conformismo social são Barreto; por outro lado, jamais foi tão ingênua a ponto de não saber que a aquisição
proclamados e exaltados; os perigos de paixões devastadoras e caóticas, de cultura intelectual transforma pequenos jovens paupérrimos em grandes margi-
desespero desenfreado e resistência passiva são combatidos (HAUSER, nais ilustrados.
1998, p. 816).

Ilhado em seu “exílio metafórico”, pobre de recursos materiais, mas nobre em Referências bibliográficas
altivez intelectual e em cultura geral, Lima Barreto assumiu, em seu tempo, a pos-
tura combativa e irrequieta do intelectual postulado por Said (2005), cuja missão BARRETO, Lima. Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956a.
é sempre questionar as normas vigentes. Armando-se da palavra literária contra o
Poder, criticou e satirizou um governo de poucos que manipulava o povo através _____. Vida urbana. São Paulo: Brasiliense, 1956b.
de abusos de autoridade e de falácias de progresso. Suas críticas, desse modo, são
sempre organizadas em função daquilo que ele ilustra como sendo o despreparo BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
intelectual dos dirigentes da nação, homens cuja formação burguesa (leia-se: “não- 2006.
clássica”) destoa do ideal humanista romanticamente idealizado pelo escritor.
BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima
O tom “marginal” de sua Marginália está no enfoque realizado por ele sobre Barreto. Campinas: UNICAMP, 2001. (Tese de Doutorado)
as notícias que vai escolhendo dentro de sua perspectiva de “exilado”. Em crônicas
como “A biblioteca”, publicada originalmente no Correio da Noite, de 13 de janeiro CANDIDO, Antonio; Castello, José A. (Orgs.). Presença da literatura brasi-
de 1915, evidencia-se o posicionamento do intelectual em relação à postura do leira. História e Antologia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
Estado quanto a questões de ordem educacional/cultural:
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Martins
A Diretoria da Biblioteca Nacional tem o cuidado de publicar men- Fontes, 1998.
salmente a estatística dos leitores que a procuram, das classes das obras
que eles consultam e da língua em que as mesmas estão escritas.
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SAID, Edward. “Exílio intelectual: expatriados e marginais”. Representações do Literatura, política e meios de comunicação
intelectual. As conferências Reith de 1993. Trad.: Milton Hatoum. São Paulo: nas crônicas de Rachel de Queiroz
Companhia das Letras, 2005.
Regma Maria dos Santos1
TAVARES, Cássio. O engajamento como contradição: condições da literatura
em Lima Barreto. Brasília: TEL/UNB, 2006. (Trabalho de Pós-Doutorado)
RESUMO: Rachel de Queiroz apresenta, em suas crônicas, aspectos cotidianos
de sua vivência pessoal e coletiva, enfocando faces da política local ou nacional. As
temáticas de suas crônicas são, em geral, ligadas a fatos publicados na imprensa,
notícias que ouviu no rádio, comentários sobre o que se ouviu ou leu. Nesse sen-
tido, pretendemos analisar algumas crônicas de Rachel de Queiroz nas quais estão
presentes as discussões sobre os meios de comunicação em meados do século XX no
Brasil. Dentre essas “O quarto poder”; “Imprensa americana” e “O Telefone”. Pro-
curamos perceber a dimensão que ocupam os elementos responsáveis pela moder-
nização da sociedade na obra da escritora. Dotadas de uma preocupação política, as
crônicas acima compõem essa perspectiva sempre presente no discurso da autora.
PALAVRAS-CHAVE: Meios de comunicação, crônicas, política.

ABSTRACT: Rachel de Queiroz’s crônicas (journalistic articles) convey everyday


aspects of her personal and collective life with a focus on the facets of local and
national politics. Her themes deal with common events made public by the press,
with news she heard on the radio and with comments on what she heard or read.
This paper attempts at analyzing three of her articles which discuss media in Brazil
in the mid-XX century, namely, “O quarto poder” (the fourth state), “Imprensa
americana” (American press), and “O telefone” (the telephone). Our analysis seeks
to realize the dimension which the elements that modernized Brazilian society
occupy in Queiroz’s work. Endowed with a political concern, these articles make
up such thematic perspective which is always present in her speech.
KEY WORDS: media, crônicas, politics.

RESUMEN: Rachel de Queiroz tiene, en sus crónicas, aspectos cotidianos de su


experiencia personal y colectiva, centrándose en los aspectos de la política local o
nacional. Los temas de sus crónicas generalmente están relacionadas con hechos
en la prensa, que oyó la noticia por radio y comentarios sobre lo que se escucha
o lee. Por lo tanto, tenemos la intención de analizar algunas crónicas Rachel de
Queiroz en el que hay discusiones sobre los medios de comunicación a mediados
del siglo XX en Brasil. Entre estos “O quarto poder”, “Imprensa Americana” y “O
telefone”. Buscamos entender la explotación a escala los elementos responsables
de la modernización de la sociedad en la obra de un escritor. Dotado de una

1 Profa. Adjunta do Curso de História da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão. Doutora em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Colaboradora do Mestrado em Teoria Literária Universidade
Federal de Uberlândia/UFU.
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preocupación política, el componente de crónica por encima de este punto de vista Nesse sentido, podemos compreender que a crônica alia o tempo passado ao
siempre presente en el discurso del autor. presente, permitindo-nos refletir sobre as temáticas ali construídas. As crônicas de
PALABRAS CLAVE: Medios de comunicación, crónica, política. Rachel de Queiroz tornam possível perceber que as transformações ocorridas em
meados do século XX no Brasil, com a difusão dos meios de comunicação, provo-
caram resistência, alteraram as relações cotidianas, causaram rupturas e ampliaram

o alcance e a divulgação das notícias.

A autora traz, em suas crônicas, aspectos cotidianos e até mesmo de sua vivência
pessoal, transitando dos sentimentos mais íntimos aos sentimentos coletivos, exten-
Ao propormos trabalhar com as crônicas de Rachel de Queiroz, temos de ter
sivos também à política. As temáticas de suas crônicas apresentam ainda questões
clareza da dimensão efêmera da crônica, mas também de sua capacidade de escapar
relativas ao conflito entre a tradição e a modernidade, como poderemos observar na
desse tempo breve ao tornar-se um documento para o historiador. De acordo com
análise das que se seguem.
Borelli (1996), o cronista revela o instante, o atual, o presente, o que tem duração
em curto espaço de tempo: “A crônica é o próprio fato moderno. Seu consumo é A crônica O telefone, selecionada para esta análise, faz parte do livro Mapinguari,
imediato. Sua dimensão temporal é marcada por transitoriedades, instantaneida- que reúne crônicas de diversos livros de Rachel de Queiroz, dentre eles: O brasileiro
des”. (1996, p.72) Mas, conforme essa mesma autora, o cronista é também um perplexo, As menininhas e O jogador de sinuca. A obra Mapinguari, e as peças de tea-
narrador da História escrita, pois, com a modernidade, os velhos contadores de tro Lampião e A beata Maria do Egito foram publicadas conjuntamente no vol. 5 de
história são poucos: Obra reunida (1989). Já as crônicas O quarto poder e Imprensa fazem parte do livro
O caçador de tatu, publicado no vol. 4 da obra citada (1989).
O cronista moderno é o narrador da história escrita, o narrador na
modernidade. Com a modernização das sociedades, diminui o espaço e Para melhor compreender as reflexões construídas pela autora, consideramos
a presença dos velhos contadores de histórias que no passado trocavam
importante apresentar uma breve biografia de Rachel de Queiroz, nascida em
experiências vividas com seus ouvintes. (Borelli, 1996, p. 63).
Fortaleza-CE em 1910. A cronista viveu entre o Ceará, a Bahia, o Rio de Janeiro e
São Paulo, tendo atuado politicamente no PCB (Partido Comunista Brasileiro) e
O cronista pode ser considerado ainda um historiador, segundo Borelli, pois ele
sido presa diversas vezes. Com o Estado Novo, seus livros, junto aos de Jorge Amado,
interpreta, apresenta e recria, com sua imaginação, algum fato ou acontecimento.
José Lins do Rego e Graciliano Ramos foram queimados, acusados de serem sub-
Ao escrever uma crônica, o cronista está “lembrando” de algo: “O ato de escrever
versivos. Com o assassinato de Trotsky por Stalin, a autora afasta-se da esquerda.
crônicas é, concomitantemente, um ato de lembrar. Faz-se de novo do cronista
Aprova, como diversos intelectuais, o golpe de 1964, aparentemente tomando ati-
historiador e do historiador cronista. São lembranças pessoais e familiares, resul-
tude contraditória à sua trajetória de esquerda, dando apoio à deposição de João
tantes da articulação entre memória coletiva e memória individual”.(Borelli, 1996,
Goulart, a quem acusava de continuísmo da política de Vargas. Foi a primeira
p.69).
mulher a ser eleita pela ABL em 1977. Rachel de Queiroz falece em novembro de
Antonio Dimas afirma que não merece muita confiança o argumento que dis- 2003 aos 92 anos.
crimina a crônica com base no seu caráter efêmero. Se o fato de ser publicada em
Nessa breve biografia podemos nos deparar com uma escritora profundamente
jornal a condenasse ao esquecimento rápido, ou implicasse em uma qualidade infe-
ligada às questões sociais de seu tempo e lugar. Não por acaso, suas crônicas são
rior, a história literária no Brasil não apresentaria tantos cronistas de mérito que
marcadas por temas polêmicos relacionados a questões políticas comuns no Brasil
vêm sendo publicados em coletâneas ou antologias. (DIMAS, 1981, p.8)
em meados do século XX, como as práticas do coronelismo, a atuação da imprensa
Luiz Roncari considera ainda que: e a visão que a imprensa americana possui do Brasil.

Se o romance-folhetim tenta sobreviver à existência breve dos jornais e Segundo Afrânio Coutinho, a cronista apresenta características típicas do moder-
alcançar o verdadeiro corpo no livro, a crônica literária faz o contrário: nismo, sua principal temática: “dentro do pano de fundo dos problemas geográficos
realiza seu verdadeiro ser na brevidade dos jornais, mas espera repousar e sociais nordestinos, é a posição da mulher na sociedade moderna, com seus pre-
dessa passagem agitada e curta no livro que a lembre e recorde, como a ceitos morais e sociais”.(COUTINHO, 1986, p. 279) A obra de Rachel de Queiroz
imagem de quem foi um dia. (RONCARI, 1985, p.13)
expõe as transformações ocorridas no século XX, mostrando que a autora se interessa
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por temas variados do cotidiano, compreendendo que o tempo contemporâneo é surpresa, o senador responde que como todo ato humano é imperfeito, o ato insti-
breve e efêmero. tucional número 2 tem também suas imperfeições. No jornal vespertino, o repórter
escreve a seguinte manchete: SENADOR X ATO INSTITUCIONAL. E chama
Na crônica “O quarto poder”, a autora inicia suas reflexões dirigindo-se dire- atenção para a matéria na página 18, onde se leem as considerações do Senador. A
tamente ao leitor, argumentando que se alguém acredita que ela, por não estar no autora cita o susto do Senador ao ler a matéria, já que era um homem dócil e não
Rio, está mal informada, engana-se, pois, ao contrário, está informadíssima. Após queria se indispor com o governo. Diante de tal situação escreve uma longa carta,
essa confissão inicial, passa a descrever sua rotina na fazenda diante do aparelho de que é publicada na mesma página do jornal três dias depois. Mas essa carta já não
rádio: tem o mesmo efeito da matéria. O que ficou, segundo Rachel de Queiroz, é a “sen-
sação de que o dócil Senador de repente virou fera...” (QUEIROZ: 1989, p. 105)
Desde as seis da manhã começava o transistor da fazenda a dar notí-
cias, num horário assim organizado: das seis às seis e quarenta Rádio
Não se sabe, conforme a cronista, as reais motivações daquele noticiário, que
Assunção; seis e quarenta às sete PRE-9; sete horas às sete e quarenta
e cinco (até o chamado das pessoas desaparecidas), Jornal Tupi; sete e
com certeza caíra na mão de correspondentes estrangeiros que enviam as notícias
quarenta e cinco às oito, Bandeirante de São Paulo; oito horas, Repórter daqui para fora. No entanto, Rachel de Queiroz pondera: “ruim com eles, pior sem
Esso. Ao meio-dia, programas de política local, e de novo Repórter eles”. E passa a recordar os tempos do Estado Novo:
Esso. Do meio-dia às doze e cinqüenta e cinco. De noite, Voz do Brasil
para saber os atos do Executivo e os discursos do Congresso.Nessas lon- (aquilo sim era ditadura; e hoje, os velhos cúmplices e sicários de
gas horas de escutar rádio cheguei a bordar um imenso tapete de mais Getúlio ousam apelar para a ONU pedindo liberdade!) no Estado
de dois metros, enquanto me inteirava da vida da nação e do mundo. Novo, quando nas entrelinhas dos jornais arrolhados a gente festejava
(Queiroz,1989, p. 104) uma lança da África, uma insinuação maliciosa, um protesto sublimi-
nar, no artigo de Osório Borba, na crônica de Braga, na coluna de Pedro
Assim como Penélope à espera de Ulisses, Rachel de Queiroz tece seu tapete Dantas...Parecia que nos faltava o ar constantemente.(QUEIROZ,
1989, p.106)
ouvindo pelo rádio as notícias do dia a dia. A cronista destaca a vantagem do rádio
de não deixá-la aflita. Talvez devido ao controle sofrido por esse meio de comunica-
Após esse desabafo, conclui: “deixa a rapaziada falar”, concordando que é melhor
ção, lembrando que essa crônica é de 14/12/1965. No entanto, quando volta ao Rio
ler uma mentira que ver proibida de publicação uma verdade. E completa:
de Janeiro, o vício pelo jornal é retomado. Nesse momento ela expõe a diferença
entre um meio e o outro: Só se sabe a falta que faz uma imprensa livre, com todos os seus defei-
tos, absurdos e leviandades, depois que se passa pela provocação de uma
Jornal quentinho do forno, e ninguém vai trocar o prazer de ler ‘direto’ imprensa amordaçada. Fica uma covardia pairando no ar, como um
pela vicária informação contada por boca de locutores, entre a enxur- cheiro mau. Os foquinhas petulantes e boateiros – matéria-prima de
rada de anúncios. Mas o jornal acaba com o coração da gente, põe-nos onde sairão os grandes jornalistas – desaparecem e são substituídos por
as coronárias cívicas em tensão constante, e não sei como, diariamente, uma fauna sinistra de puxa-sacos ávidos, medrosos, cevados nas verbas
não morremos todos de enfarte.(...) No fim, cada um acaba acredi- secretas, e que em vez de agitar uma bandeira, simplesmente abanam
tando no que lhe é mais simpático – e assim viram artigos de fé as o rabo, como cachorros festeiros. Desses é que a gente deve ter medo;
afirmações mais contraditórias. porque aí, em vez do simples boato sensacionalista, que por si mesmo
se desfaz, temos a mentira organizada, servil, interesseira, premeditada.
Como exemplo dos boatos e versões da imprensa, a autora cita as várias cha- Mentira autoritária que ainda é pior do que a mentira subversiva, já
madas sobre a ida de Juscelino para a América, dentre essas: ‘JK fugiu de medo da que tem do seu lado a força. .(QUEIROZ, 1989, p.106)
cadeia’, ‘Autorizado pelo governo revolucionário, Juscelino viaja para Nova Yorke’,
‘Amigos poderosos subtraem Kubitschek aos IPM, ‘JK escapa à meia-noite’. O fim do texto traduz a propriedade de suas ponderações, já que a partir dali
apresenta-se o prenúncio da ditadura, nada branda, que estava se implementando
A cronista observa que o leitor deve tirar uma média e ficar com a mentira que no Brasil, solidificada pelo Ato Institucional nº 5 que, mais uma vez, silencia a
mais lhe agrada. E continua a criticar o jornal, afirmando que embora ele aparen- imprensa nacional e deixa a fala para os “foquinhas, os puxa-sacos, os interessados
temente seja coerente, é, na verdade, uma colcha de retalhos que reflete a visão nas verbas secretas, os cachorros festeiros”, como os denomina Rachel de Queiroz.
individual de cada redator conforme suas simpatias e antipatias. Após essas consi-
derações, passa a relatar o caso de um jovem repórter que interpela um senador a É fato comum as biografias da autora revelarem o seu apoio aos militares em
respeito do Ato Institucional número 2, questionando seus defeitos. Tomado de 1964, considerando-a uma colaboradora que “conspirou” a favor da deposição
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do presidente João Goulart. O presidente Castelo Branco, seu conterrâneo e apa- finalidade não ferir as suscetibilidades dos asiáticos, que “se mostram mais vaidosos
rentado, no ano de 1966 a nomeia para ser delegada do Brasil na 21ª. Sessão da e sensíveis, na razão direta da sua insignificância”. (QUEIROZ, 1989, p. 142).
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas junto à Comissão dos Direitos
do Homem. Passa a integrar o Conselho Federal de Cultura, em 1967, e lá ficaria Segundo Rachel de Queiroz, todos os esforços do presidente americano são em
até 1985. vão, em função da atitude dos jornalistas. O General de Gaulle tem como base de
sua inimizade pelos americanos a forma irônica ou sarcástica como os jornais o
Numa entrevista à Folha de São Paulo de 04/11/2003, ao divulgar seu livro tratam. O Brasil, velho aliado dos Estados Unidos, é tratado sistematicamente com
de memórias Tantos anos, escrito com a irmã Maria Luíza de Queiroz, Rachel de desconsideração, de forma ridicularizadora. Ela considera que a riqueza, o poderio
Queiroz esclarece que aceitou o golpe militar para derrubar o Jango (João Goulart), internacional, a supremacia técnica subiram à cabeça desse povo, que abandonou
mas quando aquele movimento degenerou-se em ditadura, afastou-se. Considera valores como a virtude da humildade.
que foi um governo de ocasião, e quando foi possível abandonar, o abandonaram e
entregaram para os civis. A cronista insiste ainda em sua aversão por João Goulart: Por fim, desabafa a cronista, leitora da imprensa americana:
“Sempre tive o maior desprezo pelo Jango intelectualmente, como pessoa, além do
...Sim, pois não é possível que todo o resto do mundo – na Europa,
desconforto de ver na Presidência o grupo getulista, que já era por si fascista.” A Ásia, África, América e Oceania – todo o mundo se componha de anal-
maior consequência dessa sua opção foi o patrulhamento que sofreu porque apro- fabetos, famintos, mestiços degenerados, penando sob ditaduras ou
vou o golpe. entregues à orgia do anarquismo, a pechinchar dinheiro, a carecer de
lições de democracia, de trabalho, de abc; e, acima de tudo, necessita-
Não é desnecessário observar, conforme nos apresenta Aquino, que entre 1968 a dos de se conformarem ao supra-sumo da civilização cristã: o american
1978 a censura política à imprensa escrita no Brasil agiu de duas formas: “através de way of life! (QUEIROZ, 1989, p.144)
telefonemas, anônimos ou não, de ordens escritas, apócrifas ou não, encaminhados
às redações dos jornais, ou de acordos fechados com os proprietários de grandes A crônica discorre sobre um tema ainda presente no século XXI. Somente para
órgãos de divulgação, ou através de censura prévia.” (AQUINO, 1999: 222) lembrar, podemos citar os comentários de um correspondente americano no Brasil
tratando o presidente Lula como um “cachaceiro”. Merece também registro o
Em outra crônica, “Imprensa Americana”, a autora retoma o tema. Em Nova “susto” da imprensa nacional, que mantém o tom subserviente em suas análises,
York há dois meses, lê a imprensa americana diariamente, o que a faz concluir que quando o presidente americano Obama fez elogios ao presidente brasileiro.
o maior inimigo dos líderes americanos não é o comunismo, mas sim sua imprensa.
Sua crítica tem como foco, principalmente, o fato de os jornais americanos não Alterando o tom da denúncia da prática da impressa, que problematiza a ação dos
praticarem a cortesia internacional. De forma veemente, observa: media, na crônica “O Telefone”, de junho de 1961, a autora enfoca novamente os
meios de comunicação e a política, mas numa outra perspectiva. A cronista detalha
A imprensa americana, entretanto, sem corresponder às exigências de a festa acontecida na cidade de Aroeiras em função da inauguração da Companhia
liderança de seu país, é com perdão da franqueza, a mais estreitamente Telefônica, que, no entanto, a poucos servia. Os telefones oficiais eram os da dele-
provinciana, a mais arrogantemente ‘má vizinha’, a mais infantilmente
gacia, da estação de trem, da Câmara e da casa do Juiz. Entre os particulares, havia
jactanciosa, a mais incompreensiva, a menos universal das imprensas
deste mundo.(QUEIROZ, 1989, p. 142).
o telefone do casarão do Major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, e o do
sobrado do Coronel Benvindo Assunção, chefe robalista. A possibilidade da comu-
Quando essa imprensa discute a política de outros países, o tom é protetor e nicação entre essas casas rivais criava uma verdadeira tensão. Conforme a cronista:
revela o desprezo pelas instituições alheias. A pilhéria é comum ao tratar de líderes “Um Assunção, para um Leandro, era assim uma idéia proibida, palavra proibida”.
de outros países: “Se se referem ao presidente de tal país asiático, jamais deixam Na Igreja cada família tinha o seu lado. Agora o telefone estava lá como porta aberta
de insinuar que ele é mulherengo, a um africano, que é um pernóstico, a um sul- entre as casas.
americano, que é grotesco”. (QUEIROZ, 1989, p. 142)
O Coronel Belmiro pensava nessas possibilidades e de repente o telefone tocou,
A cronista comenta ter lido num jornal americano o comentário sobre uma como que em resposta aos seus pensamentos. Ninguém da família, que ficou toda
viagem do presidente Johnson a países da Ásia e à Oceania, como se ele tivesse por em volta do aparelho, teve a ousadia de atender, pois falar ao telefone era prerro-
habilidade não ocupar os lugares nos banquetes, não falar com arrogância nem gativa do chefe. E assim o Coronel atendeu, e do outro lado uma voz em falsete
imposição. Conforme a compreensão do jornalista, essas atitudes tinham como perguntou se era o Benvindo e o convidou para uma missa por alma da Pomba
Rola.
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Há mais de um século esse era o nome de uma das mulheres da estirpe dos Referências bibliográficas:
Assunção, que fora uma rapariga de ponta de rua que viveu com um padre e cons-
tituiu com ele grande prole. Seu nome legítimo era Dona Dorotéia. “Contudo, AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa e estado autoritário (1968-
quando alguém queria insultar um Assunção, era só falar de pomba, de rola, ou 1978). Bauru: Edusc, 1999.
nas duas juntas. Também usavam arrulhar de longe, imitando a rolinha fogo-
pagô.”(QUEIROZ, 1989, p.32). Muito sangue correu em Aroeiras por causa da BORELLI, Silvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura
inocente ave, comenta a cronista. de massa no Brasil. São Paulo: EDUC/Estação liberdade, 1996.

Ao ouvir aquelas palavras o coronel soltou o fone, como se tivesse sido mordido COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol.6. 3ed. Rio de Janeiro: José
de cobra. Imediatamente ligou para a telefonista e a fez confessar que o telefonema Olympio. Niterói. UFF – Universidade Federal Fluminense, 1986.
recebido era da residência dos Leandro. Pouco tempo depois, o Coronel juntou seus
homens de confiança e foi até a casa do Major, bateu a porta e pediu para falar com DIMAS, Antonio. A Crônica de Carlos Drummond de Andrade. Boletim
o dono da casa, tendo sido informado de que este não se encontrava. Bibliográfico. BMA, São Paulo, 42 (2), 7-15, abr/jun, 1981.

O filho do Major, chamado Chico Vinte e Um, tísico, fraco, saiu à porta com QUEIROZ, Rachel de. Obra reunida. Vols. 4 e 5. Rio de Janeiro: José Olympio,
uma garrucha e atirou no Coronel. O tiro acertou em outro, e um dos homens do 1989.
Coronel se atracou com Chico. Enquanto isso, o Coronel adentrou-se na casa do
inimigo, sendo inquirido quanto ao que queria por uma das mulheres. Este então RONCARI, Luiz. A estampa da rotativa na crônica literária. Boletim
tirou o chapéu e disse que só queria punir um criminoso e deu a ordem: “Arranque Bibliográfico Biblioteca Municipal Mário de Andrade. São Paulo, Secretaria
esse bicho aí. (...) Quero com tripa e tudo.” (QUEIROZ, 1989, p.34). Municipal de Cultura, vol. 46, n. 14, jan/dez, 1985.

Os homens tiraram o telefone com os fios, levaram para a rua e atearam fogo.
Ao povo que espiava medroso a cena, o Coronel bradou: “Foi pra aprender a não
soltar má-criação a homem”. Depois disso, nunca mais, em casa de Leandro ou de
Assunção, na cidade de Aroeiras, se viu um telefonema. Podemos observar que por
mais que a sociedade se modernizasse as relações ainda estavam baseadas na força
local dos coronéis até meados do século XX no Brasil.

De forma bem humorada, a cronista expõe-nos a dificuldade da aceitação de um


media numa determinada sociedade que tinha como prática utilizar a garrucha, a
faca, a truculência para resolver os entreveros entre as facções políticas locais.

As três crônicas apresentadas mostram, portanto, a visão da cronista sobre o


papel da imprensa no Brasil, distinguindo, conforme sua opinião, o rádio e o jornal,
analisando a imprensa americana e sua vocação para o menosprezo por países do
chamado “terceiro mundo”, e ainda como o telefone se insere em nossa sociedade
rompendo os limites entre o público e o privado.

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