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Fotografia e Memoria em Marcel Proust PDF
Fotografia e Memoria em Marcel Proust PDF
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Doutor em Letras e Linguística pela UFG e professor do curso de Comunicação Social – habilitação
Jornalismo da UFT. Trabalho destinado ao GT 05 – História da Mídia Visual e Audiovisual.
Alcar – Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia
I Encontro de História da Mídia da Região Norte
Universidade Federal do Tocantins – Palmas – outubro de 2010
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são de uma enorme proximidade, já que a foto é uma espécie de equivalente visual da
lembrança. “Uma foto é sempre uma imagem mental. Ou, em outras palavras, nossa
memória só é feita de fotografias”. E Proust parecia ter plena consciência disso,
conforme sugere o seguinte depoimento do narrador de A prisioneira: “Pois eu não
guardava em minha memória senão séries de Albertines separadas umas das outras,
incompletas, perfis, instantâneos” (PROUST, 2002, p. 138). Este trecho ressalta bem a
relação entre a memória e a fotografia (o instantâneo). Mas, para Proust, apesar de sua
semelhança com a fotografia, a memória é algo bem superior, segundo deixa
transparecer a seguinte declaração do narrador de O tempo redescoberto:
E minha pessoa de hoje não passa de uma pedreira abandonada, que julga
igual e monótono tudo quanto encerra, mas de onde cada recordação, como
um escultor grego, tira inúmeras estátuas. Falo em coisas revistas por que,
atuando os livros nisso como coisas, o modo pelo qual se abria sua
lombada, o grão de seu papel podem ter conservado, tão viva, como as
frases do texto, a lembrança de como eu imaginava então Veneza e de meu
desejo de visitá-la. Mais viva até, pois estas por vezes perturbam, como
certas fotografias, que nos fornecem do modelo uma imagem menos fiel do
que nossa memória (PROUST, 2002, p. 164).
Mesmo que a fotografia aqui apareça como menos fiel do que a memória, Proust
demonstra claramente neste trecho acreditar na pertinência da relação entre a fotografia
e memória. Susan Sontag (2004) também nos chama a atenção sobre este fato, ao
observar que as fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimento
porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. “A televisão é um fluxo de
imagens pouco selecionadas, em que cada imagem cancela a precedente. Cada foto é
um momento privilegiado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podem
guardar e olhar outras vezes” (SONTAG, 2004, p. 28). Seguindo essa mesma linha de
raciocínio e, de certa forma, embasando o pensamento de Proust, o romancista Milan
Kundera, através do narrador de a Imortalidade, ressalta que a memória não filma, mas
fotografa. “O que guardara de todas essas mulheres, na maioria dos casos, foram
algumas fotografias mentais. Não via suas amigas em movimento contínuo; mesmo
muito curtos, os gestos não apareciam em sua duração, mas fixos numa fração de
segundos” (KUNDERA, 1998, p. 307). Já Vilches (1997, p. 236) salienta que a
fotografia é memória, assim como os gêneros literários e cinematográficos. Mirian
Moreira Leite (2001, p. 44) também chama a atenção para a característica fotográfica da
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memória, ao lembrar que “a palavra revela melhor o conhecimento subjacente na
memória que, todavia, é constituído de imagens fixas”.
A arte da memória, segundo explica Dubois, nasceu na Antigüidade grega e nos
foi transmitida por alguns grandes textos latinos (o De oratore de Cícero, a Institutio
oratoria de Quintiliano e a Ad Herennium de autor desconhecido), nos quais é definida
como uma das cinco grandes categorias da Antiga Retórica (inventio, dispositio,
elocutio, memória, actio – ou pronunciatio). A este respeito Dubois acrescenta:
Concebida como um conjunto de regras que permitiam ao orador inscrever
com facilidade, na virtualidade de sua memória, tudo o que necessitasse
para discorrer com a maior eficácia possível, isto é, concebida como um
procedimento artificial da mnemotécnica, pelo qual um conjunto de dados
pode ser estocado e ordenado e no qual é possível encontrar
instantaneamente um elemento preciso, a arte da memória baseia-se de fato
no jogo de duas noções completamente fundamentais, todo o tempo
retomadas em todos os tratados: os lugares (loci) e as imagens (imagenes)
(DUBOIS, 2001, P. 314).
Com base no Ars Memoriae, de Cícero, Dubois (2001, p. 315) explica que os
loci, os lugares, são superfícies virgens suscetíveis de receber as imagines (as imagens),
que já são plenas de sentido, mas transitórias:
Enquanto as imagens, que na maioria das vezes são signos simbólicos,
alegóricos, compósitos, só são colocadas num lugar por um tempo, os
lugares permanecem na memória. As imagens que neles depusemos, na
medida em que não precisamos mais lembrar-nos delas, apagamo-las. E os
mesmos lugares podem ser reativados para receber um outro conjunto de
imagens destinado a um outro trabalho de memória. (DUBOIS, 2001, p.
315)
Proust concede à memória uma importância até então não observada em nenhum
romancista. A memória é para a literatura de Proust, segundo analisa Walter Benjamim
(1986), mais importante até mesmo do que a própria vida:
Em suma, num como noutro caso, quer se tratassem de impressões como as que
me provocara a vista dos campanários de Matinville, quer de reminiscências
como a da desigualdade de dois passos ou o gosto da madeleine, era mister
tentar interpretar as sensações como signos de tantas leis e idéias, procurando
pensar, isto é, fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo em seu
equivalente espiritual. Ora, esse meio que se me afigurava o único, que era
senão a feitura de uma obra de arte? (PROUST, 2001, p. 158).
- Sabe o que gostaria de fazer com esse velho pavoroso? – disse ela
pegando o retrato.
E murmurou ao ouvido da Srta. Vinteuil algo que não pude
perceber.
- Oh, você não se atreveria.
-Não me atreveria a escarrar em cima disso? – disse a amiga com
uma brutalidade intencional (PROUST, 2002, p. 155).
Ainda que Combray inteira, saindo de uma taça de chá, reocupe a extensão que
era sua, essa extensão não se vincula ao resto do espaço. Assim como os
momentos reecontrados, os lugares reencontrados permanecem entidades
isoladas, entre as quais não há coisa alguma. O milagre da Madeleine não tem o
poder nem para fundar um espaço, nem uma duração. Apenas pode fazer surgir,
das profundezas do espírito, a imagem de lugares e de momentos fechados.
Predela, segundo explica a nota da tradutora de Poulet (2002, p. 89), Ana Luiza
Borralho Martins Costa, é a parte inferior de um quadro de altar, geralmente dividida
em pequenos painéis que representam uma série de temas, como as diferentes etapas da
vida de um santo. A lógica da “predela”, acreditamos, é a mesma dos álbuns de
fotografias, que, com a ajuda do amálgma da imaginação, é capaz de contar histórias
inteiras de vidas a partir do destaque de alguns momentos em que a eternidade dos
instantes parece ter sido ter sido capturada.
Referências bibliográficas
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2005.
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Janeiro: Imago, 1992.
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Alencar. São Paulo: Editora Globo, 2002.
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----. No caminho de Swann. Vol. 1 – Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro,
1992.
----. O homem, o escritor, a obra. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971.
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São Paulo, Martins Fontes, 2006.
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SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem – cognição, semiótica, mídia. 3ª ed.
São Paulo: Iluminuras, 2001.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
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WOLFF, Francis. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In: NOVAES,
Adauto (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac, 2005, p. 16-45.