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MARCIANO VIDAL

ÉTICA
DA SEXUALIDADE
Tradução:
Maria Stela Gonçalves

~
Edlfães loyofa
Título original:
Ética de la sexualidad
© Marciano Vidal García, 1991
© Editorial Tecnos S.A., 1991
ISBN: 84-309-1957-0

EDIÇÃO BRASILEIRA
SUMÁRIO
Direção:
Fidel García Rodrf:guez, SJ

Revisão:
Renato da Rocha PRÓLOGO .................................................................................................. 13
Heloisa Helena Paiva

Diagramação: I. SEXUALIDADE
Paula Regina Rossi Cassan
Capítulo 1. ABORDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA
E DA ÉTICA DA SEXUALIDADE ........................................ 19
l. DIMENSÃO E DIMENSÕES DA SEXUALIDADE HUMANA . . . . . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
1. Dimensão da altura: a sexualidade abrange toda a pessoa ........... ...... 19
2. Dimensão de longitude: a sexualidade é uma realidade dinâmica ...... 20
3. Dimensão de profundidade: os valores da sexualidade ............... .. ..... ... 21
Edições Loyola 4. Dimensão de largura: a sexualidade é uma força
Rua 1822 nQ 347 - Ipiranga para edificar a pessoa ......................................................................... 22
04216-000 São Paulo, SP
II. METODOLOGIA PARA DESCOBRIR E EXPOR O SIGNIFICADO
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP
DA SEXUALIDADE HUMANA . ........... . .. ....•. ........ . . ..... ...... ....... . ... ......... . ... •. . .. .. 23
&;::: (0**11) 6914-1922
~: (0**11) 6163-4275 III. Os VALORES BÁSICOS DA SEXUALIDADE HUMANA
Home page e vendas: www.loyola.com.br (ORIENTAÇÕES ÉTICAS FUNDAMENTAIS) ........................................................ 24
Editorial: loyola@loyola.com.br 1. Tarefa ética de integração do "eu» ... ............... .............. ....... .............. 26
Vendas: vendas@loyola.com.br 2. Tarefa ética de abertura ao "você» ..................................................... 27
3. Tarefa ética de construção do "nós» .......... .... ... ................ ............. ...... 27

Capítulo 2. DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA.


REPERCUSSÕES PARA A ÉTICA SEXUAL ......................... 29
l. 0 SEXO BIOLÓGICO HUMANO . ... ... . ... ........ .................... . . ... . ... .......... . ......... 29
1. Sexo cromossômico (determinação genética do sexo) ......... ...... .............. 29
ISBN: 85-15-02362-8
2. Sexo gonádico (formação das gônadas e dos órgãos genitais externos) .. 31

........................__________________... ....______________________________
©EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002 3. Sexo hormonal (aparecimento dos caracteres secundários) .................... 32

~
-
II. ELEMENTOS DE ANATOMIA E FISIOLOGIA SEXUAL HUMANA ............................ 32 Capítulo 4. A SEXUALIDADE C~MO ENCONTRO INTERPESSOAL.
1. Anatomia sexual .... .... ............ ............................................ ..... ..... ..... . 34 ANTROPOLOGIA E ETICA DA SEXUALIDADE
2. Fisiologia sexual ....... ...................................................... .......... .......... 34 DIALÓGICA ..... .. . .... ............ ............. ................ .. .. .. ................. 69
1. As ETAPAS PSICO EVOLUTIVAS DO ENCONTRO HETEROSSEXUAL ........................ 70
III. SIGNIFICADO DA DIMENSÃO BIOLÓGICA PARA A COMPREENSÃO
I. Descoberta do «outro,, heterossexual: adolescência ............. ........ ,.......... 70
GLOBAL DA SEXUALIDADE HUMANA ..................... ... ..... ... ... .. . ....................... 36
2. Descoberta do «você,, heterossexual: juventude ...................................... 71
1. Significado procriativo ........... ...................... .... .... ...... .... .............. ....... 36
3. Paixão e noivado ................................................................................ 71
2. Significado de «luxo,, ............................ .. ......................... ................... 37
3. Significado prazeroso ... .. ... ...... ...... ..... .... .................... ..... ... ................. 38 II. A DESCOBERTA DO "voCÊ" COMO INTERLOCUTOR ...................................... 73
1. Abertura de conhecimento .................................................................. 73
N. REPERCUSSÕES PARA A ÉTICA A PARTIR DA BIOLOGIA SEXUAL ........................ 39
2. Abertura de intercomunicação pessoal ........... ... ............... ....... .......... ... 74
1. A sexualidade humana: variação qualitativa ..................................... 40
2. Bissexualidade inicial do indivíduo .... ..... .... ........ ............................ ... 41 III. EXIGÊNCIAS ÉTICAS DO DIÁLOGO HETEROSSEXUAL ........................................ 77
3. Ascese e amor na relação sexual ......................................................... 42 1. Linguagem de amor ........ ...... .... .......... ... ...... ..... ... ... ......... ........ .......... 77
4. A prática do ato genital é uma necessidade do organismo? ................. 43 2. Linguagem de amor oblativo .............................................................. 77
3. A partir da e para a diferença sexual ........ ........................ .... ........... 78
Capítulo 3. PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE 4. Diversidade de formas ........................................................................ 78
E IMPLICAÇÕES ÉTICAS ..................................................... 45 N. As EXPRESSÕES DO AMOR HETEROSSEXUAL ...... .......... . . ... . ........... ... .. .. .. .... .... 78
1. SEXUALIDADE E AMOR NA PSICOLOGIA EVOLUTIVA .... .......... . .. ....... ...... .... .. ... 46 1. Antropologia e ética do olhar ............................................................. 79
1. Sexualidade infantil ... ... ........... ... ..... ..... .... ............. ............................ 46 2. Antropologia e ética da carícia (beijo, abraço, dança .. .) .................... 81
a) A concepção e vida intra-uterina ................... ..... ....... ....... ..... ... .... 46
b) A "experiência" do nascimento ..................................................... 47 V. 0 ENCONTRO HETEROSSEXUAL: ANÁLISE ANTROPOLÓGICA ............................. 82
c) As fases da primeira evolução sexual. Etapas psicossexuais ........... 47 1. A atenção ....... .... ........ ............ ...... ...... .......... ........ .......... ... ... ..... .. ....... 83
2. Sexualidade adolescente ...................................................................... 49 2. A necessidade de comunhão ....... ....... .......... ....... .............. ......... ......... . 84
3. Sexualidade juvenil ............................................................................ 50 3. A exaltação vital ........... ............ ......... ......... .... ........ ........... ...... .......... 84
4. Sexualidade madura .......................................................................... 50 4. Idealização da pessoa amada ... ........... ..... ........ ... ... ........ .......... ...... ..... 85
II . SEXUALIDADE E AMOR NA PSICOLOGIA DIFERENCIAL ... .. .. .. ..... ...................... . 51 VI. CONCLUSÃO: SIGNIFICADO DA DIMENSÃO DIALÓGICA
1. Diferenças psicossexuais ............................................................ ........ ........ 51 PARA A COMPREENSÃO GLOBAL DA SEXUALIDADE HUMANA ............................ 85
2. Interpretação das diferenças sexuais .................................................... 53
3. Masculinidade e feminidade: duas formas Capítulo 5. DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE
do ser e do oficio humanos ...... .. ......... ..... ... .......... ...... ............ ............. 56 HUMANA. SOCIOLOGIA E ÉTICA EM DIÁLOGO .......... 87
58
III . SEXUALIDADE E AMOR NA PSICOLOGIA TIPOLÓGICA ... ..... ......... .. .. ...... ... ... ..... 1. A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE .. ................. .. .. .. ........... ...... . 87
1. A tipologia sexual segundo a classificação de Kretschmer ....... ............. 59 II. CARACTERÍSTICAS DA SEXUALIDADE NO MUNDO ATUAL ................................ 91
2. A tipologia sexual segundo a classificação de Sheldon ..... ..................... 59 1. A «erotização,, da sociedade atual ...................................................... 91
N. IMPLICAÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE .. .. . ....... .. ..... 60 a) Vivemos num mundo sexualizado .... ......... .... .... .... ....................... 92
1. Sentido e estrutura da sexualidade psicológica ...................... ...... ........ 60 b) A sexualidade ganhou "extensão'', mas perdeu "qualidade" ..... .. .. 93
a) A sexualidade como força construtiva do eu .. ... ...... ............. ........ 62 c) A sexualidade atual: sintoma de contravalores pessoais ... .............. 94
b) A sexualidade como função hermenêutica da pessoa .... ...... .......... 62 2. Características psicossociológicas da sexualidade atual ........ .............. ... 94
2. A tarefa ética da «integração» da sexualidade no «esquema pessoa[» .. 62 a) Decadência das formas de comportamento institucional e
a) O "esquema evolutivo" da maturação sexual ....... ... ............... ...... . 63 ritualizadas em favor de uma maior liberdade nos
b) Mecanismos psíquicos desintegradores ............ ......... ... .................. 65 critérios individuais ... .................... ...... ........................... ................ 95
b) Privatização anímica das experiências amorosas ............... .............. 95 Capítulo 8. A EDUCAÇÃO SEXUAL .... ............. ... ............................... ... 131
c) Psicologização da sexualidade ...... ..... .... .... ...... .. ........ .. ... ...... ......... 95 J Os SUJEITOS RESPONSÁVEIS PELA EDUCAÇÃO SEXUAL .................................. 131
d) A decadência das instituições, a privatização das experiências · 1. A família ...................................................................................... ... 132
amorosas e a psicologização da sexualidade trouxeram uma série 2. A escola ............................................................................................ 133
3. A sociedade . .. . .. ... .. . ... . .. . ... . .. .. .. ... . ... . ... . .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. . 134
de conseqüências na maneira de entender e de viver a sexualidade
que podem ser observadas com mais clareza em alguns ambientes' II. 0 CONTEÚDO BÁSICO DA EDUCAÇÃO SEXUAL ............................................ 135
da juventude atual .. ... ... ................... ........ ........... ...... .. .... .... .... ...... 96 1. Objetivos gerais da educação sexual .................................................. 135
2. Conteúdos distribuídos segundo a idade . .. .. .. . .. ... . .. .. .. ... . .. .. .. ... . .. . .. .. .. . 136
III. "REVOLUÇÃO SEXUAL" ... ... ... ... . ....... ..... .•.. ....... . .. .... . . .... .. ... . ... .. ... . .. .. ....... . .. 97 3. Conteúdos e objetivos específicos por ciclos ....... ................... ... ... .... ... .. . 138
1. A sexualidade como "distração» ...... ... ........ ......... .............. .... .............. 98 4. Observações metodológicas ................................................................. 143
2. A sexualidade como "consumo» ........................................................... 99
3. A sexualidade como fator de "repressão social» ... ............ ....... ......... ..... 99
Capítulo 9. O AUTO-EROJIS~O : SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO
4. A sexualidade como "falsa sacralização» ... .... .................................... 100 E ORIENTAÇAO ETICA ... .......... .... ..... ..... ...... ............ ....... . 149
IV. VERTENTE ÉTICA: PUDOR, OBSCENIDADE E CONTROLE SOCIAL 1. SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO DO AUTO-EROTISMO ........ ... .. ..... .. .. ..... ........ 149
NAS MANIFESTAÇÕES SEXUAIS ... .......... ... .... ... ..... ..... ... . .... ... ....... ... ...... .. .... .. 101 1. Freqüência estatística ............................................................ ·..... ... .... 149
1. Dialética intimidade-abertura nas manifestações sexuais ..... ........ ..... 101 2. Consideração médico-biológica ............................................................... 152
a) O pudor como vivência da intimidade pessoal em perigo ..... .. ... 102 3. Consideração psicológica ..... ..... ..... ..... .............. .... ............ ...... .. ..... .... 153
a) Causas do auto-erotismo ............................................................. 153
b) O "desavergonhamento" e o "medo": os dois extremos
b) Mecanismos psíquicos ................................................................. 155
do pudor sexual ........................... .......... ............ ... ................. .. ... 103
c) Tipologia do fenômeno auto-erótico .......................................... 155
2. Controle social das manifestações sexuais? ............................................. 104 d) Síntese: significado psicológico .................................................... 157
II. ORIENTAÇÃO ÉTICA DO AUTO-EROTISMO .. . ..... .. ... . ... .... ........... . ..... . ... ..... . .. . 158
Capítulo 6. DIMENSÃO EXISTENCIAL DA SEXUALIDADE.
1. Observações históricas ........................ ................................................ 158
PARA UMA FILOSOFIA DA SEXUALIDADE HUMANA . 107
2. Orientações atuais . .. .. . .. .. .. ... . . ... .. .. . ... .. .. .. .. . .. .. .. . .. .. .. ... . .. .. ... .. .. . .. .. .. . .. . 162
l. 0 HOMEM: UM SER SEXUADO .. .. ...... ...... . ........ . ... .. ............ ........ .. . ... ......... 108
II. A SEXUALIDADE: LUGAR DE UNIÃO ENTRE O VITAL E O HUMANO ....... . ... .... 108
II. CASAL
III. A SEXUALIDADE: PORTA DE COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL········ · ····· ······ ·· · ··· · llO
eapttulo
, ,
10. O CASAL PRE-MATRIMONIAL ....... ......... .... ... ......... ....... 167
IV. A SEXUALIDADE: MODO DE PERCEBER O OUTRO ... ....... .... ............ .. .. .......... ll2
l. UM FATO QUE PEDE UMA REFLEXÃO . ... . .. ...... .... .... ...... .... . .. .......... ......... ... 167
V. A SEXUALIDADE: LUGAR DE VIVÉNCIA DA VIDA E DA MORTE .. . .... . ..... . .. ..... . ll5 1. A compreensão atual da sexualidade ....... ..... .. .... ......... ............ ..... .... 167
2. O modo de viver a sexualidade no mundo de hoje ... ...... ...... ....... .... .. 168
Capítulo 7. A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO HUMANA 3. A nova situação sociocultural da juventude .. .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. 168
E REALIZAÇÃO PESSOAL .. ...... ....... ......... ........ .... .............. ll 7 4. A nova maneira de entender o noivado ........ .... .... ....... ... ... ............. .. 169
5. O contexto da "revolução sexual» .............. ... .. ... .. ...... ..... ........ ........... 171
l. A CONDIÇÃO HOMOSSEXUAL .............. .... ... ... .. . ... ........................... . ....... .. . 117
1. O nome ....... ..... ... ....... .......... ..... ...... ..... ..... ... ...... ..... ............ .. ..... ...... 117 II. DADOS ESSENCIAIS DA ANTROPOLOGIA CULTURAL . ..... ........... ..... ........ ........ 172
2. A noção precisa . . ... . .. .. .. ... . .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. ... . .. ... . .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. ... .. . 119 1. Considerações globais .. .. . .. .. .. .. .. .. .. .. . ... .. .. .. .. .. . .. . ... . ... .. .. . ... .. .. .. .. . ... . .. . .. 172
3. Compreensão antropológica da homossexualidade .... ......... .. .... ..... ... ... 120 2. Dados etnológicos concretos ..................................................................... 173
3. A instituição pré-matrimonial ........................................... ................... 176
II. 121
REALIZAÇÃO PESSOAL ... . ... ...... .. .. . .......................................................... ..
1. Avaliação tradicional da homossexualidade .... .... ..... .......... ..... ....... ... 121 111. A INSTITUIÇÃO DO NOIVADO NA HISTÓRIA .................. ... ......... .... ......... .. .. . 177
2. Formulações atuais .......................................................................... . 124 1. Mesopotâmia (Código de Hamurabi) .......... ......................................... 177
2. Os esponsais em Israel ............ ..... ...................................................... 178 2. Amor conjugal: encontro heterossexual .............................................. 216
3. Os esponsais no mundo greco-romano ................................................ 180 3. Tensões dialéticas do amor conjugal ... ... ........ ... ........ ...... ....... ............ 216
4. Na vida da Igreja ........................................................................... 181 Ili. Os PROBLEMAS DO AMOR CONJUGAL HOJE .... ......... ... ......... ........ .............. 218
IV. AVALIAÇÃO ÉTICA DAS RELAÇÕES SEXUAIS PRÉ-MATRIMONWS . ........ . .......... .. 185 1. O cccomeço)) do amor conjugal ... ........ .... ........ ........ ........... ................ 218
1. Argumentações insuficientes ........................................... ............. ...... 185 2. As crises inerentes à condição evolutiva do amor conjugal ....... .......... 219
2. A relação entre noivos pode ser expressão autêntica 3. A ameaçada peculiaridade do amor conjugal ................................... 220
de um amor total e definitivo? ....................... ......... ......................... 187 4. Contestações teóricas e comportamentos desviantes diante
a) Momento pedagógico ................................................................. 188 da fidelidade e da exclusividade do amor conjugal ................... .... ... . 221
b) Momento axiológico ................................................................... 189 5. Ressonância social na vida do casal conjugal .................................... 222
3. A vinculação interpessoal vivida na comunidade
pode realizar-se entre noivos? ........... ..... ............................................ 189
JV. SINAIS DE ORIENTAÇÃO COM VISTAS AO FUTURO ....................................... 223
1. Fé no valor humanizante do amor conjugal ..................................... 223
a) Descartável toda relação não-vinculante ...................................... 190
b) Forma ideal de vinculação ..................... ........................ ............. 190 2. Afirmação de sua peculiaridade no âmbito da realidade
c) Formas "progressivas" e "regressivas" de vinculação .................. 191 complexa do casamentofamília ........................................................ 224
d) A vinculação pré-matrimonial ...................................................... 192 3. Propiciar a tensão dialética entre intimidade e abertura
no amor conjugal .............................................. ............................... 225
4. Do amor conjugal à transformação social .......................... ............... 225
Capítulo 11. CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL .......... 195
l. 0 SIGNIFICADO DA "INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL" ..................................... . 195
1. Noção genérica de ((instituição)) ............................................ ............ 196 Capítulo 13. O CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO
2. Noção específica de instituição ccmatrimonia/l) .................................. 197 PARA A SEXUALIDADE? .................................................. 227
l. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA ....................................... ........................ .... 227
II. CRISE ATUAL DA INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL .................................... ......... 198
1. Formas ccatípicas» na organização da ccvida em comum)) .................. 198 II. Os DADOS DA ANTROPOLOGIA SEXUAL ...................................................... 229
2. Extensão sociológica da crise ................................................... .......... 200 1. Necessidade de uma institucionalização para a sexualidade
e o amor .......................................................................................... 229
III. CAUSAS DO MAL- ESTAR DIANTE DA INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL ................... 204
2. Estrutura sociocultural da sexualidade ............................................. 230
1. O postulado do c1'ersonalismo)): esplendor do casal
3. Exigências de uma visão antropológica integral ................................ 231
e obscurecimento da instituição ............................................................. 204
2. Função ccideologizadora)) da instituição tradicional do casamento ..... 205 III. RELAÇÃO ENTRE SEXUALIDADE E CASAMENTO ............................................ 233
IV. CRITÉRIOS DE ORIENTAÇÃO ............. ........................................................206 1. Anotações de antropologia cultural ................................................... 234
2. Exigências sexuais intraconjugais ..... ................................................. 238
1. Reformulação da dimensão institucional do casal ....... .. .................... 206
2. Equilíbrio dialético entre c1'essoa)) e ccinstituição)) IV. ORIENTAÇÕES ÉTICAS······· ························································· ·············· 241
na vida do casal conjugal ................................................................ 207
3. Em busca do pluralismo de formas institucionais .............................. 208 Capítulo 14. EXERCÍCIO RESPONSÁVEL DA PROCRIAÇÃO ........... 245
l. SIGNIFICADO DA FECUNDIDADE HUMANA .................................................. 245
III. CASAMENTO 1. Perspectiva do casal conjugal .......... ............ ............ ........................ .. 245
a) Explicações históricas insuficientes .............................................. 246
Capítulo 12. ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL ... 213 b) Explicação correta .......... .... .... ......... .... ... ............. ................. .... ... 246
l. LUGAR DO AMOR CONJUGAL NO ÀMBITO DA REALIDADE DO CASAMENTO . ... 213 2. Perspectiva da sociedade ................................................................... 247
II. SENTIDO ANTROPOLÓGICO DO AMOR CONJUGAL ........... ...................... ....... 214 a) A fecundidade como bem social .... ............. ... ....... ...................... 247
1. Características específicas do amor conjugal ...................................... 214 b) A fecundidade como carga social ................................................ 247

...
II. 247
"RACIONALIZAÇÃO" DA FECUNDIDADE HUMANA ....... ......... ..... .. ......... ... .....
1. Racionalização da população («controle demográfico») ..................... 248
2. Racionalização da fecundidade do casal conjugal
(«procriação responsável» e «planejamento familiar») ................... .... 249
III. AVALIAÇÃO TÉCNICA E ÉTICA DOS MÉTODOS
DE CONTROLE DA NATALIDADE ..................................................... ······· .... · 251
1. Vertente científico-técnica ...................................... .. ......................... 251
2. Vertente ética ....................................................................... .. .......... 251
PRÓLOGO
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 253
1. SEXUALIDADE ·······························•········································ ················· 253
2. CASAL E MATRIMÔNIO ··· ············· ·· ···· ·· ································ ··· ·················· 255

NTERPRETAR de forma constante a realidade é uma das tarefas mais


1 nobres e urgentes do homem. Se~mos, as coisas escapam a
nós e se distanciam de nós porque não tivemos a cortesia de ctef-nos
e perguntar-lhes o que são e o que fazem. Falar com elas - tal como
com as pessoas - supõe entrar_em contato e de alguma maneira conhecê-
las. Outras vezes, ~hlas-conhe~ im ede também d detet.=.nos
e estabelecer uma relação inteligente e cordial com elas.
Isto que acontece todos os dias com as coisas de nosso ambiente
ocorre também com nossas idéias, sentimentos e convicções mais profun-
das. Deveríamos revisar constantemente a ime _a_qila~c­
ções gue nos sustentam e azem de nós o que somos. As idéias e as '
_:;...--------
convicções caracterizam-nos mais do que as roupas, a aparência exter
ollãpropna carteira de identida&. Pénsar que certas idéias são já para
toda a vida deveria fazer-nos tremer. Pensar que só há uma maneira de
ver e de interpretar nosso mundo, que este mundo é definitivo sem
possibilidade de mudança, seria cair no maior dos absurdos.
Devemos reconhecer, entretanto, que a maioria de nós se mantém
fundado em convicções, idéias, teorias que adquirimos em certa época.
~osso espírito se fechou à possibilid_ade-<k-urua-mudwça, de um novo
enfoque, de uma segunda interpretação possível. Sequer nos ocorre um
modo diferente de ver e de viver. Satisfazemo-nos com as poucas ou
muitas idéias que temos. Mas não percebemos que as coisas já trilham
outro caminho. Há outros enfoques e outros comportamentos. A reali-
dade e a vida mostram-se de maneira distinta, e oxalá víssemos a defasa-
gem entre nós e elas.

13

...
ÉTICA DA SEXUALIDADE PRÓLOGO

Tudo o que acabamos de dize tem sua aplicação concreta no cam- a a maior parte de nosso volume. Valeria a pena deter-se para estu-
po do com ortamento u do costume ou mores. Os princípios que ~:pa partir da antr.op~logia, o fen~meno ~a sexualidad~ huma~a. Não
regem a conduta em termos de c~ort_miento sexual, na relãÇio amo- . oramos as contribmções dadas a sexualidade a partir de diferentes
~- seja no nível do casal, do casamento ou da interpretação da ign pectivas. E também estamos conscientes de que não se disse tudo. E,
própria sexualidade humana em boa parte dos cidadãos-, não arecem pers d . . d . d , . 1
al, m disso, cremos que se po e viver a sex a e_a_12artir e mveis
poder ter _yma_intge_retação diferente da que em certa épÕca lhes foi ~ito proft.fri<FoSe hu zaooi:es.. or outro lado, não podíamos evitar' , ,
1 - dada. Devemos convencer-nos de que a sexualidade, como qualquer outra ~15 ema ou abordá-lo a partir de posições velhas ou tendendo à
realidade humana, pode ser percebida e_vivíciã- '!_p..ª1lir-de-pers~ acomodação. Queiramo-lo ou não, a vida é tão rica que não permite que
" muito_distintas e...muito epriquecêdoras. Para isso, deveríamos ser levados . se pense e se viva de uma única maneira. Era necessário abordar a sexua-
=-;reusar que a realidade da vida--;;- da essoa humana não se esgota numa lidade em toda a sua dimensão: biológica, psicológica, sociocultural,
única teoria, sistem vida é sempre mai Ninguém a viveu em sua existencial etc.
plenitude, e podemos es ar certos e que ninguém a viverá. E mais: Estudamos com o mesmo interesse o fenômeno - tão atual e tão
ninguém a vive da mesma maneira.
desconcertante - do casal humano. As estatísticas são suficientemente
Vale a pena insistir nisso. Deveríamos enaltecer e ajudar todos os eloqüentes para não negligenciar o fato do casal pré-conjugal, assim como
que nos ensinam a ver e a viver de forma diferente, e com mais profun- a resistência a embarcar no casamento civil ou canônico.
didade, nossa realidade vital. Em suma, eles nos revelam a apaixonante
Os três capítulos do terceiro bloco sintetizam toda a problemática
aventura de viver como homens.
do amor conjugal. É possível que o leitor nos acuse de brevidade num
Uma equipe de professores vem trabalhando nesta linha de redesco- tema tão atual. Levamos em conta essa possível deficiência. Não descar-
berta das realidades humanas - a vida, a morte, a sexualidade, o casamen- tamos poder oferecer algum dia um estudo mais global e completo sobre
to, o amor etc. Suas contribuições a partir da ética, da psicologia e da o tema do casamento.
antropologia oferecem-nos uma visão distinta, nova, do viver humano.
O conjunto dos estudos que apresentamos aqui faz parte do traba-
Num livro anterior - Bioética: Estudios de bioética racional - , lho pedagógico do professor M. Vidal. De sua cátedra na Universidade,
quisemos oferecer a um amplo público a análise das realidades básicas - em cursos de pequena duração, congressos, colaborações em revistas e na
a vida, o nascimento, a morte -:-- numa tentativa de abordagem de tais imprensa, ele exerce um magistério amplo e internacional. Com a publi-
realidades. A partir de uma ética racional, recriamos Lreinterp~os cação destes estudos, desejamos colaborar para formar uma nova atitude
todos os problemas ue ess sJatos- apre-sentam. moral, resumida por ele "na instância ética, civil e humanista" que deve
Animados pelo sucesso e pela acolhida desse primeiro estudo, lan- impregnar toda a vida humana.
çamos hoje o segundo. Do ângulo de uma ética racional, oferecemos Nossa especial gratidão a todos os que nos ajudaram a tornar pos-
algumas perspectivas antro ológicas e orientações éticas acerca da sexua- sível esta edição.
lidade, do casal e do casamento. Essas p~ não ao
simples impulso de uma corrente ou moda, mas antes a uma necessi ade
de revisar e re~ a partir da razão. Encontra-se PEDRO R. SANTIDRIÁN
subjacente um propósito de educação ética que se estende a todas as
realidades humanas.-E2.L4etrás_de cada com ~ºr-t~nto existem algumas
motivações uma forma de entendimento e de educação.
------ãs temas se distribuem em três blocos intimamente unidos: I) Se-
xualidade; II) Casal; e III) Casamento. Em extensão, o primeiro bloco

14 15
ABORDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA
EDA ÉTICA DA SEXUALIDADE

I. DIMENSÃO E DIMENSÕES DA SEXUALIDADE HUMANA

fenômeno da "sexualidade" no âmbito da realidade humana pas-


O sou nos últimos anos por uma nova avaliação. De modo específico, é
a nova perspectiva da qual ela é considerada que provocou essa variação
fundamental. A preocupação antropológica, que domina o pensamento e a
cultura atuais, é a que delineia o horizonte e os contornos da realidade da
sexualidade. Considera-se o sexual não no que tem de realidade autônoma
(uma função com vistas à procriação) nem no que possui de participação na
escala dos seres (os aspectos biológicos da sexualidade), mas no que tem de
especificamente humano. Olha-se a sexualidade como uma realidade da pes-
soa. O que a sexualidade representa dentro do conjunto da pessoa humana?
Essa é a pergunta que oriénta todos os problemas da sexualidade humana.
É preciso afirmar a complexidade do fenômeno e da realidade do
sexual. Mas toda essa complexidade é resolvida de maneira definitiva
numa unidade: a pessoa humana. Essa é a dimensão fundamental da
sexualidade. Colocada nessa perspectiva, podemos avaliar a altura, a longi-
:Ude.' a largura e a profundidade da sexualidade. Quatro dimensões no
amb1to da única dimensão pessoal.

l, DIMENSÃO DA ALTURA: A SEXUALIDADE ABRANGE TODA A PESSOA

A sexualidade não se reduz ao âmbito dos impulsos genitais; a


sexualidade não se define pela genitalidade nem muito menos pelo mero

19
.ABORDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA E DA ÉTICA DA SEXUALIDADE
SEXUALIDADE

ato sexual. Todos os fenômenos genitais são sexuais, mas há uma grande m. A sexualidade não ocorre integralmente e de uma vez ao homem.
quantidade de fenômenos sexuais que não têm nenhuma relação com o ~e exualidade é uma realidade dinâmica. Todos os seus elementos estão
genital. Essa ampliação do conceito de sexualidade, iniciada por Freud ~metidos, desde o nascimento até a morte, à lei de uma contínua
(além da forma genital, admite formas orais e anais na sexualidade) e sualução. O caráter evolutivo da sexualidade tem tal importância que
ev mpromete toda a evolução dinâmica do indivíduo. As diversas etapas
continuada por seu discípulo Jung (as duas manifestações do espírito humano
no "masculino" e no "feminino"), é admitida por todos, psicólogos e
~o pessoa humana são avaliadas pelas etapas evolutivas de sua sexualidade.
: evolução sexual tem uma dinâmica interna: é necessário que passe do
sexólogos. A sexualidade, portanto, abrange toda a pessoa humana.
interesse centrado em si mesmo ao interesse centrado nos outros, do
Podemos, pois, admitir a conclusão de que o sexo é algo que afeta auto-erotismo ao alioerotismo. Mas essa dinâmica sexual repercute na
de cima a baixo a totalidade da pessoa humana. dinâmica geral da personalidade. Somente quem teve um pleno e perfeito
Se toda a personalidade está marcada pelo sexo, as diferenças de desenvolvimento sexual pode ter uma atitude madura diante de si mes-
homem ou mulher pertencem ao ser constitutivo do homem. O sexual mo, diante dos outros e diante da realidade em geral.
é uma condição básica em que cada pessoa deve viver sua vida. A sexua - Se a sexualidade é uma realidade dinâmica que se torna histórica
tidade não é uma determinação adjacente ao ser do homem; ela o con- dentro da vida do indivíduo, temos de admitir que as falhas mais profun-
diciona em seu núcleo mais profundo. A influência da sexualidade no das ocorrerão nesse rúvel evolutivo. São falhas das "fixações", das "re-
interior do mundo pessoal não se reduz a seu âmbito específico, mas tem gressões" e das "imaturidades". Desconhecer essas falhas seria correr um
repercussão em todas as manifestações da vida pessoal. A psicologia dife- grande risco na avaliação do comportamento sexual. Tal como é uma
rencial assinala as repercussões que as diferenças sexuais têm no interior enorme deficiência avaliar a sexualidade a partir de conceitos universais
da psicologia da pessoa. Essas diferenças têm de ser pensadas no rúvel da e não sujeitos à lei do dinamismo inerente ao comportamento sexual.
diferenciação fundamental homem-mulher e também no âmbito das diver- Essa dimensão evolutiva da sexualidade tem muita importância para
sas variações do sexual em cada um dos sexos. a ética sexual. Ao longo da exposição, faremos muitas aplicações desse
O que foi dito anteriormente ·não deve ser entendido como uma princípio geral.
afirmação do pansexualismo. A diferença entre nosso ponto de vista e a
orientação pansexualista é radical. Em primeiro lugar, nosso "pansexua-
3. DIMENSÃO DE PROFUNDIDADE: OS VALORES DA SEXUALIDADE
lismo" reside na unidade da pessoa, sendo esta a que "tem" a sexuali-
dade; em contrapartida, o pansexualismo psicológico considera a sexua- Como vimos, a sexualidade se situa no centro da pessoa humana.
lidade uma força exterior que invade a pessoa, a qual é "tida" pela Daí que os gestos ou manifestações da sexualidade tenham a mesma
sexualidade. Em segundo lugar, em nossa consideração toda a realidade densidade ou profundidade das pessoas. E mais: assim como a pessoa
não diretamente sexual da pessoa tem valor e realidade próprios, embora humana se exprime em diversos rúveis, assim também o sexo conhece
esteja marcada pela tonalidade sexual; pelo contrário, para o pansexualismo diversos rúveis de expressão.
psicológico toda manifestação da pessoa não tem consistência própria, Costumam-se distinguir diversos rúveis de profundidade do sexual.
sendo antes "camuflagem" do sexual. Fala-se de "sexo", "eros" e "ágape"; outros introduzem entre o "eros"
e o "ágape" a "filia". No sexo, alude-se mais diretamente aos caracteres
2. DIMENSÃO DE LONGITUDE: A SEXUALIDADE É UMA REALIDADE DINÂMICA
somáticos e às raízes biológicas da sexualidade; no "eros", mencionam-
se seus elementos psicológicos; a "filia" representa o wor interpessoal,
Uma das grandes contribuições de Freud ao estudo da sexualidade e o "ágape" abre o amor humano ao âmbito da resposta amorosa do
consistiu em fazer ver que a sexualidade humana não é uma realidade que Deus do amor. Têm lugar entre esses elementos uma grande unidade e
aparece num momento dado, de uma vez para sempre na vida do ho- uma profunda continuidade, já que nascem de uma mesma força pessoal.

21
20
SEXUALIDADE ABORDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA E DA ÉTICA DA SEXUALIDADE

Apesar de admitir a unidade e continuidade dos elementos que JI. _METODOLOGIA PARA DESCOBRIR E EXPOR
integram a sexualidade, é necessário reconhecer sua irredutibilidade qua- O SIGNIFICADO DA SEXUALIDADE HUMANA
litativa. Não se podem confundir os diversos níveis da pessoa. Só se
conservam a profundidade e riqueza da pessoa se não se confundem seus Há diversos caminhos para abordar o mistério humano da sexuali-
níveis numa falsa preocupação de homogeneidade e de unidade. O mes- dade quando se tem a intenção de compreendê-lo. Poderíamos procurar
mo acontece com os níveis de profundidade no sexual. Por outro lado, descobrir o fenômeno da sexualidade humana por meio do estudo com-
ao correlacionar a dimensão evolutiva da sexualidade com seus diferentes parativo com o com~orta~e?t? sexual animal 1 , ou mediante a conside-
níveis de profundidade, deparamos com o fato de que estes vão apare- ração das compreensoes h1stoncas que os homens ofereceram a si mes-
cendo mais ou menos intensamente em conformidade com as etapas da mos acerca de sua realidade sexual 2 • A antropologia sexual também po-
evolução sexual. Por exemplo, quando um adolescente chega à maturi- deria ser exposta pelas mais notáveis figuras da sexologia 3 •
dade de seus órgãos genitais, a primeira coisa que aparece nele não é o Reconhecendo a validade dos métodos indicados seguiremos con-
desejo sexual orgânico (sexo), mas a inclinação difusa para o outro sexo '
tudo, um caminho diferente. Faremos um esboço de antropologia '
sexual
(eros). No momento da educação sexual, desempenha um papel decisivo mediante uma consideração sistemática dessa realidade humana. Para isso,
a consideração correlativa entre a evolução sexual e os diversos níveis da iremos aproximando-nos da sexualidade de diversas perspectivas para
sexualidade. descobrir suas diferentes dimensões.
A sexualidade humana pressupõe, exprime e realiza o mistério inte-
gral da pessoa. Daí que não possa ser entendida a partir de uma consi-
4. D IMENSÃO DE LARGURA:
deração reducionista e redutora. Destacaram-se as conseqüências negati-
A SEXUALIDADE É UMA FORÇA PARA EDIFICAR A PESSOA
vas a que levou uma concepção monovalente da sexualidade.
A sexualidade desempenha um papel decisivo no desenvolvimento A polivalência ou o caráter plurivetorial é um traço específico da
da personalidade do homem. Ela não pode ser considerada uma força sexuali~ade humana. Por isso mesmo, sua compreensão deve ser compos-
fechada em si mesma; ordena-se no sentido total da existência humana. ta d~ diversos saberes trabalhando interdisciplinarmente. Como ponto de
A sexualidade é uma força violenta; porém - per se - não é uma P'.11"tlda e como resultado dessa interdisciplinaridade, pode-se falar de
diversas dimensões da sexualidade humana.
força totalmente informe ou anárquica. É uma força da pessoa e para a
pessoa. Estando vinculada à pessoa, a sexualidade adquire uma grande As dimensões da sexualidade humana podem ser expostas de vários
maleabilidade e plasticidade. Torna-se tão ampla quanto a própria pessoa. modos. Um deles seria o de seguir a estruturação da sexualidade desde
Na sexualidade, o homem experimenta sua indigência existencial, e na as regiões mais profundas das "necessidades" e "pulsões" até sua trans-
sexualidade o homem vive sua abertura aos outros, abertura mediante a formação em linguagem inter-humana. Essa maneira de buscar a "ar-
qual é cumulada sua penúria existencial. queologia" do desejo sexual para "reconstruir" sua história dentro da
O homem extrai dessa dimensão da sexualidade uma série de orien-
tações decisivas para a ética sexual. O valor do comportamento sexual 1. Cf. L. BOUNOURE, El instinto sexual. Estudio de psicoloaía animal Madri
19
d~ R. CHAUVIN, Conductas sexuales dei animal.
M 62· . . sobre "sexualidad humana
Estudios ' '
deve ser julgado pelo significado pessoal que contém, visto que a sexuali- ª n, 1967, pp. 23-36. '
dade possui em si mesma uma intencionalidade orientada para a in - MO~ A. W. LEIBRAND,_ Formen des Eros, 2 vols., Friburgo/Munique, 1972; A.
tegração pessoal. Além disso, a sexualidade tem um dinamismo inter- I-DANINOS, Evolución de las costumbres sexuales, Madri, 1974.
pessoal, do qual não pode ser privada e pelo qual deve ser avaliada. s , 3: Recordemos os nomes (com suas respectivas contribuições ao campo da ciência
1
Aparecerão adiante as deduções éticas desses princípios básicos de antro- ee~o ~gica) de H. ELLIS, S. FREUD, G. MARANÓN, A. C. KINSEY, W. H . MASTERS
y p · /OHNSON. Para uma panorâmica sexológica, cf. A. HESNARD, Sexología normal
pologia sexual. ato ogica, Barcelona, 1970, pp. 15-18.

22 23
S EXUALIDAD E ABO RDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA E DA ÉTICA DA SEXUALIDADE

pessoa é um método interessante e enriquecedor. Ele une as possibilida- A ética sexual assume sempre uma determinada antropologia sexual.
des hermenêuticas da psicanálise com os métodos interpretativos do es- É necessário recordar que. nem a ;m~s~a, nem o sentime?t~ de culpa,
truturalismo e da lingüística. Os guias nesse caminho poderiam ser Freud, Il1 os tabus, nem as tradições pre-c1entlficas podem constJ.trur o funda-
Uvi-Strauss, Chomsky, Ricoeur, Lacan etc. ne nto da ética sexual; a clareza é, pelo contrário, sua base adequada.
~:rretanto, nem toda pretensa compreensão antropológica pode consti-
No entanto, adotaremos um método diferente, não tão fenomenoló -
tuir um guia e juiz da ética sexual.
gico nem tão gerativo quanto o que acabamos de mencionar. De uma
No âmbito do sadio e inevitável pluralismo de compreensões antro-
maneira asséptica, iremos assinalando as dimensões da sexualidade adotando
pológicas sobre a sexualidade, e~stei:-1 alguns element?s ?á~icos que ~~vem
as diversas perspectivas oferecidas pelos saberes clássicos do humano :
ser respeitados por todos: ace1taçao dos dados b1ologicos (genetJ.cos,
biologia, psicologia, sociologia, filosofia etc. A diversidade e a integração fisiológicos, anatômicos) e respeito a eles; consideração da sexualidade
dessas perspectivas correspondem à complexidade da realidade sexual. humana como uma realidade especificamente diferente diante da sexua-
Eis as dimensões - e os capítulos correspondentes - em que lidade animal; compreensão da sexualidade como integração harmoniosa
desenvolvemos a compreensão antropológica da sexualidade: da genitalidade (sexus), da afetividade ( eros) e da relação interpessoal
(filia); entender a sexualidade não como uma coisa (meio de prazer, de
- Dimensão biológica: A sexualidade como pulsão.
dominação ou agressividade), mas como linguagem de pessoas, ver a
- Dimensão psicológica: A sexualidade como força integradora e
sexualidade como uma importante contribuição ao desenvolvimento per-
como chave hermenêutica do eu. manente do indivíduo e da sociedade; aceitar o caráter ambíguo da se-
- Dimensão dialógica: A sexualidade como linguagem de pessoas. xualidade humana, na medida em que não atinge automaticamente sua
- Dimensão sociocultural: A sexualidade como hermenêutica e con- finalidade se não há a cooperação responsável do homem.
figuração da realidade social. A dimensão ética é inerente à sexualidade humana precisamente por
- Dimensão existencial: A sexualidade como forma da existência esse caráter ambíguo. Por essa mesma razão, não se pode conceber nem
pessoal. realizar a educação sexual sem a referência contínua aos valores éticos.
Nos capítulos seguintes, expomos o significado de cada uma das Não se pode falar, sem uma notável carga ideológica, da "pura informa-
dimensões assinaladas. Faremos acompanhar a consideração antropológica ção sexual" ou da "educação sexual específica".
da referência ética. Dessa maneira, integrar-se-ão o máximo possível a Numa sociedade pluralista e democrática, como a nossa, existem
perspectiva antropológica e a orientação ética. projetos éticos diversos. Isso não impede a possibilidade de formulação
da plataforma comum de uma ética meramente civil, na qual sejam acei-
Porém, antes de passar à análise detalhada das dimensões singulares
tos alguns critérios básicos.
da sexualidade humana, queremos propor um conjunto de critérios ou
orientações éticas que elucidem de forma global as referências ulteriores. A ética sexual deve ser determinada principalmente a partir da pes-
soa e com vistas à pessoa. É o mistério da pessoa que deve estar na base
de toda ética sexual. ·
III. OS VALORES BÁSICOS DA SEXUALIDADE HUMANA . A sexualidade humana, enquanto força da pessoa, abre-se em três
(Orientações éticas fundamentais) dinamismos ou vertentes fundamentais. Um primeiro dinamismo se orienta
Para atingir a maturidade e a integração pessoal; a sexualidade é uma
A sexualidade é um dos aspectos importantes do ser individual e da fo~ça para edificar o "eu": esta é sua primeira vertente. O segundo dina-
convivência social. Ela tem início com a própria vida, está intimamente mismo tende a realizar a abertura da pessoa ao mundo do "você"; a
ligada ao desenvolvimento psicobiológico do homem e condiciona todas sexualidade possibilita a relação interpessoal que culmina na construção
as formas de vida social. de um projeto de vida. O terceiro dinamismo da sexualidade é a abertura

24 25
SEXUALIDADE .ABORDAGEM GLOBAL DA ANTROPOLOGIA E DA ÉTICA DA SEXUALIDADE

ao "nós"; trata-se do horizonte social da sexualidade, que serve para ~


'fARJlFA ETICA DE ABERTURA AO
" VOCE ,,
...

construir o "nós" num clima de relações interpessoais cruzadas. 2.


O comportamento sexual, enquanto tarefa ética, deve seguir essas
o segundo dinamismo da sexualidade é o da relação interpessoal. O
três orientações básicas. O positivo e o negativo da ética sexual devem ser ern é uma estrutura aberta, em seu duplo aspecto de indigência e
. • . h umana constrtm-se
borntividade. A existenc1a . . na re laçao
- mterpesso
. al . A
vistos no âmbito deste tríplice esquema: o blndição
a ºal
sexual do homem estabelece uma coloração espec1 ou uma
~~iação qualitativa nesse diálogo interpessoal.
1. TAREFA ÉTICA DE INTEGRAÇÃO DO "EU"
A abertura do "você" enquanto ser "sexuado" e "sexuante" é uma
A moral sexual explicita em tarefa ética a mais profunda realidade das tarefas fundamentais da ética sexual. No capítulo 4, analisaremos
da sexualidade humana. A sexualidade é uma força e dimensão humanas detidamente essas implicações éticas.
para edificação da pessoa. É necessário transformar esse "é" (ser) em
"deve ser" (tarefa).
3. TAREFA ÉTICA DE CONSTRUÇÃO DO "NÓS"
Deduz-se do que foi dito um critério geral: a dimensão ética positiva
da sexualidade consiste na "personalização" desta no quadro das estrutu- Nem por ser "personalista", o comportamento sexual se transforma
ras da personalidade humana. Em palavras mais simples, diríamos: um num "comportamento individualista". Insisti no caráter interpessoal da
comportamento sexual é bom (eticamente falando) se "personaliza" ou sexualidade como linguagem autêntica de amor. Mas é preciso acrescen-
tende a "personalizar" o homem. Isso pressupõe que esse comportamento tar mais: a sexualidade não é assunto que se dá entre duas pessoas; o
sexual está "integrado" no interior do conjunto harmonioso da pessoa. comportamento sexual abre-se ao "nós social". E daí recebe alguns im-
Ao levar em conta a dinâmica da personalidade e ao centrar nela o perativos éticos muito concretos e determinados. Infelizmente, em nosso
núcleo da tarefa ética da sexualidade, temos de admitir outros dois cri- tempo tão marcado pelo social, a vivência sexual caminha para um esque-
térios básicos para a ética sexual: o critério de diferenciação e o de pro- cimento do princípio de que "também os 'outros' contam no momento
gressão. O primeiro recorda que toda pessoa é um sistema único e que de pensar sobre a regulação ética do comportamento sexual".
não é abarcável inteiramente por nenhum esquema pré-fabricado; a regra
objetiva é necessária, mas deve ser aplicada levando-se em conta o caráter Uma ética sexual completa não pode perder de vista essa perspectiva
irrepetível de cada pessoa. O critério de progressão recorda que a perso- ampla do social para projetar os critérios adequados que regulem conve-
nalidade humana está submetida ao processo do amadurecimento. A nientemente essa faceta do comportamento humano.
orientação fundamental de uma existência não se realiza de modo pon- A ética sexual deve igualmente englobar em seu enfoque as dimen-
tual; precisa de um processo longo e profundo de amadurecimento para sões sociais da sexualidade e do amor. São muitos os aspectos sociais da
alcançar a posse plena de si mesma. sexualidade que devem ser focalizados pela moral. No capítulo 5, eles
Ao centrar-se na pessoa, a ética sexual tende a transferir a ênfase ou serão analisados com maior detalhe.
ponto de interesse do campo "puramente sexual" ao terreno amplo da Como conclusão da dimensão ética do comportamento sexual hu-
pessoa. Também em ética se aplica o princípio de Allers: "A melhor mano, teríamos de insistir na força criativa do amor e da sexualidade. Um
educação geral é, ao mesmo tempo, a melhor educação sexual". Polari- mundo melhor deve ser construído. Um novo humanismo deve ser a
zando-se a ética sexual em torno do núcleo da personalidade, entendida
meta e a aspiração dos homens responsáveis de hoje.
dinamicamente num desenvolvimento de integração progressiva a todos
os níveis, essa ética sexual adquire a tonalidade de "ética da pessoa" ou A sexualidade e o amor são fatores criativos indispensáveis desse
ética antropológica. Trata-se de formular o problema da sexualidade na mundo melhor. Temos de colocar na base desse novo humanismo o amor
tonalidade da existência humana. maduro e transfigurado.

26 27
DIMENSÃO BIOLÓGICA
DA SEXUALIDADE HUMANA
Repercussões para a ética sexual

1. O SEXO BIOLÓGICO HUMANO

A diferença sexual é um fato que se impõe a nossos olhos por uma


série de caracteres morfológicos diferentes no homem e na mulher,
caracteres capazes de provocar a atração erótica. Mas eles não são os
fatores fundamentais para definir o sexo. Com efeito, um simples trata-
mento hormonal pode originar barba na mulher e a atrofia das glândulas
mamárias.
Como se define, em termos biológicos, o sexo? Existe um fator
constante, um elemento biológico, que permita definir exatamente a
diferença entre o homem e a mulher num nível biológico? A resposta
a essa pergunta nos dará a definição do sexo biológico. É preciso elaborar
essa definição em três níveis complementares, e por isso mesmo se fala de
sexo cromossômico (ou genético), sexo gonádico (ou genital) e sexo
hormonal.

1. SEXO CROMOSSÔMICO (DETERMINAÇÃO GENÉTICA DO SEXO)

Em todas as células do corpo humano há um número determinado


de cromossomos (portadores dos genes). A dotação cromossômica com-

29
SEXUALIDADE DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA

porta, tal como ficou estabelecido desde 1956 por J. H. Tjio e A. Levan,
46 cromossomos - ou melhor, 23 pares de cromossomos. Deles, 22
pares são cromossomos "somáticos" (autossomos) e um par são cro-
mossomos "sexuais" (heterocromossomos ou gonossomos). A fórmula
cromossômica difere segundo o sexo: homem, 44 A+ XY; mulher, 44 A
+XX.
Em determinado momento, unicamente nas células sexuais, no
decorrer das divisões celulares (a meiose) produz-se um fenômeno de
importância fundamental: a redução cromossomática (o número de
cromossomos se reduz à metade). Enquanto as células antes da redução
tinham uma dotação cromossômica completa - número diplóide -,
têm agora uma dotação cromossomática reduzida à metade - número
haplóide. Essas células, que têm a dotação cromossomática reduzida, \ /
recebem o nome de gametas, os elementos sexuais por excelência. \ /
A constituição cromossomática das células sexuais ou gametas será \ /
\ /
a seguinte: \ /
\ /
óvulo: uma única variedade = 22 A + X. Paralelismo cromossômico
Espermatozóide: duas variedades = 22 A + X.
22 A+ Y.
2. SEXO GONÁDICO
(FORMAÇÃO DAS GÔNADAS E DOS ÓRGÃOS GENITAIS EXTERNOS)
Da união de um óvulo (22 A+ X) com um espermatozóide de uma
(22 A+ Y) ou de outra (22 A+ X) variedade resultará um ovo (zigoto), A fórmula cromossômica - assim como outros fatores - determi-
respectivamente macho (44 A + XY) ou fêmea (44 A + XX). Assim, pois, na diretamente o tipo de glândula genital (ovário ou testículo), mas não
determina, senão indiretamente, os caracteres secundários, sendo estes
desde a concepção o sexo está determinado, e essa determinação é obra
determinados pela ação de substâncias químicas ou hormônios que são
do pai.
elaborados pela glândula genital e, passando ao meio humoral, influem
Os sexos masculino e feminino se perpetuam segundo um paralelismo em todo o organismo.
cromossômico. Com efeito, temos duas séries celulares claramente distin-
A pré-gônada aparece por volta do 37º dia da vida embrionária,
tas, que originam dois tipos biológicos diferentes, o masculino e o femi- ~~sseguindo a diferenciação a partir do 45 º dia. No homem, o canal de
nino. As mulheres apresentarão uma oscilação, mas sempre no interior do d üller se atrofia, enquanto o de Wolff formará o epidídimo, o canal
quadro do tipo biológico feminino; com os homens ocorre o mesmo, eferente, a vesícula seminal e o canal ejaculador. Na mulher, atrofia-se
mas no interior do quadro do tipo biológico masculino. 0
cana} de Wolff, e o de Müller formará as trompas e o útero. A esta
O esquema seguinte mostra graficamente o fenômeno da determi- ~tap~ sucede a diferenciação dos Ót;gãos sexuais externos, que ocorre do
erce1ro ao qumto
· ,
mes.
nação dos sexos:

30 31
SEXUALIDADE DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA

Convém observar que todos esses elementos são, no princípio, no


embrião, bipotenciais, inclusive os gonócitos - células sexuais primitivas.
Eles possuem a capacidade de orientar-se em duas direções, masculina e <1.1
bQ
;:l
feminina. Qual o sexo resultante dependerá das impulsões dadas pela "'
<1.1

dotação cromossomática mediante os hormônios embrionários e talvez 1.)l


~
<1.1
também outros corpos mal conhecidos. Mas esse curso pode ser alterado :::'..-
pela intervenção de algum fator externo que perturbe a ordem normal
dos fatos (embora esta eventualidade seja bastante excepcional).
'"
;:l
><
1;l
<1.1 o
Quando o trato genital, os gonócitos e as gônadas foram orienta- ~ '"'<>
'O
e:: z"'
dos sexualmente, as glândulas sexuais podem agir sobre o resto do ;:l
u "'
~ "'
'O
corpo humano a fim de tornar evidentes nele as diferenças exteriores <1.1 B
'O e::
que permitem distinguir com segurança o homem da mulher, mesmo ;:l ·p

sem a observação dos órgãos genitais externos. São os caracteres sexuais ~ .s


u ~
externos.
Mas a plenitude dos caracteres sexuais externos só se completa na "'
'O ~
'O

puberdade. É o que apresentamos em seguida.

3. SEXO HORMONAL (APARECIMENTO DOS CARACTERES SECUNDÁRIOS)

A partir da puberdade, os hormônios sexuais, produzidos mais abun-


"'"'
'O
dantemente, acentuam a diferenciação sexual. O ovário produz a foliculina ~> ·
ou estrona e também progesterona; o testículo produz o sexo com todos e::
<1.1
~
os caracteres secundários. 'O

Apresentamos na página seguinte o quadro formulado por G. Ma- 5


..o
raiíón1.

II. ELEMENTOS DE ANATOMIA L


E FISIOLOGIA SEXUAL HUMANA

O sexo cromossômico, mediante intermediários químicos, provoca


o aparecimento do caráter sexual primário (glândulas genitais) e dos
caracteres sexuais secundários. É a esta altura que se podem considerar a
anatomia e a fisiologia do sistema sexual tanto masculino como feminino.

1. G. MARANÓN, Tres ensayos sobre la vida sexual, 5ª ed., Madri, 1929, p. 35 .

32 33
SEXUALIDADE
DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA

1. ANATOMIA SEXUAL
A função das glândulas endócrinas vem completar a função do
. álamo. Destacam-se a esse respeito duas séries de glândulas: a hipófise
O aparelho genital masculino é constituído por dois tipos de órgãos:
luPº:upra-renais. A parte anterior da hipófise segrega, entre outros hor-
os órgãos que asseguram a formação e o armazenamento do elemento
fecundante ou esperma, e o órgão encarregado de levar o elemento fe- e ~s ·os as gonadostimulinas e gonadotropinas, indispensáveis ao desen-
cundante às vias genitais femininas: rnoJ~m:nto e à função das glândulas genitais tanto do homem como da
voulher.
Vl
A glândula supra-renal (o cortex
, ) tem tam b'em 1mportanc1a
. A •
na
- o testículo: é formado por um grande número de tubos seminiferos
°.1da sexual; num duplo sentido: pela secreção de hormônios de ação
nos quais se produz o esperma;
Vl drógina e pela profunda influência que tem sobre todo o organismo e,
- o esperma se esvazia nos condutos retos e dali no epidídimo;
- o epidídimo vai parar no conduto deferente, que se dilata na
~r conseguinte, sobre a atividade sexual. A glândula pineal ou epífise
ampola do conduto deferente imediatamente próxima da glândula
~xerce uma ação de freio com respeito ao desenvolvimento sexual no
prostática; indivíduo jovem.
- uma vesícula seminal em cada lado da próstata se esvazia no A glândula tireóide tem igualmente uma grande influência nas fun-
extremo prostático da ampola; o conteúdo da ampola e a vesícula prostática ções sexuais, mas de ~odo indiret?: por sua. infl~ênc~a. sobre a hi~ófi~e
passam ao conduto ejaculador, que atravessa o corpo da glândula prostá- e as modificações gerais do organismo. O hiperuremdismo e o hipou-
tica para esvaziar-se na uretra interna; reoidismo costumam ser acompanhados, respectivamente, pela hiperfunção
- a uretra, por fim, constitui a última etapa da união entre o ou pela hipofunção sexual. As outras glândulas endócrinas têm sua influên-
testículo e o exterior. cia na vida sexual, mas isto não é tão claro e importante.
Para uma descrição sumária do aparelho reprodutor feminino, basta O funcionamento estritamente genital tem diversas etapas. Existe,
ter em conta as seguintes partes: a vagina (com a região vestibular dos por outro lado, uma notável diferenciação no homem e na mulher. No
grandes e pequenos lábios, em cuja parte anterior se encontra o clitóris); homem, ocorrem os seguintes processos: espermatogênese (formação
o útero ou matriz; as trompas uterinas ou de Falópio, cuja atividade está dos espermatozóides); secreção de hormônios masculinos (principal-
em continuidade com o útero; os ovários, as duas glândulas sexuais es- mente a testosterona), que exercem sua ação sobre todo o organismo,
pecificamente femininas. o qual recebe uma marca de fundamental importância sexual e geral;
deferência (epidídimo e condutos deferentes); e ejaculação. Na mulher,
2. FISIOLOGIA SEXUAL têm lugar as seguintes etapas: ovulação (ciclo menstrual); secreção de
hormônios estrógenos, que exercem sua atividade sobre o aparelho genital
A atividade biológica sexual se efetua por uma série de fatores de feminino e sobre o restante do organismo; e deferência (trompas de
controle. Estes formam um circuito neuro-hormonal que constitui a Falópio e útero).
regulação do funcionamento sexual. Os principais órgãos de regulação Além do funcionamento estritamente genital (centrado no ovário e
são: o hipotálamo, por um lado, e certas glândulas, de outro. nos testículos), é necessário considerar o comportamento sexual na medi-
Reconhece-se no hipotálamo uma grande importância para o desen- ~ª em que este constitui o conjunto das atividades coordenadas de um
volvimento normal da atividade sexual. Descreveram-se centros sexuais indivíduo que conduzem normalmente à união sexual ou cópula. Pode-
no hipotálamo, especialmente em nível do tuber cinereum, e, entre as mos distinguir nele dois aspectos: o impulso interior, uma força interior
chamadas incontinências ou desinibições diencefálicas, cita-se a inconti- que impele o indivíduo à busca do companheiro sexual, e o comporta-
nência erótica, aspecto pelo qual a alteração do diencéfalo se revela cli- mento sexual propriamente dito. O primeiro fator aparece uma vez que
nicamente com hipererotismo e até com diversas perversões do instinto
sexual.
ª impregnação dos centros nervosos alcança determinado nível. As
atividades do comportamento são provocadas no cérebro, mas a atividade
34 35
DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA
SEXUALIDADE

copuladora terminal é dirigida por centros nervosos elementares situados ocriativa no interior da sexualidade humana. Os critérios éticos que
na parte inferior da medula espinal. prguiam a diferença e a relação entre ambos os aspectos devem ser pen-
redos a partir de uma antropologia sexual plenamente humana, na qual

n0
5
~ haja "confusão" das duas dimensões, embora tenha de haver uma
III. SIGNIFICADO DA DIMENSÃO BIOLÓGICA PARA correta rel açao.
-
A COMPREENSÃO GLOBAL DA SEXUALIDADE HUMANA A partir de uma antropologia correta da sexualidade humana, temos
A dimensão biológica é o apoio de todo o edificio da sexualidade de reconhecer que esta tem também, ainda que não de modo exclusivo,
uma dimensão procriativa. Essa dimensão, embora deva ser vivida e in-
humana; para empregar a terminologia de Lersch, pode-se dizer que é
seu "fundo vital": o comportamento sexual humano é gerado a partir das tegrada também a outros níveis (o do amor, da afetividade, do carinho,
do cuidado materno etc.), provém fundamentalmente, segundo cremos,
forças vitais das pulsões biológicas, e em sua realização assume decisiva
importância o fundo biológico. Constituiu uma falha reduzir a sexuali- da instância biológica.
dade à "genitalidade", mas julgamos necessário alertar que não se pode
cair no extremo contrário: compreender a sexualidade humana sem refe- 2. SIGNIFICADO DE "Luxo"
rência à sua instância biológica.
Perguntamo-nos, portanto, sobre o significado da genitalidade no No âmbito dessa dimensão procriativa da sexualidade humana po-
âmbito da totalidade abrangente da realidade humana da sexualidade. deríamos assinalar um matiz especial. Trata-se do de vê-la como um
Para responder a essa pergunta, teríamos de afirmar a presença do genital, "luxo" vital.
de um modo ou de outro, em todo comportamento sexual humano. A sexualidade aparece na escala dos seres como um "luxo" da na-
Contudo, procurando limitar-nos aos aspectos mais importantes, diría- tureza. A reprodução é um fenômeno necessário dentro do ciclo vital.
mos que a instância biológica introduz na compreensão global da sexua- Mas não é necessária' uma reprodução de tipo sexual. A sexualidade
lidade três dimensões: a procriativa, a de luxo e a de prazer. permite a determinada espécie sobreviver. Mas não é esse o único modo
de consegui-lo. Nos invertebrados, algumas espécies podem subsistir e
propagar-se mediante reprodução assexuada. Alguns animais têm - de
1. SIGNIFICADO PROCRIATIVO
maneira temporária ou contínua - as duas possibilidades de reprodução
Se não fosse mais que "biologia sexual", a sexualidade humana não sexuada ou assexuada.
teria outro sentido senão o da procriação. Seria, como fundamentalmente Onde está a diferença de significado biológico entre a reprodução
o é a sexualidade animal, uma sexualidade procriativista. s~xu~~a e a assexuada? A reprodução assexuada pressupõe estabilidade
Pela presença de outras instâncias, tal como a psicológica e a b1ologICa; uma gema que aparece num animal tem o mesmo patrimônio
sociocultural, a sexualidade humana não está circunscrita aos ritmos bio- hereditário que o indivíduo em que aparece. Em contrapartida, a repro-
lógicos de marcada orientação procriativa. Por outro lado, a procriação dução sexuada comporta um maior enriquecimento e variabilidade, a partir
no âmbito da espécie humana não é automaticamente regulada pelo d,a fusão de dois gametas provenientes por sua vez de um casal de indi-
caráter instintivo, tendo de ser responsavelmente (isto é, "humanamente") VIduos. A sexualidade supõe, pois, um enriquecimento do programa vital.
regulada. Essa afirmação antropológica está na base da problemática do A sexualidade humana - por ser sexualidade - envolve esse aspec-
controle da natalidade, dos métodos de controle e do planejamento fa- to de luxo ou enriquecimento vital. Esse caráter de superabundância é
miliar e demográfico. Percebido de maneira particular no âmbito da antropologia sexual huma-
Não identificando sexualidade com procriação, reconhecemos que na. De forma concreta, e à guisa de exemplo, isso se constata na imensa
existe uma separação possível e válida entre função unitiva e função superabundância de elementos fecundantes em relação com os elementos

36 37
SEXUALIDADE DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA

fecundados. Pense-se nos milhões de espermatozóides que se "perdem" Entende-se às vezes o prazer sexual como uma espécie de "armadi-
numa relação sexual que atinja a meta da fecundidade. A natureza nos lh amorosa" que Deus armou para os homens a fim de induzi-los a
oferece aqui um exemplo de "esbanjamento" biológico. ~prir o dever de procriar. Aplicado ao casamento, esse conceito nos
Essa característica de luxo ou superabundância deve ser levada em ~:ia a imagem do casamento-armadilha:
conta pela ética sexual. A sexualidade não é totalmente "necessitada", e, Essa idéia do casamento-armadilha ocupou a mente de muitos católicos que,
por conseguinte, não será totalmente necessário seu exercício. Por outro talvez inconscientemente, conservam resíduos maniqueístas: o casamento é real-
lado, não se pode formular uma ética sexual com complexo de "avareza" mente uma coisa má, um prazer proibido; mas de alguma maneira têm os filhos
biológica. Não tem sentido a angústia quase sagrada diante da perda ou de vir ao mundo[ ... ]. Armadilha de Deus. Ele encerrou nos prazeres matrimo-
não perda de esperma. A falha ética não deve ser posta na perda ou não- níais o aparecimento dos filhos, tal como essas mães que numa colher de sopa
perda do líquido seminal; nesse caso, toda relação sexual suporia uma cheia de açúcar escondem as cinco gotas de um remédio amargo para que o
gravíssima falha, visto que supõe uma enorme perda. A falha ética tem filho as engula sem protestar 3 .
de ser colocada em outros níveis de consideração da sexualidade. Uma tal concepção do prazer sexual é voltar a repetir a afirmação,
sustentada durante algumas épocas, de que o ato conjugal precisa de
algumas "desculpas" (ler "fim procriativo") para validá-lo.
3. SIGNIFICADO PRAZEROSO
Também não se pode ter uma concepção do prazer sexual na qual
A sexualidade humana não é um "jogo" no sentido pejorativo do este se veja separado da própria função. Plé manifestou com acerto que
termo; não é um objeto de que se deve extrair o máximo prazer possível. a explicação tomista do prazer não caminhou por essa separação dualística 4 .
O homem como indivíduo, assim como enquanto grupo, nem sempre se Hoje, poderíamos mantê-la ainda menos a partir dos conhecimentos
libertou da tentação de considerar a sexualidade quase exclusivamente psicológicos que possuímos.
como fonte de prazer. Na forma de o homem ocidental viver sua sexua- O significado prazeroso da sexualidade é vivido pelo homem no
lidade, descobriram-se algumas características que indicam esta orienta- nível de todas as instâncias: o prazer do amor, da comunhão interpessoal
ção: o homem se julga "um ser que busca o prazer ou que está autori- etc. É uma dimensão que se relaciona com todo o fenômeno da sexua-
zado a buscá-lo".
lidade humana. Não obstante, cremos que essa dimensão lhe advém
Ao reduzir a sexualidade a um instrumento de prazer, o comporta- fundamentalmente da instância biológica. Por isso, afirmamos que a di-
mento sexual fica degradado. Cai na insignificância, na exacerbação e no mensão prazerosa é um significado da instância biológica com referência
absurdo 2 • Não é vão que a busca exclusiva do prazer na sexualidade é à globalidade da sexualidade humana.
considerada como tendo uma versão no campo da "patologia sexual".
Mas o extremo contrário também é falso e muito perigoso. A se-
xualidade é acompanhada pelo prazer. Uma das funções principais atri- IV. REPERCUSSÕES PARA A ÉTICA A PARTIR
buídas ao exercício sexual é a do prazer. DA BIOLOGIA SEXUAL
É necessário libertar a noção de prazer de todos os elementos es-
Para estabelecer uma ética sexual segura, é necessário fundá-la sobre
púrios provenientes de uma mentalidade neoplatónica. Ao mesmo tem-
po, é preciso livrá-la de uma conexão direta com o pecado original, um
de cujos efeitos teria sido a depravação de todo prazer humano e, mais
concretamente, do prazer sexual (concupiscência). --
ª
S
base do conhecimento biológico preciso. As seções anteriores pretende-

3. J. M. JAVIERRE, J. L. MARTÍN DESCALZO, A. ARADILLAS e J. DE


ALAZAR, Control de natalidad, Madri, 1967, pp. 27-28.
"' .. 4. A. PLÉ, Vida afectiva y castidad, Barcelona, 1966, pp. 111-169; M. G. COTTIER,
2. P. RICOEUR, "La merveille, l'érrance, l'énigme", Esprit, 11 (1960), pp. 1665- F Libido' de Freud et 'appetitus' de Saint Thomas, L'Anthropologie de saint Thomas,
1676. nburgo (Suíça), 1974, pp. 91-123.

38 39

J
DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA
SEXUALIDADE

ram responder a essas exigências. Nesta, pretendem-se indicar, à guisa de Segue-se do que foi dito uma conclusão importante para a ética ·
conclusões, algumas repercussões que tem para as formulações éticas um e1'ual. Não se pode construir uma ética sexual sobre uma consideração
conhecimento exato da biologia sexual humana. s eramente biológica da sexualidade humana. E não se pode - o que
:ria ainda piores conseqüências - considerar a sexualidade no mesmo
nível da sexualidade animal.
1. A SEXUALIDADE HUMANA: VARIAÇÃO QUALITATIVA

A sexualidade não é algo exclusivo da espécie humana; é um fenô- z. BISSEXUALIDADE INICIAL DO INDIVÍDUO
meno biológico de maior extensão que o campo específico da biologia
humana. Na espécie humana, a sexualidade chega ao grau último de Vimos que existe uma bipotencialidade sexual, que vai desaparecen-
evolução: entra no reino da consciência. do à medida que o feto evolui. No princípio, o indivíduo passa por um
Não se pode falar de uma biologia sexual unitária e homogênea para estágio indiferenciado do ponto de vista sexual; depois, à proporção que
toda a escala dos animais. A sexualidade opera - a partir de sua estrutura 0
feto evolui, ele se orienta para uma especialização vital. Poderíamos
inicial de luxo - com base em "saltos qualitativos". De modo concreto representar essa orientação vigente do seguinte modo:
a biologia sexual humana pressupõe um salto ou variação qualitativa n;
evolução sexual. Podemos dizer o mesmo afirmando que a biologia se-
xual humana é algo mais do que simples "biologia".
Duas categorias de fatores intervêm no comportamento sexual: os
internos (os hormônios erotizantes) e os externos (os estímulos-sinais).
Os fatores hormonais influenciam os centros nervosos, devendo-se obser-
var que os centros nervosos menos qualificados são os que originam os
-b\ /
A B
a

movimentos mais "padronizados", que costumam ser os mais copulativos;


em contrapartida, a força dos estímulos-sinais se concentra nos aspectos ® ®
adjacentes ao comportamento copulador, que costuma ser mais mecânico.
O comportamento sexual na espécie humana não depende tanto da Entretanto, essa bipotencialidade inicial, embora decidida pela
força hormonal. A partir do cão e do gato, o neurônio desempenha já um prevalência de uma opção que se impõe sobre a outra (A ou B), perma-
papel decisivo na determinação dos comportamentos sexuais. Nos primatas, nece no indivíduo, embora em forma regressiva (a ou b). Essa realidade
e sobretudo no homem, sua importância é tamanha que o fator hormonal
leva Maraiíón a deduzir algumas conseqüências para a ética e a pedago-
não tem senão um papel acessório na orientação e na realização dos atos.
gia. De acordo com ele, cada homem, ou a imensa maioria deles, carrega
Ao mesmo tempo, existe no interior do sistema nervoso uma ascensão
um fantasma de mulher não na imaginação, mas circulando em seu san-
progressiva na localização dos centros diretores das atividades sexuais situa-
'
dos no diencéfalo no gato, mas pertencentes às esferas nervosas superiores gue; e cada mulher carrega um fantasma, mais ou menos concreto, de
e, mais particularmente, ao córtex cerebral nos primatas e no homem. homem.
Essa noção do outro sexo dentro de nós mesmos, que altera a pureza do sexo
A biologia sexual transforma-se no homem em impulso humano.
legítimo, é uma conquista fundamental da ciência moderna, à qual, segundo
Ora, uma das características dos impulsos humanos é sua plasticidade e 5
penso, não se deu ainda a significação pedagógica adequada •
flexibilidade, em contraste com a rigidez e invariabilidade dos instintos
animais. Tanto em sua estrutura como em sua funcionalidade, a sexuali-
dade faz parte dessa característica própria dos instintos humanos. 5. MARANÓN, op. cit., p. 168.

41
40
SEXUALIDADE DIMENSÃO BIOLÓGICA DA SEXUALIDADE HUMANA

Por isso, ocorre uma luta de sexos no indivíduo ao longo das di- 4. A PRÁTICA DO ATO GENITAL É UMA NECESSIDADE DO ORGANISMO?
versas etapas de sua vida. Aquele que prevalece se apodera da situação;
o vencido se atrofia e se esconde. Mas este pode reaparecer - e de fato No homem, o desejo e a atividade sexuais dependem de um pro-
assim o faz - em momentos fracos para a especificação sexual: na pu- cesso essencialmente psicogenético. O desejo sexual não é provocado
berdade ("intersexualidade prepuberal"), no climatério (traços virilóides pela formação ou acumulação do esperma.
da mulher), na velhice (indiferenciação de traços secundários). o aparelho sexual masculino não funciona como a bexiga, mas como as glân-
dulas salivares. As diversas glândulas que o constituem funcionam ai ralenti de
Sendo a bissexualidade uma etapa imperfeita do desenvolvimento se- maneira habitual e seus produtos são evacuados no devido tempo pelas vias
xual e sendo necessário passar da bissexualidade inicial ao dismorfismo naturais, sem que o indivíduo sequer perceba isso. Mas quando surge uma
sexual, surge a obrigação de realizar a diferenciação sexual. Tem aqui sua excitação psicológica (consciente ou inconsciente, como durante o sono) aciona-
raiz biológica o imperativo ético de viver a feminidade e a masculinidade se todo um conjunto complexo de reações e de reflexos, que ativa considera-
velmente o funcionamento das diferentes glândulas6 .
como tarefas pessoais.
Na mulher, em comparação com as fêmeas animais, surge com mais
clareza o caráter psicogenético do desejo sexual. Na fêmea animal, a
3. ASCESE E AMOR NA RELAÇÃO SEXUAL busca instintiva da cópula é provocada pelo fenômeno da ovulação. Não
é assim que se passa na mulher. Além de ter uma proliferação ovariana
O comportamento sexual no ser humano - por ser determinado desproporcional com relação às possibilidades reais de gestação, o desejo
pelo psiquismo - exige uma série de atitudes que são importantes no sexual nela é dirigido por fatores distintos dos fisiológicos.
âmbito da ética sexual. Para obter um comportamento sexual perfeito,
Seguem-se algumas conclusões do que foi dito:
necessita-se de:
- Não se podem aplicar indiscriminadamente as leis etológicas ao
- Uma ascese, que não é precisamente uma atitude de "apatia'', comportamento humano. Nem sempre os autores escapam a essa tenta-
mas antes um "autocontrole", necessário para que o comportamento ção de simplismo e extrapolação.
sexual seja humano. O descontrole no sexual leva à desumanização da - Não é a fisiologia que dirige a ética. Embora seja preciso ter em
sexualidade e ao seu desvirtuamento. conta os fatores biológicos, não são estes os decisivos na ética sexual.
- Evitar o egoísmo, visto que se trata de uma relação interpessoal. - A prática do ato genital não é uma necessidade que o organismo
Na entrega mútua e na vivência e execução conjunta da relação amorosa exija e sem a qual não possa passar. A necessidade genital, por mais
está a harmonia do casal. Há o grande perigo de que se introduza o imperiosa que seja, não é uma necessidade absoluta.
egoísmo no comportamento sexual, dadas as características especiais desse
impulso no homem.
- Atenção às características especiais do outro. A fisiologia do com-
portamento sexual é diferente no homem e na mulher (manifestada prin-
cipalmente no modo diverso de viver o orgasmo). Isso requer uma ati-
tude de compreensão mútua, de autodomínio e de co-execução harmoniosa
das diversas etapas do comportamento sexual. Uma informação prévia

--
adequada e uma aprendizagem conveniente serão os meios apropriados
para consegui-lo, contanto. que não se rebaixe o comportamento sexual
a algumas "técnicas de obtenção de prazer". Ele deve ser considerado
antes como uma linguagem ou sinal de amor humano. 6. M. ORAISON, Armonía de la pareja h11mana, Madri, 1967, pp. 9-10.

42 43
PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE
EIMPLICAÇÕES ÉTICAS

sexualidade humana não é explicada apenas no nível puramente


A biológico. Enquanto no animal a sexualidade fica fechada no hori-
zonte biológico, o sexo biológico humano está "aberto" a uma instância
superior do homem.
O comportamento sexual humano é regido por regiões elevadas do
córtex cerebral. Não é o peso hormonal que desempenha o papel deci-
sivo, mas o sistema nervoso central em seus centros mais desenvolvidos.
A sexualidade no homem adquire da plasticidade do cérebro humano a
enorme plasticidade que possui.
É preciso pensar que a sexualidade humana é algo mais que fisiologia das
glândulas ou patologia de alguns condutos; que é uma função não apenas
fisiológica, mas psicológica em sentido estrito, e que tem muitas vertentes,
cada uma mais interessante [ ... ]. Talvez para a própria patologia humana
sejam mais interessantes as vertentes extrafisiológicas do que as puramente
fisiológicas 1•
Portanto, a sexualidade humana é um fenômeno psíquico. Nela
~parece o mundo pessoal do homem. O "sexo" tem prosseguimento no
~ros» e assim a sexualidade adquire uma nova dimensão ou um novo

---
lllvel de profundidade.

Cf 1. }- J. LÓPEZ IBOR, Lecciones de psicolog~a médica, 2i ed., Madri, 1962, p. 65 .


M~~a.mbem no mesmo sentido M. CRUZ HERNANDEZ, Lecciones de psicología, 2i ed.,
n, 1965, pp. 465-466.

45
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

1. SEXUALIDADE E AMOR NA PSICOLOGIA EVOLUTIVA pense-se na influência que podem ter nesses casos a "expectativa"
"acolhida" dos pais:
1. SEXUALIDADE INFANTIL
ea
_quando uma criança foi concebida "por acaso";
Da concepção popular do instinto sexual faz parte a crença de que este não
_ quando se espera um "menino" e nasce uma "menina";
existe na infancia, só aparecendo no período da puberdade. Essa crença cons- _ quando nasce uma criança desejada e querida por seus pais.
titui um erro de graves conseqüências, pois a ela se deve, principalmente, nosso
atual desconhecimento das circunstâncias fundamentais da vida sexual2.
b) A ((experiência)) do nascimento
Depois da revolução freudiana, podemos falar sem dificuldades da
sexualidade infantil. Mais ainda, também podemos dizer que a sexualida- Esta experiência é primordial na vida do homem. A criança vive essa
de infantil segue um processo evolutivo, cujas fases devem ser levadas em experiência como a expulsão brusca de um ambiente fechado que era o
grande consideração. seu, bem como a inauguração de uma autonomia que exige dela em
Ao falar aqui da evolução da sexualidade na criança, convém con- alguns instantes esforços consideráveis para subsistir. Em certo sentido,
jugar essa evolução com a evolução afetiva, visto que as duas estão inti- nascer é ser separado, é perder algo, é saltar de um mundo obscuro que
mamente ligadas. Ambas constituirão a "urdidura" sobre a qual se tecerá se abandona por uma força irresistível. Esse aspecto de "perda inaugural"
toda a vida humana. Mas essa "urdidura" só será conseguida mediante a não é enfatizado com freqüência; a psicologia profunda nos mostra sua
interação entre o dinamismo natural da criança e a atividade do ambiente importância e ressalta como a existência humana é inaugurada por um
(sobretudo dos pais) 3 • acontecimento verdadeiramente dramático.
No âmbito da sexualidade infantil, podem-se distinguir as seguintes A influência negativa desse "transe" do nascer se manifesta em certos
fases: casos em que apareceu no momento do nascimento uma dificuldade
notável - a asfixia, por exemplo -; esses eventos podem ser causa de
angústias e pânicos irracionais ou instintivos. Não nos esqueçamos de que
a) A concepção e vida intra-uterina a esperança ou segurança humana tem uma base biológica e depende
muito dessas primeiras fases da vida humana. Esses reflexos negativos se
Entra aqui o fato da "expectativa" e da "acolhida" (ou seus contrá-
encontram com maior freqüência nos primogênitos, que tiveram às vezes
rios) por parte dos pais.
um nascimento mais dificil.
A jovem vida embrionária, esperada, desejada por sua própria natureza ou por
seu sexo, ou destinada a desempenhar um papel que lhe foi atribuído de
antemão, ou que surgiu acidentalmente, essa vida embrionária, aceita ou rejei- e) As fases da primeira evolução sexual. Etapas psicossexuais
tada, recebe massiva impregnação biopsíquica de um ser completamente moldável
pelo ambiente•. O tratamento analítico dos neuróticos, a análise de indivíduos nor-
mais e a observação direta das crianças levaram os psicanalistas a admitir
2. S. FREUD, Obras completas, t. I., Madri, 1967, p. 789. Cf. P. F. VILLAMARZO, ~ue já a partir dos primeiros meses de vida se desenvolve na criança uma
Características y tratamiento de la sexualidad infantil. Enfoque psicoanalítico freudiano, Vrda sexual e emocional intensa.
Madri, 1979.
3. Cf. R. SPITZ, El primer ano de la vida dei nino, Madri, 1968; J. ROF Essa sexualidade infantil tem três características importantes:
CARBALLO, Urdimbre afectiva y enfermedad, Barcelona, 1961; id., Violencia y ternura, - acha-se unida à satisfação de outro instinto ("caráter enclítico");
Madri, 1967.
4. C. DESTOMBES, "Evolución de la sexualidad en la infancia y la adolescencia'', - não tende a um objeto exterior, mas se satisfaz no próprio corpo
em Estudios de sexología, Barcelona, 1968, p. 172. (caráter narcisista ou auto-erótico);

46 47
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

- vai fixando-se em regiões eróticas diferentes, em funções diversas _ al'etivas com os pais; nelas, a criança está tomando consciência de si
çoes '.I'
esma, . -
está assegurando-se. Esta s1tuaçao rece be um nome: "comp1exo
de necessidade fisiológica que mais tarde se separam da sexuali-
dade. fl1 ' . "
de Edipo .
Segundo essa fixação em diversas regiões do corpo (ou funções Fase edípica. Embora esta fase coincida com a fase genital, costuma-
fisiológicas), distinguem-se as seguintes fases ou etapas. estudá-la de maneira separada, já que tem uma importância decisiva na
Fase oral. Durante os três ou quatro primeiros meses, a criança ~:alução da sexualidade humana (sobretudo no âmbito da teoria psica-
descobre o prazer no fenômeno da sucção. Na função da nutrição e no nalítica).
prazer rítmico da sucção - independente da função nutritiva - , ela Para chegar à maturidade sexual, a criança deve: 1) estabelecer a
encontra o prazer. O desmame pressupõe um sofrimento e pode ser primazia da região genital. sobre ,ªs o~~as re?iões erógenas, as quais
origem de um trauma de frustração. Embora mais tarde o prazer sexual permanecerão, mas subordinadas a regrao gerutal; 2) passar do "auto-
"se desligue" dessa função, ficarão "marcas" (a boca como zona erógena) .
erotismo" (narcisismo) ao "amor objetal".
Esta etapa é de extrema importância na vida afetiva da criança. Isso vai ser conseguido com a resolução correta do complexo de
Trata-se de um período "passivo": recepção do carinho e da proteção do
Édipo. Obtêm-se então a aceitação da própria sexualidade e a relação
ambiente (sobretudo da mãe). É imensamente significativa essa relação
com o objeto externo. E isso mediante a identificação com o progenitor
de ternura e segurança entre o filho e a mãe (importância na própria
do mesmo sexo.
ordem biólógico-constitucional, por exemplo, das funções mais elemen-
tares). Os casos negativos enfatizam-no ainda mais: o caso da anorexia, Período de latência. O complexo de Édipo se resolve por volta da
o caso da bulimia, o caso do escapismo. idade da razão. Essa "resolução" origina um estado de tranqüilidade
(latência da sexualidade) e permite o livre desenvolvimento das faculda-
Fase anal (ou fase esfincteriana). Esta etapa se desenvolve a partir
do primeiro ano. Une-se o prazer a essa função fisiológica. Mas ocorre des superiores: inteligência e vontade. É a época ou período "social da
um aspecto novo: a criança tem a primeira experiência do domínio sobre criança" . As relações com o ambiente adquirem um caráter educacional
uma atividade pessoal e vive esse domínio como resposta (de amor ou em sentido explícito. A criança aprende as formas de sociabilidade e se
agressividade) diante da mãe que insiste com ela nesse domínio ou edu- introduz no conhecimento do mundo das "sublimações".
cação esfincteriana. Os psicanalistas dão grande importância a esta etapa
e deduzem muitas conseqüências para a psicologia ulterior do indivíduo. 2, SEXUALIDADE ADOLESCENTE
No plano emocional, esta etapa é marcada por um caráter ativo.
O funcionamento muscular acarreta uma transformação do modo de presença Este período é de imensa importância na vida humana e pode ser
da criança diante de seu ambiente. Ela começa a ser capaz de mover-se, de caracterizado, no que diz respeito à sexualidade, pelos seguintes traços,
descobrir o mundo que a rodeia, de ir a seu encontro, de destruir e construir, que só enumeramos sem submetê-los a nenhum desenvolvimento ou
de fazer sair por si mesmo as conexões e manifestar suas elaborações mentais explicação:
a cujo respeito a linguagem assinala uma conquista5 .
- O despertar da sexualidade genital: com afirmação rápida dos
Entretanto, ela continua a necessitar da relação de ternura e segu- caracteres sexuais secundários; os órgãos sexuais adquirem sua
rança do ambiente (sobretudo do ambiente familiar). capacidade fisiológica (antes de o indivíduo alcançar sua capaci-
Fase genital (ou fálica). Por volta dos três anos, o auto-erotismo se dade psíquica e social).
localiza na região genital. Nesse período, têm suma importância as rela- - A relação com os outros muda de sentido: torna-se "brusca", "re-
belde" (o "diálogo" se torna dificil, a não ser no encontro em
5. Id., ibid., p. 173. "turmas").

48 49
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

- Reação unissexual: amizades com indivíduos do mesmo sexo, de _ união matrimonial ou diálogo pré-matrimonial;
caráter sentimental ou acompanhadas de práticas homossexuais _ condição de solteiro ou viuvez;
transitórias. _ virgindade consagrada.
De todo modo, a maturidade exige:
3. SEXUALIDADE JUVENIL _ integração da força sexual no interior de seu dinamismo próprio
e do dinamismo geral da pessoa, e
Esta etapa, no que se refere à vida sexual, se caracteriza primordial-
- vivência consciente (conhecimento do mistério da sexualidade) e
mente pelo estabelecimento de relações intersubjetivas. Nesta relação, o
tranqüila do impulso sexual e do comportamento sexual.
indivíduo adquirirá, ao mesmo tempo, sua própria segurança.
A relação interpessoal desenvolve-se em diversos planos e segundo
diferentes aspectos, mas interessa-nos ressaltar aqui um aspecto concreto II. SEXUALIDADE E AMOR
- o mais significativo, por outro lado: o diálogo interpessoal sexuado. NA PSICOLOGIA DIFERENCIAL
Procurando esquematizar ao máximo as etapas desse diálogo inter- J. DIFERENÇAS PSICOSSEXUAIS
pessoal sexuado, assinalaremos as seguintes fases, referindo-nos particular-
mente ao menino: O homem e a mulher vivem e exprimem sua sexualidade no plano
- atração intensa e obscura pela mulher ("anônima" ou "parcial"); psíquico com características diferenciais. Podemos dizer que o amor é
- atração por uma mulher real (com relevância real), mas conside- "masculino ou feminino".
rada como "objeto" (relação objetivante) em encontro passagei- A diferente anatomia da sexualidade masculina e feminina tem suas
ro, flerte ou prostituição; repercussões no plano psíquico. Fixemo-nos na proporção distinta que os
- relação interpessoal com esta mulher concreta, vivida em relação órgãos sexuais masculinos e femininos mantêm com relação ao resto do
personificante e personalizada. organismo.
O aparelho reprodutor do homem é proporcionalmente de pouca magnitude
4. SEXUALIDADE MADURA e, em sua quase totalidade, externo e como acrescentado à arquitetura geral do
indivíduo. Na mulher, pelo contrário, esse aparelho alcança uma massa consi-
A maturidade sexual envolve muitos elementos e se manifesta de derável, ocupando quase totalmente uma das grandes cavidades do tronco, a
muitos modos. Em termos gerais, poderíamos afirmar que a maturidade cavidade pélvica; e ·ainda tem, longe desta, dois órgãos acessórios, as mamas,
que tanto contribuem para o diferente traçado dos sexos e que tanta importân-
sexual se fundamenta no equilíbrio conjunto da pessoa.
cia adquirem na vida da mulher normaF.
É importante compreender que o equilíbrio sexual é, em primeiro lugar, um
aspecto ou um resultado do equilíbrio de conjunto da personalidade. Quando Essas diferenças anatômicas nos indicam a diferente vivência e ex-
alguém está suficientemente aberto à existência, busca amigos com facilidade pressão psíquica que a sexualidade tem em cada um dos sexos. Enquanto
e mantém uma atitude aberta acerca dos outros, ao mesmo tempo que a ª mulher sente sua sexualidade de uma maneira difusa, o homem a sente
possibilidade de estar sozinho, sem por isso sentir mal-estares; tem muitas c~ncentrada e até localizada. A mulher vive sua sexualidade, podemos
possibilidades de controlar seu instinto sexual segundo quiser, com a ajuda de dizer, em todo o corpo; daí o fato de viver sempre em contínua preo-
Deus 6 • cupação com seu corpo, com uma cinestesia sempre em alerta. Como

50
Pode ser vivida em diversos níveis:

6. M. ORAISON, Armonía de la pareja humana, Madri, 1967, p. 25 . ---


decorrência, em nível mais superficial, a expressão de contínuo coquetismo

7. G. MARANÓN, Tres ensayos sobre la vida sexual, Madri, 1929, p. 36.

51
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

e auto-observação do próprio corpo. Em contrapartida, o homem vive A evocação de _um si~bolismo p~mário de pe_ne?"ação_ e receptivi.~ade, d~ posse
sua sexualidade de um modo mais concreto e localizado, sem preocupar- de acolhida, mclus1ve de conqwsta e de cativeiro, nao tem armude mais peso
se excessivamente com sua própria forma ou esquema corporal. Possuin- ~o que 0 de um suporte idealizado com base em concepções tradicionais dos
apéis próprios do homem e da mulher. Transposição dos gestos do ato conjugal
do os órgãos sexuais quase separados do corpo (por razões térmicas dos
~o conjunto dos diferentes comportamentos da vida humana; com a possível
testículos), o homem vivencia sua sexualidade como uma realidade um influência (freqüentemente nefasta) dessas imagens na própria técnica amorosa 10 •
pouco autônoma com relação ao resto do corpo; daí o fato de ela parecer
escapar um pouco a seu próprio controle. Na mulher, em contrapartida
o conhecimento das diferenças psicossexuais é algo muito necessá-
)
.0 à avaliação do comportamento de cada um dos sexos. Por exemplo,
os órgãos sexuais estão mais ocultos, são mais internos, estão - por
assim dizer - mais mesclados com todo o resto do corpo e parecem
~eve receber uma. avaliação diferent~ a masturbação ~º, h~mem. ,e _na
mulher, visto ser diverso o suporte pstcossexual. A contmenc1a penodica
estar em dependência mais estreita com esse conjunto. Isso poderia in-
é mais fácil na mulher do que no homem; não se pode, pois, tratar os
dicar-nos que a mulher pode ter mais domínio de sua sexualidade do que
dois cônjuges tendo por única medida a mulher.
o homem.
São muitas as aplicações que tem na pedagogia sexual o conheci-
A diferente fisiologia sexual no homem e na mulher influem tam-
mento das diferenças psicossexuais. A harmonia conjugal repousa na
bém nas diferenças psicossexuais dos dois sexos. A função sexual primária
aceitação dessas diferenças; corresponderá principalmente ao homem le-
no homem é breve e passageira. Mas na mulher é mais lenta e duradoura.
var em grande consideração a maneira peculiar que adota o comporta-
Mais ainda, na mulher a relação sexual
mento sexual da mulher. Quanto à iniciação sexual, convém saber que a
não é senão o começo de uma longa série de fenômenos complicados e mulher tem um conhecimento intuitivo do sexual antes de chegar a uma
incômodos, em cujos longos meses de transcurso todo o organismo materno,
até a última de suas células, se modifica profundamente para culminar no experiência prática. No homem, costuma ocorrer de modo diferente.
doloroso transe do parto e ter prosseguimento com o longo peóodo da Jactância, Assinalamos as diferenças que existem entre um sexo e .outro. É
durante a qual desde as mais elevadas até as menores atividades vegetativas da necessário, além disso, indicar que em cada um dos sexos existem formas
mulher convergem na realização da nutrição do recém-nascido8 . diferenciais. A título de exemplo, apresentemos um caso. Do ponto de
Isso faz que a mulher identifique sua vida com o amor. Como dizia vista fisiológico, encontram-se na mulher diferentes tipos de sensibilidade
Lord Byron: genital. Distinguem-se dois tipos: mulheres clitoridianas e mulheres va-
O amor do homem é coisa distinta de sua vida, enquanto o amor da mulher ginais. Nas primeiras, a sensibilidade genital é mais superficial, mais pron-
é sua vida intcira9 • ta a despertar e mais violenta. Nas mulheres vaginais, a sensibilidade
A fisiologia sexual da mulher é mais receptiva, a do homem é mais sexual é mais difusa, mais profunda e de despertar mais lento; estas teriam
ativa. Essa estrutura biológica funcional leva a mulher a viver o amor de por si mesmas mais facilidade de manter continência com relação ao
um modo mais receptivo (o que não indica passividade), ao passo que o prazer sexual do que as primeiras 11 •
homem assume um papel mais ativo e de iniciativa. A lenda do "príncipe
encantado" que toda mulher espera tem um grande valor psicológico.
2. INTERPRETAÇÃO DAS DIFERENÇAS SEXUAIS
No entanto, convém não exagerar essa dialética de atividade e passividade
na psicologia diferencial dos sexos humanos. Assinalamos na seção anterior as diferenças existentes entre o ho-
A atividade do homem e a passividade da mulher são com freqüência a simples
transposição psicológica de um simbolismo atribuído ao pênis e à vagina [ ... ].

8. Id., Ibid., p. 37.


9. Citado por ibid., p. 36.
---
mem e a mulher. Mas podemos perguntar-nos: de onde prpvêm essas

h
10. A. JEANNIERE, Antropología sexual, Barcelona, 1966, p. 76; cf. pp. 75-86.
11. Cf. M. ORAISON, "Aspect physiologique et hormonal de la chasteté", em La
e asteté, Paris, 1955, p. 180.

52 53
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

diferenças? Houve duas tendências: as que sustentam que as diferenças ncepção do papel um tanto mortificante e vergonhoso do ciclo mens-
procedem da própria biologia, diversa em cada sexo; e as que afirmam coual; se o tivessem, os homens teriam encontrado uma justificação mais
que se trata de fatos históricos, sociológicos ou culturais. traracterizada pela soberba e pelo predomínio. Do homem também de-
Não se pode negar que há diferenças intersexuais que têm seu apoio cende a criação do mito alienante do "eterno feminino".
numa determinação constitucional, que se evidencia diante de qualquer P Além de fazer a crítica radical da relação homem-mulher, S. de
estudioso da anatomia ou fisiólogo. Não obstante, é preciso admitir que Beauvoir procura transformar essa situação cultural mediante uma práxis.
muitas diferenças provêm de influências históricas e culturais. Algumas É necessário libertar a mulher; é preciso dar-lhe um lugar de igualdade
das "qualidades" atribuídas ao sexo feminino não constituíram senão com o homem. Essa libertação será conseguida, em primeiro lugar, quan-
"preconceitos" contra a mulher. Defenderam-se discriminações desonrosas do a mulher tomar consciência de sua situação de explorada. Ela não
e arcaicas tiranias com relação à mulher, a partir de considerações bioló- pode deixar-se enganar por pseudoliberações. Enquanto for escrava de
gicas pouco acertadas 12 • uma pseudonatureza como é a feminidade, a mulher não encontrará a
Neste momento, é preciso mencionar a crítica radical de Simone de libertação. Esta só será conseguida num mundo socialista, em que haja
Beauvoir13 com respeito ao papel atribuído à mulher. Para ela, a distinção 0 domínio da lei da igualdade do trabalho para os dois sexos. De fato,

e a oposição do masculino e do feminino estão enquadradas numa histó- uma economia bem organizada poderia solucionar todas as dificuldades
ria de "alienação" para a mulher. A feminidade não repousa em dados inerentes à gravidez e ao parto.
biológicos nem numa misteriosa essência feminina. A situação da mulher A crítica de S. de Beauvoir é radical e, enquanto crítica, é aceitável.
depende de um fato cultural: o predomínio do homem na ordem socioeco- O que não é aceitável é a tese da supressão da feminidade e masculini-
nômica. Na relação homem-mulher, realiza-se a relação dialética senhor- dade como duas formas de existência humana. Não podemos conceber
escravo. A mulher é, pois, um ser explorado, alienado, frustrado. Por uma existência humana neutra, porque nesse caso temos de suprimir uma
estar alienada, a mulher projetou sua frustração em diversos refúgios de das estruturas antropológicas de base e porque, desse modo, teríamos de
consolo: erotismo, misticismo, ou na sublimação da "maternidade". eliminar a realidade maravilhosa do amor interpessoal.
Como se vê, S. de Beauvoir aplica o esquema da crítica histórico- Ao expor a sociologia da sexualidade, voltaremos a esse aspecto da
dialética de Marx à relação homem-mulher e nela vê uma repetição do diferença dos sexos. Veremos o papel que a cultura desempenha como
esquema burguesia-proletariado. Não há, pois, uma verdadeira distinção fator de institucionalização do papel representado pelos sexos. Por ora,
de sexos no nível da pessoa; há diferenças fisiológicas, mas a pessoa é admitamos que existem diferenças psicossexuais entre o homem e a mulher,
neutra sexualmente. As diferenças biológicas são alguns condicionamen- ainda que na forma de realização cultural tenham existido muitas falhas,
tos como outros no âmbito da existência humana. O homem aproveitou- que é necessário eliminar.
se deles para "alienar" a mulher. Do homem depende, por exemplo, a Admitidas essas diferenças reais entre o homem e a mulher, conser-
vam eles algu.ma relação entre si? Trata-se de uma pergunta extremamen-
12. Apesar de seus acertos, observa-se em G. Maraiíón uma postura um pouco
te delicada, em cuja resposta se mesclaram muitos preconceitos históri-
antifeminista: "Vemos, pois, o trabalho ligado diretamente ao sexo como atividade mas- cos. De uma ótica masculina, considerou-se o ser masculino como tipo
culina fronteira e paralela à feminina da maternidade. A análise biológica confirma o de todos os valores humanos; o simples detalhe gramatical do emprego
símbolo escrito na primeira página do Gênesis: Adão nasce pelo trabalho no mesmo de "homem" para indicar toda a humanidade torna evidente essa
momento em que Eva, a mãe de todos, nasce para a vida do sexo; e Deus marca a um
prevalência. Não é este o momento de expor todos os erros inerentes a
e à outra com toda clareza os dois caminhos paralelos: 'tu, homem, trabalharás; tu ,
mulher, parirás" (op. cit., pp. 45-46). u'.11ª postura antifeminista. Que nos baste afirmar que a relação entre as
13. El segundo sexo, 2 vols., Buenos Aires, 1965. Pode-se ver um resumo em G. ~ferenças do homem e da mulher não deve ser estabelecida por meio do
GENNARTI, Simone de Beauvoir, Barcelona, 1967, pp. 83-139. 0
mínio do primeiro, nem mediante a luta entre os dois, nem pela

54 55
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

reivindicação por parte da mulher de uma "igualdade" exata com 0 e do feminino: duas categorias que se manifestam nos estudos etno-
homem. A mulher não é igual ao homem assumindo a forma de homern ~,0 icos da sexualidade 15 . É no fundo - ou na superação? - dessas duas
(seria uma alienação frustrante), mas no grau em que possa gozar de seus º:iaridades (natureza-cultura, absoluto-relativo) que deve ser encontrado
direitos de mulher. ~ estilo de vida feminino e masculino.
Nem a dominação nem a assimilação são dois modos de solucionar p 0 de-se portanto falar do "eterno feminino" 16 ou do "eterno mas-
a dialética dos sexos. u}ino". São duas formas de vida ou dois projetos de existência humana.
Nos países e nas épocas em que a m~lher é considerada diferente do homem
~a espécie humana, há dois modos de realizar-se. Até aí chega seu "luxo
vemos com freqüência ser ela menosprezada, dominada, submetida, relegada'. vital": fazer que exista a riqueza de dois projetos de existência no humano.
Nos países e nas épocas em que a mulher é considerada idêntica ao homem As categorias do masculino e do feminino têm uma grande possi-
é assimilada, desviada, submetida no mais íntimo de seu ser colaborando e~ bilidade simbólica. É uma classificação dos modos humanos de ser diante
equipe com o homem, disfarçada de homem. Esta tendência se concretiza nos
movimentos feministas, tão pouco feminizantes 14 .
da natureza, diante dos outros.
Tanto no simbolismo religioso como na antropologia existencial, masculino e
A solução acertada é que, num primeiro momento (não temporal, feminino são independentes do sexo dos indivíduos 17 .
mas dialético), cada sexo realize seus valores específicos, sem deixar-se
Essa possibilidade simbólica do masculino e do feminino é maravi-
alienar pela consideração do sexo contrário. Num segundo momento, é
lhosamente aproveitada por Ortega y Gasset num dos ensaios para definir
necessário relacioná-los. E o modo de relação não pode ser senão o da
a dinâmica do tempo 18 • Ele parte da afirmação de que "as variações
complementaridade com vistas a uma unidade mais plena de valores.
históricas nunca procedem de causas externas ao organismo humano"; ao
ter de buscar as causas ou princípios das variações do viver humano no
3. MASCULINIDADE E FEMINIDADE: interior do organismo,
DUAS FORMAS DO SER E DO OFÍCIO HUMANOS deve parecer sobremaneira verossímil que nos mais profundos e amplos fenô-
menos históricos apareça mais ou menos clara a decisiva influência das diferen-
A masculinidade e a feminidade são duas formas de existência huma- ças biológicas mais elementares. A vida é masculina ou feminina, é jovem ou
na. Na espécie humana, existe uma bipolaridade sexual em todos os é velha. Como se pode pensar que esses módulos extremamente elementares
e divergentes da vitalidade não sejam gigantescos poderes plásticos da história?
níveis e em todos os aspectos. Essa diferença se introduz na dimensão
antropológica integral e origina duas maneiras de projeção da existência Por isso mesmo,
humana. Embora o homem e a mulher se dediquem aos mesmos traba- para compreender bem uma época, é preciso determinar a equação dinâmica
lhos e vão transpondo as barreiras sociais que os separam, sempre será que nela formam essas quatro potências e perguntar: Quem pode mais? Os
jovens ou os velhos, isto é, os homens maduros? O varonil ou o feminino?
certo que cada um deles viverá a vida - sociologicamente idêntica -
com uma maneira própria e peculiar. Ao responder a essa pergunta em relação com nosso tempo (com
Há duas formas de projetar a existência: uma própria da mulher e seu tempo?), Ortega y Gasset qualifica-o de "masculino".
outra característica do homem. Essa maneira peculiar provém das estru- Nosso tempo não é só tempo de juventude, mas de juventude masculina. O
senhor do mundo é hoje o homem jovem.
turas antropológicas e da cultura; às vezes, a "cultura" se sobrepõe à
" natureza ,, , e outras vezes e, a " natureza " que nao
- se detxa
. mo ldar pe1a
"cultura". Daí o caráter relativo e absoluto, a um só tempo, do masculi- 15. Cf. M. MEAD, Sexo y temperamento, 2ª ed., Buenos Aires, 1961, pp. 219ss.
16. Cf. G. VON LE FORT, La mujer eterna, Madri, 1953.
17. A. JEANNIERE, Antropología sexual, p. 112.
14. L. J. M. SAHUC, "Psicología de la pareja", em Estudios de sexología, Barcelona, 18. J. ORTEGA Y GASSET, "Dinámica dei tiempo", em Obras completas, III, 3ª
1968, pp. 66-67. ed., Madri, 1955, pp. 471-475.

56 57
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

O masculino e o feminino são duas maneiras diferentes de viver a l· A TIPOLOGIA SEXUAL SEGUNDO A CLASSIFICAÇÃO DE l<RETSCHMER
existência humana, mas não são contrapostas. Predomina também aqui a
lei da complementaridade. Mais ainda, para ser plenamente humano, cada 1. A sexualidade do leptossomático. Em sua morfologia, o leptos-
indivíduo tem de realizar em si mesmo, de certo modo, os dois projetos. mático se caracteriza por um grande predomínio da altura sobre a
A psicologia analítica de C. G. Jung enfatizou essa realidade. Na alma do soassa: altos, magros, longas extremidades, pobreza muscular, escassez de
homem (animus) existe um desejo de completar-se adotando o estilo Jll.cido adiposo. Seu temperamento é denominado esquizotímico; em sua
feminino (anima); o mesmo acontece com a mulher. Mesmo antes de uma ~~nalidade responsiva, não se sintoniza com o ambiente. Sua fórmula
referência direta à união sexual, o animus deseja completar-se na anima endócrina mostra-se definida pelo tom baixo da hipófise, supra-renais e
e vice-versa 19 • O masculino e o feminino se encontram em cada um de nós'. gónadas, e por u~ tom ~lt? de ~reóides. No plano sexual, t~ndem a
desviar-se para o polo fem1mno, sep homem ou mulher (polaridade fe-
Se são duas formas de existência humana, o masculino e o feminino minina). Encontram-se no interior deste grupo muitos idílicos sentimen-
são também duas formas do oficio humano. A masculinidade e a feminidade tais, românticos, estilistas, déspotas, fanáticos, metafisicos etc.
são duas tarefas morais na medida em que são um oficio que deve ser
2. A sexualidade do pícnico. Na morfologia do pícnico percebe-se
cumprido. É necessário "conquistar" dia a dia a feminidade e a mascu-
um predomínio relativo da massa sobre a altura, são rechonchudos, de
linidade, como um dos imperativos fundamentais da ética sexual. cabeça em forma de polígono, cabelos finos e flexíveis, tórax largo, ab-
dome avultado, extremidades curtas e delicadas, musculatura branda e
III. SEXUALIDADE E AMOR NA PSICOLOGIA TIPOLÓGICA abundância de tecido adiposo. Seu temperamento é ciclotímico, sua to-
nalidade afetiva varia entre a tristeza e a alegria. Sua fórmula endócrina
Relacionar o fator sexualidade com a psicologia tipológica é um mantém um alto tom de atividade hipofisária, supra-renal e gonadal,
estudo de grande interesse, sobretudo se essa investigação é realizada sendo a da tireóide normal ou ligeiramente baixa. No aspecto sexual,
tendo em vista a educação. Faremos nesta seção um esboço desse estudo tendem à virilidade. Entre eles, podemos encontrar grandes polemistas,
correlativo, sem pretender esgotar a matéria nem aquilatar ao extremo as banqueiros, diretores de empresa, humoristas etc.
conclusões. 3. A sexualidade do atlético. A morfologia do atlético se caracteriza
A psicologia tipológica teve sua época de florescimento entre os anos por sua elevada estatura e bom desenvolvimento esquelético muscular· de
, '
torax largo; com relativa proporcionalidade entre a altura e a massa. Seu
1920 e 1940. A partir desta última data, surgiu uma forte crítica às
construções tipológicas. Hoje, descartam-se as duas posições extremas, de temperamento é viscoso, pegajoso e aderente. A fórmula endócrina: alto
total aceitação e de plena negação. A psicologia tipológica ajuda a conhe- t?m hipofisário, sendo em geral bastante equilibrado no resto do formu-
cer e classificar a pessoa, embora não se possa exagerar esse desejo de lismo secretor endócrino. Em seu aspecto sexual percebe-se a característi-
catalogação nem se possa conceder plena e total garantia às ~lassificações. ca fundamental da tenacidade e imperturbalidade, o que confere qualida-
des de equilíbrio, lealdade e fidelidade. Encontram-se entre eles: esportis-
Não pretendemos fazer uma tipologia completa da sexualidade. Vamos tas, pesquisadores, matemáticos, colecionadores etc.
referir-nos apenas - quase à guisa de exemplificação - às incidências de
diversidade sexual que se observam nas classificações tipológicas de Kretsch-
2
mer e de Sheldon 20 • ·A TIPOLOGIA SEXUAL SEGUNDO A CLASSIFICAÇÃO DE SHELDON

llJ. . 1. A sexualidade do viscerotônico. De baixa estatura e obesidade


19. Cf. J. GOLDBRUNNER, lndividuación. La psicología profunda de G. Jung,
gir<lIUfesta. Sua característica fundamental é o fato de sua vida parecer
Madri, 1962, pp. 140-169.
20. Cf. J. A. MIQUEL, Condicionamientos biológicos de la moral dei amor: Moral da~ em torno do instinto de nutrição, constituindo seu maior prazer o
y hombre nuevo, Madri, 1969, pp. 83-95. ora de comer. A sexualidade ocupa neles um lugar secundário.

58 59
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

2. A sexualidade do somatotônico. Gira vitalmente ao redor do ins- se abre à relação, transforma-se em comportamento, reveste-se de
tinto de poder; seu prazer repousa no fazer, em desenvolver uma atividade :~agem, encarna-se em símbolos, desenvolve-se na celebração festiva
1
máxima. Seu instinto sexual é poderoso e sem inibições, mas não assume do gozo sexual. Em suma, encontra a saída humana da palavra esclare-
grande importância. cedora e encaminhadora.
3. A sexualidade do cerebrotônico. Sua peculiaridade é a inibição em Outra forma de desenvolver a estrutura da instância psicológica da
todos os âmbitos de sua fisiologia. Tendendo à solidão, à intimidade, de sexualidade é seguir o caminho freudiano. Devemos muito a Freud no
pensamento profundo e amante das disquisições sobre o sentido da vida que se refere ao conhecimento da sexualidade humana.
e da realidade. Sua psicossexualidade é precoce e viva, assume um predo- Pode-se dizer que depois de Freud o homem chega por fim à verdade da
mínio sobre os instintos de poder e de nutrição; ela lhe ocasiona pertur- sexualidade, e essa verdade não é cômoda de suportar2 1 .
bações juvenis pelas inibições e pela timidez que dificultam para ele o Embora essa afirmação seja um pouco exagerada, não se pode negar
contato com o feminino. a importância de Freud no conhecimento que hoje possuímos da sexua-
As breves anotações que acabamos de fazer mostram-nos com cla- lidade humana.
reza, uma vez mais, a conexão que existe entre a estrutura somática e o Freud libertou a sexualidade de duas "reduções": a redução genital
núcleo psíquico da sexualidade. Ao abordar os problemas humanos, não e a redução temporal. A sexualidade recebe assim uma extensão no es-
podemos permanecer nem num puro biologismo nem num psicologismo paço (não apenas impulso genital, mas também amor) e no tempo (não
sem apoio corporal. O homem é uma unidade biopsíquica; a sexualidade acontece de uma vez na puberdade, estando submetida a um processo
participa dessa mesma estrutura integral. histórico no âmbito da vida total do indivíduo). Podemos entender de
uma maneira positiva a libertação das duas "reduções" indicadas dizendo
IV. IMPLICAÇÕES ÉTICAS A PARTIR que a força libidinal (a libido) se transforma, na instância psicológica, em
DA PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE eros ou desejo humano.
Ao tornar-se vivência, a sexualidade humana configura o compor-
1. SENTIDO E ESTRUTURA DA SEXUALIDADE PSICOLÓGICA tamento pessoal. Ela origina uma modulação dentro da unidade do com-
portamento humano. Ora, essa modulação, embora possa ser descrita
A dimensão psicológica da sexualidade diz que esta não é única nem
também de uma maneira sincrônica, introduz uma progressão amadure-
preferencialmente uma pulsão. Para usar outra terminologia, a sexualida-
cedora no interior da vida psíquica do indivíduo.
de não é só uma "necessidade", é também um "desejo"; torna-se objeto
de vivência humana, ao mesmo tempo que constitui forma expressiva Não se pode dizer que o comportamento sexual humano é total-
dessa vivência. Eis o aspecto peculiar da instância psicológica da sexua- mente explicável psicologicamente. Esse reducionismo "psicologista" nos
lidade: o comportamento sexual é um comportamento vivenciado e tor- levaria a falhas de compreensão semelhantes àquelas a que nos levou o
nado comportamento humano. reducionismo biologicista. A sexualidade humana tem outras dimensões
além da psicológica.
Essa afirmação nuclear pode ser desenvolvida de várias maneiras.
Pode-se dizer que a sexualidade biológica representa uma força não auto- Não obstante, a dimensão psíquica do comportamento sexual é de
esclarecida, enquanto a dimensão psicológica introduz o esclarecimento. ~ma importância decisiva. A partir de sua peculiaridade, contribui com
Isso supõe que a pulsão sexual, entendida como "necessidade" biológica,
vive numa obscuridade existencial, sem saída clara e com seus elementos
caoticamente misturados. A dimensão psicológica introduz o sentido na
sexualidade humana: a partir desse momento, a pulsão sexual se abre à

60
---
significados fundamentais para a compreensão global da sexualidade hu-

20 5.
21. L. BEINAERT, La révolution freudienne: Sexualité humaine, Paris, 1966, p.

61
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

mana. Deixando para o próximo capítulo o aspecto dialógico, observa- a) o ((esquema evolutivo'' da maturação sexual
mos que a instância psíquica orienta a sexualidade humana por dois
caminhos de compreensão. Não nos interessa neste momento expor de forma detalhada toda
dinâmica psico-evolutiva da sexualidade humana. Fazemo-lo unica-
~ente pelo que ela tem de pressuposto indispensável à ética sexual
a) A sexualidade como força construtiva do eu
evolutiva.
Uma das chaves oferecidas pela instância psicológica para a compreen- A maturação sexual é uma conquista humana, conseguida com base
são global da sexualidade é a da maturação. A sexualidade não é uma em grandes esforços.
realidade dada de modo definitivo; é uma força que deve ser integrada A sexualidade é uma peripécia sinuosa que nasce e evolui com o ser
a partir do núcleo pessoal. Eis as duas palavras, maturação e integração. humano, tal como observa Freud, desde a mais tenra inf'ancia. A sexua-
Se a sexualidade tem de ser vivida a partir do dinamismo interior do sujeito, lidade perpassa toda a vida humana, em termos de extensão (cronologia)
este, por sua vez, se constrói e amadurece através da própria sexualidade. Esta e de profundidade (diferentes níveis antropológicos), mas nem sempre da
última, portanto, é uma força construtiva do "eu". Eis um dos significados que mesma maneira, residindo aí, precisamente, seu aspecto trágico, pois
tem o fenômeno global da sexualidade, mas que lhe advém, principalmente, da
instância psicológica. nunca terminamos de aprender a lição, tão distinta a cada nova curva do
caminho 22 •
A sexualidade de cada indivíduo tem seus aspectos próprios e ir-
b) A sexualidade como função hermenêutica da pessoa
repetíveis. Constitui uma peculiaridade intransferível. Entretanto, existe
A instância psicológica oferece também à sexualidade global a di- um esquema indefinido e genérico sobre o qual se constróem todas as
mensão hermenêutica. A pessoa se expressa por meio da sexualidade. sexualidades individuais. É esse esquema comum que procuramos expor,
Mais ainda, a sexualidade é uma forma expressiva privilegiada da pessoa. mesmo admitindo tratar-se de um "esquema" e não de uma concreção
perfeita da realidade.
A partir desse significado hermenêutico, a sexualidade pode ser
entendida como linguagem de pessoas. Além disso, adquire algumas Seguindo Oswald Schwarz23 , pode-se expor do seguinte modo a
possibilidades simbólicas e festivas. Toda a sexualidade humana é uma linha evolutiva da sexualidade humana. O caráter incompleto do esquema
celebração de pessoas, que se exprimem dentro de um mundo peculiar nada tira de seu grande valor pedagógico para abranger, com um único
de símbolos e linguagem. olhar, as diferentes etapas pelas quais passa a sexualidade até chegar à sua
maturidade pessoal.

2. A TAREFA ÉTICA DA "INTEGRAÇÃO"


O esquema da página seguinte não deve ser entendido senão como
DA SEXUALIDADE NO "ESQUEMA PESSOAL"
um "quadro orientador" das diversas fases que a sexualidade atravessa em
sua linha de amadurecimento pessoal. Diante de certos exageros de al-
A sexualidade é algo que deve ser integrado na dinâmica geral da guns psicólogos, é necessário afirmar que para que ocorra a maturidade
pessoa. Nasce daqui um princípio básico e geral de ética sexual: será bom ~,exual não é necessário ter tido experiências sexuais, primeiro de tipo

---
tudo o que a prepare e a favoreça, e mau tudo o que retarde, dificulte e masturbatório" depois de caráter "homossexual" mais tarde "prostitui-
mantenha a sexualidade num estado de falta de amadurecimento evolutivo. - " e, por último,
Çao ' "relação amorosa". Essas experiências,
' em lugar de
Para poder aplicar de maneira autêntica esse princípio, é preciso
conhecer antes o esquema evolutivo da maturação sexual; só assim po- 22. El libro de la vida sexual, p. 302.
deremos, num segundo momento, avaliar as falhas a esse respeito. 23. Psychologie sexuelle, Paris, 1952.

62 63
SEXUALIDADE PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

fazer progredir a maturação psicossexual, retardam-na e às vezes a frus- b) Mecanismos psíquicos desintegradores
tram parcial ou totalmente.
O que se afirma no quadro abaixo é o "esquema evolutivo" normal Sabemos que a sexualidade não é um capítulo isolado de nossa vida;
da sexualidade humana. Em distintas etapas vão surgindo diversos valo- ela nos acompanha do princípio ao fim. De fato, o homem é um ser
res, que por sua vez trazem a contrapartida das falhas inerentes a eles: sexuado desde o segundo e terceiro mês da vida intra-uterina.
"masturbação", "homossexualidade" etc. A evolução da dinâmica sexual Além de acompanhar o homem por toda a sua existência, a sexua-
é expressa - no quadro reproduzido - a partir dessas falhas, que não lidade segue as vicissitudes de sua dinâmica evolutiva. Mais ainda, é ela
entendemos senão como expressão negativa da linha evolutiva sexual. que vai assinalando _as divers~s ei:,apas d~ evoluç,ã~ pessoal. A sexualidade
rem uma estruturaçao evolutiva, a qual e necessar10 prestar suma atenção.
Mas convém introduzir aqui uma observação de tipo geral com
1. ESQUEMA DA EVOLUÇÃO SEXUAL NO INDIVÍDUO relação a essa avaliação sexual, observação válida para qualquer outro
aspecto do desenvolvimento evolutivo da personalidade humana:
1ª etapa 2ª etapa 3 11 etapa A passagem de um estágio ao seguinte se faz sempre de forma progressiva, mas
Infantilismo Masturbação Homossexualidade com matizes sutis e com empurrões à guisa de golpes, que implicam na maioria
das vezes um retrocesso, antes de passar ao estágio seguinte. Trata-se de um
I momento avanço de certo modo dubitativo, que precisa ocasionalmente parar, voltar atrás
Elemento físico como para tomar impulso e saltar ao nível seguinte24 •
da sexualidade
Nessa evolução psicossexual, podem ocorrer - e de fato ocorrem
Elemento Descobre-se
- diversas falhas. A partir dos resultados da psicologia dinâmica, pode-
emocional a dualidade mos assinalar diversos mecanismos psíquicos mediante os quais se desper-
da sexualidade sonaliza a sexualidade humana. Eis os mais importantes:

Confusão Descobre-se o Descobre-se o


prazer solitário prazer com outro - Fixação

. Há fixação quando um indivíduo se acha como aprisionado por


4ª etapa 5 11 etapa 6 11 etapa gnlhões importantes num período que deveria ter superado há tempos:
Prostituição Relação amorosa Amor pleno o prazer encontrado num período determinado, hipertrofiado por agir
como compensação para uma frustração, pode ser causa, por exemplo, de
II momento uma fixação. Todas as falhas sexuais envolvem uma fixação, na medida
Elemento físico
da sexualidade em que toda falha no comportamento sexual é uma negação do processo
maturativo integrador da sexualidade.
Elemento Descobre-se
emocional a reciprocidade
da sexualidade -Regressão

Este mecanismo psíquico ocorre quando o indivíduo, depois de ter

--
Descobre-se o Descobre-se o Descobre-se o
prazer com o prazer com uma prazer na união alcançado um estado superior, volta a outro já superado e se fixa nele
outro sexo pessoa do outro pessoal
sexo
24. P. LE MOAL, Una auténtica educación sexual, 3ª ed., Alcoy, 1966, p. 45 .

64 65
SEXUALIDADE
PSICOLOGIA DA SEXUALIDADE E IMPLICAÇÕES ÉTICAS

fortemente . Esse mecanismo pressupõe uma sene de conflitos afetivo- por meio dos mecanismos psíquicos enumerados, a sexualidade
sexuais não resolvidos, sobretudo na época da infància e da adolescência. burnana origina algumas formas concretas de desintegração pessoal. São
Esses conflitos cristalizaram o comportamento psicológico-afetivo do derivações pessoais a que conduz uma sexualidade sujeita a uma má
5
indivíduo, bloqueando-o num estado primitivo, muito simples e muito :volução. Eis uma exposição sintética das principais formas de sexualida-
infantil. Como não evoluiu normalmente no psicossexual, o indivíduo de mal integrada:
retorna em busca de prazeres de períodos passados, dos quais guarda em
Na direção das reações «perversas" imaturas. Não é necessário que essas reações
si mesmo uma espécie de nostalgia. se manifestem externamente na forma das chamadas "perversões sexuais", embora
muitas vezes isso aconteça. Sua dinâmica desviada pode ser descoberta:

- Progressão lenta 1. No infantilismo psico-afetivo que busca a submissão passiva ao outro ou à


coletividade. Personalidades inseguras eternamente carentes de apoio, que fo-
gem perpetuamente do risco da liberdade do encontro consigo mesmas na
Isto acontece em alguns indivíduos cuja evolução se prolonga inde-
responsabilidade da própria iniciativa etc.
vidamente ou apresenta períodos de parada provisória, como se eles 2. Nas formas imaturas captadoras das relações sexuais e amorosas, deseja-se
necessitassem de muito tempo para acumular forças e pular ao nível "ter" o outro, possuí-lo, como se fosse uma coisa. A sexualidade e o amor
superior. Naturalmente, sua maturidade costuma chegar com vários anos reificados introduzem, no círculo da propriedade privada dos bens que pos-
de atraso. suem, o próprio companheiro da relação erótica.
3. Na doação sádica, autoritária da própria pessoa amada. A relação amorosa
em si mostra-se agora competitiva: trata-se de encobrir a própria irregularidade
- Repressão competindo constantemente no noivado ou no casamento, para elucidar quem
ostentará o poder e o comando.
Trata-se de uma forma de automatismo psíquico pelo qual o "ego" 4. Na pseudo-destruição da unidade entre sexo e amor. Pretende-se um dualismo
se defende de uma realidade desagradável (desejo insatisfeito), reduzin- tendencioso e vivencial. A sexualidade é manipulada para obter prazer. O amor
torna-se idealismo romântico que se dirige a fantasmas irreais despojados de
do-a ao esquecimento; essa realidade, ao cair no inconsciente à força corporeidade.
dessa remoção, nem por isso deixa de existir; ela somente adota uma 5. Na compulsividade obsessiva dos "superpuros", que reforçam ao infinito
forma diferente de manifestação. No campo do sexual, a repressão indevida todas as repressões, escandalizam-se em seguida, condenam tudo etc., expri-
do impulso erótico dá origem a uma acumulação de energia psicossexual mindo mediante a negatividade seus desejos inconscientes perpetuamente insa-
não liberada de modo conveniente. É muito fácil que essa tensão seja tisfeitos e não-confessados.
descarregada canalizando-se para a agressividade, como forma tendencial Na direção da produção alienada, o refugio no trabalho sufocante ou no ativismo
contrária à do amor. Por exemplo, a dureza e tirania de certas pessoas incontinente, mistificação mais oculta e aparentemente mais eficaz da fuga de
pode ser, em muitos casos, mecanismo inconsciente de agressividade, que si mesmo e do encontro com o outro.
depende da evolução imperfeita de um impulso instintivo sexual. Por fim, a castidade repressiva acabará por desembocar também na direção do
protesto e da rebelião contra a "moral cultural" que procura perpetuar as contra-
dições da própria castidade castradora. Na "rebelião dos filhos" diante das
- Substituição e compensação imposições autoritárias da figura paterna25 •

---
Trata-se de um complexo mecanismo psíquico mediante o qual as
fantasmagorias de um mundo irreal e imaginário substituem a dinâmica
real do impulso sexual. Esse objeto substitutivo assume as funções de
compensação de tendências eróticas não satisfeitas no momento e nas
a[ h 25. E. FREIJO, "Realización humana y castidad'', em iQué aporta el cristianismo
condições apropriadas. 0
tnbre de hoy?, Bilbao, 1969, pp. 188-189.

66 67
A SEXUALIDADE
COMO ENCONTRO INTERPESSOAL
Antropoloqia e ética da sexualidade dialóqica

O homem é uma estrutura aberta. A existência humana se constitui


na relação interpessoal com o "outro". E isso acontece na dimen-
são mais fundamental do ser do homem.
A condição sexual do homem estabelece uma coloração especial ou
uma variação qualitativa em seu diálogo interpessoal. Toda relação com
o "outro" é uma relação matizada pelo tom do sexual. A sexualidade
humana - dada sua peculiaridade extensiva e "luxuosa" - colore todas
as relações interpessoais. A tese de Marcuse de uma sociedade "integral-
mente erótica", se entendida nessa perspectiva, é a expressão da realidade
que estamos apontando.
Mas não vamos deter-nos nessa forma de sexualidade difusa que
invade toda relação do "eu" com o "você". Interessa-nos unicamente a
relação especificamente sexual (não digamos nem entendamos "genital").
Para expor a exigência da sexualidade humana enquanto linguagem
de amor heterossexual, é necessário conhecer de antemão os pressupostos
antropológicos dessa relação. A abertura ao "você" enquanto ser "sexuado"
e~ •
exuante" é uma das grandes aventuras do ser humano. E uma de suas
~arefas fundamentais; só se consegue mediante muitos esforços, fazendo
0
fazer um compromisso. Não obstante, essa tarefa ou esse "dever ser"
se aPo1a
• · no "ser".

69
SEXUALIDADE A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

A atração dos sexos é algo que brota das camadas mais biológicas - A curiosidade polarizada na direção do sexo contrário distinta da
do ser humano. É um chamado surdo e cego que retumba nos recôndi- uriosidade do menino. A deste último é uma curiosidade não-compro-
tos mais íntimos da natureza humana. Mas esse chamado se torna "voz" ~etida. Em contrapartida, a curiosidade do adolescente é uma curiosida-
humana ao chegar às camadas superiores, por assim dizer, do homem. A de comprometida ou "ativa". A esse respeito, surgem no adolescente
atração biológica dos sexos transforma-se em "encontro" interpessoal. É sintomas de voyeurismo.
nesta última fase que nos dispomos a analisar as etapas psicoevolutivas do - A "timidez" ou "medo sexual" no comportamento com o sexo
encontro heterossexual. oposto. Esta faceta da sexualidade do adolescente se encontra muito
condicionada pela educação por ele recebida.
I. AS ETAPAS PSICOEVOLUTIVAS
DO ENCONTRO HETEROSSEXUAL 2. D ESCOBERTA DO "vocÊ" HETEROSSEXUAL: JUVENTUDE

O encontro heterossexual - tal como o fenômeno geral da sexua- Sem desejar precisar muito o tempo, durante a adolescência e a
lidade - não ocorre no homem de uma forma pontual. É uma realidade juventude o homem descobre o "você" heterossexual. À descoberta, um
submetida à dinâmica evolutiva da pessoa. Não se pode falar do encon- tanto amorfa e biológica, do "outro" sexo, acrescenta-se agora o encon-
tro heterossexual, mas das etapas ou formas diversas do encontro hete- tro com um "você" pessoal na linha da diferença sexual.
rossexual.
Essa descoberta do "você" heterossexual tem algo de maravilhosa
De uma maneira esquemática, recordamos as etapas psicossexuais aventura. Concretizando-a no jovem, chega o dia em que se realiza um
mais importantes na descoberta da relação heterossexual. encontro totalmente novo e vivido às vezes pelo menino com certo
medo, surpresa e como um mal-estar. Ele conhece uma menina que
1. DESCOBERTA DO "OUTRO" HETEROSSEXUAL! ADOLESCÊNCIA ocupa seu pensamento de modo preponderante. Mas o que o domina já
não é o erotismo ou a emoção mais ou menos nervosa; é um sentimento
Durante a fase escolar, a criança já se encontrou com outras crianças novo: a necessidade de conhecer, de descobrir o mistério da pessoa amada
do outro sexo. Mas esse encontro permaneceu na linha do mais ou e de dar-lhe o que ela espera.
menos "teórico". É durante a adolescência que pela primeira vez o ho- O processo ou as etapas que sucedem ao encontro com o "você"
mem se "encontra" de verdade com o sexo oposto. heterossexual, concretizando-as no jovem, são as seguintes:
Na adolescência, a descoberta do outro sexo se realiza antes no - atração, intensa e obscura, pela mulher em geral;
plano vivencial ou emocional. A partir da transformação biológica, pro- - atração por uma mulher de características mais ou menos ideais;
duzida pelos hormônios sexuais, o adolescente vê o sexo contrário como - atração por uma mulher concreta, com ênfase especial, mas de
revestido de uma carga afetiva e com uma significação distinta da que até caráter passageiro;
então possuía para ele. - atração por essa mulher, vivida numa relação interpessoal.
É interessante observar os diferentes sintomas e facetas que apresen-
ta a avaliação que o adolescente faz do outro sexo. Eis alguns deles: 3 · pAIXÃO E NOIVADO
- A "malícia" nascida de um conceito falso da formação e da
informação sexual no adolescente. Assim, por exemplo, se sorri e se pisca . Na descoberta do "você" heterossexual, acontece um fenômeno de
aos companheiros quando aparece uma alusão direta ou indireta ao ero- •mponância decisiva para a vida presente e futura do jovem: a "paixão".
tismo ou aos traços anatômicos do sexo oposto. Costuma começar com ela a etapa do noivado.

70 71
SEXUALIDADE

É conveniente deter-nos um pouco na psicologia da paixão, dada a ci~mes da m~e, pode. pensar num homem mais velho, que será para ela (um
importância que tem para a vida de integração sexual. Fundando-se na pai), que queira contmuar tratando-a como a uma menina1 .
resolução ou na não-resolução do complexo de Édipo, podemos distin-
guir três formas de a paixão realizar-se: - Solução normal

- Solução «hiperedípica )) Esta form.a de paixão ~e prod~z pela atração - na terminologia de


Jung - do animus pela anima, e VIce-versa. Nestes casos, 0 vínculo com
Trata-se de um adolescente que ainda permanece excessivamente o pai ou com a mãe não prejulga o processo psicológico da paixão· em
vinculado com a mãe ou o pai; mas essa atração não pode realizar-se alguns cas?~, esse vínculo está na base para denotar os caracteres g~rais
devido à força do superego, que impede uma união de tipo incestuoso. da masculimdade ou da feminidade.
É normal que o adolescente se sinta um pouco perturbado diante do A paixão se prolonga durante o noivado, e este, por sua vez culmi-
progenitor do sexo oposto. Para solucionar esse estado, ele busca "ima- na no casamento. Nesta última etapa, dá-se a fase definitiva do ~rocesso
gens substitutivas". Uma paixão em condições desse tipo conduz a uma do encontro com o ":ocê" heterossexual; é então que a relação heteros-
consideração do "outro" não como namorado, mas como imagem subs- sexu~ assur:ie as ~ualidades mais pletóricas, a profundidade mais íntima
titutiva do "pai" ou da "mãe". Esta é a solução hiperedípica extrema; e a dimensao mais abrangente.
contudo, a imagem do pai e da mãe pode desempenhar um papel impor- . . Esse encontro definitivo - ou de "estado" - pode também ser
tante na solução normal. Assim, a jovem que conheceu a segurança e vlVldo em forma de Vi1lJindade consagrada ou de celibato integrado. São
uma vida feliz no lar e amou o pai tenderá a repetir o exemplo de seus outras tantas formas de realizar-se como pessoa numa relação heterossexual.
pais e a buscar alguém que se pareça com o pai. O jovem cujas relações
com os pais foram íntimas e afetuosas inconscientemente buscará alguém II. A DESCOBERTA DO "VOCÊ" COMO INTERLOCUTOR
que se assemelhe à sua mãe. Suas idéias da função que cada um deve
desempenhar na vida conjugal estarão, em geral, de acordo com as que P~de-se dizer que a descoberta do "você" heterossexual comporta
cada um conheceu e nas quais se educou. os segumtes aspectos: ·

- Solução antiedípica 1. ABERTURA DE CONHECIMENTO

Esta solução ocorre em jovens que sofreram a influência de pais Para descobrir o outro sexo, é necessário em primeiro lugar abrir-
se a se h' '
tirânicos e cruéis para com os filhos . Essa frustração leva o jovem a uma . u con ec1mento. E um dever ético para o adolescente e para 0
Jovem cons · h ·
visão distorcida do sexo oposto, que é causa de futuros conflitos conju- t b, egwr um con eCimento adequado do sexo contrário como
gais. O jovem que em seu lar conheceu a infelicidade, a repulsa e a
am em de seu próprio sexo. '
desilusão terá sérios conflitos no momento de fazer a escolha heterosse- Esse conhecimento está submetido ao risco de muitas falhas:
xual. O caso extremo seria o que Freud denomina "complexo de corte-
sã". Sem chegar a isso,
o jovem deixa a casa num estado de rebeldia e se sente depois atraído por
alguém diferente dos pais. A jovem que não chegou à maturidade e não deseJª
desenvolver-se e aceitar suas responsabilidades, e que não dá um basta aos
----
Pp.
A pornografia, mais ou menos escandalosa, costuma ser um meio
que 0- adoles
cente u tili' za para ad qwnr
· · o conhecimento do outro sexo·

'
7 1 ~7{exo Y moralidad. Informe para e! Consejo Británico de las Iglesias, Madri, 1968,

72
73
SEXUALIDADE
A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

nessa inautêntica, embora "ilustrada" e "naturalista", informação de re- deve possuir certas regras determinadas para servir a uma integração
vistas filmes televisão e outros meios de comunicação social, o adoles- heterossexual autêntica.
cente' deforma ' o conhecimento do sexo contrário; põe uma das causas de Duas orientações fundamentais devem ser levadas em conta nessa
muitas falhas em seu comportamento heterossexual e frustra sua integração abertura de intercomunicação interpessoal: o caráter progressivo e a eli-
com o outro sexo. minação do egoísmo.
- A malícia em palavras, gestos e olhares é outro sistema que os
a) O caráter progressivo da intercomunicação heterossexual é uma
adolescentes empregam para abrir-se ao conhecimento do sexo contrário;
condição indispensável à integração e maturidade sexual.
nesses casos, costuma existir uma intercomunicação de "segredos" entre
os adolescentes, num mundo fechado em si mesmo e oposto ao das Ele deve ser entendido tanto na forma de realização dos encontros
pessoas mais velhas. (a pedagogia sexual assinala diversas etapas: primeiro, em grupo; mais
- A imaginação individual (os "maus pensamentos", como dizem tarde, em casais no interior do grupo; e, por fim, o casal sozinho no
eles) é outro caminho de acesso ao conhecimento do sexo oposto; essas âmbito de um quadro social) como na doação progressiva dos estratos
fantasias "criam" a realidade deformando-a num âmbito de devaneio e de sexuais (amor romântico, amor espiritual, doação fisica).
ilusão, o que pode constituir um grave empecilho ao encontro da reali- Com referência a este último aspecto, deve-se levar em consideração
dade do sexo contrário. a assincronia dos fatores que intervêm na sexualidade: assincronia entre
Essas três espécies de falhas no conhecimento heterossexual (por- maturidade genital, maturidade psicossexual e maturidade afetiva. Os
nografia, malícia ou imaginação) adquirem matizes diferentes em cada adolescentes estão aptos para engendrar antes de estar aptos para amar.
caso concreto . É necessário atentar para a dificuldade e o perigo susci- A maturidade afetiva completa vem depois da maturidade genital e da
tados pelo fazer uma catalogação ou casuística nesse terreno. A avaliação maturidade psicossexual. O jovem se deixa enganar muitas vezes por essa
ética nesse campo não deve levar em conta os detalhes e as manifesta- precocidade genital e cai nas redes do egoísmo. Como dia J. Brun:
ções concretas, mas o núcleo pessoal do qual brotam: a falta de perspec- Em termos sexuais, o adolescente está maduro antes de poder, socialmente,
tiva adequada para abrir-se ao conhecimento do outro sexo. Essa pers- fundar uma família. Confesso não possuir a "chave" da dificuldade, mas o
pectiva ou orientação básica deverá ser dada ao adolescente no quadro melhor é conseguir que os interessados tomem consciência disso insistindo na
de uma educação conveniente. idéia de que, se existe um amor sem sexualidade, não pode haver sexualidade
sem amor, e que, como diz santo Agostinho, o amor é espiritual até na carne
A maior responsabilidade por essas falhas recai sobre as pessoas mais
e carnal até no espírito 2 •
velhas e, em geral, sobre a sociedade. A estrutura educativa que possuí-
mos nesse terreno é frágil e até falseada. Também não faltam os que se b) A segunda condição moral na abertura de intercomunicação
aproveitam da curiosidade dos adolescentes para obter lucros econômi- pessoal é a eliminação do egoísmo.
cos, fazendo "comércio" de uma pseudo-informação sexual de caracterís- Para que exista um encontro pessoal, são necessárias tanto a doação
ticas mais ou menos pornográficas. como a aceitação. Fica excluído todo egoísmo. Este nasce e é fomentado
A ética deveria levar em conta antes esses aspectos sociais da infor- Pelo desejo de um prazer descontrolado, que está na base de quase todas
mação sexual do que a repercussão sofrida nos adolescentes. as relações heterossexuais inautênticas. A falta de controle, o desejo de
prazer e o egoísmo costumam ser os três pilares sobre os quais repousam
2. ABERTURA DE INTERCOMUNICAÇÃO PESSOAL

Além da abertura ao conhecimento do outro sexo, o adolescente e


o jovem se abrem a ele mediante uma intercomunicação pessoal. Esta
--
as relações heterossexuais fracassadas.

2. J. BRUN, En donde hablan los jóvenes: La sexualidad, 3ª ed., Barcelona, 1967,


p. 360.

74 75
SEXUALIDADE
A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

As falhas que comprometem a abertura de intercomunicação pes- . dade para a mulher antes do casamento; 3) não obstante, permite que
soal são muito variadas: gin adolescentes de ambos os sexos fiquem continuamente juntos sem
05
- O recurso à prostituição é com freqüência o meio de entrar ern . gilância alguma. A prática da bolinação, além de degradar a sexualidade,
contato com o sexo oposto; essa relação está muito longe de ser relação Vl essupõe grandes inconvenientes: uma porcentagem excessivamente ele-
heterossexual no pleno sentido humano. ~:da de frigidez feminina, de impotência masculina e de frustração sexual
- Outro perigo em que costuma cair a relação dos sexos é a âmbito do casamento.
00
irresponsabilidade, bem como a frivolidade; este fenômeno complexo
recebe o nome de flerte. Hesnard indica como paradigma de flerte
UI. EXIGÊNCIAS ÉTICAS DO DIÁLOGO HETEROSSEXUAL
esses abraços e carícias hipócritas dos bailes modernos, nos quais tudo se su-
bordina ao erótico, constituindo uma manifestação sexual mais perversa e ex-
citante do que a entrega sexual no amor livre 3 . 1. LINGUAGEM DE AMOR

O flertar supõe não levar a sério o amor e a sexualidade; é uma falta A relação heterossexual deve ser uma linguagem de amor. Ela não
de compromisso e uma recusa de qualquer vínculo firme ou permanente. deve guiar-se unicamente pela força do impulso biológico, mas deve ser
É fazer da sexualidade um "jogo" ou passatempo, e um "instrumento" assumida pelas camadas superiores da pessoa. Deve ser uma relação "per-
de prazer egoísta. O flerte é um comportamento sexual inautêntico com sonalizada" e "personalizante".
relação à autêntica noção de sexualidade humana. Para isso, precisa acomodar-se às estruturas relacionais da pessoa
- Outra das formas frustradas de relação heterossexual, muito humana: deve ser linguagem humana e linguagem humana de amor. E
característica de nossa época, é a bolinação. isso no duplo sentido da linguagem e do sinal: expressão e, ao mesmo
Esse hábito consiste em trocar estímulos sexuais fisicos até alcançar o orgasmo, tempo, realização do amor humano.
mas evitando o coito verdadeiro; essa prática se acha muito difundida nos Toda relação heterossexual que não se coloque nessa linha se acha
Estados Unidos como comportamento pré-matrimonial, e a juventude norte-
americana considera-a normal. Kinsey inclui a bolinação entre as manifestações
distorcida e, portanto, é descartável do ponto de vista ético.
"naturais" da sexualidade.4
Essa prática é um comportamento erótico-sexual típico de nosso 2. LINGUAGEM DE AMOR OBLATIVO
tempo; depende da concepção que se tem da sexualidade: fonte "natural"
de prazer a que todos têm direito sempre que levem em conta os pre- A relação heterossexual deve ser uma linguagem de amor oblativo.
conceitos sociais; sexualidade como "consumo"; caráter de brevidade no Trata-se de uma matização do amor. Com efeito, o amor pode apresen-
prazer sexual, eliminando dele as relações propriamente pessoais; sexua- tar-se em formas pseudo-pessoais. Podemos distinguir três tipos de amor:
lidade como entretenimento ou jogo; exigência de desfrutar o sexual sem o amor de gozo, o amor possessivo e o amor oblativo.
nenhum tipo de riscos. Aplicando-os à sexualidade:
A bolinação baseia-se, além disso, em alguns pressupostos sociais: a) O amor de gozo expressa-se mediante uma sexualidade de gozo.
1) a sociedade situa a idade matrimonial numa idade posterior a seu Bá em vários idiomas uma frase brutal que responde a ela: "comer uma
ingresso na maturidade sexual; 2) a sociedade impõe a exigência da vir- mulher". Pode-se viver sem dúvida a sexualidade como uma simples
experiência pessoal agradável, na qual a outra parte não é levada em
3. Citado por P. LE MOAL, Una auténtica educación sexual, 3il ed., Alcoy, 1966, conta como pessoa, mas tão-somente como fonte de prazer, ao qual
p. 118. contribui com seus diversos atrativos. Esta sexualidade não cria nenhum
4. M. SCHELSKY, Sociología de la sexualidad, Buenos Aires, ~962 , p. 155 .
Vínculo entre os participantes; uma vez esgotada a novidade do gozo,
76
SEXUALIDADE A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

busca-se em outra pessoa um estímulo inédito. É uma sexualidade "ima- as mais representativas: o olhar e a carícia (incluindo nesta última o beijo,
tura, adolescente". 0
abraço e a dança).
b) O amor possessivo conduz a uma sexualidade possessiva, tal
como transmitida em outra expressão não menos dura: "possuir uma 1. A,NTROPOLOGIA E ÉTICA DO OLHAR5
mulher". É uma sexualidade em que afloram diversas falhas psíquicas de
agressividade para com os outros (tendências sádicas) e de auto-agres- _ Antropologia do olhar
sividade (tendências masoquistas); trata-se de uma sexualidade mais ou
menos neurótica. O olhar é uma forma de encontro entre duas pessoas. Costuma
e) Somente o amor oblativo dá sentido à sexualidade humana, que apresentar-se unida a todo um conjunto ou espectro de formas no qual
é busca de união íntima, de comunhão recíproca vivida no intercâmbio se realiza o encontro interpessoal. Nesse caso, o olhar é um dos postu-
pessoal de doação e aceitação. lados fundamentais, tal como o soube exprimir maravilhosamente, e ao
divino, são João da Cruz:
Mira que la dolencia
3. A PARTIR DA E PARA A DIFERENÇA SEXUAL
de amor, no se cura
sino con la presencia y la figura.
A relação heterossexual deve estabelecer-se na diferença sexual. Pode
existir amor, e amor oblativo, em outras diferentes formas de amor Às vezes, o olhar é o único modo - então parcial e precário - de
interpessoal. Para que seja uma relação heterossexual, a oblatividade desse diálogo com o outro. O pior desses casos é o olhar do surdo, que Laín
amor deve ser vivida a partir da, na e em busca da diferença sexual. Entralgo 6 analisou de modo tão profundo.
São assim assumidas e personalizadas as estruturas naturais da sexua- Que significado tem o olhar enquanto linguagem de amor inter-
lidade: nelas deve encarnar-se o amor. Toda "perversão" ou "desvio" da pessoal?
estrutura sexual destrói a sexualidade como linguagem de amor oblativo. Conhece-se a resposta de Sartre em suas perspicazes análises sobre
o "olhar" e o "ser olhado".
4. DIVERSIDADE DE FORMAS Em todo olhar há o aparecimento de um outro-objeto como presença concreta
e provável em meu campo perceptivo e, por ocasião de certas atitudes desse
A relação heterossexual deve adquirir uma forma diferente de acor- outro, eu me determino a apreender pela vergonha, pela angústia etc. o meu
do com a evolução dinâmica da pessoa ·e levando em conta os diferentes ser-olhado. Esse ser-olhado apresenta-se (a mim) como a pura probabilidade de
que eu sou presentemente um este concreto, probabilidade que só pode assumir
estratos pessoais que nela ficam comprometidos. seu sentido e sua natureza prováveis a partir de uma certeza fundamental de
Referimo-nos à gradação que é preciso manter na comunicação que outro me é sempre presente enquanto eu sou sempre para outro. A prova
entre os sexos em virtude das diferentes etapas da evolução psicossexual de minha condição de homem, objeto para todos os homens vivos, lançado na
no homem. A cada uma delas corresponde uma forma diversa de relação arena sob milhões de olhares e escapando a mim mesmo milhões de vezes, eu

---
heterossexual. a realizo concretamente mediante o surgimento de um objeto em meu univer-
so, caso esse objeto me indique que sou provavelmente objeto em presença,

IV. AS EXPRESSÕES DO AMOR HETEROSSEXUAL 5. J. ORTEGA Y GASSET, "Sobre la expresión, fenómeno cósmico", em Obras
~mpfetas, II, 3ª ed., Madri, 1954, pp. 577-594; P. LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad
Não exporemos todas as formas do diálogo heterossexual. Fixar- e! otro, II, Madri, 1961, pp. 150-160.
nos-emos apenas, e à guisa de exemplo, em duas delas, que consideramos 6. LAÍN ENTRALGO, op. cit., II, pp. 150-160.

78 79
S EXUALIDADE A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

como um este diferenciado por uma consciência. Tal é o conjunto de fenôme- autodoador olhará a profundidade da alma, o núcleo pessoal do qual
nos que denominamos olhar. ~~oram o amor e a sexualidade.
Não é plenamente convincente a interpretação, falseada por ser par- • O olhar com linguagem autêntica de amor heterossexual não olha
cial, que Sartre faz do olhar. Há muitos modos de olhar. Os olhares sexualidade como uma "coisa", mas como uma dimensão do mistério
diferem pela intenção daquele que olha e por sua profundidade. :oral da pessoa. Se se olha a sexualidade como "coisa", recai-se em todas
Laín Entralgo8 elaborou uma classificação dos olhares segundo a as falhas do olhar inautêntico: a) o olhar inquisitivo do sexual, de carac-
dupla divisão em função da intenção e da profundidade. terísticas adolescentes, reflexo de uma sexualidade imatura; b) o olhar
De acordo com sua intenção, o olhar pode assumir cinco formas superficial e irreflexivo, que denota uma vivência do amor em dimensão
diferentes: 1) o olhar inquisitivo: nele, o percebido não satisfaz, e o olho de superficialidade e de falta de seriedade; e) o olhar malicioso e zom-
que olha busca e busca algo do que no rosto e nos olhos do outro lhe beteiro, que introduz no objeto contemplado a maldade interior de sua
é co-presente; 2) o olhar objetivizante em sentido estrito: nele, o percipiente própria pessoa; d) o olhar provocativo, que busca a sedução e produz o
fica provisoriamente satisfeito com o percebido; 3) o olhar aberto e recep- escândalo.
tivo: a intenção no olhar não é possessiva, mas acolhedora; 4) o olhar É preferível recorrer à intenção pessoal dos olhares e sua distinta
instante ou petitivo: o percebido é centro básico que comigo pode ser ou profundidade, e não à diversidade dos objetos (ou partes do corpo hu-
não ser generoso de si mesmo; 5) o olhar autodoador ou efusivo: olhamos mano) contemplados, para julgar sua maior ou menor autenticidade.
o outro para entregar-nos pessoalmente a ele. Dessa maneira, o olhar é avaliado pela razão fundamental de seu ser e
Segundo a profundidade, os olhares podem ser distinguidos da sentido: o de ser linguagem de diálogo interpessoal.
seguinte maneira: 1) o olhar nos olhos: a meta de quem olha assim não é
transpor a pupila do outro, a superficie de seu corpo, sua pele; 2) o olhar 2. .ANTROPOWGIA E ÉTICA DA CARÍCIA (BEIJO, ABRAÇO, DANÇA ... )
na alma: este olhar procura penetrar no interior do outro, mas não para
alcançar o fundo de sua alma, e sim para contemplar o que nela há; 3) O encontro tátil também pode tornar-se forma do encontro humano.
o olhar no fundo da alma: a meta deste olhar é agora o centro pessoal do A função do tato é uma forma rudimentar de encontro interpessoal, quan-
outro. Os olhares que denominamos anteriormente instante ou petitivo do esse encontro fica reduzido ao plano das meras sensações táteis. Mas
e autodoador e efusivo nascem desse secreto manancial arúmico. o tato confere uma profunda e eficaz vivência de companhia quando a realidade
física e pessoal do outro já foi posta em.evidência por outros sentidos. Há dois
modos principais de acariciar o outro: a carícia hedonista e a carícia benéfica.
- Forma de diálogo heterossexual Com aquela, quem a executa persegue a conquista de um prazer próprio [ .. .].
Com a carícia benéfica, em contrapartida, procura-se proporcionar alívio ou
O olhar pode tornar-se forma de diálogo heterossexual. Assume prazer à pessoa acariciada, a qual, como no caso anterior, deve conhecer pre-
então algumas características singulares. Essas características se transfor- viamente a condição humana daquele que acaricia9 .
mam em condições éticas. Ei-las: J. Rof Carballo estudou em profundidade o papel que desempenha
• O olhar como linguagem autêntica de diálogo heterossexual não ~a .vida da criança a carícia benéfica 10 . Esta última faz parte da sexualidade
pode ser objetivizante, mas um olhar autodoador ou efusivo. Se for um bdiatrófica", por oposição à sexualidade propriamente genital. Para Car-

----
olhar objetivizante, permanecerá nos aspectos meramente superficiais, allo, a carícia e o beijo são os dois instrumentos da ternura. No âmbito
estéticos ou coisificantes da sexualidade; em contrapartida, o olhar efusivo das interpretações que se deram a essas duas formas de comportamento

7. Citado em LAÍN ENTRALGO, op. cit., II, p. 151. 9. Id., ibid., p. 161 , nota 55 .
8. Id., ibid., pp. 154-155 . 10. J. ROF CARBALLO, Violencia y ternura, Madri, 1967, pp . 219-230.

80 81
SEXUALIDADE A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL

humano, é bastante adequado entendê-las como dois aspectos da sexua- corte vertical que nos permitirá analisar a densidade significativa que essa
lidade diatrófica, como dois meios para realizar a urdidura constitutiva do realidade pessoal supõe.
filho com a mãe. O encontro heterossexual é classificado entre as formas especiais de
O beijo e a carícia da mãe são tão-só a expressão mais manifesta de uma encontro com o "outro". E, por certo,
linguagem muda, de um conjunto de influências mútuas, transacionais, que nenhuma destas é mais prestigiosa e intensa do que o encontro amoroso entre o
não se sabe onde começam e onde terminam e que constituem entre ambos, homem e a mulher ou - no sentido forte da expressão - encontro heterossexual1 3 •
mãe e filho, uma estrita e rigorosa unidade, uma simbiose no sentido biológico,
um universo transcendente no sentido filosófico, no qual se efetua algo de Para descrever esse encontro, convém deslindar e correlacionar quatro
grande importância, como um verdadeiro ato de criação. Gravemos bem isto conceitos e realidades que às vezes se confundem numa mescla inautêntica:
em nosso espírito: beijo e carícia são a expressão visível de um conjunto de "amor", conceito universal e genérico (atividade e vínculo da comunhão
relações interpessoais que têm caráter de amor criador. Se podemos - e não do homem com qualquer realidade: Deus, ele mesmo outros homens a
I • ' )
há inconveniente nisso - denominar isso erotismo, dar-lhe-íamos o nome de arte, a patria etc.); "amor heterossexual", uma espécie de amor (amor
erotismo criador. Algo permanece criado por ele no indivíduo que será depois entre homem e mulher enquanto diferenciados sexualmente); "paixão",
decisivo para toda a sua vida, que presidirá ao seu destino, suas possibilidades
forma ou momento especial do amor heterossexual (no começo da rela-
de amadurecimento, os limites ou "teto" que nele pode alcançar e, em última
análise, suas capacidades de amar o próximo, e também de ter fé e esperança .
11 ção amorosa); "amor à primeira vista", forma súbita de paixão. Estas duas
últimas realidades são as formas mediante as quais se opera a vinculação
Além da carícia hedonista e da carícia benéfica, existe a carícia propria- afetiva do encontro heterossexual.
mente erótica. É a forma de encontro amoroso. Nesse caso, a carícia adota
Os traços característicos que definem o encontro heterossexual e lhe
muitas modalidades: o beijo e o abraço são os dois modos privilegiados
dão sua singularidade específica são os seguintes:
desse encontro por meio da carícia erótica. A dança é uma forma complexa
de encontro em que são acolhidas as formas de encontro tátil restantes.
A autenticidade da carícia (e de suas formas derivadas: beijo, abraço, 1. A ATENÇÃO

dança .. .) deve ser avaliada de acordo com os princípios do encontro


No âmbito do que Ortega y Gasset denomina "psicologia do arre-
interpessoal de amor. Devem-se levar em conta os critérios do pudor sexual;
batamento erótico" 14, a atenção é o primeiro fator. Foi o próprio Ortega
além disso, é preciso que se apliquem os princípios de toda forma de encon- Y Gasset que enfatizou de modo singular esse traço do encontro heteros-
tro heterossexual como autêntica linguagem de amor, segundo vimos antes. sexual15 • Entre os objetos que compõem o mundo de cada pessoa há
como u_ma especie ' · d e 1uta para conqmstar
· '
sua atenção: "propriamente
? ss~ VIda de alma e de espírito é só a que se verifica nessa zona de
0
V. O ENCONTRO HETEROSSEXUAL:
iluminaça? ' · " . A atenção desloca-se de um objeto a outro, deten-
- maxima
ANÁLISE ANTROPOLÓGICA' 2
do-se mais ou menos neles segundo sua importância vital. O encontro
Depois de ter indicado as fases e as formas que o encontro heteros- sexual aparece como um fenômeno de atenção atenção detida absorven-
te e pre flerenc1·aimente numa pessoa que desaloja
' '
os outros objetos.
sexual atravessa, vamos abordar agora - de um modo não evolutivo, mas
estático - a descrição do encontro do "você" heterossexual. Será um Par~ o apaixonado, a amada possui uma presença ubíqua e constante. O mundo

---
m~e1ro está como embebido nela. A rigor, o que acontece é que o mundo não
existe para o amante. A amada o desalojou e substituiu.
11. J. ROF CARBALLO, En torno al erotismo: ~Quê aporta el cristianismo ao
hombre de hoy?, Bilbao, 1965, pp. 157-158.
12. Seguimos de perto J. ORTEGA Y GASSET, "Estudios sobre el amor", ern i3. P. LAÍN ENTRALGO, op. cit., p. 177.
Obras completas, V, 3ª ed., Madri, 1955, pp. 549-626; P. LAÍN ENTRALGO, Teoría Y 4. J. ORTEGA Y GASSET, "Estudios sobre el amor", p. 577.
realidad dei otro, II, Madri, 1961, pp. 177-184. l5. ld., ibid., pp. 577-584.

83
82
A SEXUALIDADE COMO ENCONTRO INTERPESSOAL
S EXUALIDADE

2. A NECESSIDADE DE COMUNHÃO
. JpEAf;IZAÇÃO DA PESSOA AMADA
4
Se a atenção cerca o ser amado, é natural que a pessoa amante tenda o apaixonado retira da pessoa amada todos os defeitos e lhe atribui
mais egrégias qualidades. Esse mecanismo foi descrito por Stendhal
com toda urgência a essa direção única. Santo Agostinho viu sagazmente 5
~orno urn processo de "cristalização" .
esse ponderar espontâneo na direção de um objeto característico do amor:
É conhecida a metáfora que proporciona a Stendhal o vocábulo cristalização
ccamor meus, pondus meum: illo fero, quocumque feror" (meu amor é meu
para denominar sua teoria do amor. Se nas minas de Salzburgo se joga um
peso; por ele vou a qualquer lugar). Esse valor "ponderativo" do amor ramo de arbusto e ele é recolhido no dia seguinte, aparece transfigurado. A
também foi visto e expresso de um modo maravilhoso por são João da humilde forma botânica cobriu-se de irisados cristais que ornamentam prodi-
Cruz na Llama de amor viva, ao comentar o verso "de minha alma no giosamente seu aspecto. Segundo Stendhal, na alma capaz de amor acontece
mais profundo centro" da primeira estrofe: um processo semelhante. A imagem real de uma mulher cai na alma masculina
e pouco a pouco vai adornando-se de sobreposições imaginárias que acumulam
Oh llama de amor viva,
sobre a muda imagem toda possível perfeição 17 •
que tiernamente hieres
de mi alma en el más profundo centro! De acordo com Stendhal, a idealização da pessoa amada se realiza
Pues ya no eres esquiva, mediante um ato de ilusionismo. Mas nem todos admitem essa interpre-
acaba ya si quieres, tação. Para Ortega y Gasset, que critica duramente a teoria stendhaliana
rompe la tela de este <luice encuentro. o amor tem algo de criação. '
Para são João da Cruz, Amar uma coisa é estar empenhado em que exista; não admitir, no que depen-
o amor é a inclinação da alma e a força e virtude que possui para ir a Deus, de da pessoa, a possibilidade de um universo onde aquele objeto esteja ausente.
porque, mediante o amor, se une a alma a Deus; e assim, quanto mais graus ~ ... ] Amar é vivificação perene, criação e conservação intencional do amado [ .. .].

de amor tiver, tanto mais profundamente entrará em Deus e se concentrará E um ato centrífugo da alma que caminha rumo ao objeto num fluxo constante
e o envolve em cálida corroboração, unindo-se a ele e afirmando executivamen-
com ele.
te seu ser 18 .
O apaixonado sente na alma uma veemente necessidade de comu-
.. Mas essa criatividade não é ilusionismo, e sim descoberta e poten-
nhão fisica e espiritual com a pessoa amada. Nasce daí o desejo de presen-
c~alizaçãode valores antes ocultos e quase imperceptíveis. A paixão ori-
ça mútua, tão forte entre os apaixonados.
~na uma nova sensibilidade que descobre valores que passam desperce-
bidos para a visão normal da vida cotidiana.
3. A EXALTAÇÃO VITAL

A vida do apaixonado experimenta uma considerável exaltação vital. VI. CONCLUSÃO: SIGNIFICADO DA DIMENSÃO
Ortega y Gasset compara-a com a exaltação do êxtase. Guitton descreve DIALÓGICA PARA A COMPREENSÃO GLOBAL
DA SEXUALIDADE HUMANA
essa qualidade da seguinte maneira:
Percebe-se no apaixonado como uma fosforescência nova no exercício de rodo . Da perspectiva da dimensão dialógica, o fenômeno total da sexua-
o seu co rpo, de todo o seu pensamento. Cada um dos sentidos restantes - a lidade adqwre
· al gumas s1gm - peculiares. lndi camos em segwda
· 'ficaçoes · as

---
visão , o ouvir, a percepção súbita das formas e dos volumes - tudo está
duas mais importantes.
excitado [ .. . ]. É uma espécie de magia natural 16 .

17. J. ORTEGA Y GASSET, op. cit., p. 570 .


16. P. GUITION, L'amour humain, 2ª ed., Paris, 1955, p. 174; citado por P.
18 Id., ibid., p. 559.
LAÍN ENTRALGO, op. cit., p. 178.

85
84
S EXUALIDADE

- Em primeiro lugar, a sexualidade humana só consegue sua dife-


renciação específica ao abrir-se ao outro. Quando é vivido em nível não-
objetal, o impulso sexual se fecha sobre si mesmo num círculo auto-
erótico e autopossessivo. Freud observou muito bem o caráter anárquico,
bestial e assocializado do prazer sexual quando vivido sem alteridade .
A abertura ao outro é o que faz da sexualidade humana um com-
portamento diferenciado e humano.
A libido precisa de uma determinação, uma especificação, uma diferenciação,
o que será tão-somente obra da interpelação do outro, como medida e contras-
DIMENSÃO SOCIOCULTURAL
te, como realidade, como proibição e promessa, como censura e ideal. Será isso
o que romperá a circularidade fechada e abrirá a brecha da alteridade, da
transcendência 19 .
DA SEXUALIDADE HUMANA
A sexualidade humana sem alteridade fecha-se em si mesma narcisis- Socioloqia e ética em diáloqo
ticamente; padece uma solidão radical; permanece fixada numa etapa
arcaica. Isso explica que
toda inversão sexual, da observação clínica individual às constatações da antro-
pologia, da etnologia e da fenomenologia das relações humanas, pode ser
reduzida a essa perturbação da relação eu-você, que é a base da relação dialogal 20 . co.mp?r:ament~ ~e~ual humano, ~ém das vertentes biológicas,
- Como segundo elemento oferecido pela instância dialógica ao
fenômeno global da sexualidade humana, temos de afirmar que o com-
O psicolog1cas e dialog1cas, tem uma dimensão sociocultural. A sexua-
lidade é um fenômeno sociológico e, por conseguinte, cultural.
portamento sexual é comportamento humano ao ser um comportamento Vamos deter-nos, em primeiro lugar, na dimensão sociocultural que
dialogal. Em outras palavras, a chave para interpretar o comportamento o comportamento sexual em geral envolve. Depois, atentaremos para a
sexual humano é sua significação dialógica. situação sociocultural de nosso momento atual; e concluiremos com al-
gumas orientações éticas de caráter geral.

I. A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE

A presença da superestrutura sociocultural no comportamento se-


xual provém da peculiaridade de toda pulsão humana, bem como de um
modo concreto da pulsão sexual. Temos de voltar a repetir que. existe
uma grande diferença entre o comportamento sexual dos anímais e o do
homem. Nessa diferença apóia-se precisamente a necessidade da superes-
trutura social na vida sexual humana.
h Três aspectos diferenciais e peculiares do comportamento sexual
umano estão na base do aspecto sociocultural da sexualidade. O primei-
19. E. AMEZUA, R eligiosidad y sexualidad, Madri, 1974, p. 40. ro deles é a "formação de um excedente impulsivo sexual" . O homem,
20. Id., ibid., p. 49. contrariamente ao que acontece no animal, não tem sua sexualidade

86 87
DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE H UMANA
S EXUALIDADE

restrita aos limites de uma periodicidade estabelecida. Existe no homern arnbém orientar-se para uma "fixação" no próprio nível do prazer. O
uma presença ininterrupta do impulso sexual. Isso origina um excedente ~pulso sexual origina sensualismo ou sensualidade. Além disso, é preciso
de força sexual. Que fazer com ele? Pode orientar-se a um pansexualism 0 levar em conta que o prazer, ao libertar-se da finalidade biológica, pode
humano, introduzindo a sexualidade direta em todos os aspectos da vida estender as zonas produtoras de prazer sexual. Enquanto o instinto se-
humana. Ou pode receber uma orientação perfeita mediante a superes- x:ual, fechado em sua própria finalidade, se concentra nas zonas sexuais,
trutura social. Esta se torna necessária para orientar o excedente de impulso 0
prazer sexual li_berto pode produzir-se em todas as zonas e formas da
sexual para fins não diretamente sexuais. As estruturas sociais se originarn percepção sensorial humana.
pelas forças excedentes dos instintos, entre os quais se encontra o impul- É essa a razão da existência do erotismo. Existe uma possibilidade
so sexual. Há, pois, uma sexualização normal nas instituições sociais. A de carregar de prazer sexual quase todas as estruturas e formas do com-
sexualidade, além de biologia e psicologia, é nesse sentido sociologia. portamento social. Mas as formas de prazer sexual liberto de sua exclu-
Outro aspecto peculiar do comportamento sexual humano é a con- sividade finalística devem passar pela moldeabilidade cultural. O impulso
siderável redução que nele sofreu o instinto. Há uma redução do contro- sex:ual se torna fenômeno sociocultural e adquire algumas modalidades
le instintivo-biológico (neuro-hormonal) no que tange à sexualidade correspondentes a essa nova forma.
humana. O instinto sexual animal age com esquemas rígidos e inatos; A maneira peculiar de ser do impulso sexual humano é a origem e
tem uma grande segurança com relação ao fim que persegue, não ocor- causa do nível sociocultural que tem a sexualidade humana. Mas qual o
rem a falha nem a dubitação. Em contrapartida, no homem pode dar- se papel que desempenha esse nível sociocultural no âmbito da antropologia
o "imprevisível". O instinto sexual humano tem uma grande plasticidade, integral da sexualidade?
proveniente da redução do controle automático inferior e da presença de Em primeiro lugar, a superestrutura social tem a função de assegu-
um controle superior e mais perfeito (zonas superiores do cérebro) . Essa
rar a finalidade do impulso sexual. A sexualidade enquanto instinto bio-
peculiaridade humana faz que a vida sexual no homem possa orientar-se
lógico se acha pouco determinada; a superestrutura social tende a garan-
por trilhas de "perversão". tir sua finalidade mediante uma estabilização e normalização social. Em
Por isso, torna-se necessária a presença da superestrutura social, na segundo lugar, a superestrutura social procura canalizar de uma maneira
medida em que o homem tem de organizar seus impulsos em atos cons- autêntica o excedente impulsivo da sexualidade humana. Por exemplo, as
cientes. A regulação social da sexualidade ajuda a buscar sua finalidade regulações sociais sobre a promiscuidade sexual obedecem a essa finali-
não por meios automáticos instintivos, mas por meios superiores de ca- dade. Em terceiro lugar, a superestrutura social oferece quadros sociais
nalização social. pertinentes para realizar a possibilidade do erotismo na vida humana.
Em conseqüência, a plasticidade insegura e esquematicamente instintiva das
Por conseguinte, podemos afirmar que o comportamento sexual
exigências sexuais humanas oferece a possibilidade de efetuar uma seleção mais
elevada das metas sexuais, que supera a mera união carnal e permite incluir humano tem necessariamente uma configuração cultural e social. O nível
diferenças psíquicas, culturais ou sociais na esfera impulsiva sexual 1 • sociocultural é um elemento integrante do fenômeno humano do sexual .
O terceiro aspecto postulado pela presença da superestrutura social Não deve ser considerado como algo externo ou sobreposto, mas como
no comportamento sexual humano é a possibilidade de separar o prazer um fator a mais da noção e da realidade do sexual.
sexual da finalidade biológica. O homem pode libertar o prazer da escra- Mas temos aqui de assinalar duas coisas. As formas culturais da
vidão finalística biológica. As direções dessa libertação podem ser de sexualidade podem ser muito variadas, visto que o comportamento se-
diversos tipos. Ela pode orientar-se para a produção de uma vida humana xual está em inter-relação com os múltiplos fatores sociais e ambientais.
mais plena na dinâmica pessoal e na vida de intersubjetividade. Mas pode S~. a sexualidade condiciona a maneira de projetar-se as estruturas so-
ciais, estas, por seu turno, influenciam o modo de o comportamento
1. H. SCHELSKY, Sociología de la sexualidad, Buenos Aires, 1963, pp. 14-15. sexual se apresentar. Essa correlação deve ser muito enfatizada para não

88 89
SEXUALIDADE DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA

se confundir uma forma concreta de comportamento sexual com a forma n. CARACTERÍSTICAS DA SEXUALIDADE
que deve ser sempre. NO MUNDO ATUAL
A segunda observação que desejamos fazer refere-se à relação entre
Para descrever a situação em que se encontra a sexualidade no
configuração sociocultural da sexualidade e dimensão ética. A configura-
momento presente, poderíamos recorrer a diferentes metodologias. Uma
ção social pode assumir formas muito variadas, e por isso não deve ser
delas poderia ser a descrição do variado costumbrismo sexual de nossa
identificada uma forma determinada com a validade ética. No entanto, ao
sociedade. Existem abundantes publicações a esse respeito. Não julgamos
mesmo tempo, não se deve crer que todas as formas culturais sejam
suficientemente crítica essa forma de abordagem do tema.
eticamente válidas. A ética não pode ser identificada com uma configu-
ração cultural determinada, mas tampouco pode admitir todas as formas Outra metodologia poderia orientar-se pela linha dos estudos estatís-
socioculturais possíveis. Cabe à ética criticar e avaliar a dimensão ticos. Consideramos de fato esta uma metodologia crítica. Seu conheci-
sociocultural da sexualidade, assim como avalia os níveis biológicos e mento se torna imprescindível para a formulação de uma ética sexual para
psicológicos desta. nosso tempo. Por outro lado, esse tipo de estudos exerceu e continuará a
exercer uma grande importância na compreensão e vivência da sexualidade.
A doutrina exposta amplia sua concepção mediante alguns exem-
Com relação à pesquisa Kinsey, disse-se que a publicação de seus resultados
plos. O papel social desempenhado por cada um dos sexos humanos não traça, sem dúvida, um meridiano importante no conhecimento da sexua-
depende primária e diretamente das diferenças biológicas: ele provém do lidade contemporânea. Remetendo à leitura direta desses estudos ou de
nível sociocultural da sexualidade. Prova disso é a diversidade de papéis sínteses de seus resultados, desculpamo-nos por não seguir essa metodologia.
atribuídos ao homem e à mulher nas diferentes culturas. Os estudos de
M. Mead orientam-se nesse sentido 2 . O cultural influi na maneira de Para descrever a situação do fenômeno humano da sexualidade em
entender a relação dos sexos, e a polaridade dos sexos influencia o modo nosso ~undo, adotamos uma metodologia de globalidade. Cremos que o
de entender as estruturas sociais. Daí decorre que nem todas as formas denommador comum que unifica os distintos aspectos seja o fator do
nas quais se manifesta a configuração social das diferenças sexuais devem "erotismo". Por esse motivo, vamos referir-nos, num primeiro momento,
ser consideradas eticamente perfeitas. Observamos, anteriormente, que na a ~sse fe~ôme~o geral para assinalar, em segundo lugar, as conseqüências
maneira de entender as relações entre o homem e a mulher existiram - psicossoc1ológICas que envolve com vistas à vivência da sexualidade no
instante atual.
e ainda existem - muitos preconceitos e muitos erros teóricos e práticos.
A estrutura social do casamento deve ser vista também nesta pers-
pectiva da dimensão sociocultural da sexualidade. O casamento não é 1. A "EROTIZAÇÃO" DA SOCIEDADE ATUAL
uma instituição primariamente sexual, entendida esta em nível biológico.
A vinculação entre instinto sexual e casamento costuma ser concebida como li . O eroti~mo é um aspecto da sexualidade h~mana. Nasce da pecu-
indubitável relação de dependência causal; o impulso sexual seria o fator bio- andade do impulso sexual no homem de possmr um grande excedente
lógico essencial que origina e proporciona a estruturação interna do casamento, de energia com relação à finalidade estritamente biológica. O erotismo
cuja finalidade fundamental consistiria então em regular as relações sexuais [ ... ]. aparece no nível sociocultural da sexualidade, é um elemento integrante
Pelo contrário, o impulso sexual só é suficiente para consolidar a união ocasio- do comportamento sexual humano. O animal não tem erotismo· trata-
nal dos sexos e por isso não se pode considerá-lo, como ocorre com freqüência,
o fator por excelência na configuração do casamento e da família, antes de tudo
s~ de uma peculiaridade humana. Pode-se fazer uma "metafisica do ero-
tism o " como e1emento mtegrante
· da antropologia sexual.
porque esse impulso não explica o caráter permanente do vínculo social que
constitui a essência do casamento 3 • Dizer que nossa sociedade está erotizada não seria uma afirmação
negativa. A questão é que, quando fazemos essa asserção, queremos
ressaltar os aspectos negativos
. d o erotismo
. atual. E, o aspecto "mítico"
2. M. MEAD, Sexo y temperamento, 2ª ed., Buenos Aires, 1961.
3. H. SCHELSKY, op. cit., p. 34. que adota no mundo atual, o que é rejeitável no erotismo. '

90 91

J
S EXUALIDADE DIMENSAO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE H UMANA

A situação da sexualidade hoje se explica, de maneira imediata, por modo consiste em fazer que o espectador realize, diante do objeto, o
uma série de fatores históricos que contribuíram para a "liberalização" do gesto que desencadeia a corrente erótica; o terceiro consiste em mergu-
erotismo de seus freios sociais. Eis as etapas em que foi aparecendo a lhar o produto e a pessoa num banho de erotismo. O erotismo é a isca
erotização da sociedade atual. que nossa sociedade de consumo usa para seus múltiplos fins . Uma equi-
1 a A consideração da sexualidade como "problema científico" (H. Hellis, pe de especialistas - psicólogos, sociólogos, psicanalistas e especialistas
S. Freud e os endocrinologistas Hirschfeld e Maraiíón). em marketing - pode valer-se da sexualidade para fins propagandísticos
2ª A "liberação literária" do erotismo da repressão social (D. H. Law- de tipo comercial, levando em conta as motivações conscientes e incons-
rence na Inglaterra, H. Miller na América do Norte). cientes do comportamento humano. De fato, muito da propaganda que
3ª A "explosão erótica" provocada pelo cinema e que tem suas influên- aparece no rádio, na imprensa, no cinema e na televisão se dirige às
cias miméticas na sociedade. camadas profundas instintivas de nossa personalidade.
4ª O problema da "sexualidade feminina", abordado cientificamente
por María Bonaparte, Helena Deutsch, Melanie Klein e pela escola
psicanalítica francesa, desenvolvido no ensaio histórico-filosófico por b) A sexualidade ganhou «extensão))' mas perdeu «qualidade ))
S. de Beauvoir, elucidado pelos estudos da antropóloga Margaret
Mead e levado à luta social pelos movimentos de libertação da O que mais interessa enfatizar no mencionado fenômeno da sexuali-
mulher. zação do mundo atual é o caráter extensivo que adotou o impulso sexual
A partir dessa perspectiva da liberalização do erotismo, vamos em nossa época. Enquanto na atualidade o impulso sexual perdeu força
procurar descrever a situação histórico-cultural da sexualidade na socie- e agressividade, ganhou em extensão.
dade atual. Mas, ao ganhar em extensão, perdeu em qualidade. A sexualidade
contemporânea é uma "sexualidade de consumo", dirige-se ao homem-
massa e, por isso mesmo, perde qualidade.
a) Vivemos num mundo sexualizado
Como manifestação dessa característica da sexualidade atual, deve-
Eis a primeira constatação que se impõe. O fenômeno é patente: o se evidenciar a dissociação que se operou nos valores da sexualidade. Se
mundo se erotizou, ou, melhor dizendo, se sexualizou. admitimos que há na sexualidade uma conjunção harmoniosa de "sexo",
Não vamos deter-nos no esclarecimento das causas que provocaram "eros" e "ágape", vemos que na sociedade atual esses valores estão
esse fenômeno nem nos fins que continuam a alimentá-lo. Entre as primei- dissociados. Mais ainda, existe uma tendência a reduzir a sexualidade a
ras, poderíamos indicar: a reação violenta diante de certos tabus ances- um deles, o valor mais ínfimo, o "sexo". Surge na configuração atual da
trais; a expansão da psicanálise; condicionamentos psicológicos, tais como sexualidade uma "hipergenitalização" que não corresponde à evolução
a concentração urbana, a massificação da cultura etc. normal e denota uma regressão a uma etapa sexual "infantil" ou "pré-
Um dos fins que continuam a alimentar constantemente a sexuali- adolescente" .
zação do mundo atual é o comercial; é patente para todos a utilização do Tendo em vista que o predominante na sexualidade massificada
sexo como fator de atração e de venda. Em todo produto que se lança atual é o quantitativo, e mais precisamente o quantitativo-sexo, segue-se
no mercado, e do qual se faz propaganda, há uma possibilidade de adi- ª necessidade de um aumento contínuo nos estímulos sensoriais. O umbral
cionar um selo erótico, ou, antes, de extrair-lhe o erotismo latente que da excitabilidade variou; é preciso aumentar a "quantidade" de estímulo
tem em si. Para conseguir isso, a técnica da propaganda se serve de vários Para provocar a mesma reação. Esse é o processo necessário a que conduz
métodos: o primeiro consiste em sexualizar o produto para que, no Uma sexualidade moldada ao estilo de "sexualidade-consumo" e baseada
contato do objeto com o espectador, passe a corrente erótica; o segundo excessivamente no aspecto "sinal" (de característica mais sensorial).

92 93 j
DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA
SEXUALIDADE

c) A sexualidade atual: sintoma de contravalores pessoais a) Decadência das formas de comportamento institucional e ritualizadas
em favor de uma maior liberdade nos critérios individuais
O modo de viver hoje a sexualidade em nossa sociedade massificada
Em comparação com a vida amorosa do passado, a de nossa época parece
é um "indicador" de falhas profundas nos valores pessoais. Por detrás caracterizar-se, antes de tudo, por uma maior liberdade 5 .
dessa "onda de sexualidade", oculta-se a profunda problemática que hoje
Isso leva à "decadência" dos costumes (alguns podem entender
afeta tantos homens: uma sexualidade reprimida ou imatura e supercom-
como "corrupção" dos costumes) e convenções sociais com um predo-
pensada na maioria das vezes. Em muitas das manifestações da sexualida- mínio do arbítrio pessoal. Mas conduz também a uma maior individua-
de massificada de nossa época podemos ver sintomas de "regressão" lidade e a um maior tom afetivo nas relações amorosas, que contam com
(hipergenitalização de tipo infantil) e até de características "patológicas" mais possibilidades propícias, graças ao retrocesso das convenções e pre-
(o exibicionismo quantificado). conceitos morais e sociais.
Em muitas ocasiões, a sexualidade, em lugar de ser um serviço para
a edificação da pessoa, é empregada para realizar uma "alienação" pes-
b) Privatização anímica das experiências amorosas
soal. O homem contemporâneo "aliena-se" de múltiplos modos: a sexua-
lidade é uma das formas mais generalizadas dessa alienação. Arnold Gehlen afirmou que tanto o nascimento como a descoberta
J. J. López Ibor diz que a sexualidade é um narcótico para a angús- da alma (psique) procedem da decadência das formas sociais6 . Só quando
tia do homem contemporâneo: as instituições já não impõem essa comunicação preformada e que distan-
O que há no fundo desse estado de privação sofrido pelo homem contempo- cia os seres, os homens se confrontam com a plenitude total de sua
râneo não é senão uma forma de ansiedade. A sexualidade é um narcótico da pessoa espontânea.
ansiedade 4 •
Essa descrição da situação da sexualidade no mundo atual poderá c) Psicologização da sexualidade
parecer um pouco pessimista. Não obstante, cremos que corresponde à
realidade. Encontramo-nos numa época em que a sexualidade está em A sexualidade e o amor são vividos no âmbito da psique. O conhe-
vias de tomar outro rumo; daí a luta, os exageros e as situações-limite. cimento, a sutileza e a auto-reflexão das experiências amorosas aumentam
É um momento de risco em que os contravalores se tornam mais paten - à medida que o casamento e a família perdem sua função e seu signifi-
tes e os valores se fazem mais autênticos. Cremos que se deve qualificar cado na estrutura social e se enclausuram no mero âmbito do privado.
assim este momento da sexualidade no mundo atual. Já em Stendhal se encontra uma concepção da sexualidade que preludia a
forma pela qual nossa época entende o sexual: satisfação dos desejos individuais
liberados dos empecilhos impostos pela sociedade7.
2. CARACTERÍSTICAS PSICOSSOCIOLÓGICAS Essa psicologização também pode ser entendida, em certos ambien-
DA SEXUALIDADE ATUAL tes, como algo oposto.
A psicologia começa a assumir quase todas as funções que já não são cumpridas

--
Depois de ter descrito a situação atual da sexualidade com a cate-
pelas cambaleantes regulações e regras institucionais [ ... ]. A psicologia, além de
goria da "erotização", indicaremos, de modo esquemático, um conjunto
de características psicossociológicas que marcam a maneira de viver o
5. H. SCHELSKY, Sociología de la sexualidad, Buenos Aires, 1962, p. 138.
comportamento sexual no momento presente. 6. A. GEHLEN, Die Seele im technischen Zeitalter, Hamburgo, 1957.
7. Documentación Concilium, "Humanización de la sexualidad'', Concilium, 55
(19 7
0), p. 312.
4. LÓPEZ IBOR, op. cit., p. 11.

94 95
DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA
SEXUALIDADE

Gostaríamos de terminar estas reflexões reafirmando nossa dupla


mas do espírito de algumas relações caracterizadas pelo erotismo maduro convicção de que a sexualidade é um indicador do homem de hoje e da
e plenificante. sociedade atual, assim como de que a sexualidade é uma grande possibi-
Até podemos sonhar que a liberação da sexualidade seja uma ajuda lidade de alienação ou de libertação do homem e da sociedade.
e um ingrediente da libertação política. É tarefa da reflexão descobrir esse valor indicativo do sexual e ilu-
o ideal de uma política humanista, democrática e socializada impli- minar o caminho para que a sexualidade humana não se transforme em
ca uma redistribuição econômica da sexualidade totalmente distinta da poder destrutivo e alienante, mas que encontre o modo eficaz para uma
que vimos analisando. O respeito às regras do jogo da ~emocrac~a pres- autêntica libertação na verdade e na autenticidade.
supõe _ de maneira singular - personalidades mad~as, livres, auto~omas É, pois, tarefa de todo homem de boa vontade viver seu próprio
e responsáveis, abertas ao próximo [ ... ]. A conqmsta de personalidad_:s amor e fazer que se viva o amor de todos num âmbito de libertação humana
dessa qualidade implica o triunfo da razão e do amor sobre a repressao sempre ascendente. Por conseguinte, confiamos que a "liberação sexual"
seja um ingrediente da libertação econômico-cultural, e todas elas sejam
e a opressão 15 • vividas, como integrante dessa radical "libertação que se define a si mesma
como libertação do amor" 18 •
4. A -
SEXUALIDADE COMO "FALSA SACRALIZAÇAO "
Harvey Cox acentuou uma forma nova de manipulação da sexua- IV. VERTENTE ÉTICA: PUDOR, OBSCENIDADE
lidade no mundo atual: a de sua falsa sacralização. No quadro de sua E CONTROLE SOCIAL NAS MANIFESTAÇÕES SEXUAIS

visão otimista da secularização, afirma Cox que 1. DIALÉTICA INTIMIDADE-ABERTURA NAS MANIFESTAÇÕES SEXUAIS
nenhum aspecto da vida humana fervilha com tantos demônios sem ~x_orciz~r
quanto 0 sexo. Nenhuma atividade está tão sufocada pela superst17ao, tao O comportamento sexual humano, se comparado com o do animal,
assediada pelo saber residual da tribo, tão acossada pelo temor sooalmente está submetido à lei do "ocultamento". A dissimulação dos órgãos se-
induzido 16 • xuais é um dos fatores mais elementares da cultura; essa atitude, entre-
Segundo Cox, precisamos na verdade desmistificar a sexualidade: tanto, é muito ambivalente, visto que a dissimulação é acompanhada de
Numa visão profundamente teológica, deve haver uma declaração con~rária às miU:ares de invenções indumentárias para acentuar ao mesmo tempo
"sacralizações" atuais da sexualidade. A "mulher", tal como a fabricam os aquilo que ocultam. A exibição sexual é causa de escândalo. Mais ainda,
meios de comunicação social, é um ídolo. Tal como todo ídolo, ela é no final
17
os .comportamentos patológicos exibicionistas e "voyeuristas" falam de
das contas uma criação de nossas próprias mãos e não pode salvar-nos . dois elementos que devem ser integrados corretamente ao comportamen-
A crítica de Cox à situação sexual atual é certeira. A sexualidade que to sexual normal: o de "ver" e o de "ser visto". Só o homem se vê a si
empreende o caminho do erotismo pornográfico e do erotismo fabrican- mesmo e se sente visto. Essa condição antropológica geral adquire uma
te de ídolos nunca chegará à maturidade adulta. Com esses padrões'.
0 forma particular no terreno do comportamento sexual.
homem vive num cativeiro ou numa situação de minoridade. Ele precisa . Essa constatação nos introduz na análise da dialética existente entre
lil . .
escutar 0 aviso e a salvação da "palavra libertadora, secularizadora" · ~midade e abertura social no comportamento sexual humano. Deve
~Xlstir essa tensão? E, caso exista, qual o ponto exato em que deve ser

p. 31.
15. E. FREIJO, "Liberación sexual y política repressiva", Iglesia Viva, n° 31 (197l),

16. H. COX, A cidade do homem, São Paulo, s.d.


17. Id., ibid., pp . 219-220.
----
introduzida?

18. FREIJO, op. cit., p. 41.

101

~~~----___. . ._____________________.d
100
SEXUALIDADE DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA

seu valor gnoseológico, tem também um valor social. Os psicólogos transfo _ - Queda na insignificância: o laxismo conseqüente à retirada dos
maram-se em funcionários e em agentes da sociedade8. r
tabus sexuais, a miscelânea dos sexos, a igualdade entre homem
e mulher, a entrada da literatura sexológica no domínio público,
d) A decadência das instituições) a privatização das experiências tudo isso tende a reduzir o sexo a uma função biológica sem
amorosas e a psicologização da sexualidade trouxeram mistério algum. Deste ponto de vista, a sexualidade se desperso-
uma série de conseqüências na maneira de entender e de viver naliza até reduzir-se ao anonimato.
a sexualidade) que podem ser observadas com mais clareza em - Exacerbação: a sexualidade em nossa época tende a adotar o
alguns ambientes da juventude atual sentido de uma compensação de decepções causadas pelo des-
controle e pelas mutações da sociedade, tornando-se cada vez
Eis algumas dessas conseqüências: mais exigente. Para manter o interesse da sexualidade, faz-se
O homem considera-se a si mesmo "um ser que busca o prazer ou preciso intensificá-la até transformar-se em seu escravo.
está autorizado a buscá-lo". Daí que: - Absurdo: o erotismo produz, finalmente, uma decepção mais
radical, a decepção do "sentido". Quando nada mais tem senti-
- O exercício do "amor pleno" seja considerado uma exigência nor- do, só resta o prazer instantâneo e seus artificios. No término da
mal (recordar a problemática das relações sexuais pré-matrimoniais). incoerência, a sexualidade perde toda significação humana e se
- O exercício sexual gratificante é considerado um "sucesso", se- torna uma bagatela. Chega a suscitar uma comercialização desa-
melhante ao sucesso econômico ou social. vergonhada do sexo. Paradoxalmente, a tJ;i.vialização conduz ao
- "Como a potência sexual e o orgasmo se transformaram numa paroxismo.
exigência convencional normal e chegaram a constituir a evidên-
A sexualidade é vivida em clima "consumista". Como observa
cia de um padrão social elevado, naturalmente têm origem o
Schelsky, "o papel e o significado que o sexual assume na sociedade
temor e a angústia de não poder satisfazê-lo. O temor da impo-
sempre estão condicionados pela estrutura total do contexto social" 11 •
tência e a angústia se tornam os modernos medos sociais." 9
- Há uma normal redução da sexualidade ao exercício genital. Considerada a estrutura da sociedade atual como uma estrutura de
- O exercício da sexualidade se dissocia totalmente da fecundidade. consumo, a estrutura consumista se impõe também na maneira de viver
a sexualidade. Assinalamos os seguintes traços:
O homem de hoje tende à total sujeição do plano do comporta-
mento ao meramente instintivo, acompanhado de uma racionalização - Encara-se a sexualidade do ponto de vista do prazer e da supres-
convencional de tipo secundário. Daí que: são de todo risco, seja de que tipo for (afetivo, social, familiar
- Considera-se o instintivo como o "normal"; a normatividade do etc.).
exercício sexual são todas as possibilidades a que o instinto possa - Exagera-se o sentido de brevidade e de pontualidade do prazer
chegar. de tipo sexual.
- Crê-se no mito da "normatividade estatística". - Proporcionam-se ao exercício sexual ilusões instintivas inevitáveis.
Percebe-se no mundo de hoje uma perda do sentido da sexualidade
e do amor. P. Ricoeur 10 analisou muito bem isso. Segundo esse autor, a lll. "REVOLUÇÃO SEXUAL"
sexualidade se manifesta com três características:
b É interessante constatar como, no âmbito das publicações sérias
~~ .re o tema da sexualidade, se observa uma tendência a relacionar esta

1676.

96
8. SCHELSKY, op. cit., p. 143.
9. Id., ibid., p. 152.
10. P. RICOEUR, "La merveille, l'errance, l'énigme", Esprit, 11 (1960), pp. 1665-
----
u uma com o tema da libertação do homem. Tende-se a:

11. SCHELSKY, op. cit., p. 152.

97
SEXUALIDADE
D!MENSAO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA
---------~~~~~~~~~~~~~~.:.._....:...::..:.=....::.:~.:::..:.:..:..:::::=.:=:::....:.:..:::..:::::..::~

incluir o caráter libertador, tão enfatizado hoje na sexualidade, como um fator


da grande revolução que procura conduzir o homem a uma nova tomada de
z. A SEXUALIDADE COMO "CONSUMO"
consciência em todos os campos da vida em sociedade e da cultura 12 .
Outro âmbito claro em que se manipula a sexualidade é o da estru-
Essas orientações têm um claro matiz crítico, visto que de fato a tura consumista da sociedade.
sexualidade se acha atualmente manipulada pelas próprias estruturas sociais.
Numa ordem econômica - em ampla escala coordenável com a anterior -
Não é nossa intenção entrar aqui num diálogo de confronto com a erotização da sociedade serve também para incrementar o consumismo. Po;
essas teorias críticas sobre a sexualidade atual. Referimo-nos de modo um lado, isso é claro, porque o uso dos esforços eróticos constitui um dos
particular aos projetos de liberação sexual de Marcuse, Reich e outros. grandes recursos da publicidade; e, por outro, porque ademais a atitude erótica
exige e facilita o consumo de toda espécie de bens suntuosos, ou, dito de outro
Deles aceitamos o ponto de partida ou seu projeto de liberação. modo, assoc!a-se ao que tantas vezes se definiu como conspicuous consumption.
Cremos que temos de aceitar a intuição de que a revolução sexual con- A moda, pois, e em definitivo o consumismo têm na erotização social um de
tribui e contribuirá para a libertação do homem. Embora a descrição que seus mais eficazes aliados 14 •
fizemos da sexualidade no mundo atual tenha podido parecer pessimista,
julgamos que não se trata de uma total "degradação da sexualidade". 3. A SEXUALIDADE COMO FATOR DE "REPRESSÃO SOCIAL"
Sem negar as falhas e contravalores, opinamos que se trata de uma situa-
ção de esperança, contanto que saibamos e queiramos levá-la à plenitude Num terceiro âmbito, a sexualidade é empregada como forma de
de realização. repressão social. Tocamos um aspecto no qual não queremos entrar, dado
São muitos os âmbitos em que se têm de desmascarar as formas tratar-se de um tema que exigirá uma abordagem mais detalhada e por-
menorizada.
manipuladoras da sexualidade no mundo de hoje. Vamos referir-nos
unicamente às seguintes: . Limitando-nos ao projeto de Marcuse de uma sociedade não repres-
siva no sexual, cremos poder ele encaixar-se no âmbito de uma visão
~utêntica da sexualidade. Não entendemos seu projeto de uma civilização
1. A SEXUALIDADE COMO "DISTRAÇÃO" Integralmente erótica como uma justificação teórica da atual situação de
um m~ndo mal erotizado. Também não se deve entender a solução
O primeiro âmbito em que é necessário desmascarar a manipulação ?1arcus1ana como. ~m pansexualismo social. Entendemo-la como um pro-
da sexualidade é o de sua utilização como meio de ccdistrair)) a atenção Jeto voltado a utilizar os excedentes de energia sexual para a criação de
de outros problemas que não se desejam enfrentar de maneira direta. novos valores culturais. Essa energia sexual liberada impregnará todo o
A esse respeito, apresentamos as observações de J. L. Pinillos: ser humano, mas não será de caráter unicamente genital.
Com efeito, a permissividade sexual, plasmad<i num maior afrouxament? da É preciso postular uma revolução cultural que acolha uma sexuali-
censura em crescente tolerância das cenas eróticas nos espetáculos etc., e um dade não repressiva. Temos de nos confrontar na atualidade, e mais ainda
velho u'.uque que se utiliza com freqüência para distrair a atenção de grandes
no futuro , com uma civilização do ócio. Ora, essa civilização nova pede
~ma forma nova de viver o sexual. Não pode ser uma sexualidade repres-
setores da população e afastá-la de problemas sociais, econômicos e políticos de
maior importância. Desde logo, a focalização do interesse público em torno ~o
erotismo pode servir, tal como o apontou Aranguren, para que a opinião 1~ao siva a sexualidade capaz de preencher uma civilização do ócio.
se polarize sobre outros aspectos da vida, cuja consideração crítica não convem . Podemos, pois, vislumbrar uma sociedade na qual o trabalho já não
se1a
u uma "al.tenaçao- " , mas um prazer lu' di co tal como o sonhou Platão·

----
ao establishment. Isso talvez seja óbvio, mas não trivial 13 .
ma sociedade na qual não haja o domínio do instinto de agressividade'.
12. Documentación Concilium, loc. cit., p. 306.
13. J. L. PINILLOS, "La liberación sexual'', Iglesia Viva, nQ 31 (1971 ), pp. 12-13· 14. ld., ibid., p. 13.

98
99
DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE HUMANA
S EXUALIDADE

a) O pudor como vivência da intimidade pessoal em perigo erdeu, a pessoa vive seu amor e sua sexualidade à intempérie, desvirtuan-
~o-os, privando-os das qualidades humanas que ele precisa ter.
O conceito atual de pudor precisa o conceito tradicional de vergo- O pudor sexual personaliza o comportamento sexual humano, li-
nha. Esta faz referência imediata ao temor diante da desonra que pode vrando-o dos riscos de desintegração.
nos advir de uma ação torpe; esse temor nos ajuda a ter um comporta-
mento sexual perfeito. O pudor insiste principalmente no direito à inti-
midade pessoal diante de um exibicionismo exagerado. Pudo~ sexual é o b) O ccdesavergonhamento)) e o ccmedo)): os dois extremos do pudor sexual
equilíbrio perfeito entre a intimidade pessoal e a abertura social no com-
O pudor sexual situa o comportamento sexual no ponto exato da
portamento sexual.
tensão intimidade pessoal/abertura social. Ele dá aq comportamento sexual
O amor e a sexualidade, enquanto comportamentos humanos, par- uma das linhas éticas de sua dimensão social. Mas o pudor é uma reali-
ticipam da intimidade pessoal. Mas é preciso levar em. conta ~u~ ~ inti- dade frágil e exposta à ambigilidade. Pode desvirtuar-se muito facilmen-
midade pessoal também se dá no âmbito de um clima de mtersubietIVIdade: te. Cai então em extremos que já não são disposições ou condições
é a intimidade relacional. favoráveis à ética sexual, mas contrárias a ela.
Quando o homem é violado em sua intimidade, quando é "desco- Os dois extremos a que está exposto o pudor são o desavergonha-
berto", surge nele o sentido ou sentimento de confusão .. A confusão mento e o medo. Dá-se entre eles uma grande variedade de formas mais
nasce do pudor ferido. Essa é uma reação ou clima afetivo, no qual ou menos afins.
vivemos o que nos é próprio. O pudor impede-nos de profanar nosso
1) O desavergonhamento é a carência total da intimidade pessoal no
segredo pessoal. terreno do amor e da sexualidade.
M. Scheler explicou o sentimento de pudor como uma proteção do
Ele nasce da perda do "mistério humano" envolvido pela sexualida-
eu pessoal diante da esfera do social. Ele descreve o. pu?~r como "um de no homem, que não pode ser igualada à sexualidade animal. Desen-
sentimento de proteção do indivíduo e de seu valor mdividual contra a volve-se a partir de critérios "naturalistas" e até higiênicos na concepção
esfera total do geral" 19 . O eu, ao ter consciência de si mesmo como algo do sexo, que fica reduzido a uma coisa ou instrumento de prazer ou de
próprio e inefável, adquire também com isso a experiência. de que essa estética. Desemboca numa "desilusão" ou apatia diante das manifestações
realidade inefável está exposta ao público; desperta nele o sentido do pudor. do amor, o que constitui um sintoma de degradação pessoal. E cria em
Aplicando essas noções ao campo da intimidade do. amor e. d~ s~­ toda a sociedade um clima de "cansaço" diante da dimensão espiritual e
xualidade, surge a necessidade do pudor sexual. Para que hap uma v1veno: transcendente de todo o humano.
total do amor e da sexualidade, numa escala plenamente humana, e São muito variadas as formas concretas em que se manifesta o desa-
necessária a consciência da própria intimidade pessoal e interpessoal, bem vergonhamento sexual; do "coquetismo" irresponsável ao "exibicionismo"
como, ao mesmo tempo, a consciência do perigo a que essa intimidade patológico, passando pelo semidesnudamento provocativo e pelo strip-
está exposta. , tease comercializado, há uma imensa gama de comportamentos "im-
Esta é a natureza do pudor sexual: a vivência da intimidade que e pudorosos" porque desavergonhados. É impossível fazer uma casuística a
inerente ao amor e a' sexualidade,
· e na me did a em que esta' expo sta ao esse respeito. O importante é assinalar a dimensão que fica frustrada
perigo da esfera geral "profana". Quando carece do pudor sexual ou 0 nesses comportamentos: a intimidade do amor e a sexualidade; esta se
reduz a objeto exibido e muitas vezes comercializado. Cada uma das for-
19. M. SCHELER, "Ueber Scham und Schamgefühl", Nachgelassene SchriJten, lhas de comportamento impudoroso realiza, em maior ou menor grau,
Berlim, 1954, p. 70. essa falha contra a sexualidade humana.

102 103
S EXUALIDADE D IMENSÃO SO CIOCULTURAL DA SEXUALIDADE H UMANA

2) O medo diante do sexual é o outro extremo falso do pudor. A. O su1e1to desse direito e dever de vigilância é toda a sociedade .
.história da educação sexual oferece muitos exemplos: corno representantes desta, as diversas autoridades devem tranqüilizá-la
É clássico citar traços cômicos nesta matéria: o pau que os seminaristas do século mediante disposições adequadas. A censura é uma delas. Contudo, na
passado usavam para introduzir a camisa na calça; os banhos ou duchas de legislação e disposições concretas deve-se procurar buscar a maturidade
cuecas, todas as manifestações da hipocrisia que nada têm de especificamente pessoal, o que não se consegue nem permitindo a liberdade sem o con-
confessional e não são patrimônio exclusivo de casas cristãs de educação 2º. curso da lei, nem eliminando o risco da falha sobrepondo a lei à liberdade.
As formas concretas desse medo diante do sexual são também muito b) As manifestações do pudor social estão submetidas à variabilidade
variadas. Vão da tolice infantil ao temor obsessivo diante do sexual. Na
dos tempos e das culturas.
atualidade, essas manifestações estão desaparecendo, devido a uma me-
lhor informação e educação no terreno da sexualidade e do amor. Sendo o pudor um sentimento natural, suas manifestações variam
segundo as circunstâncias. Por isso, a ética não deve confundir o pudor ·
com suas formulações socioculturais. De fato, as regras gerais de prudên-
2. CONTROLE SOCIAL DAS MANIFESTAÇÕES SEXUAIS? cia devem restringir-se a cada civilização e a cada época cultural, sem
fazer desvios de uma a outra.
O pudor sexual, tal como acabamos de ver, é um sentimento pes-
soal que regula as manifestações sociais da sexualidade e do amor. É, Os estudos etnológicos falam da relatividade das manifestações
antes de tudo, uma atitude ética pessoal e interior. Mas também podemos concretas do pudor. Apresentamos um exemplo 21• O nível de moralidade
dizer que se trata de um pudor social. Este seria como o sentimento da sexual não pode ser avaliado por uma maior ou menor vestimenta de
sociedade que se defende das irrupções dos indivíduos. O ambiente social alguma parte do corpo. Com efeito, entre alguns grupos, a imoralidade
- enquanto atmosfera de pessoas livres e responsáveis - tem também aumenta à medida que a nudez diminui; a nudez absoluta pode ser um
seu grau de intimidade e de pudor. A sociedade tem obrigação de defendê- sinal seguro da pureza e inocência de uma tribo. Não obstante, os povos
lo de toda intromissão perturbadora. que andam desnudos não estão desprovidos de pudor.
Aludir a este tema é formular-nos o problema do controle que a c) A situação atual diante das manifestações sociais do sexual é
sociedade tem de exercer nas manifestações sexuais. Problema ético de- muito complexa.
licado e exposto a soluções extremistas por ambas as partes, sobretudo na Por um lado, persistem controles culturais extremamente fortes.
situação atual. Mas, por outro, observa-se uma espécie de religião leiga diante do eros
Resumimos a formulação desse problema nos seguintes princípios: exibido. Expusemos acima a situação da sexualidade no mundo atual.
a) A sociedade tem direito e obrigação de exercer vigilância sobre as Uma nota que chama a atenção no modo de o sexual projetar-se diante
manifestações do sexual. da sociedade é o exibicionismo.
As exigências do bem comum fundamentam esse princípio geral. Poucas épocas como a nossa apresentaram uma exibição tão massiva
Uma educação e desenvolvimento integral da pessoa postulam um clima da sexualidade. É um risco para a perda da intimidade pessoal; é uma
social adequado. A sociedade deve contar, sobretudo, com a imaturidade agressão contínua ao direito de tranqüilidade afetivo-pessoal; e um perigo
e fragilidade das crianças, dos jovens e de outras pessoas fracas no huma- de degradação dos valores humanos do amor e da sexualidade.
no. De resto, todos os que compõem a sociedade têm direito a não ver Por outro lado, o tipo de sociedade atual não é o mais adequado
perturbada indevidamente sua tranqüilidade por meio de certas mani-
festações do sexual.

20 . M. ORAISON, Le mystere humain de la sexualité, Paris, 1965, p. 9.


---
Para "controlar" as manifestações sociais da sexualidade. Nossa sociedade

181 21. R. MOHR, La ética cristiana a la luz de la etnología, Madri, 1962, pp. 161-

104 105
SEXUALIDADE

tem caráter "permissivo". A sociedade "paternalista" (uma sociedade


fechada, de controle absoluto) deu lugar à sociedade "permissiva".
Robinson 22 qualificou do seguinte modo essas formas sociais: a sociedade
paternalista "dá" a liberdade; em contrapartida, a sociedade permissiva
"toma" a liberdade. Nem uma nem outra são as formas verdadeiras·
tanto a sociedade paternalista como a sociedade permissiva têm de de-'
sembocar na sociedade madura da liberdade, visto que a sociedade per-
missiva é para a liberdade o que a adolescência é para a idade madura.
Encontramo-nos numa situação social de caráter "adolescente", na
DIMENSÃO EXISTENCIAL
qual os controles externos perderam sua força e na qual ainda não apa-
receu o controle interno da liberdade madura. Nessa situação, é muito
DA SEXUALIDADE
fácil que a intimidade pessoal seja muitas vezes violada pelas manifesta-
ções sociais. Para uma filomf ia da sexualidade humana
d) São muitos os campos em que deve existir um controle social com
respeito às manifestações sociais da sexualidade.
De forma geral, inclui todo o "obsceno" e o "pornográfico". Con-
cretiza-se, de maneira particular, nos meios de comunicação social (cine-
ma, rádio, televisão etc.), nas leituras, nas palavras e conversas. T EMOS de começar indicando o silêncio dos filósofos diante da rea-
lidade humana do sexual. Eles mal lhe prestaram atenção. Preocu-
pados com o tema do ser e com o problema da existência humana, não
Em todos esses campos, põem-se a prova o pudor pessoal e o pudor
social. lançaram seu pensamento por essa abertura existencial para investigar a
e) A responsabilidade moral nesse terreno tem uma vertente social noção de sexualidade humana. São muitos os fatores que explicam esse
e outra pessoal. silêncio filosófico . Os condicionamentos culturais fizeram que a atração
dos sexos não tivesse uma cotação mais elevada; num ambiente desse
A responsabilidade social tem maior importância, embora seja mais
tipo, teria sido um vôo pouco nobr.e se a mente se tivesse lançado ao
dificil de precisar. Dada a situação atual de uma sociedade "permissiva",
tema da sexualidade. Por outro lado, o sexual não havia chegado, até há
é dificil que tenham lugar os controles necessários.
pouco, aos níveis de uma concepção personalista; ele permanecia no
Por isso, é necessário insistir na responsabilidade pessoal. A esse âmbito dos instintos, num terreno biológico, e não era esse um lugar
respeito, é muito conveniente possuir uma série de "regras gerais de apropriado para acender a centelha do pensar filosófico.
prudência". Mas mais necessário é alcançar uma maturidade sexual que
Nos últimos anos - à medida que a sexualidade era considerada no
seja capaz de resistir a todas as investidas e dificuldades externas.
âmbito da antropologia integral -, foi sendo esboçada uma filosofia da
sexualidade humana. São antes pistas de estudo do que sistemas acabados 1 •
Em seguida, indicaremos uma série de "pistas" a partir das quais o
pensamento filosófico pode começar a escrutar o mistério da sexualidade

22 . J. A. ROBINSON, Obscenity and Maturity: Christian Freedom in a Permissive


Society, Londres, 1970, p. 71.

106
--
humana.

1. Cf. F. SAVATER (ed.), Filosofia y sexualidad, Barcelona, 1988.

107
SEXUALIDADE DIMENSÃO EXISTENCIAL DA SEXUALIDADE

1. O HOMEM: UM SER SEXUADO uma antropologia filosófica "dirigida", isto é, ele não toma o tema do
homem numa dimensão neutra, mas com vistas ao problema que o preo-
Esta é a primeira e mais importante perspectiva filosófica da sexua- cupa: a culpa.
lidade. O homem não apenas "tem" algumas estruturas biológicas, psi-
cológicas, culturais de caráter sexual; o homem "é" um ser sexuado. O Por isso, faz uma antropologia do "homem falível".
sexual se instala no nuclear humano; penetra na existência enquanto tal. Qual é - pergunta-se ele - o "locar' humano do mal, seu ponto de inserção,
na realidade humana?ó
Desde Feuerbach ( Grundsatze der Philosophie der Zukunft, 1843) e Otto
Weininger ( Geschlecht und Charakter, 1903), e com intenção mais biológica Apesar dessa orientação, suas anotações de antropologia filosófica
(Steinach, Marafíón) ou mais filosófica (Ortega, Merleau-Ponty, Guitton, Marias), em nada perdem seu valor universal.
uma e outra vez se enfatizou que o sexo - a condição viril ou feminina da
pessoa - impregna e qualifica todas as atividades do ser humano •
2 Para estudar a antropologia do homem falível, Ricoeur adota o
método "transcendental": a realidade "intermediária" como síntese das
O princípio básico dessa concepção é o seguinte: a sexualidade
"desproporções" da finitude e da infinitude. Ele aplica esse esquema às
humana,
três instâncias do homem: instância cognoscitiva (síntese transcendental
além de ser garantia de uma função biológica muito determinada - a geração
da prole -, é um princípio de configuração: o homem percebe, sente, pensa
na "imaginação pura" das duas desproporções da "perspectiva finita" e
e quer como homem ou como mulher3. do "verbo infinito"), instância prática (síntese prática no "respeito" das
A sexualidade é, pois, uma estrutura configuradora da existência duas desproporções do "caráter" e da "bondade") e instância afetiva.
humana. Por isso, é necessário não empobrecer sua noção. Guitton propõe Nesta terceira parte, dedicada ao estudo da "fragilidade afetiva",
distinguir o "sexismo" da "sexualidade" (ou então uma "sexualidade de Ricoeur faz uma análise das paixões essencialmente humanas, desenvol-
conjunção", com vistas à reprodução, da "sexualidade de alteridade", vendo o esquema de Kant: paixão de ter ( Habsucht), paixão de poder
enquanto princípio diferenciador); por isso, para Merleau-Ponty, "a sexua- (Herrsucht) e paixão de valer (Ehrsucht). Essas aspirações são essencial-
lidade tem uma significação existencial". Por isso mesmo afirma Julián mente humanas e, portanto, com intencionalidade infinita. Mas o ho-
4
Marias que o homem, de forma concreta, não é um ser sexual, mas sexuado . mem sente outras aspirações que provêm do nível vital e têm uma estru-
Marias voltou a formular seu pensamento sobre a sexualidade huma- tura finita.
na5. Ele continua a manter a distinção objetiva que subjaz à diferença lingüística O homem tem de viver essa desproporção; tem de conjugar o "vital"
entre os adjetivos "sexual" e "sexuado". Afirma que a sexualidade humana (o instintivo ou o que, em certo sentido, é comum entre o animal e o
é "uma das formas radicais de instalação". Remetemos a uma leitura direta
homem) e o "humano" (o que é especificamente humano). O homem
da obra de Marias para apreender o que ele entende por instalação sexual.
precisa de algumas estruturas antropológicas mistas nas e mediante as
quais ele possa fazer a síntese afetiva das desproporções dessa instância
II. A SEXUALIDADE: LUGAR DE UNIÃO humana.
ENTRE O VITAL E O HUMANO . . E aqui faz sua aparição a sexualidade. A estrutura sexual é um lugar
pnvilegiado no qual o homem experimenta a "passagem" ou a "presença
P. Ricoeur introduziu o tema da sexualidade em seu maravilhoso
desproporcionada" do vital e do humano. A sexualidade tem uma dimen-
"esboço de antropologia filosófica". Convém observar que Ricoeur faz
são instintiva (vital); mas também tem uma dimensão humana.
D~qui se deduz que a satisfação sexual não pode reduzir-se ao simples prazer
2. P. LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad del otro, 2, Madri, 1961, p. 179.
físico: por meio do prazer, o ser humano busca satisfazer outras exigências que
3. Id., ibid.
4. Introducción a la filosofia, Madri, 1947; Estructura social, Madri, 1955.
5. Antropología metafisica, Madri, 1970. 6. Finitud y culpabilidad, Madri, 1969, p. 16.

108 109
SEXUALIDADE DIMENSÃO EXISTENCIAL DA SEXUALIDADE

vêm recarregar o "instinto"; assim entra nele o indefinido e assim se vai hu- Pensamos que somos seres existentes num mundo material e que temos algu-
manizando simultaneamente; o instinto vai perdendo seu caráter cíclico e abrin- mas relações de afeto. Enganamo-nos sobre nosso ser e nosso ter. Porque
do-se sem fim 7 . somos, fundamentalmente, seres que somos, que existimos, pelas relações in-
Essa concepção filosófica de P. Ricoeur é sumamente rica, tanto terpessoais (primordialmente pela relação com Deus) que há na raiz do "eu"
para a antropologia filosófica como para a noção de sexualidade. "A e temos um mundo de coisas à nossa disposição, mas não fazemos parte delas11.
sexualidade ocupa um posto excepcional na antropologia." A sexualidade A realidade do "outro" como possibilidade de relação interpessoal
descobre o mistério da pessoa. Mas ao mesmo tempo o mistério da vem completar o conceito de abertura humana. Laín Entralgo efetuou
pessoa humana, tal como o exprime a antropologia de Ricoeur, descobre um amplo estudo no qual compila o pensamento contemporâneo acerca
o mistério da sexualidade humana; "é a sede da ternura, uma ternura que da relação com o "outro" e no qual, além disso, desenvolve sua própria
é profundamente humana, ao mesmo tempo que está profundamente síntese. Nesse estudo, pode-se ver a análise da relação interpessoal, na
arraigada no instinto" 8 • qual se constrói a própria pessoa e em que aparece o "outro" como
interlocutor adequado.

III. A SEXUALIDADE: PORTA A estrutura aberta do homem manifesta duas dimensões fundamen-
tais suas: sua necessidade e sua generosidade. O homem é um ser "indi-
DE COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL
gente" e um ser "oferente" .
A sexualidade é uma realidade que configura o homem integral: . A sexualidade é uma estrutura antropológica privilegiada, na qual e
participa e expressa o mistério do homem, enquando ser intermediário de mediante a qual o homem realiza a abertura em sua dupla dimensão de
uma desproporção dialética. Daremos agora um passo adiante: a sexua- neces.sidade e obl~tivida~e. A sexuali~ade é a grande força que nos impele
lidade possibilita ao homem o encontro com os outros. A sexualidade é a abnr-nos e a sarr de nos mesmos; e como uma força centrífuga formi-
uma porta de saída e de entrada no mundo das pessoas. dável que nos impulsiona para fora. A saída biológica do seio materno e
O homem é um ser "aberto". Da análise de suas estruturas psico- a abertura psicológica na época da adolescência são dois momentos típi-
fisiológicas9 à compreensão mais profunda do homem, este aparece como cos em que o indivíduo se lança à aventura de conhecer um mundo -
uma realidade aberta. A vida humana tem uma dimensão "genitiva" tangível e psicológico - diferente do seu.
(realidade de), uma dimensão "ablativa" (realidade com) e uma dimen- O homem, ao abrir-se a outra pessoa, faz a descoberta do "você'',
são "dativa" (realidade para). Não é que o sujeito exista e, além disso, e ao mesmo tempo se descobre a si mesmo como um "eu". Foi M.
haja coisas; o sujeito "consiste" em estar aberto às coisas. ~uber quem exprimiu com maior nitidez e profundidade a relação
1
A exterioridade do mundo não é um simples fatum, mas a estrutura ontológica ~terpessoal em termos de "eu-você" 12 . Enquanto a relação "eu-ele" in-
formal do sujeito humano. Poderia haver coisas sem homens, mas não homens dica posse de algo, a relação "eu-você" se realiza unicamente na efusão
sem coisas 10 .
das duas pessoas numa criatividade de amor. O amor não é um sentimen-
Mas o homem não está aberto apenas diante das coisas. Sua aber- to apegado ao "eu " , d o qu al o " voceA" sep
· o conteu'do ou o objeto·
· o

--
tura se dá antes de tudo diante dos outros homens. O homem é funda- amor está entre o "eu" e o "você" 13 • '
mentalmente na relação.

p. 115.11. P. GUILLUY, Filosofia de la sexualidad: Estudios de sexología ' Barcelona' 1968 '
7. Ibid., p. 203.
8. Ibid., p. 204. 12. M. BUBER, Eu e tu, Lisboa, 2ª ed., s.d.
9. Cf. P. LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad dei otro, 2, Madri, 1961, PP· ná . l3. "O amor, antes que uma relação consecutiva a duas pessoas é a criação origi-
35-41. na de um ' b. ,r, . d d l '
ou am ito eJusivo entro o qua, e somente dentro do qual, pode dar-se ao
10. X. ZUBIRI, Naturaleza, historia, Dios, 5ª ed., Madri, 1963. tro como outro" (X. ZUBIRI, Naturaleza, historia, Dios, 5ª ed., Madri, 1963, p. 521).

110 111
DIMENSÃO EXISTENCIAL DA SEXUALIDADE
SEXUALIDADE

Na sexualidade humana, realiza-se essa relação de encontro efusivo estratos, mediante as potências, que são capacidades de significação ou de
entre o "eu" e o "você". Não há maior co-efusão do que o amor de intencionalidade. A intencionalidade é o modo de projetar-se e de deter-
entrega pessoal, na qual os cônjuges chegam a. ser uma "única carne" . minar-se (atualizar-se) a existência. Esta tem a possibilidade de "mudar"
de intencionalidade e até de "retirar-se'', embora nunca de modo total,
A abertura do homem não fica satisfeita na relação "eu-você" . Ela
ao anonimato do corpo. Assim como a palavra é a expressão do pensa-
precisa do aparecimento do "nós". Na raiz da doação e recepção do "eu-
mento (significa-o e o contém), assim também o corpo é a manifestação
você" está a exigência de produzir e aceitar um "nós", que por sua vez
ou expressão da existência. O corpo é o modo de "autenticar-nos" ou de
se abrirá ao "vocês" para formar a grande família humana. E na sexua-
"anonimizar-nos"; é o instrumento de nossa existência.
lidade que se evidencia com maior clareza o aparecimento de um "ter-
ceiro" para formar o "nós" familiar. O filho é o fruto do amor interpessoal, A existência, mediante o corpo, exprime-se em diversas linhas de
um amor de doação e de aceitação em sentido amplo e total. intencionalidade (motricidade, inteligência, sexualidade). Uma delas é a
sexualidade. A sexualidade surge, pois, como uma forma de intenciona -
lidade ou de expressão da existência. A sexualidade "significa" a existên-
IV. A SEXUALIDADE: MODO DE PERCEBER O OUTRO cia. Essa afirmação é sumamente válida. A sexualidade não é um ciclo
autônomo, isolado; está ligada a toda a estrutura pessoal. Sexualidade e
Damos um passo a mais na análise da sexualidade humana. Na seção
existência não são idênticas. A sexualidade é um setor da existência. Está
anterior, dissemos que a sexualidade é a porta de acesso e de saída para
presente no ser como uma "atmosfera". A existência pode adotar essa
o mundo interpessoal. Mas como se realiza essa comunicação interpessoal
atmosfera para manifestar-se; assume então forma na sexualidade e esta
na e por meio da sexualidadd Vamos responder a essa pergunta seguindo '
se torna forma expressiva, linguagem do ser.
o pensamento de M. Merleau-Ponty 14 .
Nesse sentido, pode-se dizer que a sexualidade coexiste com a exis-
No âmbito da reflexão existencialista acerca do fenômeno da
tência. De fato, a vida sexual pode dar-nos a chave de intelecção da
intersubjetividade (ou coexistência), Merleau-Ponty supõe um avanço
notável. Ele é o primeiro a dar importância ao corpo humano como meio história de uma existência. É, pois, um sinal privilegiado da existência. A
sex~alidade não se identifica com a existência, mas dá a esta uma opor-
e realizador da intersubjetividade humana. Para ele, a percepção do mundo
e a percepção dos outros se realizam pelo caráter imediato da corporeidade. turudade de expressão; é um sinal privilegiado porque na sexualidade
A inerência do homem no mundo se realiza por meio do corpo. Somente aparece de modo particular o corpo. .
pelo corpo existe a consciência do homem para os outros homens. Para . Quando se projeta na linha de "intencionalidade sexual", a existên-
obter essa consciência de relação, desempenha um papel decisivo o "es- ~1a P?de fazê-lo em dois níveis: num nível pré-consciente, no qual há
quema corporal" que cada um de nós tem, porque costumamos projetá- ~denti~cação entre sujeito e objeto, e num nível consciente, no qual deve
lo no outro; assim, quando uma lesão neurológica altera num indivíduo mterw . o "deseJO· " . No ruve
' l pre-consc1ente
' · tem 1ugar a percepção pri-
o esquema corporal, ele inconscientemente projeta essa alteração no corpo mordial: a captação pré-consciente na qual o sujeito "recebe" o sentido
do outro. das coisas e em que ""impoe- " o senti·do d as c01sas;
· nesse momento, existe
O corpo dá à existência a possibilidade de "comportar-se" ou de ur:ia u~dade entre o pré-objeto e o pré-sujeito; sem essa percepção ·
projetar-se em "formas simbólicas" que nele se esboçam; a consciência, Pnr:iordial, não poderia existir a relação consciente da intersubjetividade.
por sua vez, dá ao corpo um sujeito existencial desses comportamentos Aplicando isso à sexualidade, também aqui existe uma percepção radical
significativos. Por si, a existência é indeterminada; mas está sempre em sexual; é algo que põe o ser numa situação erótica e que é o pano de
ato; e isso se consegue por estar intencionalizada em alguns de seus fundo de toda percepção sexual consciente. Cada um de nós tem um
esquema d e proJeçao
· - d e nosso ser na · linha d o sexual. Esse esquema
14. M. MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, São Paulo, 2001. condiciona, por exemplo, a colocação das zonas eróticas no outro; o que

113
112
SEXUALIDADE
DIMENSÃO EXISTENCIAL DA SEXUALIDADE

faz que o sujeito seja solicitado precisamente por aquelas zonas nas quais e mais concretamente por meio da intencionalidade sexual. A sexualidade
projeta seu próprio esquema. Dá-se, pois, uma zona quase comum entre é uma linguagem de comunicação entre pessoas em sua dimensão mais
dois sujeitos (unidade de objeto e sujeito). Essa percepção sexual pré- profunda de intersubjetividade.
consciente tem seu apoio nas estruturas fisiológicas do corpo. Nos cen-
tros nervosos existe uma "região sexual", colocada entre a região dos
automatismos (região medular). A região sexual encontra-se no cérebro V. A SEXUALIDADE: LUGAR DE VIVÊNCIA
médio, muito próxima de todos os centros que estão em relação com a DA VIDA E DA MORTE
afetividade. Pode-se portanto "existir sexualmente" antes da atuação se-
xual. Existe no ser humano algo (pode-se denominá-lo "libido" ou dar- A sexualidade aparece como uma realidade quase-numinosa. É um
lhe outro nome) que dá sentido sexual à existência e pode ser entendido "mistério tremendo e fascinante" ao mesmo tempo. Vamos recolher essa
como uma função erótica imanente. vivência primordial da sexualidade e dar-lhe inteligibilidade filosófica. A
sexualidade humana apareceu diante de nós nos diversos estratos bioló-
Quando se expressa em nível consciente, a sexualidade o faz por
gicos e psicológicos com uma tonalidade de mistério; vamos agora recu-
meio do desejo. Se a sexualidade significa a existência, o "sinal" é o
perar também - no discurso filosófico - esses pressentimentos miste-
desejo. A percepção sexual é fundamentalmente o "entrar em contato"
riosos. Em que consiste o mistério da sexualidade humana? 15
de um corpo com outro; mas é preciso entender esses dois corpos do-
tados de existência. A abertura mediante a qual se realiza esse contato é A resposta tem uma formulação simples e clara: o mistério da
o desejo. O corpo pode abrir-se ao outro e então se deixa penetrar da sexualidade humana se acha no fato de que esta é a expressão da vida
coexistência com o outro, por meio do contato do desejo. Então, o e a expressão da morte. Mistério de vida e mistério de morte: reside aí
corpo expressa a totalidade da existência. A percepção sexual é um modo o mistério da sexualidade humana. É fácil dizê-lo, mas muito difkil
de intersubjetividade; é uma relação dialogal entre duas pessoas. explicá-lo.
Essa concepção da sexualidade como uma intencionalidade da exis- A sexualidade é a expressão da própria vida. Há algumas leis internas
tência e como um modo de perceber o outro enfatiza alguns aspectos que condicionam a dinâmica de todo ser vivo. A vida tende, por si, a
importantes. Em primeiro lugar, integra a corporalidade no interior do perdurar e a expandir-se; duração e expansão são duas leis internas da
fenômeno completo da sexualidade humana. O corpo não é "cárcere", ~da. Os seres não-vivos perduram e se expandem, mas de um modo
nem "tumba", nem "receptáculo" do espírito, e menos na percepção merte. Nos seres vivos, a duração e a expansão adquirem uma modalida-
sexual. O corpo é e pertence ao centro da personalidade. A distinção d~. nova, na medida em que estão submetidas à iniciativa e à responsa-
entre corpo e espírito é uma abstração, válida unicamente num momento bilidade do indivíduo. Porém, ao mesmo tempo, tornam-se mais frágeis .
dialético; o dualismo corpo-espírito ocasionou muitas falhas na ética se- A duração e a expansão nos seres vivos envolvem a fragilidade de um
xual. Em segundo lugar, essa concepção da sexualidade evita restringir a desenlace final negativo no indivíduo. Não obstante, a vida - embora
sexualidade à genitalidade; quando se cai no dualismo, é muito difkil perca sua batàlha no indivíduo - sai vitoriosa num plano superior: na
livrar-se de uma concepção sexual puramente genital; em contrapartida, permanência e na expansão do grupo ou da espécie. O indivíduo entra
quando se integra bem a corporeidade, a sexualidade aparece em sua no dinamismo do grupo e participa assim da vitória do grupo.
ampla dimensão pessoal. A sexualidade não é uma função ligada a alguns Na escala dos seres, foram sendo buscadas diversas formas para
órgãos determinados, mas pertence ao ser humano em sua totalidade.
Por último, essa concepção de sexualidade acentua o caráter dialogal que
a relação sexual possui, aparece a intersubjetividade através da sexualida-
de. As existências humanas se tornam intersubjetivas por meio do corpo,

114
--
assegurar as leis do dinamismo vital. A reprodução sexuada é um "acha-

s .1?· Seguimos algumas linhas sugestivas de M. ORAISON, Le mystere humain de la


exuafite, Paris, 1966, pp. 7-50.

115
SEXUALIDADE

do" privilegiado. E, no âmbito da reprodução sexuada, a sexualidade


humana supõe a perfeição máxima. O homem toma consciência, vivencia
esse triunfo da vida que se exprime na sexualidade. Daí esse caráter
prazeroso, exuberante e de exaltação que aparece no sexual. A sexualida-
de é a festa da vida; é a vivência - em êxtase e paroxismo - da alegria
de viver. É a orgia existencial do viver.
Mas a sexualidade é também a expressão da própria morte. Na sexua-
lidade, o homem vivencia o mistério da morte. A função reprodutora é A HOMOSSEXUALIDADE:
distinta dos indivíduos; a vida se origina no indivíduo, mas essa fonte de
perenidade não verte suas águas sobre o próprio indivíduo. Eis o para- CONDIÇÃO HUMANA EREALIZAÇÃO PESSOAL
doxo aterrador:
É a própria função da perenidade da vida que, ao manifestar-se como distinta,
16
faz aparecer de repente, de uma só vez, o caráter mortal do indivíduo .
No momento em que se assegura a perenidade e expansão da espé-
cie, no momento da vitória da vida, aí mesmo eclode a fragilidade de I. A CONDIÇÃO HOMOSSEXUAL
cada indivíduo em sua existência distinta e particular. A sexualidade está
trabalh.o ~nicial que ca~e à reflexão sobre a homossexualidade é o
ligada tanto à morte como à vida. Nela, o homem vivencia seu próprio
mistério.
O de delimitar com exatidão a realidade sobre a qual versa. Essa
incumbência se torna tanto mais necessária quanto maiores são as ambi-
Estranha sexualidade esta que é a encruzilhada existencial da consciência de si
17 güidades vinculadas com o fenômeno humano da homossexualidade.
mesmo em relação com os outros, do ser e do tempo, da vida e da morte •

1. 0 NOME

O termo "homossexualidade" foi .introduzido por um médico hún-


gar? no século XlX 1 . Apesar de sua conotação clínica inicial, ele passou
a ~1gnificar a realidade humana total das pessoas cuja pulsão sexual se
onenta para indivíduos do mesmo sexo.
Contudo, na mentalidade convencional e dominante a palavra
"hº?1ossexualidade" foi assumindo conotações pejorativas. Foi' isso o que
motivou sua substituição, sobretudo em ambientes homossexuais, por
~utros termos não contaminados pelo difuso desprezo social: "homofilia",

16. Id., ibid., p. 17.


---
homotropia" etc. Mais ainda, nos movimentos de reivindicação homos-

371
1. A. DE FLUVIA, "Síntesis para un estudio de la cuestión homosexual", fano, nQ
li. (1979), p. 63 . Ver outra opinião em D. FASSNACHT, "Sexuelle Abweichungen"
us:n:buc~ d.er christficher Ethik, II, Friburgo (Bris.), 1978, p. 179, que atribui o primeir~
0 medico mgles Kertheny (pseudônimo) em 1869.
17. Id., ibid., p. 50.

117
116
SEXUALIDADE A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO HUMANA E REALIZAÇÃO PESSOAL

sexual, utilizam-se termos e expressões no quais se quer propositadamen- 2. A NOÇÃO PRECISA


te manifestar o "orgulho" de ser homossexual. Essa é a conotação envol-
vida pelo termo "gay" 2 • As ambigüidades da terminologia têm seu correlato no conteúdo
conceitual. Daí que seja conveniente delimitar a noção precisa com que
Apesar de reconhecer com M. Oraison que existe uma "armadilha se deve entender o fenômeno da homossexualidade humana. Para isso,
das palavras", também afirmamos com o mesmo autor que "o termo fazemos as seguintes observações.
homossexual é no fundo o único adequado para falar do problema em
Entende-se por "homossexualidade" a condição humana de um ser
geral" 3 • Com efeito, se na realidade da sexualidade se distinguem três
pessoal que no nível da sexualidade se caracteriza pela peculiaridade de
níveis - sexus, eros e filia-, pode-se falar de "homogenitalidade" (assim
sentir-se constitutivamente instalado na forma de expressão exclusiva na
como de "heterogenitalidade") em referência aos aspectos biológicos do qual o partenaire é do mesmo sexo.
sexo, de "homoerotismo" (assim como de "heteroerotismo") com rela-
Desmembrando os elementos da definição anterior, a homossexua-
ção aos aspectos emocionais, e de "homofilia" (assim como de "hetero-
lidade fica configurada mediante os seguintes traços:
filia") para aludir aos aspectos relacionais. O termo que engloba de maneira
adequada a realidade é homossexualidade (assim como "heterossexualidade" - na homossexualidade, trata-se fundamentalmente do sentido glo-
é o termo apropriado para significar a condição sexual das pessoas cuja bal de um ser humano; a homossexualidade não é só nem prin-
cipalmente um fenômeno sexual, mas a condição antropológica
pulsão sexual se orienta para indivíduos de sexo diferente).
de um ser pessoal; o homossexual é, antes de tudo, um ser
Declarando-se como válido o termo "homossexualidade", situa-se humano com uma condição e um destino perfeitamente huma-
em seu autêntico horizonte a realidade humana da condição homosse- nizável e humanizante;
xual: uma realidade que se refere a todo o conjunto do fenômeno sexual - a peculiaridade antropológica do homossexual tem sua raiz e sua
sem privilegiar nenhum aspecto (nem o genital, nem o erótico, nem o manifestação mais evidente no nível da sexualidade entenden-
filíaco ). Usar um termo que privilegia um aspecto é situar o fenômeno '
do-se "sexualidade" não de perspectivas "reducionistas" ou
homossexual no quadro de uma perspectiva reducionista e, por conse- "monovalentes", mas a partir de sua realidade multivetorial e
guinte, falsa. plurivalente;
Não é demais observar que descartamos, com maior razão, os ter- - a condição humano-sexual do homossexual se caracteriza por
mos e as expressões que ou se referem a comportamentos anômalos ou saber-se instalado, de maneira exclusiva, na atração por um com-
panheiro do mesmo sexo;
assumem as conotações pejorativas da mentalidade vulgar. Entre os primei-
- a partir da observação anterior, deve-se entender por homosse-
ros, encontram-se termos como "pederasta", "sodomita", "uraniano"
xual aquele que o é constitutivamente e não apenas comportamen-
etc. As expressões da mentalidade vulgar variam segundo os lugares, mas
talmente (embora a constituição acabe por levar normalmente
todas elas padecem da consideração do fenômeno homossexual como
ao comportamento), aquele que vivencia a peculiaridade de sua
algo "doentio", "invertido" etc. real · condição (e não o que vive numa situação de pseudo-ho-
mossexualidade ou de homossexualidade latente) e aquele que
2. "A maioria das organizações gays recusam o termo 'homossexual' por sua origem pretende canalizar de modo adequado sua realização enquanto
médica e preferem a palavra 'gai' (gay em inglês, gai em francês, gaio em italiano, gai em homossexual (e não aquele que se situa na ambigüidade de uma
catalão) . Esse termo de origem provençal, passado ao catalão, ao castelhano ('gayo'), ao ambivalência frustrante);
francês - e deste ao inglês - e ao italiano, significa: alegre, jovial, de vida festiva e
dissipada. Em outra acepção restrita, fez-se equivalente a homossexual, mas a um homos-
- por conseguinte, não entendemos por homossexualidade, direta
sexual que se reconhece como tal, se aceita e luta para reivindicar seus direitos ( ... ]" (A. e exclusivamente, os comportamentos homossexuais, mas a con-
DE FLUVIA, loc. cit., p. 64) . dição homossexual de um ser humano que - de fato, por seus
3. M. ORAISON, El problema homosexual, Madri, 1976, p. 20. comportamentos - busca a realização pessoal;

118 119
S EXUALIDADE A H OMOSSEXUALIDADE: CONDIÇAO HUMANA E REALI ZAÇÃO PESSOAL

- por outro lado, é preciso descartar como formas definidoras da a homossexualidade não é, por si, nem sintoma nem entidade
homossexualidade as que, no âmbito da condição homossexual de uma alteração psiquiátrica, segundo manifestaram socieda-
são anômalas ou desviantes, como, por exemplo, a "pederastia"' des psiquiátricas de diversos países; nesse sentido, não se deve-
a "prostituição", a "violação"; assim como a heterossexualidad~ ria falar da homossexualidade em termos de "perversão", de
não é definida por suas situações desviantes, tampouco pode "desvio", de "inversão". Porém, por outro lado, também não
ser aplicado esse critério para expressar a noção de homossexua _ aceitamos a hipótese dos que consideram a homossexualidade
uma variante ou espécie de um gênero, a "sexualidade", o qual
lidade;
- por último, a condição homossexual por si não comporta ne- teria duas diferenças específicas, a "heterossexualidade" e a "ho-
mossexualidade". Os dados da biologia e da sociocultura nos
nhum traço de patologia somática ou psíquica; assim como 0
impedem de aceitar essa leitura dos fenômenos heterossexual e
heterossexual, o homossexual nem está necessariamente destina-
homossexual. No âmbito dessa explicação, deve-se situar a dos
do a ela nem está isento de sua possível companhia, embora por
que interpretam o comportamento sexual como um impulso
razões sociais a propensão seja mais evidente no homossexual.
fundamentalmente neutro que a aprendizagem social irá mode-
lando numa direção determinada (heterossexual ou homosse-
3. COMPREENSÃO ANTROPOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE xual )4 . A sexualidade não é um gênero com duas espécies nem
um continuum com dois extremos (heterossexualidade e ho-
Para optar com seriedade por uma determinada compreensão da mossexualidade).
condição homossexual, é preciso ter em conta os resultados a que se - Diante da consideração da homossexualidade como variante (para
chegou nos estudos biológicos, psicológicos, sociológicos, históricos, de alguns, a variante "melhor") da sexualidade e diante da conside-
antropologia cultural e de reflexão filosófica. Não é tarefa deste estudo ração da homossexualidade como doença, existe uma alternativa
expor os fatos e as interpretações correspondentes. Remeto à compreen- válida: entender a homossexualidade como a condição sexual (não
são antropológica da sexualidade que se assume nesta obra. doença) de uma pessoa que se deteve no processo de diferencia-
Antes de tudo, devemos reconhecer que não existe uma explicação ção; instalado em sua condição sexual indiferenciada, o homos-
apodíticamente satisfatória da homossexualidade humana: não se conhe- sexual não pode viver sua sexualidade a partir da diferença ho-
cem com clareza os fatores biológicos (genéticos?, hormonais?, patologia mem/mulher (condição da heterossexualidade), mas o faz a partir
embrionária?) que a sustentam; não existe uma explicação psicológica de outra situação que chamamos de "homossexual".
científica (variação na relação paterno-filial?, resultado de uma variação na
aprendizagem psicossocial?); os dados históricos, estatísticos e de antro- II. REALIZAÇÃO PESSOAL
pologia cultural não solucionam as interrogações básicas; por outro lado,
os tratamentos experimentados (psicanálise? terapia comportamental?) não 1. A VALIAÇÃO TRADICIONAL DA HOMOSSEXUALIDADE

conseguiram desvelar o segredo da constituição homossexual de uma


A avaliação tradicional da homossexualidade parte de uma determina-
determinada porcentagem da população humana. da compreensão do fenômeno homossexual. Busca e até admite a distin-
Com a provisoriedade e precariedade que exigem as afirmações ção entre estrutura e exercício:
anteriores, não podemos deixar de exprimir nossa maneira de compreen-

---
entre os homossexuais cuja tendência, procedente de uma educação falsa, de
der o fenômeno da homossexualidade humana. Eis a compreensão antro- falta de uma evolução sexual normal, de hábitos contraídos, de maus exemplos
pológica pela qual optamos:
- A homossexualidade não pode ser enquadrada nem como "doen- apr 4 · ~ · M. FARRÉ, "La homosexualidad : una aproximación psicosocial. La teoria de
ça" nem como simples "variante" da sexualidade. Por um lado, endiza1e", ]ano, nQ 371 (1979), pp. 43-52 .

120 121
S EXUALIDADE
A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO H UMANA E REALIZAÇÃO PESSOAL

e de outras causas análogas, é transitória, ou ao menos não incurável, e os unilateral da sexualidade com vistas ao fim exclusivo da procriação finca
outros homossexuais que são irremediavelmente tais por uma espécie de instin- suas raízes no húmus do estoicismo. A justificação do ato sexual unica-
to inato ou de constituição patológica que se tem por incurável. mente pela procriação não é doutrina fundada na Bíblia; na realidade, a
Não obstante, ela continua a considerar a estrutura homossexual origem dessa exclusividade de finalidade provém de tendências estóicas
como uma condição humana "patológica" diante da postura da psiquia- rigorosamente transmitidas a nós pelo pensamento agostiniano. Diante
tria atual, recordada acima, que não a enquadra nas doenças psíquicas. de tal compreensão da sexualidade, era normal que o comportamento
O juízo ético do comportamento homossexual em geral e sem dis- homossexual fosse entendido como algo contrário à finalidade intrínseca
tinção se exprime em termos de ética objetivista e intrinsecista: "são atos da relação sexual.
privados de sua necessária e essencial ordenação".
Essa avaliação tradicional da homossexualidade está condicionada Influência do dualismo helênico
pela mentalidade dominante da cultura ocidental, que envolve elementos e do neoplatonismo na negação do prazer sexual
socioculturais que a mistificam e a condicionam: a atitude anti-helênica
do judaísmo pós-bíblico neste tema da homossexualidade (Josefo e Fílon); A influência do neoplatonismo fez -se sentir ao longo da história da
o rigoroso código do direito romano e das ulteriores legislações ociden- ética ocidental. Essa influência se manifesta por meio de uma metafisica
tais; a tonalidade "machista" da cultura ocidental etc. A peculiaridade depreciativa da corporeidade e, de maneira geral, aparece na tonalidade
deste estudo nos exime de oferecer os dados que garantem a validade das de "abstenção" em tudo o que se refere ao comportamento sexual, mesmo
afirmações anteriores. dentro do casamento. A influência encratista é observada em restrições
Examinada do ponto de vista da metodologia ética, a visão tradicio- tabu do ato matrimonial, em concepções negativas deste último como
nal sobre a homossexualidade padece de notáveis ambigüidades. Essas "ato não sem inconvenientes" ou "ato permitido mas escabroso", no
ambigüidades provêm da compreensão reducionista e inadequada da pessimismo diante de todo o sexual, na própria concepção da "castidade"
sexualidade humana e se manifestam na postura global diante do fenô- com certo matiz de restrição e de abstenção, no ascetismo como meio
meno da homossexualidade. De um modo concreto, atrevemo-nos a para encontrar uma vida mais pura e mais dedicada à contemplação. Mas
assinalar, na abordagem do tema homossexual, as falhas que se percebem é na avaliação do prazer sexual que se manifesta de modo mais evidente
em todo o edificio histórico da ética sexual tradicional: a influência neoplatônica: desde a concepção agostiniana do prazer sexual
como um mal unicamente justificável pela desculpa da procriação, a so-
lução do problema recebeu uma impostação negativa que ainda não se
- Compreensão procriativista da sexualidade perdeu. Pense-se que só no início do século XX os moralistas se puseram
de acordo sobre a não-ilicitude da busca do prazer moderado entre
A ética sexual tradicional alicerçou seu edificio numa compreensão
esposos fora do ato conjugal. No âmbito de uma compreensão da sexua-
excessivamente "monovalente" da sexualidade, reduzindo-a à finalidade
lidade desse tipo, não se pode esperar que seja tolerado o prazer do
procriativista; era essa finalidade que "normatizava" eticamente os com-
comportamento homossexual, visto que não há "desculpa" de nenhuma
portamentos sexuais. Como detalhes dessa doutrina, basta recordar que
espécie que o transforme em aceitável.
a licitude da demanda do compromisso conjugal, sem intenção imediata
de procriação, não aparece como doutrina comum até o século XVII;
recorde-se também o lento e penoso aparecimento de outros motivos - Reducionismo genital e a normatividade do ccsegundo a natureza))
que justificassem o ato conjugal; e as polêmicas recente.s sobre os fins do
casamento e sobre o controle da natalidade, em cujo pano de fundo A ética tradicional foi formulada historicamente mediante o concei-
to normativo da "natureza" ( = "segundo a natureza" ). Esse conceito
ainda perdura a compreensão procriativista da sexualidade. Essa visão

123
122
SEXUALIDADE
A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO HUMANA E REALIZAÇÃO PESSOAL

teve uma importância máxima na ética sexual. Ora, ao empregar o con- grantes" (aberrações, promiscuidade, prostituição, atos não-vinculantes
ceito normativo de "natureza" em relação com o comportamento sexual, etc.) e comportamentos que propiciam e manifestam a "integração homos-
reduzia-se a noção de sexualidade a "genitalidade". A concepção da se- sexual". Não é dificil adivinhar a avaliação dos comportamentos "desin-
xualidade como genitalidade conduz a uma "ética b~ologicista", d.e~inte­ tegrantes"; eles são declarados inautênticos, já que se admite que para
grada da totalidade da pessoa. Esse reducionismo gemtal da normatlVldade esses comportamentos são aplicáveis as mesmas regras que se aplicam às
ética do comportamento sexual teve uma de s~as verificações. mais claras atitudes e comportamentos heterossexuais.
na avaliação moral da homossexualidade: obviamente, considerou-se o No entanto, com relação aos comportamentos que, em princípio,
comportamento homossexual como "contrário à natureza" ( = contra propiciam e manifestam a "integração homossexual", a opinião dos
naturam). moralistas não é unânime. Para Oraison, o critério ético dos comporta-
mentos sexuais, também dos homossexuais, está no grau de "humanização"
- A formulação pré-científica e pré-psicológica que envolvam. Aplicando esse critério às relações homossexuais, diz ele:
o prazer intercambiado e compartilhado pode ser uma expressão do amor, na
A ética da homossexualidade foi formulada historicamente - e não medida justamente em que seja vivido numa relação intersubjetiva bem-suce-
poderia ser de outro modo - a partir de bases pré-cien?ficas e ª .partir dida [ ... ]. O prazer erótico não é forçosamente a expressão do amor, ou seja,
de compreensões anteriores à visão psicológica da sexualidade. A. isso se de uma relação verdadeiramente intersubjetiva. Pode ser "solitário", pode-se
buscar também com um companheiro a quem se situa sobretudo como objeto,
juntou o marcado "machismo" ou "antifeminism~" ~a cul:ura ocidental.
como "instrumento" da excitação e da distensão orgasmática. Mas pode ser
O "androcentrismo" ocidental encontrou sua JUStificaçao numa falsa verdadeiramente relacional. Um sujeito homossexual não pode sentir-se atraído
apreciação antropológica da mulher, considerada como "homei;i ~utila­ por esse prazer mais que com um sujeito de seu mesmo sexo. Representa,
do" ( = mas occasionatus). Contra esse pano. de ~nd~ and_:ocentnco,. o como vimos, um não-acabamento da evolução afetiva, uma imperfeição quanto
homossexual (sobretudo masculino) não podia ter 1ustificaçao nem social ao acesso à diferença. Mas o homossexual não pode mudar nada em semelhante
nem ética. situação, que está sofrendo a contragosto . Não é, portanto, em si mesmo
impossível que, nessa situação que é a sua, chegue a viver uma relação erótica
com um companheiro igualmente homossexual que seja, no nível que lhes é
2. FORMULAÇÕES ATUAIS acessível, a expressão de uma verdadeira relação intersubjetiva. Pode-se falar em
tal caso de um "pecado"? 6
Para Oraison, o fato de ser homossexual não pertence à ordem Com uma notável força lógica, Alcalá faz avançar ainda mais a
moral tampouco constituindo realidade moral o sentir a atração homos- solução 7 . Ele parte do critério ético de que o homossexual tem direito e
sexual'; ser homossexual pode ser considerado um "mal" só na medida dever de atingir sua possível integração personalista: os homossexuais
em que essa avaliação é entendida em relação c~m um "certo est~ bem "têm de encontrar um caminho de auto-realização em sua existência
com a existência" 5 . As tendências homossexuais, sobretudo se sao de sexual, diante de sua felicidade humana". Parece lógico e razoável que o
caráter irreversível, não estão sujeitas, enquanto tendências, a um julga- consigam a partir de seu peculiar dinamismo homossexual, "embora este
mento de índole ética. O problema ético, não obstante, reverte sob~e sua seja deficitário de um ponto de vista completo: ontológico e cristão". A
eventual profilaxia ao mesmo tempo que sobre a possibilidade e obngato- integração deve ser buscada em primeiro lugar no nível psicológico; mas,
riedade de sua terapia. se não se puder conseguir a sublimação, será preciso contentar-se em evitar os
No que diz respeito ao "comportar-se" homossexualmente, a. ava- perigos de uma repressão insustentável, mediante o exercício de uma homoftlia
liação objetiva distingue, por sua vez, entre comportamentos "desmte-
6. Id., ibid., pp. 130-131.
5. ORAISON, op. cit., p. 124. 7. M. ALCALÁ, "La homosexualidad", Razón y Fe, 200 (1979), pp. 73-74.

124 125
S EXUALIDADE
A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO HUMANA E REALIZAÇÃO PESSOAL

responsável e inclusive de um homoerotismo estável. Se se conseguir isso e cussões da atual literatura teológica sobre o tema" . Classificam as postu-
reconhecendo a dificuldade do tema, os eventuais casos de homogenitalidade ras em quatro grupos que se caracterizam, cada um deles, pelas seguintes
deveriam ser considerados como falhas isoladas e não produto de uma opção avaliações sintéticas: 1) os atos homossexuais são "intrinsecamente maus";
explícita e enganosa. De todo modo, a comunhão e a estabilidade seriam ética 2) os atos homossexuais são "essencialmente imperfeitos"; 3) os atos
e cristãmente válidas se buscam estabilidade e respeitam o existencial da sexua- homossexuais devem ser avaliados à luz de seu significado relacional; 4)
lidade em sua qualidade substantiva, embora não precisamente absoluta. os atos homossexuais são essencialmente bons e naturais. Eis o julgamen -
No quadro de uma orientação confrontada com a postura da moral to sobre essas posturas:
tradicional, McNeil propõe uma alternativa ética que se desdobra nas a primeira e quarta posturas nos parecem carecer de base suficiente para cons-
seguintes orientações 8 : tituir um quadro seguro em que desenvolver uma assessoria pastoral eficaz. A
1) A abstinência sexual é válida para as pessoas que possam integrá-la: segunda e terceira posturas nos parecem mais compatíveis com a idéia da
sexualidade humana que propomos neste estudo 12 .
"Se um indivíduo com tendências homossexuais pode, com a graça
de Deus, empreender com êxito uma vida de abstinência sem con- No âmbito de uma admitida "provisoriedade", os autores do estudo
flitos emocionais destrutivos nem naufrágio da personalidade, não propõem uma avaliação ética, cujos pontos essenciais são os seguintes:
há dúvida de que é aconselhável que o faça" 9 . 1) "Os homossexuais têm os mesmos direitos dos heterossexuais ao
2) À promiscuidade é preferível o "mal menor" das relações homosse- amor, à intimidade e às relações. Tal como aqueles, são obrigados
xuais. a perseguir os mesinos ideais em suas relações; buscando sempre a
3) Nas atitudes e comportamentos homossexuais "são aplicáveis as mes- criatividade e a integração. As normas que regem a moral da atividade
mas regras morais que se aplicam aos heterossexuais" 10 • homossexual são igualmente válidas em toda atividade sexual, e as
4) Sendo a fidelidade e a estabilidade integradoras o critério ético normas que regem a atividade sexual são as mesmas que devem ser
decisivo do comportamento sexual, e podendo realizar-se esse cri- aplicadas a toda atividade ética humana [ ... ] . Nossas reflexões nos
tério nas relações homossexuais, estas não podem ser declaradas levam a opinar que a moral sexual cristã não pede uma dupla nor-
imorais. ma. Os homossexuais têm os mesmos direitos e deveres da maioria
5) A comunidade homossexual tem uma função humanizadora no âm- heterossexual. Os homossexuais, tal como a maioria heterossexual,
bito da sociedade em geral. deverão analisar e avaliar seu comportamento à luz das mesmas
O estudo La sexualidad humana [A sexualidade humana], realizado avaliações e em conformidade com as mesmas normas morais para
determinar se suas ações ostentam ou não as características próprias
por encargo da Catholic Theological Society of America e dirigido por A.
de uma sexualidade humana integrada. O pastor ou o conselheiro
Kosnik, representa uma postura claramente "rupturista" dentro da moral
ajudarão o homossexual a formular um juízo moral sobre suas ações
católica sobre a homossexualidade 11 •
e suas relações em termos de se são ou não autolibertadoras,
Os autores corroboram a postura crítica e minimalista diante dos enriquecedoras do outro, honradas, fiéis, a serviço da vida e pra-
dados bíblicos e da tradição teológica sobre o tema da homossexualidade, zerosas. Como qualquer outra pessoa, os homossexuais são obriga-
aspectos que não precisam ser apresentados aqui. Em segundo lugar, dos a evitar a despersonalização, o egoísmo, a falta de honradez, a
estabelecem uma tipologia de posturas nos "inumeráveis debates e dis- li~ertinagem, o prejuízo à sociedade e a desmoralização" 13 .

---
2) "A luz das dúvidas subsistentes e das questões ainda não esclarecidas
8. J. J. MCNEIL, La Iglesia ante la homosexualidad, Barcelona, 1979. em relação com a homossexualidade, levando em conta as circuns-
9. Id., ibid., p. 241.
10. Id., ibid., p. 44.
11. Human Sexuality, Nova York, 1977. Cito a partir da tradução castelhana: La 12. Ibid., p. 234.
sexualidad humana, Madri, 1978, pp. 211 -244. 13. Ibid., pp. 239-240.

126 127
SEXUALIDADE A HOMOSSEXUALIDADE: CONDIÇÃO HUMANA E REALIZAÇÃO PESSOAL

tâncias históricas subjacentes à proibição bíblica e tradicional, as vel levar em conta esse pano de fundo ético ao propor a avaliação sobre
opiniões divididas das autoridades teológicas e a argumentação apre- a homossexualidade.
sentada em favor de considerar os atos homossexuais não precisa- - O juízo ético sobre a homossexualidade tem de realizar-se no
mente como intrinsecamente maus, vistas todas essas considerações, interior de uma estrutura ético-formal que respeite as exigências metodo-
pode-se invocar a opinião solidamente provável em favor de que se lógicas inerentes à reflexão ética. Destacamos, de modo especial, o respei-
permitam aos homossexuais a liberdade de consciência e o livre to à estrutura dialética do juízo ético, que tem de ser ao mesmo tempo:
acesso aos sacramentos da reconciliação e da eucaristia [ ... ]. Em objetivo, subjetivo e particular em geral. Não se pode cair nem em
igualdade de circunstâncias, um homossexual que pratique atos reducionismos "objetivistas e universalizantes", nem em reducionismos
homossexuais com boa consciência tem os mesmos direitos de cons- "subjetivistas e carismáticos". No fundo dessa dialética opera o jogo do
ciência e os mesmos direitos aos sacramentos que um casal que "normal/desviante", que condiciona toda compreensão antropológica e
pratique o controle da natalidade com boa consciência." 14 toda avaliação ética do fenômeno humano da homossexualidade.
Como conclusão dessas observações, queremos expressar quatro
apreciações que consideramos importantes para uma correta orientação
do tema:
- Impõe-se, em primeiro lugar, adotar uma atitude de provisoriedade
nas formulações e nas soluções. Os dados antropológicos não são defini -
tivos; por conseguinte, o juízo ético não pode ser fechado. A avaliação da
homossexualidade deve ser formulada em clima de busca e de abertura.
- Uma finalidade clara e indeclinável cabe ao juízo ético: liberar a
homossexualidade das falsas compreensões e dos injustos códigos
sociojurídicos em que a mentalidade dominante (acrítica e/ou ideológi-
ca) a mantém aprisionada; a ética tem de ser uma força a mais dentro do
conjunto de esforços atual no sentido de conseguir a emancipação huma-
na nesse âmbito da condição homossexual. De uma consideração da
homossexualidade como crimen pessimum se deve passar a uma visão
crítica e justa dessa realidade. A ética tem uma importante incumbência
neste ponto: introduzir caráter crítico e justiça nas atitudes sociais diante
do fenômeno homossexual .
- Nenhum juízo ético, por mais particular que seja, deixa de as-
sumir e de apoiar um determinado projeto ético do humano. A avaliação
da homossexualidade se integra ao projeto ético sobre a sexualidade huma-
na. Em termos concretos, a formulação do juízo ético sobre a homos-
sexualidade está submetida à idéia que se tenha de sexualidade: função
procriativa ou forma de linguagem inter-humana? Realidade yincul~~a
com o casamento ou possibilidade humana extra-institucional? E inev1ta-

14. Ibid., pp. 241-242 .

128
129
AEDUCAÇÃO SEXUAL1

N
tude .
ÃO se pode pôr em dúvida a necessidade da educação sexual, em
todas as etapas da vida e de modo particular da infância à juven -

O que se questiona, de distintos ângulos teóricos e a partir de


diferentes interesses práticos, é como realizar a educação sexual.
Pretendemos neste capítulo oferecer um conjunto de perspectivas
para uma melhor compreensão do significado da educação sexual e para
realizá-la de forma mais coerente. As perspectivas se concretizam nos
seguintes pontos: os sujeitos responsáveis pela educação sexual e o con-
teúdo básico da educação sexual.

I. OS SUJEITOS RESPONSÁVEIS
PELA EDUCAÇÃO SEXUAL

A educação sexual (a primeira educação sexual, a "reeducação" e a


educação sexual permanente) constitui um direito e um dever de todo ser
humano. Não é simplesmente uma tolerância ou superrogação .
Vou fixar-me em seguida nos sujeitos responsáveis pela educação
sexual e na maneira pela qual devem intervir esses agentes no processo
total da formação sexual.

1. Extraio parte de um informe elaborado para o ministério espanhol de Educación


Y Ciencia.

131
S EXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

1. A FAMÍLIA - A vivência do pudor na familia deve realizar-se com naturalidade


evitando os dois extremos da obsessão neurotizante e do naturalismo'
É aos pais que cabem o direito e o dever da educação sexual de seus coisificante.
filhos. Esse direito/dever existe independentemente da missão da escola
e, aliás, a precede . Nem a escola, nem a sociedade civil, nem o Estado
nem outras instituições educacionais podem suplantar a tarefa dos pais na 2. A ESCOLA

educação sexual de seus filhos. As diversas instituições têm por finalidade


A missão da escola deve ser entendida em termos de colaboração
não substituir os pais, mas ajudá-los em sua missão.
com o trabalho dos pais. No plano da educação sexual, trata-se de uma
Reconhecido seu direito, cabe aos pais tomar plena consciência de colaboração da escola, que tem como missão complementar a educação
sua missão nesse campo da educação sexual, o que pressupõe: preparar- transmitida no lar. Quando aborda o tema da sexualidade humana como
se adequadamente para isso, esforçar-se por vencer as resistências e indo- matéria de ensino, a escola deve ter grande cuidado em não monopolizar
lências, buscar permanentemente seu próprio equilíbrio psicossexual. as crianças para todas as modalidades de ensino. Fazendo isso, ela se
São muitos os aspectos em que a família tem de contribuir para a imiscuiria no plano de educação geral que cabe aos pais.
formação sexual que corresponde a ela. Assinalo alguns pontos mais Por seu papel de colaboração, a escola deve formular e realizar a
importantes: educação sexual de acordo com os pais. Estes têm o direito de ser infor-
- Não cabe à familia tanto a transmissão de conhecimentos sobre mados a tempo e de forma completa sobre o conteúdo, o método e a
a sexualidade quanto o testemunho e a iniciação vital. Isso se consegue apresentação da educação sexual.
mediante a criação de um clima de amor e de comunicação mútua. Não é meu desejo enfrentar as duas instâncias educacionais, pais e
- A família é, no terreno da sexualidade, o primeiro lugar em que escola. Minha intenção é ressaltar e promover a colaboração mútua nesse
se transmitem os valores primordiais sobre a vida sexual. campo tão importante que é o da educação sexual. A família e a escola
- É na familia que se considera mais especialmente a peculiaridade são dois lugares de educação sexual com missão específica cada um deles,
de cada indivíduo no que tem de original e próprio. embora integrados na unidade de um projeto comum.
- A vida e o comportamento dos pais têm uma influência decisiva na . A escola permite às crianças e adolescentes compreender de maneira
educação sexual dos filhos: 1) A autêntica vida do casal ("íntima comu- sistemática e vivenciar num contexto mais amplo que o da família os
nidade de vida e amor") é a condição para o aparecimento de um novo dados essenciais de seu desenvolvimento sexual e afetivo.
ser. 2) A aceitação responsável do filho - e de seu futuro sexo-, assim Apresento em seguida alguns pontos mais relevantes que devem ser
como uma gestação sadia, são fatores que não podem ser descuidados. 3) levados em conta pela escola na educação sexual:
A vida integrada dos pais tem influências reais, embora invisíveis, na - No que diz respeito ao conteúdo da educação sexual, a escola se
configuração sexual dos filhos, sobretudo nos primeiros anos. 4) Os pais fixa de preferência no que se pode denominar "orientação acadêmica" do
desempenham um papel decisivo na "identificação sexual" de seus filhos. tema. Isso implica: 1) integrar a dimensão sexual e afetiva no conjunto
5) A vida conjugal e familiar é o clima adequado para que o adolescente d~ projeto educacional; 2) oferecer, ao longo das etapas educativas, uma
se abra ao mundo do "outro" e consiga assim a "socialização" desejada. onenração sistemática do tema; 3) entender a sexualidade em todos os
- Corresponde também aos pais responder às primeiras "curiosida- seus níveis, incluídos os aspectos éticos.
des" dos filhos sobre o sexo: "de onde vêm os bebês", "qual o papel do _ ,- A educação sexual na escola não pode ser reduzida a conteúdos
pai" etc. Esse trabalho se transforma mais adiante em diálogo amistoso ~ª 0 -:ticos; o conhecimento deve ser traduzido em atitudes e em formas
em que se abordam as realidades da puberdade, as primeiras experiências e vida. A escola deve propiciar o desenvolvimento psicossexual da crian-
de relação etc. ça e do adolescente. Nesse aspecto, devem ser orientados com esmero os

132 133
A EDUCAÇÃO SEXUAL
SEXUALIDADE

aspectos seguintes: 1) a co-educação, se se dá nas etapas educacionais; a educação social em seus aspectos mais difkeis e delicados: educação
2) a relação entre meninos e meninas como base para um conhecimento sexual de excepcionais, reeducação sexual, programas de educação sexual
mútuo e uma relação personalizante. para adultos etc.
- A pedagogia assume particular importância na educação sexual.
Os programas devem respeitar o caráter gradual e diversificado de toda II. O CONTEÚDO BÁSICO DA EDUCAÇÃO SEXUAV
educação sexual sadia. Com relação aos métodos, os meios de ensino
visual (livros, filmes, diapositivos, quadros) devem ser avaliados cientifi- 1. OBJETIVOS GERAIS DA EDUCAÇÃO SEXUAL
camente no que tange à sua adaptação pedagógica e aprovados pelos pais.
- Os educadores que se dedicam mais diretamente à educação A educação sexual é um processo pedagógico que tende a conseguir
sexual devem garantir estar de posse de um conjunto de qualidades im- a plenitude na realização pessoal e na comunicação com os outros, com
prescindíveis: 1) competência no tema; 2) capacidade de discernimento o que envolve de assunção da responsabilidade diante do outro sexo, dos
que se traduz em juízos equilibrados; 3) proximidade efetiva e afetiva filhos e da sociedade. Seus objetivos poderiam ser formulados assim:
com os educandos; 4) integração psico-afetiva pessoal; 5) testemunho de l. Compreender o significado biológico da reprodução e conhecer os
valores no terreno sexual. Essas qualidades são necessárias também à mecanismos pelos quais se realiza.
comunidade educativa em geral. 2. Promover o desenvolvimento harmonioso e integral da pessoa como
- A organização concreta da educação sexual na escola pode adotar valor em si mesmo, aceitando sua própria sexualidade.
diversos modos, tal como se observa no estudo comparado dos códigos 3. Favorecer uma atitude aberta aos outros diante das tendências na-
de diversos países. A meu ver, é mais conveniente criar na escola uma turais de egocentrismo.
"plataforma educativa" (de pais e educadores) do que introduzir uma 4. Estimular uma atitude de negação de qualquer tipo de isolamento,
"disciplina" no currículo escolar. Cabe aos órgãos da Administração aju- dado que aceitar e viver plenamente a sexualidade é reconhecer
dar com programas de serviço à escola, assim como exercer uma função nosso ser como um ser em relação.
de vigilância e supervisão. 5. Favorecer o respeito à dignidade humana do homem e da mulher
com o reconhecimento da igualdade de direitos na ordem política,
3. A SOCIEDADE
econômica e legal, tanto na família como na sociedade.
6. Esclarecer o caráter específico da.sexualidade humana na medida em
A sociedade tem uma função decisiva na educação sexual de todos, que supera a mera capacidade de reprodução e afeta todas as rela-
crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas. São muitos os aspectos ções interpessoais, sendo portanto força para a formação e integração
em que se concretiza essa função. Já indiquei antes o dever de autocontr~le da personalidade.
comunitário que cabe à sociedade (em meios de comunicação sooal, 7. Promover o conhecimento dos processos biológicos, psicológicos,
publicações, espetáculos etc.). sociais e éticos relacionados com a sexualidade.
De igual importância é a criação de um clima social em que sejam 8. Promover o sentido de responsabilidade assumindo a realização pes-
mais naturais o desenvolvimento e a integração psico-afetiva. Por outro soal na própria sexualidade, em suas dimensões pessoal, familiar e
lado, é necessário ressaltar a importância da Administração e de outras comunitária.
entidades sociais na promoção da educação sexual: por meio de progra- 9 · Criar atitudes que correspondam à convicção de que a sexualidade
mas de saúde, projetos de ajuda assistencial etc.
Sem retirar responsabilidades da família e da escola, creio que as
instituições sociais constituem a instância mais adequada para promover

134
--- é uma linguagem de amor, de intercâmbio, uma força para o encon-

2. Ver nota 1.

135
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

tro interpessoal, isto é, muito mais do que um estímulo ou ocasião De 11 a 14 anos:


de satisfação individual.
Incerteza diante da evolução sexual

2. CONTEÚDOS DISTRIBUÍDOS SEGUNDO A IDADE O que é a adolescência? As mudanças tisicas da puberdade.


Conseqüências psicológicas: atitude de autonomia e ambivalência
Oferecemos a seguir algumas diretrizes referentes a conteúdos se- desse período.
gundo níveis relacionados com a idade. Desenvolvimento pessoal: necessidade de amar e amadurecer.
Essa informação será dada pelo educador (pais, professores), de Aparecimento de problemas relacionados com a sexualidade: curio-
sidade legítima e normal diante dessa problemática. O perigo da iniciação
forma gradual e progressiva no âmbito das áreas correspondentes. Não
incorreta.
supõe, portanto, um horário especial, embora requeira uma temática
especial dentro dessas áreas.
Alguns temas estão repetidos nos diversos níveis, visto que se trata Dialética entre a imaginação e o real
de comunicá-los de forma progressiva e levando em conta as caracterís- Primeiros passos da evolução sexual: o amor incerto. Agressividade
ticas psicológicas e socioculturais dos alunos. e timidez. Os pensamentos. O dever de aceitar a realidade.
A relação sexual como uma forma a mais de comunicação humana.
De 4 a 8 anos:
R esposta sexual humana. Diferentes tipos: auto-erótico,
A origem da vida. homossexual e heterossexual
Esquema corporal. Diferenciação de sexos. A complementaridade.
As relações entre os membros da família: o amor. A descoberta de si mesmo e a necessidade de canalizar as forças
Reprodução e nascimento. sexuais. Superação dos comportamentos auto-eróticos.
Repercussão familiar e social do nascimento do bebê. Lactância e A amizade. Necessidade de amar e ser amado.
cuidados do bebê. O ambiente familiar. O desprezo mútuo entre os do~s sexos.
A homossexualidade.
Descoberta do outro sexo: as turmas mistas.
De 8 a 11 anos: Sexualidade e relações: a sexualidade, sinal de que o ser humano é
um ser em relação.
A fecundação: o papel do pai. Paternidade. Sexualidade e amor. Sexualidade e relação amorosa. Sexualidade e
Desenvolvimento e maturação. diversos modos de encontro: a camaradagem, a amizade, o noivado, o
Higiene pessoal: convivência. casamento.
Necessidade de abertura da criança ao grupo. Intimidade. O celibato voluntário e involuntário.
Informação sobre a sexualidade própria.
Diferença sexual: fisiologia e psicologia. A. aceitação da própria sexualidade
Complementaridade dos sexos, destacando o valor de ser diferente.
O valor da amizade. Necessidade de uma sociedade na qual a masculinidade e a feminidade
Revisão crítica dos papéis e símbolos masculino e feminino. Possam encontrar sua realização.

136 137
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

A declaração para eliminar a discriminação com respeito à mulher. Conteúdos Objetivos específicos
Diferença entre sexos.
Início e fim do fenômeno reprodutivo: puberdade, finitude (andro- As relações entre os membros da • Comece a compreender que o
pausa ou menopausa). família: o amor. amor é um sentimento impor-
tante e necessário na vida.
• Comece a reconhecer o papel da
6i;gãos genitais masculino e feminino. Estudo anatômico e fisiológico
família em sua vida.
Aparelho genital masculino. • Valorize a ajuda e a colaboração
Aparelho genital feminino. mútuas no interior da família.
Ciclo sexual. • Compreenda que ambos, pai e
A fecundação. A gravidez. O parto. mãe, cuidam dos filhos.
A higiene fisica e mental.
A origem da vida. Reprodução e • Observe que todas as crianças
nascimento. têm um pai e uma mãe.
Responsabilização dos indivíduos e da sociedade diante • Saiba que o bebê se desenvolve
do fato da reprodução humana dentro do corpo da mãe.
• Comece a compreender que a
Casamento e paternidade responsável.
reprodução precisa de fêmeas e
Divórcio.
Reprodução. machos.
Anticoncepção. O problema do nascimento ou não-nascimento. • Aceite a reprodução como um
Aborto e direito à vida. Problemática. processo natural, essencial a toda
forma de vida.
• Aprenda que alguns seres vivos
3. CONTEÚDOS E OBJETIVOS ESPECÍFICOS POR CICLOS
nascem através de uma abertura
PRIMEIRO CICLO (quatro-oito anos) especial no corpo da mãe.

Repercussão familiar e social do • Compreenda que crescer signifi-


Conteúdos Objetivos específicos
nascimento do filho. Lactância e ca algo mais do que aumentar
Esquema corporal. Diferenciação de Que o aluno: cuidados do bebê. O ambiente fa- de tamanho.
sexos. A complementaridade. • Reconheça que há diferenças se- miliar.
• Reconheça que o crescimento
xuais entre os homens e as mu- implica responsabilidades.
lheres (progressivo).
• Compreenda que o nascimento
• Comece a desenvolver um voca-
bulário adequado para as partes de um filho tem repercussão em
do corpo e suas funções. sua família e em sua comuni-
• Desenvolva uma atitude de na- dade.
turalidade com relação a seu cor- • Saiba que um bebê precisa de
po e às funções deste. muitos cuidados.

138 139

J
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

SEGUNDO CICLO (oito-onze anos) • Procure compreender a inter-re-


lação entre as mudanças fisicas e
Conteúdos Objetivos específicos psicológicas.
• Desenvolva atitudes de aceitação
Necessidade de abertura da criança Que o aluno:
do sexo como um processo bási-
ao grupo. Nascimento da intimida- • Descubra a necessidade de am-
co da vida.
de. O valor da amizade. pliar seu círculo social.
• Valorize a convivência, excursões A fecundação: o papel do pai. • Amplie o conteúdo da reprodu-
acampamentos etc. '
ção com o conceito de fecunda-
• Seja introduzido na reflexão so- ção, crescimento do embrião e
bre si mesmo. nascimento (progressivo).
• Seja introduzido em atitudes de • Amplie a terminologia utilizada.
entrega, altruísmo, companheiris- • Compreenda o papel do pai na
mo e amizade. fecundação.
• Desenvolva atitudes de abertura
ao grupo. Revisão crítica dos papéis e símbo- • Compreenda o diferente papel
los masculinos e femininos. dos sexos na reprodução e a
Higiene pessoal. Convivência. • Compreenda a importância que
complementaridade de ambos.
tem a higiene pessoal para a con-
• A
VIvenoa.
• • Compreenda a igualdade dos di-
reitos dos sexos.
Desenvolvimento e maturação. • Aprenda o desenvolvimento e • Julgue os papéis que se atribuí-
maturação das glândulas sexuais ram socialmente aos homens e
(progressivo) às mulheres.
• Compreenda o aparecimento dos • Revise esses papéis na sociedade
caracteres sexuais secundários (pro- atual.
gressivo).
Características psicológicas da ado- • Aprofunde-se no conhecimento
Informação sobre a própria sexua- • Aprenda o papel das glândulas lescência. das mudanças biológicas, psíqui-
lidade. Diferenciação sexual: fisiolo- endócrinas no processo do cres- cas e caracterológicas da adoles-
gia e psicologia. Complementarida- cimento, desenvolvimento e ama- cência.
de dos sexos, destacando o valor de durecimento (progressivo). • Desenvolva atitudes de autono-
ser diferentes. • Aprenda as diferenças sexuais fi- mia, de responsabilidade, solida-
siológicas e psicológicas (progres- riedade e formação de sua per-
sivo). sonalidade.
• Reconheça as modificações fisio - • Inicie a formação de sua cons-
lógicas na puberdade. ciência moral.
• Conheça e aceite as mudanças • Liberte-se de temores e angústias
emocionais da puberdade: mu- relacionadas com o desenvolvi-
danças de caráter, amor etc. mento e harmonização do sexual.

140 141
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

Resposta sexual humana. Diferen- • Aprofunde-se na descoberta de O papel da família na atual socieda- • Conheça a legislação sobre o
tes tipos: auto-erótico, homossexual, si mesmo e na necessidade de ca- de espanhola. Funções da família: aborto e divórcio e suas repercus-
heterossexual. nalizar as forças sexuais. reprodução, cuidado dos filhos, sões psicológicas, sanitárias e so-
• Aprofunde-se na amizade e nane- respaldo afetivo. ciais.
cessidade de amar e ser amado. • Coloque-se diante da responsa-
• Descubra o outro sexo, favorecen- bilidade pessoal e social do abor-
do a formação de turmas mistas. to, assim como do tema do di-
• Conheça as conseqüências sani- reito à vida e sua problemática.
tárias, psicológicas e sociais das
distintas respostas sexuais.
• Examine a importância de atitu- 4. OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS
des éticas e de controle dos im-
pulsos sexuais. PRIMEIRO CICLO (quatro-oito anos)

Conhecer a fisiologia masculina e • Conheça a fisiologia masculina e Desde sua mais tenra infància, a criança se interessa pelo que vê.
feminina. feminina. Aparelho genital mas- Desde os dois ou três anos, a maioria das crianças faz perguntas, em
culino: formação de espermato- geral à mãe, que pode ser definida como a educadora sexual por excelên-
zóides nos testículos. Aparelho cia. Daí o grave erro das mães que confiam sua educação sexual a
genital feminino: ciclo sexual da terceiros.
mulher. Fecundação. Gravidez. Os pais devem levar os filhos a conservar sua simplicidade. É neces-
Parto. Higiene. sário que estes últimos façam suas próprias descobertas. Se não o fizerem
Sexualidade e relações. A camara- • Aprenda a desenvolver relações durante a infància, eles o farão mais adiante, mas então isso se dará
dagem. A amizade. O noivado. O interpessoais satisfatórias. misturado com um grave complexo de culpa.
casamento. O celibato voluntário e • Compreenda o sentido da sexua- Pode haver crianças que não façam perguntas. Nesses casos, é
involuntário. lidade como sinal de que o ser indispensável provocar as perguntas das crianças, fazendo uso das oca-
humano é um ser em relação. siões possíveis, por exemplo uma mulher grávida, o nascimento de um
• Aprofunde-se em atitudes que bebê etc.
desenvolvam a amizade. A escola deve constituir um complemento à ação formativa do
• Faça uma avaliação ética de suas lar. Deve ocorrer uma permanente intercomunicação entre as duas
relações com pessoas do outro sexo. instituições.
• Conheça as diferentes formas de
É sempre aconselhável responder a todas as perguntas da criança
celibato e sua repercussão social.
sobre qualquer tema. Nunca mentir na exposição e desenvolvimento dos
O casamento. Concepção e anticon- • Avalie o sentido da sexualidade temas sexuais, mas também não ultrapassar os limites das perguntas e da
cepção. O aborto. O divórcio. como superação do próprio egoís- capacidade de compreensão correspondente à psicologia de cada idade.
mo e encontro com o outro. ~ara que se mostrem valiosas e eficazes, as explicações devem seguir um
• Conheça os principais métodos ntmo progressivo; o próprio conteúdo da pergunta serve para saber aquilo
anticoncepcionais e faça uma ava- ern que a criança está interessada nesse momento. Gessei alerta para o
liação ética de seu uso. Perigo de uma franqueza excessiva e prematura que criaria dificuldades

142 143
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

em lugar de resolvê-las. A criança não pede explicações que suplantem Convém que eles conheçam alguns, mas levem cuidadosamente em con-
sua capacidade de assimilação. Não se pode dizer a ela tudo de uma vez. sideração que não se podem deixá-los indiscriminadamente ao alcance das
A escolha da imagem tem de corresponder à imaginação pueril, e crianças, pois muitos carecem da necessária delicadeza e ternura. Pode ser
muitas vezes não é a mais adequada uma explicação botânica, nem mes- também oportuno assistir a seminários ou cursinhos de formação.
mo para as crianças mais inteligentes.
É preciso falar quando a criança necessita disso, escutando-a e crian- SEGUNDO CICLO (oito-onze anos)
do um clima de confiança e espontaneidade. É preferível, desde logo, falar
um mês antes do que um dia depois. Nesta etapa, os problemas já são um pouco mais complicados e,
Nessa primeira época, mais do que palestras especiais sobre o tema, portanto, é mais conveniente ainda a estreita colaboração entre pais e
aquilo de que se precisa é estar atento às inumeráveis ocasiões que as educadores.
crianças, quer individualmente, quer em grupo, nos proporcionam. Um Uma forma de fazê-lo, além das explicações em sala de aula, seria
pai, mãe ou educador que ame as crianças, se responder com clareza, dar palestras conjuntamente a pais e educandos. Assim, os pais tomam
dignidade, veracidade e associando ao amor suas respostas, pode estar conhecimento do que seus filhos sabem, e o comentário ou a palestra
certo de que não prejudicará e, pelo contrário, poderá fazer um grande pode significar, em muitos casos, que pela primeira vez pais e filhos falam
bem. Nesse "estar atento", o educador encontrará o momento e a forma do tema. Deve-se proporcionar não uma aula inaugural, mas um cons-
mais oportunos de transmitir informação. tante diálogo, talvez com uma breve introdução.
Não obstante, baseando-nos no desenvolvimento psico-evolutivo da Podem ocorrer problemas individuais que exijam, obviamente, um
criança e na mudança em seus interesses e motivações, podemos oferecer tratamento individualizado.
algumas linhas gerais de atuação. Nesta época (oito-onze anos), a criança permanece no período de
Por volta dos quatro anos, a criança exprime uma franca curiosidade latência, que durará até a puberdade. Do ponto de vista psicossexual, esta
a propósito dos sexos e, por extensão, a propósito do umbigo. Ela busca fase é muda no plano das manifestações sexuais, sendo, pelo contrário,
a explicação das diferenças de estrutura tisica, pergunta-se o que são os rica em aquisições culturais, tanto na escola como fora dela. A criança,
órgãos genitais e para que servem. Tem nessa idade uma sensível intuição nesses anos, continua progredindo, afetiva e intelectualmente, em seus
da importância do sexo, anterior a toda idéia da reprodução, mas não contatos sociais, e de uma maneira forçosamente dinâmica. Este período
pode compreender ainda a significação profunda dos sexos. assinala uma evolução positiva da personalidade da criança. É precisamen-
O papel maternal é outra das questões que não tardam a colocar- te nesse momento que se mostra possível observar seu equilíbrio psíquico
se como conseqüência da observação, por parte das crianças, das mulhe- e afetivo. Nesse plano, trata-se da época dos grandes amores pueris e
res grávidas; neste estágio, a questão do nascimento dos bebês centra-se sentimentais.
na mãe, a criança não se preocupa com o papel do pai, pois é incapaz de Quanto aos interesses sexuais e à diferenciação, cabe indicar uma
discernir sua contribuição; mais tarde, por volta dos nove-onze anos, ela série de características, tais como: acentuado interesse pela diferença se-
se interessa pelo papel do pai; o conhecimento desse papel não implica xual; divertem-se olhando furtivamente os outros, as meninas começam
necessariamente a compreensão do ato que dá a vida. a fazer perguntas sobre a menstruação, os sexos começam a separar-se
A explicação completa do fenômeno da procriação é assimilada no espontaneamente por meio de jogos, relacionam o aspecto da mulher
terceiro ciclo. grávida com o bebê. Por outro lado, trocam com os amigos do mesmo
Os pais e educadores devem procurar, é evidente, obter informações sexo informações sobre a sexualidade, interessam-se pelos detalhes de
nessa linha. Existem muitos livros e instrumentos educativos no mercado. seus próprios órgãos e por suas funções, sentem-se muito perturbados

144 145
SEXUALIDADE A EDUCAÇÃO SEXUAL

quando se vêem nus, podem inquietar-se por si mesmos no que se refere A influência de uma iniciação bem ou mal feita, permitindo a
ao processo de reprodução e também se interessam pelo papel do pai na integração dos valores positivos do sexo ou degradando esses valores,
fecundação. determina, necessariamente, as atitudes do jovem diante do amor e do
Por tudo isso, parece-nos apropriado estabelecer alguns conteúdos casamento, da maternidade ou da paternidade.
relacionados com as necessidades e fases que o aluno experimenta em sua Não se deve falar das relações sexuais a uma criança ou a um ado-
evolução psicológica. Nessa linha, assumem sentido conteúdos como: lescente sem falar-lhes do amor, porque é o amor que dá, em definitivo,
fecundação, o papel do pai, a paternidade, desenvolvimento e maturação, seu pleno valor ao ato sexual humano.
diferenciação sexual, fisiologia e psicologia, complementaridade dos se- Com esse objetivo, consideramos conveniente organizar uma série
xos, valor da amizade, necessidade de abertura da criança ao grupo etc. de palestras ou cursinhos nos quais se analise a vida sexual do nascimento
ao casamento, com especial ênfase nos problemas próprios da idade dos
TERCEIRO CICLO (onze-catorze anos) ouvintes. Podem-se utilizar slides, gráficos ou material cinematográfico,
que sem dúvida servem para aprofundar-se mais em certos conteúdos e
Durante esta fase, o aluno abandona a etapa de latência e entra na funcionamentos. Um breve e planejado debate ou colóquio pode, e deve
puberdade; portanto, em nível afetivo se encontra diante das primeiras ser, sem dúvida, um complemento às lições e temas que se transmitem
manifestações de sua sexualidade. Isso de alguma maneira marca e impri- nesta etapa.
me caráter no comportamento do aluno.
A adolescência é o período em que a criança se torna adulto, isto
é, a passagem da infância à idade madura. Em termos psicológicos, esta
época começa com a mudança fisica da puberdade, alcançando os órgãos
sexuais sua capacidade fisiológica de funcionamento e desenvolvendo-se
rapidamente os caracteres sexuais secundários.
Em suas relações com os outros, o indivíduo busca, cada vez mais,
uma maior autonomia, o que suscita conflitos com os outros e, em
especial, com os pais, sendo importante para ele ser livre, sentir-se res-
ponsável e senhor de si, com todas as suas conseqüências. É um período
de ambivalência, pois o sujeito deseja entrar no mundo adulto e, por
outro lado, teme esse mundo.
Segundo este nível de desenvolvimento psico-afetivo, parece-nos
interessante introduzir nos conteúdos temas que, de uma forma direta ou
indireta, aludam à dialética entre a imaginação e o real, à incerteza diante
da evolução sexual, às diferentes respostas sexuais: auto-erotismo, ho-
mossexualidade e heterossexualidade, aceitação da própria sexualidade,
fisiologia masculina e feminina, casamento e sua função etc.
A maturação das glândulas sexuais permitirá à criança entrar num
nível superior de compreensão da educação sexual. A descoberta do papel
dos sexos é fundamental no momento da evolução pubertária.

146
14~
O AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO
ANTROPOLÓGICO EORIENTAÇÃO ÉTICA

A BORDA-SE neste capítulo o tema do auto-erotismo, que também se


denomina masturbação (e, com termos inadequados, "onanismo"
ou "vício solitário"), adaptando o enfoque à nova perspectiva em que se
coloca hoje a ética sexual. Os critérios gerais da ética sexual devem ser
testados nos diferentes aspectos particulares do comportamento sexual
humano. Um deles é o do auto-erotismo, entendendo-se por ·este o
comportamento humano que se exprime pelo exercício sexual solitário
ou sem relação propriamente interpessoal.

1. SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO DO AUTO-EROTISMO

Procurando estudar a masturbação como um problema antropoló-


gico, deve-se submetê-la a diversos níveis de consideração ou reflexão. O
conjunto de todos proporcionará a significação antropológica.

l. FREQÜÊNCIA ESTATÍSTICA

A freqüência da masturbação é elevada, sobretudo em certas etapas


da vida humana. Mesmo reconhecendo as variações e até as falhas das
estatísticas sobre o comportamento sexual humano, não se pode deixar
de reconhecer a porcentagem elevada da prática masturbatória. Apresen-
tamos o resultado de algumas pesquisas.

149
SEXUALIDADE Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

- Segundo o Relatório Kinsey1, entre os homens pesquisados Outras pesquisas3 falam também da elevada porcentagem da
(5.300), 92 por cento praticou alguma vez a masturbação; entre as masturbação, sobretudo entre os adolescentes e os jovens.
mulheres (5.940), 62 por cento. A porcentagem dos homens se concre- Peck e Well (1923) chegam à conclusão de que 78 por cento dos
tiza do seguinte modo: 96 por cento nos indivíduos com nível universi- adolescentes pesquisados afirmam que de tempos em tempos se dedicam
tário; 95 por cento em indivíduos que não foram além do ensino secun- à masturbação.
dário; 89 por cento entre meninos da escola primária. A pequena porcen-
Segundo as pesquisas de Harvey (1932), a prática da masturbação
tagem de homens que não se masturbaram (8 por cento) se deve, de
varia segundo a idade - dos doze aos dezoito anos - entre 15 e 75
acordo com Kinsey, à pouca força do impulso sexual, à compensação das
por cento.
poluções noturnas e à prática de relações heterossexuais. Quase todos os
indivíduos ouviram falar da masturbação antes de praticá-la. Meirowsky (1936) pôde determinar que 70 por cento dos rapazes
que pesquisou praticavam a masturbação: 14 por cento durante um
Kinsey observa que os rapazes do meio rural agrícola se masturbam
breve período; 35 por cento durante cinco a dez anos; de acordo com
com menos freqüência do que os do meio urbano, principalmente no
esses resultados, 65 por cento não têm uma duração maior do que
decorrer da adolescência. Ele assinala além disso que o período de maior
quatro anos.
atividade sexual se situa entre os dezesseis e os vinte e cinco anos, alcan-
çando cedo sua maior freqüência (dezessete-dezoito anos); a partir dos Para M. Hirschfeld, que pesquisou 436 indivíduos, o ponto culmi-
dezoito anos, a freqüência da masturbação diminui, sendo mais rápido o nante da freqüência no que se refere ao começo da masturbação se
descenso nas classes inferiores da sociedade (pela maior facilidade de encontra na idade de doze a catorze anos.
relações heterossexuais). Lucella Cole expõe um estudo de Ramsey ( 1943) em que se afirma
- Das pesquisas realizadas na Itália por Troilo e Scremin 2 , resulta que, dos 291 adolescentes entrevistados, 10 por cento começou a mas-
que o começo da masturbação se diversifica da seguinte forma quanto ao turbar-se antes dos oito anos, para chegar, por volta dos quinze anos, à
tempo: proporção de 98 por cento.
Jersild ( 1946) afirma que os resultados das diferentes pesquisas
Anos % Anos % indicam que, antes de chegar à idade adulta, masturbaram-se uma ou
4 0,65 13 16,17 mais vezes 90 por cento dos homen~ e 50 por cento das mulheres.
5 4,40 14 17,60 De todas essas estatísticas, deduzimos a grande freqüência da mas-
6 0,70 15 15,50 turbação4. Trata-se de um dado que se deve levar em conta. Entretanto,
7 2,80 16 6,00 o critério estatístico não é decisivo para estabelecer a "normalidade" ou
8 2,90 17 4,90 "anormalidade" de um determinado comportamento. É necessário for-
9 2,90 18 1,90 mular o problema em outros níveis de uma explicação completa.
10 4,90 19 0,75
Se a partir de um simples critério estatístico se pode dizer que a
11 7,80 20 0,40
masturbação não supõe nenhuma "anormalidade", essa afirmação não

-
12 14,10 21 0,30
pode assumir uma validade universal para qualificar esse fenômeno em

1. A. C. Kinsey, La conducta sexual dei varón, Buenos Aires, 1953; id., ibid., La 3. Cf. J. G. PRICK e J. A. CALUN, "La masturbación chez les garçons", em
conducta sexual de la mujer, Buenos Aires, 1954. , Puberté et problemes sexuels de l'adolescence, Paris, 1956, pp. 74-76.
2. Publicações em COMOLLI-ORIGLIA, La pubertà, Roma, 1957, p. 166. Exrra~­ E .4. Sobre a extensão da masturbação nas distintas épocas e culturas, cf. H. ELLIS,
do de V. COSTA, Psicopedagogía pastoral de la castidad, Alcoy, 1968, pp. 9-10, nota · studios de psicología sexual, t. 1, Madri, 1913.

150 151
SEXUALIDADE Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

sua dimensão humana integral. A estatística não é a única avaliação do biologia do adolescente, principalmente do adolescente homem, adquire
comportamento humano, e menos ainda de um comportamento ético. algumas características tão determinadas
que constituem o ponto de partida do impulso à masturbação e explicam sua
difusão quase universal no espaço e no tempo. Em suma, as glândulas do
2. CONSIDERAÇÃO MÉDICO-BIOLÓGICA aparelho genital tendem a esvaziar-se de suas secreções; portanto, de um ponto
de vista estritamente biológico, a ejaculação, espontânea ou provocada, representa
Impelidos pela elevada freqüência estatística da masturbação, sobre- uma exigência do organismo e - contanto que não exceda determinados
tudo na adolescência, muitos médicos consideram-na uma atividade nor- limites, na realidade muito flexíveis - não suscita conseqüências prejudiciais 7 .
mal, ou ao menos de pouca importância. O que dizer dessa avaliação? Afastando, pois, os casos raros de caráter patológico, a masturbação
Comecemos afirmando a inépcia e até a falsidade de uma argu - não é algo anormal de um ponto de vista estritamente biológico. Essa
mentação moral que apóia a imoralidade da masturbação em alegadas constatação, em primeiro lugar, não pode ser desconhecida pelos mora-
"doenças" dela resultantes. Uma ética e uma educação baseadas no listas e educadores; ela deve ser levada em conta no momento de fazer
medo dessas conseqüências são totalmente inadmissíveis por carecer de o juízo ético sobre a masturbação. Mas, por outro lado, essa afirmação
apoio real. não pode ser generalizada e declarar que a masturbação, enquanto fenô-
É necessário retirar do horizonte uma série de preconceitos morais meno humano total, é algo "normal". Uma coisa é a avaliação estrita-
e educacionais provenientes de uma pseudo-ciência exagerada. mente médico-biológica e outra a avaliação completa de um fenômeno
humano.
Com efeito,
contrariamente a um preconceito ainda muito difundido e tenaz, apesar da
evidência, pensamos que a masturbação não oferece nenhum perigo nem ne- 3. C ONSIDERAÇÃO PSICOLÓGICA
nhum inconveniente no que se refere à saúde fisica, exceto em casos extremos
de freqüência excessiva 5 • A masturbação é, sobretudo, um fenômeno psíquico. É um fato no
No âmbito de uma consideração estritamente biológica, interior da estrutura e da evolução do psiquismo humano.
a masturbação se apresenta no começo da adolescência como um fenômeno de Antes de oferecer uma avaliação psicológica do fenômeno da mas-
caráter eletivo, ao passo que, à medida que nos aproximamos e chegamos à turbação, é necessário submetê-lo a uma série de esclarecimentos para
plena maturidade sexual, assume cada vez mais o significado de um fenômeno apreender seu autêntico significado. Concretizamos esses esclarecimentos
substitutivo6 . nas próximas seções: causas, mecanismos psíquicos e tipologia.
Da masturbação "substitutiva" do adulto (tanto do homem como
da mulher) não se segue, em geral, nenhum tipo de transtornos de tipo
a) Causas do auto-erotismo
médico. Na masturbação da puberdade e dos anos que a sucedem ime-
diatamente, aparece muito menos o caráter "anormal". As causas que provocam o fenômeno da masturbação continuam a
O fenômeno masturbatório pode ser considerado uma característi- configurá-lo de um ponto de vista psíquico-cultural; por isso mesmo, elas
ca, embora não obrigatória, do longo processo de evolução sexual. A devem ser levadas em conta para avaliá-lo. São de diversas espécies:
- Alguns fatores hereditários podem favorecer a predisposição ao
5. M. ORAISON, Armonía de la pareja humana, Madri, 1967, p. 19. Ver afirma- auto-erotismo, mas não são os decisivos para explicar esse fato psíquico.
ções similares em J. M. DEXEUS TRÍAS DE BES, La sexualidad en la práctica médica, Os fatores hereditários precisam de uma determinação ulterior, que pro-
Madri, 1963, p. 51; J. J. LÓPEZ IBOR, Lecciones de psicología médica, 5ª ed., Madri,
1968, p. 81.
6. G. SANTORI, Compendio de sexología, Madri, 1969, p. 157. 7. Id., ibid., p. 158.

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SEXUALIDADE Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

vém da ação do sujeito e da influência do ambiente. A herança tempera- e a educação não podem prescindir dessas variações particulares no qua-
mental influi na maior ou menor predisposição auto-erótica. Com efeito )
dro da generalidade do fenômeno .
nos introvertidos (tipo astênico) se observa uma maior tendência à mas-
turbação; em contrapartida, os extrovertidos (tipo atlético e pícnico)
encontram mais facilmente a maneira de superar essa inclinação: median-
b) Mecanismos psíquicos
te a compensação da agressividade no atlético ou mediante a compensa- Os mecanismos psíquicos, mediante os quais se realiza o fenômeno
ção da tranqüilidade no pícnico. Contudo, a herança temperamental não da masturbação em nível psicológico, também devem ser levados em
explica por inteiro o fenômeno da masturbação. conta para dar-lhe uma avaliação adequada.
- As causas são sobretudo de origem psicogênica. Enumeremos Entre tais mecanismos, podemos distinguir os seguintes: "repres-
algumas delas, deduzidas do caráter evolutivo do impulso sexual no
são'', "fixação", "regressão'', "progressão lenta". Aplicando esses concei-
homem.
tos gerais ao tema concreto da masturbação, encontramo-nos com dife-
• Um ambiente familiar inadequado costuma ser uma causa geral rentes configurações psicológicas:
da masturbação no adolescente; a criança e o adolescente precisam de um
- A repressão é um mecanismo que o "ego" possui para defender-
clima de segurança e de apoio para poder abrir-se ao mundo dos outros;
se de um conteúdo psíquico adotando uma forma diversa ou camuflada.
o clima familiar exerce o papel de atmosfera para esse primeiro vôo do
Em algumas formas de masturbação, pode-se observar essa configuração
homem ao mundo desconhecido dos outros. Se ele não encontrar esse
repressiva.
ambiente de segurança no interior da família, dificilmente se lançará a
- O mecanismo de fixação ocorre quando um ato determinado
essa aventura; na verdade, ele se fechará em si mesmo e empregará as
pressupôs um choque no interior do psiquismo e continua "vivo" (sem
energias psíquicas, dadas para a abertura interpessoal, com vistas a uma
digerir); mais ainda, apresenta-se como um método ou esquema de com-
satisfação compensatória, no âmbito do próprio mundo (auto-erotismo) .
portamento rígido e estereotipado.
• No ambiente familiar, exercem suma influência a figura do pai e
- No fundo de muitos hábitos masturbatórios deve-se colocar um
a da mãe, tal como captadas pela criança e pelo adolescente. A não-
ato traumático, como é, por exemplo, uma iniciação brutal realizada por
resolução perfeita do complexo de Édipo introjetará no psiquismo da
um adulto numa criança.
criança a figura de um pai ("castrador"), o que trará como conseqüência
- Os mecanismos de regressão e de progressão lenta também podem
necessária o fenômeno masturbatório. A figura de uma mãe excessiva-
explicar muitas formas de masturbação.
mente exigente e absorvente produz na criança uma feminização psíqui-
ca, uma dissociação inconsciente entre o amor (de caráter espiritualista)
e a necessidade sexual (de caráter genital) e uma timidez diante do sexo c) Tipologia do fenômeno auto-erótico
oposto; tudo isso influencia a criação de um fechamento masturbatório.
• Entre as causas mais generalizadas da masturbação, devem-se as- O esclarecimento mais importante com vistas à compreensão do
sinalar, ademais, um ambiente escolar adverso e uma socialização dificul- significado psicológico da masturbação é o de sua tipologia, ou, dito de
tada por diversas razões de tipo pessoal e de tipo ambiental. uma maneira mais simples, o conhecimento das diversas espécies de mas-
• De não menor importância é a causa da sedução; com freqüência , turbação. Dada a finalidade deste estudo, interessa-nos fazer as seguintes
a masturbação costuma ter sua origem na iniciação prática de um com- distinções de acordo com diferentes ângulos de consideração.
panheiro. - Considerada no âmbito da dimensão evolutiva do indivíduo: a
É necessário ter em mente essas diferentes causas que influem na masturbação é diferente, em sua estrutura e significado psicológicos, se-
masturbação, visto que lhe dão configurações diversas. A avaliação ética gundo as diversas fases da evolução psicossexual. É muito diferente a

154 155
SEXUALIDADE Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

masturbação num adolescente e num adulto: tem um significado psico- se uma "fixação" num momento de crise que não evolui, uma espécie de
lógico distinto em um e outro dentro da dinâmica de evolução psicossexual. atraso anormal na liquidação da regressão auto-erótica.
- Considerada em sua dimensão de presente, segundo os diferentes - Procurando precisar melhor a divisão anterior, pode-se admitir a
estratos do sexual: uma masturbação pode definir-se mais diretamente distinção de Callieri-Frighi entre "ato masturbatório", "comportamento
pelo estrato biológico; em contrapartida, outra deve ser definida por seu rnasturbatório" e "estrutura caracteriológica masturbatória".
estrato psíquico. A forma de existir concretamente faz que a masturbação
• O ato masturbatório refere-se a um ato que conduz simplesmente
tenha uma significação diversa de acordo com os casos.
à satisfação sexual auto-erótica; esta forma se verifica com maior freqüência
- Em virtude de sua "normalidade psicológica": a masturbação
na idade pubertal, enquanto no adulto tem função de "substituição" do
pode não pressupor transtornos psíquicos notáveis; em contrapartida, em ato sexual normal.
outros casos, ela pode ser sintoma de falhas psíquicas. • O comportamento masturbatório ocorre quando o ato mas-
Na primeira modalidade, a masturbação é efeito de um desvio moral; turbatório passa de isolado a repetido, e de livremente efetuado se torna
é sintoma de uma atitude geral egoísta, o que não tem forma de doença compulsivo ou obsessivo.
psíquica; essa atitude de egoísmo se desencadeia por múltiplos motivos: • A estrutura caracteriólogica masturbatória implica, além do com-
busca do prazer; fraqueza; carência de objeto sexual (caso de abstinência portamento, uma estrutura psicológica fracassada num setor não propria-
forçosa). mente sexual, como pode ser uma falha de integração em algum traço
Na segunda modalidade, a masturbação é sintoma de uma falha essencial da personalidade fixada num estágio mais imaturo.
psíquica; de acordo com a configuração do transtorno psíquico que está
na base da masturbação, assim será a forma patológica desta. Destacamos d) Síntese: significado psicológico
duas: a masturbação "neurótica" e a masturbação "perversa".
A primeira é a que aparece unida a fobias e a obsessões e demonstra Examinada em nível psicológico, a masturbação é um "fechamento
um defeito no desenvolvimento psíquico; a masturbação neurótica é vi- sobre si mesmo". Enquanto o homem amadurece na abertura aos outros,
vida num ambiente de angústia, num clima compulsivo-obsessivo. a masturbação é uma ação que o enclausura dentro de si mesmo.
A masturbação perversa não é avaliada pelo grau de perversão moral, Esse significado negativo da masturbação é percebido de modo
mas pelo grau de perversão em sentido psicológico (psico-analítico ); claro na época da adolescência. A situação do adolescente é muito com-
aparece principalmente numa estrutura psíquica de caráter "narcisista": plexa, sobretudo no que diz respeito a seu dever de integração social.
nesses casos, o masturbador vivencia sua sexualidade no círculo fechado Diante da dificuldade normal inerente a essa abertura, o adolescente
de seu corpo, no interior de um ambiente de anomalia psíquica. pode tomar o caminho fácil do auto-erotismo;
tenderá a desviar-se para o prazer solitário que se proporciona a si mesmo, em
- Em função da freqüência: costuma-se distinguir a masturbação
circuito fechado, como para abstrair-se e defender-se do mundo que o circun-
acidental e a masturbação habitual. A diferença não está essencialmente da, um mundo incompreensível, incompreensivo e hostil8.
no número de atos, mas na forma psicológica adotada. Não se pode avaliar por igual toda masturbação. Nem toda mastur-
Na masturbação acidental, não há "fixação" num estado de crise bação compromete do mesmo modo a evolução e maturidade pessoal.
auto-erótica, tampouco existindo o problema de abandonar uma situação Os moralistas costumavam dar uma única avaliação "objetiva" à mastur-
na qual foram abundantes os atos masturbatórios. Pelo contrário, a mas- bação. De uma perspectiva psicológica, seria falsa essa univocidade de
turbação habitual se instala de maneira habitual e quase regular uma ou iuízo. Por exemplo,
mais vezes por semana durante períodos que variam, segundo os sujeitos,
entre alguns meses e alguns anos. O problema é então diferente. Produz- 8. ORAISON, op. cit., p. 18.

156 157
Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA
SEXUALIDADE

a masturbação acidental que pode ocorrer uma ou duas vezes mal compromete Como contrapartida a esse silêncio dos escritores cristãos com re-
o futuro; ao passo que a masturbação rítmica, habitual, de freqüência máxima lação à masturbação, deve-se observar sua preocupação com as "poluções
numa manifestação diária, e da qual a pessoa já não pode libertar-se apesar de noturnas". A que se deve isso? A seu afa: pela pureza de tipo ritual.
toda a sua boa vontade, representa uma verdadeira anomalia e um handicap Aparecem categorias rituais veterotestamentárias; mesclam-se o "puro" e
real para a evolução psicológica e sexual ulterior9 .
"impuro" (ritual) com o "sacro" e o "moral" (em sentido personalista
cristão). Por isso, insiste-se na pureza sexual (= pureza ritual) com vistas,
II. ORIENTAÇÃO ÉTICA DO AUTO-EROTISMO sobretudo, à comunhão eucarística. Infelizmente, essa concepção teve
ampla influência na moral sexual e na prática cristã e ainda não desapa-
1. OBSERVAÇÕES HISTÓRICAS receu plenamente.
Nos catálogos de penitências dos "livros penitenciais" (Alta Idade
Apesar da abundância dos testemunhos da literatura greco-romana, Média), surge o pecado da masturbação. Esta é descrita com fórmulas cruas
não encontramos na Sagrada Escritura nenhuma passagem em que se e com detalhes próprios de uma época bárbara. Não obstante, consideran-
aluda ao comportamento da masturbação. O Antigo Testamento não do-se as penitências infligidas, é condenada com menos severidade do que
parece conhecer essa prática. Não se pode aduzir a esse respeito o caso os outros pecados da carne; outro detalhe interessante é que se ministram
de Onan, já que esse texto tem outro sentido. O único texto veterotes- penitências mais severas para os adultos do que para os adolescentes.
tamentário às vezes invocado como alusivo à masturbação não é claro e
está, sem dúvida, mutilado. É o de Eclo 23,16-17 10 • O penitencial de são Columbano impõe aos masturbadores dois
anos de penitência (três anos se for clérigo ou monge); outro penitencial
No Novo Testamento também não existe uma alusão clara e explí- irlandês impõe cem dias de penitência para uma masturbação, mas sete
cita à masturbação. Os manuais de moral aduzem diversos textos: 1 Cor anos se se tratar de um habituado (ele esclarece que essas penas devem
6,9-10; Ef 5,3; Gl 5,19-21; mas nenhum deles condena diretamente a ser reduzidas à metade para os jovens de doze a vinte anos) 12 •
masturbação. Os termos malakoi e akazarsia não se referem especifica-
mente à prática da masturbação, cujo vocabulário era bem preciso em O penitencial alemão Reginón de Prum (a. 915) inflige quarenta
grego. A akazarsia é um termo geral que abrange toda espécie de im- dias de penitência ao adolescente masturbador e cem dias ao adulto 13 •
pureza; em contrapartida, o termo malakoi refere-se aos depravados ou Encontramos penas semelhantes no penitencial de Burcardo14 •
efeminados. A tradução da Vulgata de malakoi por "molles" pôde sus-
citar a conexão desse termo com a masturbação, uma de cujas tradições 12. "1. Qui saepe cum masculo aut pecoribus coient, X annis paeniteat. 2. Viri inter
femora fornicantes, II ann. Paenitat. 3. Manu vero semetipsos coinquinantes, C diebus,
latinas era "mollities".
tkrantes consuetudine, Vll annis paeniteat. 4. Fornicantes labiis, quod dicitur scelus,
Nos Padres da Igreja, encontra-se o mesmo silêncio da Sagrada pnmo, III anni, iterantes consuetudine, Vll anni paeniteat. Pueri autem XII anni usque
Escritura com respeito ao tema da masturbação. ad vigentesimum, praefata scelera facientes dimedio paenitentiae supra dictae juxta alios
pumendi fiunt; juniores vero levius vindicandi." Texto em L. BIELER, The Irish Penitentials
Os Padres da Igreja silenciaram praticamente sobre o tema da masturbação.
Dublin, 1963, p. 220. '
Tampouco se menciona a masturbação em relação com a penitência pública na
13. PL, 132, 332-333.
Igreja primitiva 11 • 14. "Fecisti solus tecum fornicationem, ut quidam facere solent, ita dico ut ipse
tuum _virile membrum in manum tuam acciperes, et sic duceres praeputium tu um, et manu
9. Id., ibid., p. 19. propna commoveres ut sic per delectationem semem a te projiceres? Si fecisti, X dies in
10. Diante do silêncio do Antigo Testamento, sobressai a severidade da tradição Pane et aqua paeniteas.
talmúdica; compara-se a masturbação com o homicídio ( Talmud de Babilonia, Niddah, 13 Fecisti fornicationem, ut quidam facere solent, ut tuum virile membrum in lignum
a). Cf. L. M. EPSTEIN, Sex-Law and customs in Judaism, Nova York, 1948. ~~~:oratum, aut in aliquod -~ujusmo_di mitteres ut sic per illam commotionem et
11. Ch. E. CURRAN, Masturbation and Objectively Grave Matter: A New Look at ctat:Jonem a te semen pro)lceres? S1 fec1st1, XX d1es m pane et agua paeniteas" ( PL,
140, 965-968).
Christian Morality, Notre Dame, 1968, p. 213.

158 159
SEXUALIDADE Ü AUTO-EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

Com santo Alberto Magno e com santo Tomás, a moral sexual dá em razões e argumentos que hoje carecem de valor científico. A "supe-
uma reviravolta notável: a partir da influência aristotélica, considera-se a rabundância" do esperma enfraquece a argumentação baseada no temor
sexualidade uma facultas natura/is; o ato sexual é "natural" e, em si, bom da "perda" do líquido seminal. O conhecimento do papel do óvulo e do
e isento de pecado. Condenam a masturbação como um ato que vai espermatozóide na fecundação abre um novo caminho à consideração
contra a finalidade própria outorgada por Deus ao sêmen humano is. A ética da sexualidade. O conhecimento da formação e natureza do esper-
natureza deu o sêmen humano para a produção de um novo ser· )
ma masculino invalida a concepção que dele elaboraram os antigos
"desperdiçá-lo" inutilmente é ir contra a própria natureza. moralistas. ~ .
A moral sexual apoiava-se em concepções pré-científicas da sexuali- Podemos afirmar que desde o Renascimento existiu entre os edu-
dade. Basta recordar que se desconhecia o papel exato dos espermatozói- cadores e moralistas uma espécie de obsessão diante do fenômeno da
des (até 1672, com Graaf); considerava-se a mulher plenamente "passiva" masturbação.
por carecer do conhecimento exato da função do óvulo (até 1827, com Parece ter sido Gerson o primeiro a abordar essa questão com a atitude não
Von Baer); desconhecia-se, por observação direta, o processo de fecunda- só severa como também excessivamente rígida, que depois se generalizou entre
ção do óvulo pelo espermatozóide (até 1875, com Oskar Hertwing) . os moralistas e educadores 19 .
Sobre a natureza, a formação e evacuação do esperma, sustentaram- Recordemos algumas características do ensinamento dos educado-
se idéias muito curiosas. O esperma é um "acréscimo" produzido pelos res. Sobretudo no século XIX, houve uma profusão de publicações em
alimentos ( ccsemen est de superfluo a/imenti generantis))) 16 ; há certos ali- que se expunham todas as doenças que vinham da masturbação: apoplexia,
mentos, como a carne, o leite e os ovos, que são mais próximos do corpo epilepsia, espasmo, tremor, gota, tabe dorsal etc. (na mulher: histeria).
humano e cuja ingestão produz um "acréscimo" ( c1'lus superflui))) que se Entre os livros e autores que mais influência tiveram nesse aspecto,
transforma em matéria de sêmen; por isso, a Igreja prescreve sua absti- convém recordar os seguintes: Bekkers, no começo do século XVII, na
nência para os que jejuam, a fim de não ter excitantes excessivos de Inglaterra, publicou um livro sobre o "onanismo" que teve mais de oitenta
luxúria 17 • A mulher não produz esperma, visto que a "superfluitas)) que edições 20 ; Tissot, doutor em medicina, publicou um tratado em 1760, que
emite é uma coisa imperfeita no gênero de sêmen 18 . se tornou clássico, "sobre as enfermidades produzidas pela masturbação" 21 •
Segundo santo Alberto Magno, o sêmen sai do coração e do cére- Rousseau e Voltaire se alinharam também no mesmo sentido.
bro; é o sistema nervoso que o produz, e pelos nervos ele corre para fora. Ao longo de todo o século XIX, p.umerosos sacerdotes, pregadores,
Uma emissão moderada do sêmen não prejudica nem enfraquece o corpo pais e educadores aceitaram esses erros e exageros e os constituíram em
(a natureza previu a evacuação normal do supérfluo mediante a polução critérios de educação entre o clero e entre os fiéis 22 • Não recordaremos
noturna); em contrapartida, uma emissão imoderada produz fraqueza ~
doenças, dado que joga fora a parte do alimento que estava destinada a
19. A. PLÉ, "La masturbation. Réflexions théologiques et pastorales", Le Supplément,
nutrição do organismo. 77 (1966), p. 265.
Com essas concepções pré-científicas da polução noturna e da mas- 20. Eis o título completo: Onania, or the heinous sin of self-pollution, and ali its
turbação, não é de admirar que fundassem a imoralidade da masturbação frightful consequences in both sexes, considered with spiritual and physical advise.
21. Foi publicado em 1760 em latim e em 1764 em francês com o seguinte título:
Traité de l'onanisme, dissertation sur les ma/adies produites par la masturbation. Teve doze
15. SANTO TOMÁS, Suma teológica, São Paulo, 2001, II-II, q. 153, 2 e 3 ad 1. traduções e resumos. Dispomos da quarta edição (Lausana, 1773.) Cf. o estudo de T.
16. Cf. SANTO ALBERTO MAGNO, De animalibus, 1. XIV, tract. 2 ("De natura TARCZYLO, Sexe et liberté au siecle des Lumieres, Paris, 1983.
spermatis"). 22. Cf. NERET, Documents pour une histoire de l'éducation sexuelle, Paris, 1957.
17. SANTO TOMÁS, Suma teológica, São Paulo, 2001, II-II, q . 147, a. 8; cf. De Vendiam-se e se utilizavam instrumentos para impedir a masturbação (e até a manipulação
Maio, 14. na polução noturna). Sobre as falhas de uma educação "castradora" pelo temor, cf. M.
18. III. q. 31, 5 ad 3. ÜRAfSON, Le mystere humain de la sexualité, pp. 45-50.

160 161
SEXUALIDADE Ü AUTO - EROTISMO: SIGNIFICADO ANTROPOLÓGICO E ORIENTAÇÃO ÉTICA

"detalhes" desse tipo de educação, cujas influências, por outro lado, não to pessoal. Segundo seja um estrato ou outro o que prevaleça, assim
estão ainda tão longínquas 23 • Apenas queremos insistir na impor~ância deverá ser a masturbação avaliada.
dessa obsessão coletiva que teve lugar em todos os ambientes. "E um Correlacionando a categoria temporal com a categoria espacial,
verdadeiro fato cultural, cuja importância não se pode minimizar." 24 depararemos com a dimensão real autêntica da masturbação enquanto
fenômeno humano; à diferente etapa da evolução dinâmica sexual costu-
2. ÜRIENTAÇÕES ATUAIS
ma corresponder a prevalência de um estrato humano determinado. Por
exemplo, algumas masturbações na época da adolescência ou juventude
_ Não se pode fazer uma avaliação abstrata da masturbação, no costumam estar condicionadas preferencialmente pela carga do estrato
sentido de que ela prescinda das condições pessoais em que se dá. biológico.
Essas condições pessoais não devem ser consideradas na linha da - O moralista tem de assumir essas categorias da antropologia
maior ou menor advertência e liberdade (no âmbito dos princípios da sexual e "traduzi-las" em linguagem ética.
moral fundamental), mas como elementos objetivos dessa realidade moral A incoerência da masturbação reside em comprometer a evolução
que é a ~asturbação. Por isso, afirmamos que. não é correto fazer harmoniosa da dinâmica pessoal. A masturbação compromete o amadu-
"abstração objetiva" dos condicionamentos pessoa1.s e formular uma ava- recimento progressivo da personalidade, um dos imperativos básicos do
liação universalmente válida do ponto de vista objetivo. A única coisa que homem enquanto ser sexuado; ao mesmo tempo, compromete a harmo-
se pode dizer é que a masturbação, na medida em que representa uma nização dos distintos valores ou estratos da personalidade, isto é, compro-
das formas ou um dos quadros do esquema de falhas sexuais, é de grande mete a integração da pessoa, .base da integração interpessoal e da integração
importância. Mas não se pode traduzir essa apreciação em termos de com a transcendência.
validade universal, aplicável a cada caso concreto.
- Nessa frustração da evolução harmoniosa da personalidade pode
- As condições pessoais que introduzem essa variabilidade objetiva haver um mais e um menos.
dentro da masturbação poderiam ser resumidas em dois aspectos da es-
Essa variabilidade qualitativa depende de vários fatores: da intensi-
trutura sexual humana.
dade de um ato; do número de ações; do momento evolutivo em que se
Com efeito, é necessário introduzir na estrutura sexual da mas- situe dentro da dinâmica pessoal, do· estrato humano que fique mais
turbação os aspectos temporal e espacial, entendendo-se aqui "espaço" e comprometido. Traduzindo essas considerações em linguagem ética, te-
"tempo" como duas categorias humanas. mos de admitir que na incoerência da masturbação há um mais e um
- A categoria temporal diz-nos que a masturbação faz ~art~ da menos; não há uma medida única e absoluta.
realidade evolutiva da sexualidade humana. A masturbação se diversi.fi~a Dos princípios antes expostos derivam-se muitas aplicações.
objetivamente segund~ o momento em que se ~itue no. quadro ~a di:a~
Eis algumas delas, tão-somente enumeradas. Por si, nem todo ato
mica pessoal da sexualidade humana. A categoria espacial nos diz qu
de masturbação compromete gravemente a evolução harmoniosa da per-
masturbação engloba diversos valores e compromete diferentes estratos da
sonalidade, e, portanto, nem todo ato de masturbação é "matéria obje-
personalidade humana: o estrato biológico, o estrato psicológico, o estra-
tivamente grave" . A masturbação deve ser avaliada antes de tudo por seus
Valores pessoais, de integração pessoal e de comunicação interpessoal. A
23 . Em suas Memorias, M. ORAISON recorda a advertência de uma grande dig-
nidade da Cúria romana: "Para a pureza nos seminários, não há nada como o terror, os
idade evolutiva deve ser levada em conta no momento de avaliar a mas-
spahetti e os feijões verdes" (Reconciliación. Memorias, Salamanca, 1969, p. 195 ). turbação; esse princípio tem aplicação de uma maneira particular para a
24. PLÉ, La masturbation, p . 269. masturbação na adolescência.

162 16 3
C~10

O CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

I. UM FATO QUE PEDE UMA REFLEXÃO

O comportamento sexual pré-conjugal pode ser considerado, em


primeiro lugar, de maneira factual. Nesse nível, as estatísticas falam
de um índice elevado na prática das relações sexuais pré-matrimoniais.
Deixando de lado outras pesquisas1, que nos baste recordar os resultados
das realizadas por Kinsey2 nos Estados Unidos, Schofield 3 na Inglaterra
e Giese-Schrnidt4 na Alemanha.
O aumento estatístico das relações sexuais pré-matrimoniais é con-
dicionado por múltiplos fatores. Procurando assinalar os principais, enu-
meramos os seguintes:

1. A COMPREENSÃO ATUAL DA SEXUALIDADE

Passou-se de uma compreensão da sexualidade como "genitalidade"


à sexualidade como "dimensão integral" da existência humana, da sexua-
lidade como "função procriativa" à sexualidade como "expressão ou lin-

1. Ver estas pesquisas em A. BAEN, "Nuestra actitud ante el incremento de las


relaciones pré-matrimoniales'', Revista dei Instituto de la ]uventud, 24 (1969), pp. 55-74,
e em B. STRATLING, Sexualidad, ética y educación, Barcelona, 1973, pp. 219-222.
2. A. C. KINSEY, W. B. POMEROY e C. E. MARTIN, La conducta sexual da la
mujer, Buenos Aires, 1967.
3. M. SCHOFIELD, The Sexual Behaviour ofYoung People, Harlow (Essex), 1965.
4. H . GIESE e G. SCHMITT, Studenten-Sexualitiit. Verhalten tmd Einstellungen,
Bamburgo, 1968.

167
CASAL Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

guagem" da pessoa, da sexualidade como "prazer" à sexualidade como cipação da puberdade e prolongamento da juventude 8 ; retardamento do
"comunicação interpessoal", da sexualidade como "bem referente ao casamento por razões socioeconômicas e de estudo.
casamento" à sexualidade como "valor autônomo" . Essas variações na Esses e outros fatores da estruturação social presente, no âmbito da
compreensão da sexualidade tiveram e continuarão a ter grandes reper- qual os jovens têm de viver seu amor, provocam a prática das relações
cussões nos comportamentos prévios ao casamento. sexuais pré-matrimoniais. Por um lado, a etapa do noivado se prolonga
excessivamente e, por outro, os incentivos de uma sociedade supererotizada
2. Ü MODO DE VIVER A SEXUALIDADE NO MUNDO DE HOJE originam uma tensão na direção da relação sexual. Diante dessa situação,
acaso não são compreensíveis as relações sexuais pré-matrimoniais?
Se a compreensão da sexualidade variou, mais ainda mudou o modo Nesse sentido, podemos admitir que nossa sociedade fracassou até
de vivê-la no mundo de hoje. Deixando de lado as variações no agora em resolver as recentes tensões impostas aos jovens por uma ma-
costumbrismo sexual 5 e admitindo a erotização da sociedade como pano turidade precoce e pelo prolongamento da formação.
de fundo 6 , existem alguns traços que configuram de uma maneira espe-
cial o comportamento sexual dos homens de hoje. Tais são, por exem-
plo7, a decadência das formas de comportamento institucionalizadas a 4. A NOVA MANEIRA DE ENTENDER O NOIVADO
favor de uma maior liberdade nos critérios individuais; a privatização das
experiências amorosas; a psicologização da sexualidade; a satisfação sexual O noivado é uma instituição pobre tanto em termos jurídicos como
como exigência convencional normal e como indício de maturidade hu- em termos socioculturais e religiosos. Mais ainda, na situação presente
mana e social. Por outro lado, num âmbito consumista, a sexualidade é percebem-se claros sintomas de evolução no interior dessa instituição.
vivida como um produto a mais de consumo, como um jogo, como uma Diante de uma imagem "tradicional" de noivado, que alguns
realidade insignificante, com as características neuróticas da exacerbação querem continuar impondo 9 , surge na atualidade outra configuração.
obsessivo-compulsiva, e até com uma queda no absurdo.
Não é de estranhar que esse modo de viver a sexualidade no mundo 8. "A juventude não é já uma fase natural da vida humana, sendo na verdade
de hoje tenha grandes repercussões sobre a formulação factual e teórica definida pela sociedade em questão. Só se considera adulto quem apresenta certo grau de
das relações sexuais pré-matrimoniais. evolução e de maturidade que a sociedade considera necessário a uma integração plena.
Esse grau cresce em proporção direta à complexidade e à complicação de uma sociedade
[ ... ] Esse problema se agudiza ainda mais não só pelo fato de que se adia o casamento por
3. A NOVA SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL DA JUVENTUDE causa dos estudos - como é o caso não só dos universitários, mas também de outros
profissionais -, como porque, além disso, se adiantou a puberdade, que, em geral, se
No problema das relações sexuais pré-matrimoniais repercutem tam- apresenta cerca de dois anos antes da geração dos que hoje têm quarenta anos: aos doze
ou treze anos nos meninos e um ano antes nas meninas. Comparada com a geração que
bém alguns fatores que marcam a situação sociocultural da juventude se iniciou na puberdade no começo do século XX, a geração atual adiantou-se quatro e até
atual. Desses fatores, destacamos os seguintes: liberação social da jovem cinco anos. Isso significa que para um estudante que não pode casar-se até terminar os
(na educação, no trabalho, na vida de diversão, na vida social); inde- estudos, talvez aos vinte e nove ou trinta anos, o período que transcorre entre a iniciação
pendência de vida, e até suficiência econômica, dos jovens de hoje; ante- da puberdade e o momento em que ele se encontra em condições de realizar uma atividade
sexual plena legalizada no casamento atinge uma duração de catorze a dezoito anos, o que
significa que muitas vezes é mais do dobro do que no caso de seu avô. Significa, além disso,
5. Ao estilo da descrição de El libro de la vida sexual, Madri, 1968, pp. 131-208. que sobretudo na segunda fase da virilidade, entre os vinte e cinco e os trinta anos, ele se
6. Cf. V. MORIN e J. MAJAULT, Un mythe moderne: férotisme, Tournai, 1964; vê obrigado ou a abster-se da atividade sexual, ou a manter algumas relações extramatrimoniais
J. ROF CARBALLO, "Entorno al erotismo", em i52Jlé aporta el cristianismo ai hombre que a sociedade considera ilegítimas" (B. STRATLING, op. cit., pp. 94-96).
de hoy?, Bilbao, 1969, pp. 131-171 . 9. Ver, à guisa de exemplo, a imagem apresentada em J. L. SORIA, "Sobre el
7. Cf. H . SCHELSKY, Sociología de la sexualidad, Buenos Aires, 1962, pp. 13lss. noviazgo", Palabra, 100 (1973 ), pp. 33-36.

168 169
CASAL
Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

A. Ferrándiz e V. Verdú 1º apresentam como traços configuradores do 5. Ü CONTEXTO DA "REVOLUÇÃO SEXUAL"


noivado tradicional as virtudes burguesas da poupança, da utilidade e da
segurança. Essa "trindade que presidia à ação empresarial do capitalismo O problema das relações sexuais pré-matrimoniais se formula em
inicial (ainda presente na Espanha) estabelece uma correspondência com muitos casos no contexto da chamada "revolução sexual". Essa expres-
a trilogia de princípios que inspiraram (e inspiram inercialmente) o código são, que procede de W. Reich 15, vem qualificar a atual situação do com-
das relações intersexuais", dando lugar a que o noivado tradicional apa- portamento sexual na medida em que este envolve uma intencionalidade:
reça como "uma das instituições decisivas de que a organização burguesa a de libertar o homem de tabus repressivos (tabus diretamente sexuais,
dispôs para o controle e aprendizagem dos comportamentos intersexuais" 11 • e tabus políticos, econômicos, culturais, religiosos etc.) e fazer dele uma·
Na atualidade, as categorias definidoras da instituição do noivado pessoa livre numa sociedade não-repressiva. A maneira concreta de inter-
podem concretizar-se nas três variações seguintes: "de poupar muito a pretar e de canalizar taticamente essa intencionalidade liberadora assume
consumir mais", "do ascetismo utilitário ao utilitarismo do bem-estar", distintas modalidades crítico-utópicas: liberar a sexualidade das novas
"da segurança à aventura" 12 . Isso pressupõe uma mudança fundamental técnicas de manipulação que o neocapitalismo 16 utiliza, postular uma
na maneira de en,tender o noivado. Mais ainda, a própria instituição do "sociedade integralmente erótica" que viva na situação provocada pelo
noivado perde importância 13, o que repercute na hierarquia de valores da princípio do prazer e não sob o império da realidade 17 ; criar alguns
etapa pré-matrimonial e até do próprio casamento 14 • comportamentos sociais não repressivos ou alienantes mas libertadores 1ª·
'
aceitar a carga libertadora da potência orgasmática da sexualidade 19 •
'
10. A. FERRÁNDIZ e V. VERDÚ, "Las virtudes burguesas y el noviazgo", É necessário refletir sobre os postulados da chamada "revolução
Cuadernos para el Diálogo, XXVIII extraordinário (1973), pp. 110-118. sexual" para deduzir os valores positivos e negativos. Entretanto, cremos
11. Ibid., p. 111. que o problema das relações sexuais pré-matrimoniais não pode ser pen-
12. Ibid., pp. 115-116.
13. Ibid., p. 117: "A investidura de ser ou não noivo, há apenas dez anos, está sado sem levar em conta esse contexto crítico (oposição a velhos esque-
sendo negada por uma crescente parcela da juventude espanhola." mas) e utópico (proposição de novos modelos para a relação sexual).
14. lbid., p. 117: "A ambigüidade de chamar amiga à ex-noiva pode ser por ora
uma variação formal, mas não é só uma variação formal. A mesma relação se torna
Da vida sexual das "comunidades juvenis" às relações sexuais espo-
ambígua e indefinível com os modelos tradicionais. Uma amiga pode ou não conduzir ao rádicas entre noivos, passando pela promiscuidade latente de certas diver-
casamento. Portanto, o tempo de relação com ela não deve ser entendido como uma sões, pela vida compartilhada em condomínios e pela aceitação de uma
preparação para algo nem com vistas a nada. Isso faz que, conseqüentemente, não exista relação sexual habitual, o comportamento amoroso dos jovens de hoje
um projeto explícito e comum na relação e que, não havendo projeto, não se possa falar,
teoricamente, de fracasso se a relação cessa.
envolve uma "intencionalidade revolucionária" que é necessário levar em
Não sendo um projeto, tampouco existe a responsabilidade sobre ele nem respon- conta para avaliar adequadamente o problema das relações sexuais pré-
sabilidade de um com o outro, que em suma se reuniram para a consecução de nada, com matrimoniais.
vistas a algo ou com o propósito de uma meta. Esta é uma diferença intencional impor-
tante no que se refere ao noivado tradicional que comporta, inseparavelmente, a tarefa de Procuramos até agora descrever, em linhas gerais, a situação atual da
uma relação voltada para um fim: o casamento, e a responsabilidade, aceita formalmente, etapa pré-matrimonial, sobretudo no que se refere à relação sexual. Antes
de ter entrado num empreendimento em que a moça investiria parte importante de sua
reputação social e de sua honra. A inexistência formal dessas responsabilidades concede
agora maior facilidade para a desunião que se pratica de fato com maior freqüência e sem 15. W. REICH, A revolução sexual, São Paulo, 1988.
tantos efeitos traumatizantes. 16. R. REICHE, La sexualidad e la lucha de e/ases, Barcelona, 1969.
As conseqüências que este modo de relação heterossexual pode ter para o respeito 17. H. MARCUSE, Eros e civilização, São Paulo, 1999.
à instituição matrimonial não são calculáveis, mas é óbvio que esse modo de conceber e p 18. Vári?s autores, S~~ualidad y represión, Buenos Aires, 1968; C. CASTILLA DEL
praticar as relações supõe de fato um questionamento da relação conjugal tradicional e de lNO, Sexualidad y represion, Madri, 1977.
família que dela deriva". 19. W. REICH, A função do orgasmo, São Paulo, 1995.

170 171
CASAL Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

de fazer uma avaliação ética desses comportamentos, é conveniente re- Procurando relacionar a forma pré-matrimonial com as restrições
cordar alguns dados essenciais da antropologia cultural e da história sexuais do casamento, vemos que qualquer uma dessas formas de regulação
ocidental. pré-matrimonial pode coincidir com qualquer tipo de liberdade ou res-
trição matrimonial.
II. DADOS ESSENCIAIS DA ANTROPOLOGIA CULTURAL20 Pode ocorrer que se dê uma monogamia absoluta ao lado de uma
liberdade absoluta de relações sexuais pré-matrimoniais. Entretanto, há
1. CONSIDERAÇÕES GWBAIS uma constante da evolução sociocultural na tendência a combinar as mais
severas limitações impostas à mulher no casamento com restrições pré-
Do ponto de vista da antropologia cultural, o significado das regu- matrimoniais. Por outro lado, essa rigidez no casamento e no noivado
lações sexuais pré-matrimoniais tem uma orientação diferente para os costuma favorecer as relações sexuais não-vinculantes, como no caso da
homens e para as mulheres. A restrição exercida sobre as mulheres pro- prostituição.
vém de interesses familiares: interessa à família constituída restringir a
liberdade sexual de suas filhas para utilizá-las em benefício de objetivos
econômicos, sociais ou políticos da própria família e para evitar o proble- 2. DADOS ETNOLÓGICOS CONCRETOS

ma que implicaria criar os filhos que nasceriam dessas relações pré-matri-


Assinalaremos um conjunto de dados da antropologia cultural rela-
moniais. A abstinência sexual pré-matrimonial da mulher é vista, pois,
cionados com o tema das relações pré-matrimoniais. Em quase todos
com referência ao casamento; uma liberdade nesse campo implica a união
eles, encontramos concepções e práticas tabu com referência mais ou
matrimonial, mais ou menos direta. Em contrapartida, o significado da
menos direta à abstinência sexual pré-matrimonial.
abstinência sexual pré-matrimonial no homem se concentra em interesses
extrafamiliares: deduz-se de tarefas próprias da comunidade (abstinência Mencionemos em primeiro lugar o tabu denominado "tempo de
de caráter religioso, de caráter guerreiro, de caráter esportivo etc.). Tobias" ou "noites de Tobias". Em alguns povos primitivos, depois das
bodas, os recém-casados não devem ter imediatamente relações sexuais:
Segundo o grau de abstinência exigido, as regulações sexuais pré-
o defloramento da esposa deve ser precedido por um período de conti-
matrimoniais dão lugar às seguintes divisões ou tipologia sociocultural:
nência mais ou menos curto. Em Samoa, esse período de abstinência só
- Liberdade sexual: o homem e a mulher são totalmente livres. dura uma noite; idêntico período de tempo se observa entre os banyankoles,
- Abstinência sexual: ambos os sexos têm possibilidades de usu- na África Oriental. Entre os tinguianos, nas Filipinas, tampouco se pode
fruir certa liberdade sexual, mas de uma forma limitada; essas limitações consumar o casamento na noite das bodas; entre os recém-casados dorme
assumem diversas formas: a mulher só tem liberdade com seu futuro um menino de seis a oito anos; os esposos não podem trocar entre si
cônjuge; ambos têm de comprometer-se com um ato social a contrair sequer uma palavra. Entre os konsos, na Abissínia, o "tempo de Tobias"
matrimônio no futuro; a sociedade permite ou tolera a liberdade sexual, dura três dias; no norte da Nigéria, entre os njais e nzangis, seis dias;
mas proscreve socialmente a gravidez ou a maternidade pré-matrimoniais entre os malabus da Nigéria, até dez dias; entre os anlwes, de três a seis
e castiga o progenitor ou o obriga a solucionar o problema econômico meses. Entre os índios de cayapa, no Equador, os recém-casados dormem
resultante. todo o ano sob o mesmo mosquiteiro, mas não podem ter relações
- Castidade pré-matrimonial: exigência da abstinência pré-matrimo- sexuais; se o fazem antes e são descobertos, são castigados com a morte,
nial absoluta, sobretudo na mulher. a não ser que fujam oportunamente para outra região.
Outro tabu que conserva certa relação com nosso tema é o da
20. Cf. R. MOHR, La ética cristiana a la luz de la etnología, Madri, 1962, pp. 112, virgindade na moça. Tabu que se refere ao do defloramento da jovem e
133-142, 148-153. ao primeiro ato matrimonial.

172 173

J
CASAL Ü CASAL PRÉ- MATRIMONIAL

Entre os bubis, em Fernando Poo, o delito sexual mais grave que anci,ã e guarda relação imediata com a iniciação. Também entre os yaos,
se conhece é arrebatar a virgindade de uma jovem; não é assunto pessoal na f,Ji:ica do Sul, todas as jovens são defloradas artificialmente depois da
dos culpados, mas algo social, visto significar um perigo para toda a iniciação. O defloramento de uma jovem por seu pai, que se encontra em
comunidade. Também entre os tumbukas, da África do Sul, considera-se alguns povos primitivos, é também um defloramento artificial.
a gravidez de uma jovem antes de sua iniciação como uma desventura A partir dos dados indicados, vemos que a abstinência sexual dos
para toda a comunidade, que incorre no perigo de um castigo sobre- jovens está em estreita relação com o tabu da virgindade fisica. Esta, por
humano. A mesma crença se encontra entre os batongas, também na sua vez, está condicionada ao rito do defloramento. Se existe um rito,
África do Sul. Entre os ovambos, considera-se uma desgraça grupal a com importância religiosa, de defloramento, é natural que se exija seve-
gravidez de uma jovem antes de sua iniciação, e ambos os culpados são ramente o tabu da virgindade corporal prévia ao defloramento. Por seu
queimados vivos. Em Ruanda, junto ao lago Victoria, teme-se que possa lado, o defloramento está intimamente unido ao rito da iniciação. A
sobrevir sobre a terra algum castigo em função da gravidez de uma circuncisão e o defloramento costumam constituir os ritos da iniciação
jovem; por isso, condenam-se à morte, depois ou antes do parto, as para a vida sexual. Vemos, pois, como o alto apreço da virgindade cor-
jovens que engravidaram antes de contrair matrimônio. Na ilha Nias, poral numa jovem, e em particular numa prometida, está em relação
atribui-se a falta de chuva a uma gravidez pré-matrimonial; nessa circuns- causal com o significado do defloramento e da iniciação. O mesmo se
tância, examinam-se todas as jovens da aldeia e condena-se à morte a deve dizer do tabu da abstinência das relações sexuais pré-matrimoniais.
toda aquela que se encontra grávida. Os dayaks de Sarawak crêem que, Uma vez realizadas as cerimônias expiatórias da iniciação sexual,
depois do adultério, Deus castiga sobretudo a impureza dos solteiros; costumam-se permitir as relações sexuais propriamente ditas. No entanto,
depois de uma ação semelhante, cairá sobre toda a tribo uma praga de percebe-se certo horror diante delas.
más chuvas e só se poderá afastar essa praga mediante a grave penitência Deve-se considerar a abstinência ou a prática das relações sexuais pré-
dos culpados e, às vezes, unicamente por sua expulsão da comunidade. matrimoniais entre os povos primitivos em relação com outro fator: a
Esse severo tabu nas relações pré-matrimoniais tem uma prova clara forma de contrair matrimônio. Existem duas formas fundamentais: o ca-
na grande estima com que se considera, entre os povos primitivos, a samento por troca (do qual se deriva o casamento por compra ou por
virgindade corporal de uma jovem. Essa virgindade é comprovada nos contrato) e o casamento por serviço. O primeiro realiza-se com o inter-
ritos de iniciação corporal, na medida em que é prova de que não se câmbio, que fazem entre si duas famílias, de seus filhos para o casamento
violou o tabu pré-matrimonial e de que não existiram relações sexuais. sem nenhuma remuneração mútua. No.casamento de serviço, o noivo tem
Entre os povos primitivos, desempenha um papel importante o de trabalhar para o sogro durante determinado período de tempo; tem de
defloramento, que chega a ter significado religioso. Muitas vezes, realiza- ganhar para si a mulher e mostrar-se digno dela. Temos exemplo desta
se de forma ritual, sem verdadeiras relações sexuais, de um modo artifi- última forma de casamento no Antigo Testamento.
cial. A circuncisão, tanto entre os jovens como entre as jovens, tem o No casamento por serviço, exige-se e presta-se grande atenção à
significado de um defloramento artificial que serve de iniciação para a virgindade da prometida; o jovem, que trabalha em casa, não deve ter
vida sexual. relações sexuais com ela até que sejam celebradas as cerimônias do casa-
Existem muitas formas de defloramento artificial. Às vezes, é efetuada mento. Em contrapartida, no casamento por troca não se atenta dema-
pelo noivo. Em Samoa, pelo menos quando se trata da virgem de uma s~adamente para a virgindade: esta não representa nenhum valor nem
aldeia, o defloramento artificial se realiza publicamente e com solenidade, VJ.rtude; às vezes parece que se ignora a existência de tal realidade.
na presença de toda a aldeia. Entre os pigmeus gabunes, existe uma Por último, o fato da abstinência ou liberdade das relações sexuais
espécie de defloramento das filhas pequenas levado a cabo pela mãe. Entre pré-matrimoniais está relacionado nos povos primitivos com as regulações
os ngangelas, em Angola, o defloramento é realizado por uma mulher que regem a relação mútua dos sexos antes do casamento.

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CASAL Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

Nos povos em que predomina uma \'tsao religioso-supramundana, titui um processo que se prolonga por longo tempo, com freqüência durante
não há nenhuma separação artificial entre os sexos; ambos os sexos tratam- anos. E até cabe perguntar-se se com o nascimento do primeiro filho se dá já
o casamento em toda a sua extensão. Muitas tribos permitem a vida marital tão
se mutuamente com absoluta naturalidade, sobretudo antes do casamento. logo tenham atingido já determinado estágio as tratativas acerca do preço da
A severa exigência da integridade corporal da jovem une-se à liberdade no noiva e a família desta tenha recebido certos presentes. Esse nível de relações
contato entre os jovens de sexo diferente. Às vezes, essa liberdade é quase não inclui ainda uma comunidade duradoura de coabitação. Um passo essen-
extrema. É o que ocorre no costume do tsaranchi, que encontramos na cial na realização do casamento é dado pelo fato de que a noiva deixe sua
África Ocidental (entre os haussas, os awoks, os bolewas, os boroks, os família e passe a viver na casa do marido, ou vice-versa, o marido se mude para
chums, os galambes, os kamakus, os tangales, os tulas, os wajas ), em a casa da mulher. Esse momento pode ser considerado o começo do casamen-
to. Mas, ainda nessa fase, o casamento não é totalmente seguro e constitui uma
muitas tribos da Nigéria, do Sudão ex-francês e em outros povos primi-
espécie de casamento posto à prova. Só com o paulatino pagamento do preço
tivos. O tsaranchi consiste em que moças e rapazes solteiros durmam da noiva, com as cerimônias a isso vinculadas e o nascimento dos filhos, vai
juntos, com o consentimento dos pais. Um jovem pode dormir continua- fortalecendo-se cada vez mais o vínculo matrimonial e vai surgindo um casa-
mente com sua prometida, mas também com outras jovens. mento estável 21 •
Em alguns lugares da África, a noiva, antes de começar a coabitar
3. A INSTITUIÇÃO PRÉ-MATRIMONIAL
com o marido, tem de fazer uma espécie de confissão pública; ela enu-
mera - diante dos pais ou parentes próximos - o nome dos amantes
Queremos completar esses dados de antropologia cultural fazendo com os quais teve contato sexual.
uma alusão, ainda que rápida, ao noivado enquanto etapa no interior da
unidade institucional do casamento.
III. A INSTITUIÇÃO DO NOIVADO NA HISTÓRIA
Falando em termos gerais, o casamento africano não é considerado
assunto privado dos noivos, mas questão que diz respeito muito de perto 1. MESOPOTÂMIA (CÓDIGO DE lIA.MURABI)
aos pais e, em geral, aos anciãos da linhagem. Observa-se aqui a força
prática da "personalidade corporativa". Embora se conceda aos noivos o Na Mesopotâmia, existiam os esponsais como preparação para o
direito da livre escolha - ao menos no sentido de poder recusar uma casamento. O Código de Hamurabi contém uma legislação bastante deta-
designação que não lhes agrade -, tem grande valor a decisão dos lhada sobre os esponsais, provando assi.m sua existência como instituição.
anciãos da família. Isso passa a ser como uma linha de comportamento Entre as disposições do Código de Hamurabi sobre os esponsais,
social. devem-se distinguir as seguintes: o casamento é preparado pelos pais da
Esse modo de escolha nos noivos suprime praticamente o noivado noiva; quando chegaram a um acordo, o noivo envia um presente ao
como etapa de conhecimento mútuo e de integração interpessoal. En- pai da donzela. Procede-se, então, à redação de um contrato no qual
quanto, na situação atual da cultura ocidental, "primeiro se ama e depois, se estabelecem os deveres e os direitos da esposa, assim como a soma
por isso, se contrai matrimônio", nos povos não-desenvolvidos "primeiro ~ue deverá ser paga pelo marido se a repudiar, e a pena em que ela
se contrai matrimônio e depois, por isso, se começa a amar" . lllcorrerá em caso de infidelidade. A noiva pode permanecer na casa dos
Não obstante, ocorre o noivado. Mas entendido como uma etapa Pais ou ir viver na dos pais do noivo. No primeiro caso, a violação da
do único processo institucional do casamento. Nessas condições, permi- dou.zela é castigada com a morte. Se ela vai viver com os pais do noivo,
te-se, às vezes, a relação sexual entre os noivos. ª lei prevê o caso de que seja seduzida por seu futuro sogro; se isso
Ao contrário do casamento europeu, o africano não se realiza num único
momento. Não é possível assinalar um ponto temporal em que o casamento 21. J. P. THIEL, "La antropología cultural y la institución matrimonial" Concilium
se transforma numa instituição acabada. O pacto matrimonial na África cons- nQ 55 (1970), p. 175. ' '

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CASAL Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

acontece, dissolvem-se os esponsais. Se existem relações culpadas quando Se uma jovem virgem é noiva de um homem, e um outro homem a encontra
já conhecia seu noivo, a noiva é lançada à água e o pai indigno sofre um na cidade e deita com ela, levareis os dois para a porta da cidade e os
castigo. apedrejareis, e eles morrerão: a jovem porque, estando na cidade, não gritou
por socorro; e o homem porque possuiu a mulher do seu próximo . Eliminarás
. Embora os noivos pudessem voltar atrás na palavra dada, enquanto o mal do teu meio.
permanecessem os esponsais mediavam entre eles alguns direitos e obri- Se for nos teus campos que o homem encontrar a jovem noiva, a tomar à
gações muito semelhantes aos matrimoniais. Eles podiam consumar o ato força e deitar com ela, o homem que deitar com ela será o único a morrer;
conjugal, embora isso não fosse bem visto 22 • nada farás à jovem, pois ela não cometeu pecado que mereça a morte; é
semelhante ao caso de um homem que se atira sobre seu próximo e o mata:
A legislação hitita contém disposições análogas às do Código de
ele a encontrou no campo, a jovem noiva gritou e ninguém veio em seu
Hamurabi. socorro (Dt 22,23-37).
Os esponsais obrigavam ao pagamento do mohar (2Sm 3,14; lSm
23
2. ÜS ESPONSAIS EM ISRAEL 18,25 ), dons feitos pelo futuro marido. A quantia do mohar era discutida
com os pais da noiva no momento dos esponsais; ele era entregue ime-
Os esponsais, enquanto promessa de casamento feita algum tempo diatamente se, como era comum, consistia em dinheiro. O contrato era
antes da celebração do matrimônio, existiam em Israel como costume e feito de forma verbal (cf. Ez 16,8; MI 2,14), substituída por um contrato
como instituição. Existe no Antigo Testamento um verbo especial para escrito na época do cativeiro (Tb 7,16). A glosa de lSm 18,21 conserva
designar a ação de prometer-se: é o verbo âras, empregado onze vezes. provavelmente a fórmula que o pai da moça pronunciava e que garantia
Os livros históricos oferecem-nos alguns detalhes sobre a estrutura a validade dos esponsais: "Hoje serás meu genro" 25 . É normal que esse
concreta dos esponsais entre os israelitas. ato se fizesse acompanhar por uma certa solenidade ou celebração festiva,
Nos casos recordados pela Bíblia, às vezes se estipulava entre os pais dos noivos tal como diz o Talmude.
- ou seus representantes-, tal como Eliezer nos esponsais de Isaac (Gn 24),
ou entre os familiares da noiva e o prometido: assim aconteceu no caso de Jacó
Os esponsais terminavam ou pela ruptura do contrato entre as
(Gn 29,18-20), no de Davi (lSm 18,17-27), de Tobias (Tb 7,9-16) etc., e.º duas famílias, ou - o que era normal - com a condução solene da
tempo que medeia entre os esponsais e o casamento não era fixo e dependia noiva à casa do noivo. Consistia nisso a celebração do casamento . Nessa
das circunstâncias; os esponsais de Jacó duraram sete anos, e os de Isaac e ocasião, em que a filha abandonava . a proteção paterna, recebia uma
Tobias, alguns poucos dias. Nos esclarecimentos rabínicos posteriores, fixava-
bênção especial com vistas à sua fecundidade (Gn 24,60; Rt 4,11-12;
se um mês, se a esposa era viúva; um ano, se era virgem 24 •
Tb 10,11-12).
Os textos legislativos denotam que os esponsais gozavam de um
reconhecimento social e tinham efeitos jurídicos. O noivo estava isento Os esponsais de José e Maria devem ser explicados em função dessa
do serviço militar (Dt 20,7). O Deuteronômio regula a infidelidade da instituição israelita. Maria foi "desposada" com José (Mt 1,18). Este
noiva do seguinte modo: ainda não a levara para sua casa quando percebe que está grávida. Pode
romper o contrato esponsalício, e decide fazê-lo de uma maneira discreta
quando uma intervenção divina o faz mudar de planos.
22 . Cf. G. SARRÓ, "Esponsales", Enciclopedia de la Biblia, III, Barcelona, 1963,
p.2M. H Permitiam-se as relações sexuais durante os esponsais? Entre os noivos
23. H. LESETRE, "Fiançailles", DB, II, 2, Paris, 1912, pp. 2226-2228; , ·
mediavam alguns direitos e obrigações muito semelhantes aos matrimoniais,

--
CAZELLES, "Fiançailles" (em Israel), Catholicisme, IV, Paris, 1956, p. 1246; G. SARRO,
porque podiam consumar o ato conjugal - o que não era bem visto - e
"Esponsales", Enciclopedia de la Biblia, III, Barcelona, 1963, pp. 204-207; R. DE VAUX,
Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, 1964, pp. 65 -66.
24. SARRÓ, loc. cit., pp. 204-205 . 25 . DE VAUX, op. cit., p. 66.

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Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL
CASAL

porque, em caso de infidelidade, a noiva era apedrejada como adúltera (Ex A palavra "esponsais" provém do próprio direito romano 29 • Entre
22,15; Dt 22,23-29) 26 . os romanos, era costume que o noivo pedisse a noiva àquele que exercia
Portanto, parece que, ao menos em certos ambientes, admitiam-se sobre ela o pátrio poder. Empregava para isso a fórmula solene: ccspon-
relações sexuais durante o noivado. desne?)) (prometes?), à qual respondia o outro: ccspondeo)) (prometo). Daí
vinham os nomes: sponsa, a prometida; sponsus, o noivo; sponsalis, o dia
Outros crêem que no mundo bíblico do Antigo Testamento não
da promessa; sponsalia, o ato completo.
eram permitidas as relações sexuais entre os noivos, embora as rela-
ções com um terceiro ou o repúdio da mulher fossem tidos como O direito romano dá uma definição precisa de esponsais: "mentio et
adultério. repromissio futurarum nuptiarum)). 30
Na literatura rabínica judia, posterior a Cristo e que alude a costu- Sem querer fazer divisões exatas na evolução histórica da instituição
mes em grande parte coetâneos com o cristianismo nascente, encontra- esponsalícia no âmbito da cultura romana, é necessário, porém, afirmar
mos a descrição das cerimônias esponsalícias. a diversidade de formas em sua evolução. Na época do Império Romano,
no momento do nascimento do cristianismo, existia a stipulatio ou com-
Os esponsais (qidduschin erusin) eram feitos como antigamente, dando-se o
mohar, determinada soma de dinheiro, ou redigindo-se um documento ou, ao promisso prévio ao casamento. Realizavam-no os dois pais de familia, às
menos teoricamente, realizando-se o ato conjugal. A consciência popular pôs vezes quando ainda eram crianças os noivos. Fazia-se com freqüência sem
a palavra dos esponsais (qidduschin) em relação com a idéia de santificação (raiz nenhuma forma jurídica; não obstante, por influência do Oriente, intro-
qds) e no ato pelo qual se consagra algo no templo, proibindo qualquer outro duziu-se o costume de oferecer uma prenda (arrha), que na maioria das
uso. A "fórmula de consagração", própria dos esponsais, era a seguinte: "Tu vezes consistia num anel de compromisso. Tertuliano é a primeira teste-
és consagrada a mim (para ser minha mulher) por meio desta soma de dinhei- munha desse costume 31 •
ro". Na Judéia, os deveres dos noivos, antes da transferência solene da noiva,
não eram tão estreitamente observados quanto no resto do país 27 .
Quanto à licitude das relações sexuais entre os noivos, Neubauer 4. NA VIDA DA IGREJA
observa que no norte da Palestina as relações sexuais eram proibidas
entre esponsais e casamento, mas na Judéia esponsais e casamento pra- A existência dos esponsais é reconhecida e sancionada pela Igreja
ticamente coincidiam. desde o princípio. O Concilio de Elvira (por volta do ano 300), no cânon
54, priva da comunhão, durante três ºanos, os pais que violam os espon-
sais dos futuros esposos. O cânon 11 do Concílio de Ancira (314) tam-
3. ÜS ESPONSAIS NO MUNDO GRECO-ROMANO bém fala dos esponsais.

Os esponsais constituíram também uma instituição no mundo greco- Os esponsais não consistiam num único ato, mas num conjunto de
romano. Não existia nenhuma obrigação de fazer os esponsais preceder atos sucessivos (envio e aceitação do anel, presentes, estipulação de con-
o casamento; mas, uma vez realizado o contrato esponsalício, eles tinham dições etc.), que diante dos outros apareciam como um todo unitário. A
~onsideração exclusivamente consensual do ato esponsalício surgiu numa
valor jurídico, dando ao noivo direito de acusação de adúltera contra a
noiva infiel 28 • epoca mais tardia, depois do conflito entre as teorias de Graciano e de
Pedro Lombardo acerca do casamento.
26. SARRÓ, loc. cit., p. 204 .
27. E. SCHILLEBEECKX, El matrimonio, realidad humana y misterio de salvación, 29. Id., I, 23, tít. I, 1, 2-3.
Salamanca, 1968, pp. 111-112. 30. Id., I, 23, tít. I, 1, I.
28 . Digesto, I, 48, tít. V, 1, 13. 31. Apol. 6, 4-6; PL, I, 302-304.

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CASAL 0 CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

Para conhecimento da evolução histórica dos esponsais, é necessário de Graciano e por outros canonistas; ccconniugium desponsatione initiatur,
levar em conta a influência do direito germânico, do direito franco e do commixtione perficitur)). Será necessário esperar até as Decretais de Gregório
direito visigótico na vida cristã. Entre os germanos, existiam os esponsais IX para que triunfe em definitivo a teoria consensualista. Embora a impor-
como instituição. O casamento dividia-se em dois momentos: os espon- tância e as conseqüências da distinção entre matrimônio "temporário" e
sais e o matrimônio ( Traung, traditio puellae). "consumado" continuem denotando a influência da teoria contrária.
Os esponsais, no direito germânico, são uma espécie de contrato de doação No que diz respeito aos esponsais, Graciano tende a identificá-los
realizado entre o noivo e o clã ou encarregado ( vormund) da jovem. Esses
com o casamento. Para ele, praticamente os esponsais são o mesmo que
esponsais se aproximam dos esponsais por penhor, do Oriente. O jovem ofe-
rece como prenda certa quantia de dinheiro ( wadia) e outros presentes de
matrimônio não-consumado. Em contrapartida, a teoria consensualista
bodas; obriga-se, assim, a tomar a jovem como esposa e a dar-lhe uma parte estabelece uma distinção que se encontra claramente expressa em Hugo
de seus bens como dote (wittum). O "procurador" promete a jovem, da qual de São Vítor. Mas é sobretudo Pedro Lombardo que lhe dá a formulação
é tutor, ao rapaz oferendo-lhe também um penhor (wadia) simbólico. O noivo mais exata. Com efeito, ele distingue dois tipos de sponsalia: a desponsatio,
deve devolvê-lo, e por esse gesto confia sua futura esposa, até o dia das bodas, que contém um consentimento atual (consentimento de praesenti) em
àquele que detém o direito de sua tutela ( mundium )32 .
que consiste propriamente o matrimônio; e outra desponsatio, que con-
Os francos também celebravam o casamento em duas fases: os es- tém uma promessa de contrair matrimônio no futuro (consentimento de
ponsais e o matrimônio propriamente dito. Na Espanha, os visigodos futuro) e que são os esponsais. Embora tenham o mesmo nome
desdobravam do mesmo modo o casamento. Convém recordar que o (desponsatio ou sponsalia), distinguem-se profundamente.
Liber ordinum da Igreja espanhola nos oferece o rito mais interessante de
Convém considerar que não se exigia para a validade dos esponsais
esponsais no âmbito dos antigos documentos litúrgicos: o ordo arrarum
nenhuma formalidade externa. Se se recomendava incluí-los com a inter-
moçárabe é de grande beleza litúrgica.
venção do sacerdote e com um rito litúrgico, isso não era condição para
O confronto entre a teoria de Graciano e a de Pedro Lombardo a validade.
sobre o elemento essencial do contrato matrimonial lançou uma grande
Convém recordar, no entanto, que se admitiram a doutrina e a
luz e esclarecimento à compreensão da instituição esponsalícia.
práxis seguinte: quando se dava a copula carnalis entre os noivos, os
Durante o séc'ulo XII, persiste a incerteza sobre o elemento essencial e
esponsais se transformavam em verdadeiro matrimônio, sem que se ne-
constitutivo do casamento: consentimento? consumação? 33
cessitasse de nenhuma manifestação de consentimento e sem que uma
O direito romano assinalava o consentimento como valor essencial: vontade contrária pudesse opor-se. Os canonistas explicavam esse efeito
ccnuptias non concubitus, sed consensus facit)). A ciência canonista e escolástica pela presunção legal de consentimento no instante da cópula ( matrimo-
dos séculos XI e XII se serve do direito romano, que na época experi- nium praesumptum), ainda que se possa admitir também uma sobrevi-
mentava um renascimento. Aparece assim a teoria consensualista, e é vência da teoria de Graciano de que o matrimônio se completa com a
Pedro Lombardo que afirma ser exclusivamente o consentimento e a consumação.
aprovação livre de ambos os noivos o que dá origem ao casamento. Não
obstante, persiste a tendência contrária que supervaloriza a consumação. Para a teologia dos esponsais, é interessante recordar a observação
de santo Tomás. Ele os chama de sacramenta/ia matrimoni. Assim como
Embora exista matrimônio no momento em que há consentimento, aquele
só é "perfeito" quando foi consumado. É a tese sustentada pelo Decreto o exorcismo é sacramental do batismo (algo prévio e inicial), assim tam-
bém os esponsais o são com relação ao matrimônio.
32. SCHILLEBEECKX, op. cit., pp. 225-226. Com Trento, a doutrina e a práxis do casamento sofreram uma
33. Ph. DELHAYE, "Fijación dogmática de la Teología medieval (sacramentum, notável variação. De modo indireto, tiveram suas repercussões nos espon-
vinculum, ratum et consummatum)'', Concilium, nQ 55 (1973), p. 246. sais. Ao exigir uma forma canônica, Trento suprimiu o matrimonium

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Ü CASAL PRÉ -MATRIMONIAL
CASAL

praesumptum. A S. C. do Concilio declarou que mesmo os esponsais esponsais: os que se faziam sem forma jurídica precisa, e os que se reforçavam
com a entrega dos penhores, o mais comum dos quais era um anel. Estes
contratados diante de um sacerdote e duas testemunhas não podiam últimos gozavam do favor da Igreja, porque a obrigação estrita que encerrava
transformar-se em matrimônio pelo ato conjugal subseqüente, ali onde a a promessa matrimonial era ressaltada de modo visível pelo penhor. Podemos
legislação tridentina estava em vigor. dizer que os esponsais participavam já do mistério da Igreja esposa, de tal
Entretanto, o Concílio de Trento não fez uma legislação direta maneira que o matrimônio com uma terceira pessoa, contraído menosprezan-
do-se a promessa, era considerado quase como um adultério 34 •
relativa aos esponsais. Essa instituição permaneceu nas imprecisões for-
mais que possuía antes. Isso gerou muitas dificuldades, diversas petições Durante os séculos VIII e IX, a legislação imperial começa a ocupar-
à Santa Sé de uma nova ordenação, intervenções do poder civil. Tudo se mais expressamente do direito matrimonial. Essa legislação favoreceu
e deu importância aos esponsais com penhores. Os esponsais consignados
ficou suficientemente solucionado com o decreto Ne temere (do dia 2 de
por escrito eram quase como o matrimônio consentido, embora não
agosto de 1907), em que se prescrevia para a Igreja universal uma con-
consumado. A ruptura dos esponsais e o matrimônio com uma terceira
dição formal com vistas à validade dos esponsais. pessoa eram considerados pela Igreja um adultério. Leão VI (886-912),
O Código de direito canônico de 1917 aperfeiçoou a legislação na Novel/a 74, afirma que o noivado puramente civil pode ser rompido
sobre os esponsais com o cânon 1.017. O Código atual e vigente remete mas, se está selado com um rito eclesiástico, transforma-se em indissolúvel,
à Conferência Episcopal a regulação da forma e continua a manter tanto porque o direito civil o considera matrimônio válido. Para o direito
a noção dos esponsais como o código sobre os efeitos jurídicos destes greco-bizantino, os esponsais eram praticamente um equivalente daquilo
(cânon 1. 062): que no Ocidente se chamava matrimônio não-consumado.
1. A promessa de matrimônio, tanto unilateral como bilateral, denominada No rito bizantino atual, o "oficio de esponsais" costuma preceder
esponsais, é regida pelo direito particular que tenha estabelecido a Conferência imediatamente a celebração do casamento; mas pode acontecer que se
Episcopal, levando em conta os costumes e as leis civis, se as há. distancie por certo período de tempo.
2. A promessa de matrimônio não dá origem a uma ação para pedir a celebra-
ção do casamento, mas na verdade para o ressarcimento de prejuízos, se de
algum modo é devido. IV. AVALIAÇÃO ÉTICA DAS RELAÇÕES
Com essa legislação, conclui-se a longa história da instituição dos SEXUAIS PRÉ-MATRIMONIAIS
esponsais na Igreja ocidental católica. Hoje, essa prática perdeu sua vi- 1. ARGUMENTAÇÕES INSUFICIENTES
gência no que tem de rigor jurídico. O "noivado" - como insti~uição
social - substituiu os esponsais. Por outro lado, esse costume social do O tema da licitude ou não-licitude das relações sexuais pré-matrimo-
noivado varia segundo os diversos países, de acordo com a diversidade niais não pode estender-se a domínios de argumentação que nos parecem
das épocas e até segundo a diversidade das classes sociais. O ritual roma- insuficientes.
no não contém nenhum rito para os esponsais: não se prescreve nenhum A consideração da moral tradicional, que situa a intimidade pré-
ato litúrgico para acompanhar o contrato previsto no Código de direito matrimonial no esquema da fornicação, parece em todos os aspectos
canônico. inadequada. Os dois critérios dados para declarar sua ilicitude são insu-
Nas igrejas orientais, houve algumas particularidades com respeit? ficientes: desvirtuar a finalidade procria tiva (e educativa) da relação sexual
aos esponsais, conseqüência da compreensão global diferente do matr~ - e buscar um prazer que só é permitido no âmbito do casamento. Esses
mônio. Durante os três primeiros séculos, não existem diferenças nota- critérios partem de uma visão antropológica já superada da sexualidade
humana.
veis entre Oriente e Ocidente.
Entre os séculos IV e VII, a igreja greco-bizantina conhece outro estado de
coisas. Sob a influência do direito romano, distinguem-se duas espécies de 34. SCHILLEBEECKX, op. cit., p. 303.

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CASAL
Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL

Tampouco é válida outra forma de argumentação que denominaría- Realizam-se essas duas dimensões na relação sexual pré-matrimo-
mos pragmática, na qual se consideram antes de tudo os convenientes ou nial? É o que discutiremos em seguida.
inconvenientes, de caráter preponderantemente social e psicológico, que
envolvem as relações sexuais pré-matrimoniais. Esta forma de argumenta-
2. A RELAÇÃO ENTRE NOIVOS PODE SER EXPRESSÃO
ção é usada tanto para defender a licitude como para defender a ilicitude.
AUTÊNTICA DE UM AMOR TOTAL E DEFINITIVO?
Os que tentam provar a ilicitude das relações sexuais pré-matrimo-
niais recorrem às seguintes razões, entre outras: Antes de falar de uma forma concreta de institucionalização, é neces-
- sentimento de culpa; sário assegurar-se previamente de que se trate de um autêntico gesto
- valor da virgindade, sobretudo na jovem; humano aquilo que se institucionalize.
- consequencias perigosas: para a posterior fidelidade conjugal; É preciso admitir, além disso, que o gesto sexual-genital envolve
para a vida matrimonial (matrimônio sem expectativa; matrimônio uma carga tal de expressividade que compromete a pessoa por inteiro.
centrado no sexual; insatisfação no ato conjugal); para o equilí- Daí dever-se falar de algumas condições éticas gerais para que uma rela-
brio psíquico dos jovens, sobretudo da jovem; ção heterossexual seja autêntica. Expusemos anteriormente essas condi-
- perigo de abandono por parte de um dos dois; ções do seguinte modo: 1 ª) a relação heterossexual deve ser uma lingua-
- presença de uma concepção com a concomitante condenação gem de amor; 2 ª) uma linguagem de amor oblativo; 3 ª) a relação hete-
social. rossexual deve assumir uma forma diversa de acordo com a evolução
Essas razões pragmáticas para declarar imorais as relações sexuais dinâmica da pessoa e levando em conta os diversos estratos pessoais que
pré-matrimoniais nos parecem de uma grande fraqueza argumentativa. ficam comprometidos nesse comportamento.
Também não nos parecem convincentes as razões que se aduzem, Para que seja autêntica, a relação sexual deve ocorrer num contexto
dentro dessa mesma linha pragmática, para dizer que são lícitas. Eis de entrega pessoal total e definitiva. Se não é assim, essa relação envolve
algumas dessas razões: irremediavelmente a frustração de alguns valores especiais dos quais, ao
- exigência de uma comunicação plena a partir do amadurecimen- menos em nossa cultura, é símbolo expressivo e operativo.
to progressivo no amor; Alguns autores assinalam como argumento decisivo contra a licitude
- conveniência de submeter a uma prova ou a um teste as possi-
das relações sexuais pré-matrimoniais o de que a intimidade entre noivos
bilidades de complementação sexual entre os dois;
não pode ser linguagem fiel e veraz de um amor total e definitivo.
- conveniência de uma aprendizagem e uma experimentação para
Cremos que essa argumentação deve ser matizada.
preparar-se melhor para o casamento;
- é preferível aceitar o "mal menor" das relações pré-matrimoniais Formulamos nosso ponto de vista a esse respeito do seguinte modo.
do que uma abstinência sexual prolongada de caráter repressivo. Uma antropologia perfeita do amor humano questiona e põe em dúvida
A ponderação e discussão sobre a coerência das relações sexuais pré- a prática das relações sexuais pré-matrimoniais. Mas temos de confessar
matrimoniais têm de ser postas acima das considerações de caráter me- que a partir de uma visão puramente "personalista" do amor humano
ramente pragmático. De modo concreto, dois são os pontos de vista que não se pode afirmar taxativamente que as relações sexuais pré-matrimo-
é preciso adotar: a dimensão interpersonalista do gesto sexual enquanto niais sejam inteiramente e em toda circunstância descartáveis. A realiza-
linguagem de amor, e a dimensão vinculante que deve comportar toda ção do amor humano entre os noivos não pede necessariamente a expres-
relação sexual para que seja autêntica. Trata-se de duas perspectivas com- são gestual última; mas tampouco se pode afirmar o contrário: que ne-
plementares para julgar a autenticidade de uma relação sexual e, portan- nhuma relação sexual realize o amor entre eles, entendido num sentido
to, sua avaliação ética. Puramente "personalista".

186 187
CASAL Ü CASAL PRÉ-MATRJMONIAL

A partir dessa afirmação geral, cremos que a resposta à pergunta Além da autenticidade do amor, é necessário levar em conta a carga
formulada no começo desta seção - se a relação entre noivos pode ser pessoal que supõem algumas relações sexuais pré-matrimoniais, carga que
expressão autêntica de um amor total e definitivo - deve receber uma não se pode agüentar senão no interior do casamento.
resposta em dois momentos: um momento pedagógico e um momento Por todos esses motivos, a exigência de comunicação não é tão
axiológico. decisiva nos noivos que obrigue a relações sexuais pré-matrimoniais. Isso
não exclui a possibilidade de que seu amor seja em muitas ocasiões mais
autêntico e responsável do que o amor existente em certas relações se-
a) Momento pedagógico
xuais matrimoniais.
Entendemos pela dimensão pedagógica a avaliação da relação se- Por essas razões, não cremos numa prática sexual prematura como
xual entre noivos na medida em que de fato é ou não expressão de um fator de integração e de amadurecimento entre os noivos. Muito pelo
amor autêntico. Temos de levar em conta a educação, o ambiente, a contrário, o amor precisa de uma educação muito delicada e prolongada.
maneira de viver a sexualidade no mundo de hoje. Tudo isso nos indica De fato, essa educação que o noivado proporciona costuma cessar, na
que é necessário submeter a uma análise muito minuciosa a possibilidade maioria das vezes, com o início das relações sexuais. Aprender a amar
de que o amor entre noivos seja ou não expresso verazmente com a requer um longo e penoso esforço, embora seja ao mesmo tempo uma
relação sexual. maravilhosa descoberta. Não é preciso ser avaros do tempo que a apren-
É evidente que o amor é comunicação e busca a intercomunicação dizagem do amor leva.
pessoal. Quando se trata de um amor heterossexual, busca a interco-
municação sexual. Mas nesse "dar-se" e "receber-se" podem existir muitas b) Momento axiológico
fraudes; é necessário avaliar muito seriamente a autenticidade do amor,
sobretudo quando se trata da intercomunicação sexual plena. Além disso, Opinamos que não se pode afirmar a abstinência sexual pré-matri-
é inerente à antropologia do amor humano uma espécie de "assincronia" monial como uma norma ética absoluta. Isso suporia admitir que a in-
entre o amor sentido e vivido e as possibilidades concretas da realização timidade sexual entre noivos não pode realizar, por si, a expressão de um
unitiva: o homem tem uma maturidade biológica e até uma maturidade amor autêntico, o que não parece exato.
psicológica de amor antes de possuir uma maturidade pessoal plena para Nesse sentido, parece-nos certa .a afirmação de Valsecchi de que a
sustentar o peso humano de uma realização total do amor heterossexual. norma da abstinência sexual pré-matrimonial não parece ser "uma norma
Aplicando esses matizes às relações sexuais pré-matrimoniais, é pre- absoluta e imutável" 35 • A partir de uma análise antropológica do amor
ciso questionar, em primeiro lugar, a autenticidade desse amor. O amor, humano, é difícil provar que toda relação entre noivos é um gesto
quando se trata da entrega total, deve provar-se muito bem a si mesmo; inautêntico.
é necessário descartar dele o mínimo egoísmo. Ao falar de amor nessas
circunstâncias, não se está exposto a pensar num amor de caráter eminen- 3. A VINCULAÇÃO INTERPESSOAL VIVIDA NA COMUNIDADE
temente biológico? "Você não me ama o bastante para dormir comigo?" PODE REALIZAR-SE ENTRE NOIVOS?
é uma antiga artimanha. A pergunta exige outra: "Evidentemente, amo-o
o bastante para me casar com você. Mas o casamento não é exatamente A relação sexual tem de ser expressão de um amor total e defirritivo.
dormir juntos; é comer, viver, crescer, ter filhos, estar unidos para o bem. Mas, além disso, é preciso realizar-se no clima de uma vinculação in-
Enquanto não pudermos ter tudo isso, não posso decepcioná-lo conten-
tando-me com uma parte, não pertenço a esse tipo de pessoa. Embora ' 35. A. VALSECCHI, "Noviazgo", Diccionario enciclopédico de teología moral, Madri,
não possa entender isto, você me ama o bastante para esperar?" 1974, p. 708.

188 189
Ü CASAL PRÉ- MATIUMONIAL
CASAL

terpessoal de vida, à qual conduz esse amor total de que é sinal o gesto e) Formas ('progressivas'' e ccregressivas" de vinculação
sexual. Ora, essa vinculação interpessoal tem de ser vivida no âmbito da
Acabamos de dizer que o casamento é a forma institucionalizadora
comunidade . ideal para a relação sexual. Não obstante, convém fazer uma referência às
Pertence à antropologia da sexualidade humana o estar "institucio- formas vinculantes que não realizam esse ideal. Na atualidade, elas pro-
nalizada" ou "socializada". A partir desse critério, temos de estudar a liferam de um modo chamativo.
autenticidade da relação sexual entre os noivos. Podem ter os noivos uma
Podemos dividi-las em dois grupos com vistas à avaliação ética que
vinculação interpessoal suficiente para manter uma comunidade sexual
merecem. Há formas vinculantes "regressivas" e formas vinculantes "pro-
autêntica?
gressivas". Entre as primeiras, devem-se colocar todas as vinculações
Responderemos a essa pergunta com um conjunto de afirmações afetivas, de maior a menor estabilidade, que por sua própria natureza e
escalonadas e progressivas: pela intenção dos indivíduos nelas comprometidos não podem realizar os
valores do casamento. Há nessas formas vinculantes algo que as afasta
a) Descartável toda relação não-vinculante sistematicamente do ideal matrimonial. Podem ser regressivas, na medida
em que constituem um "regresso" ou uma desvirtuação do casamento,
A partir dos valores essenciais da sexualidade humana, é descartável ou na medida em que, a partir de sua própria formulação, fica descartada
toda relação não-vinculante, por carecer do mínimo de institucionalização. toda tendência ou consideração de características essenciais da instituição
Nem em solteiros adultos, nem em viúvos, nem em casados, nem em matrimonial.
pessoas jovens, pode admitir-se uma "relação esporádica", mesmo que Todas essas formas, que denominamos regressivas, por mais vin-
pareça realizar-se no âmbito das condições de uma manifestação de amor culantes que sejam, não podem ser aceitas a partir de uma avaliação
autêntico interpessoal e heterossexual. humana da sexualidade.
É natural que essa afirmação não tem aplicação total ao caso dos As formas vinculantes progressivas não realizam o ideal da institui-
noivos, já que aqui se considera óbvio tratar-se de uma situação vinculante, ção matrimonial; mas têm uma tendência efetiva em sua direção. São
embora com maior ou menor efetividade. No entanto, no que tem de formas que, por diversas circunstâncias, ainda não alcançaram o ideal do
válido, o princípio pode iluminar e até dar orientação real ao problema casamento; mas em sua própria formuiação e na intenção dos indivíduos
das relações sexuais pré-matrimoniais. nelas comprometidos não fica excluída a realização da forma institucio-
nalizadora perfeita.
b) Forma ideal de vinculação Poder-se-iam assinalar muitas dessas formas vinculantes de tipo
perfectivo.
Pertence à antropologia cultural ter uma forma ideal, e nesse sen- Com algum apoio fundamental na patrística, poderíamos estabelecer toda uma
tido normativa, de institucionalização para a sexualidade humana. Até gama de vínculos segundo sua aproximação do ideal do casamento verdadeiro,
hoje, a forma institucionalizadora ideal é o casamento. monogâmico, indissolúvel, o matrimônio-sacramento . O casamento entre viú-
vos, por exemplo, já não teria a mesma plenitude. Tampouco o conseguiriam
Contudo, pensamos que a instituição matrimonial, sem nada perder
os casamentos de batizados, tão numerosos em certas regiões da América
de seus valores essenciais, deve submeter-se a variações histórico-cultu- Latina, que simplesmente "se juntam". Outro tanto ocorre nos casamentos
rais. Daí que se possam e se devam admitir diversas formas de plasmação com não-cristãos. Muito mais se afastariam do ideal as uniões de pessoas irre-
dessa instituição. Quais são elas? Isso nos será respondido pelo modo de mediavelmente fracassadas em seu casamento pela Igreja. Inclusive até podería-
a sociedade progredir, submetido naturalmente à crítica da ética. mos pensar em outras convivências, com certa estabilidade, que estão se intro-

191
190
- - - -IA-..._ _ _ _ ____ ____ ___.
Ü CASAL PRÉ-MATRIMONIAL
CASAL

<luzindo no mundo em transformação e que não pretendem ser nem passar por social. Por isso, julgamos que a vinculação pré-matrimonial, até hoje ou
casamento 36 . de fato, não é suficientemente válida para ser âmbito autêntico de uma
Essas formas vinculantes de tipo progressivo por certo não realizam comunidade sexual plena.
0 ideal da instituição matrimonial. Entretanto, não podem ser conside- Do ponto de vista axiológico, é por si descartável toda relação
radas do mesmo modo das formas vinculantes regressivas. Existem nelas sexual pré-matrimonial por não possuir a vinculação requerida? Ou, melhor
valores autênticos, e há, sobretudo, a tendência ao ideal. Se este não dizendo, poder-se-ia pensar na possibilidade de uma forma institucio-
pode de fato ser atingido, essas formas vinculan~e.s devem ser aceitas no nalizadora válida para as relações sexuais pré-matrimoniais?
que têm de tendência à perfeição e devem ~e.r reJ,eitadas 1:º q.ue ~es ~al~a Existe uma grande corrente de moralistas que descartam por prin-
de sua consecução. O que não nos parece válido e querer mstltuc10nal1za-
cípio (como norma absoluta e imutável) a relação sexual pré-matrimonial
las dando-lhes uma paridade com a instituição matrimonial.
por ela não possuir a institucionalização requerida.
A única coisa que se pode fazer é aceitá-las em sua imperfeição
dinâmica, isto é, no que têm de tendência ao ideal do amor humano De nossa parte, continuamos pensando na possibilidade de formas
institucionalizadoras prévias ao casamento. Partimos da afirmação central
heterossexual.
de julgar como inautênticas as relações sexuais pré-institucionalizadas.
O que acabamos de dizer com relação às formas vinculantes, tanto
Mas lançamos a pergunta referente a saber se se devem identificar sempre
regressivas como progressivas, pode ter sua aplicação, e~ parte, ao pro-
e em todos os casos o termo e o conceito "pré-matrimonial" e "pré-
blema das relações sexuais pré-matrimoniais. Se estas se situam na mesma
institucional".
linha das vinculações regressivas, devem ser descartadas por completo.
Porém se se situam na linha das vinculações progressivas, devem ser A esse respeito, queremos recordar algumas observações. Elas se
consid~radas em seu valor tendencial, embora incompleto. Esta última referem à necessidade de formular o amor humano não só em termos
afirmação é válida unicamente nos casos em que ocorra uma plena sin- personalistas, mas também em termos de caráter comunitário ou institu-
ceridade no amor e uma total autenticidade na situação criada. cionalização.
Temos muito poucas estruturas, sociais e religiosas, para a aceitação
social do amor. Sendo tão rica a realidade do amor humano, percebemos
d) A vinculação pré-matrimonial
uma penúria extrema de institucionalizações para esse amor. Praticamen-
Para ser autêntica, a relação sexual precisa institucionalizar-se: re- te, o casamento é a única estrutura soçial para o amor; o noivado, en-
quer uma aceitação por parte da comunidade; exige uma "publicação"· quanto institucionalização, é tremendamente frágil e mal pode ser con-
Não se pode viver uma relação sexual plenamente humana no campo siderado uma estrutura.
meramente individualista e privatizado. Por outro lado, a instituição matrimonial - tal como existe hoje -
Mas nos perguntamos: o noivado constitui uma institucionalização não parece satisfazer as exigências de uma estrutura perfeita de amor. As
válida para as relações sexuais pré-matrimoniais? aderências culturais e jurídicas são tão numerosas e de tal espécie que em
Propomo-nos responder a essa pergunta em dois níveis, tal como. o muitos casos desvirtuam seu autêntico sentido.
fizemos com a pergunta sobre a autenticidade do amor: num nível his- Por conseguinte, é urgente a criação de novas institucionalizações
tórico-cultural e no nível axiológico. para o amor pré-matrimonial. Se se admitisse a existência de formas
Do ponto de vista histórico-cultural, cremos que a comunidade pré- institucionalizadas, prévias ao casamento, nesse caso se poderia pensar na
matrimonial é tão frágil que mal pode ser considerada uma estrutura coerência das relações sexuais pré-matrimoniais. O casamento seria a
estrutura última para o amor humano. Mas, previamente a ele, existiriam
1 ,, outras formas em que a sociedade reconhecesse o amor pleno e total
36. C . J. SNOECK, "Matrimonio e insútucionalización de las relaciones sexua es '
Concilium, n 2 55 (1970), p. 271. entre os "noivos".

192 193 J
(J~rr

CASAL VER5U5 INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL

uma acusação séria à imagem ética que projetou sobre o ca-


E XISTE
samento a moral tradicional: o ter defendido mais a instituição do
que as pessoas. Ao revisar as obras de moral matrimonial, surge a impres-
são de que a preocupação suprema não é salvaguardar os direitos e os
valores das pessoas que entram em jogo, mas defender uma instituição.
Para os homens de nosso tempo, essa é uma das grandes ambigüidades
apresentadas pela doutrina moral tradicional sobre o casamento.
Essa acusação tem sua verificação concreta em muitos detalhes da
ética matrimonial:
- a prevalência de determinado tipo cultural de casamento como
universalmente válido (em termos concretos, o ocidental-europeu);
- a decorrente desvalorização de outras encarnações culturais;
- a dureza que a moral tradicional projetou sobre os casamentos
fracassados;
- a importância que teve a ordenação jurídica da instituição do
casamento para a orientação moral.
Diante dessa situação, surge inevitavelmente a crise da instituição
matrimonial; ao mesmo tempo, aparece o casal não-institucionalizado.
Da crise da instituição matrimonial, assim como do casal, falaremos neste
capítulo.

I. O SIGNIFICADO DA "INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL"

Na realidade do casamento, podem distinguir-se duas dimensões:

195
CASAL CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL

- o casamento enquanto vida de casal; - A função da instituição é, por conseguinte, propiciar a obtenção
- o casamento enquanto instituição. duradoura e constante de fins e resultados determinados. Toda
Enquanto vida de casal, o casamento é definido pela conjugalidade· instituição tem seu sentido e sua finalidade de acordo com a área
isto é, pela "íntima comunidade conjugal de vida e amor" sobre a qual humana em que se instala.
se estabelece "a aliança dos cônjuges". - As características básicas da instituição podem ser reduzidas às
Enquanto instituição, ele é considerado sobretudo pelo que tem de segu~ntes: a) é uma realidade social; b) ao constituir a objetivação
institucionalidade. Considera-se nele a vertente social, cultural, jurídica. dos mteresses do grupo, é prévia ao indivíduo; c) tem caráter
A partir dessa compreensão, o casamento é definido como "contrato" normativo, na medida em que orienta o comportamento do
"instituição", "vínculo". ' indivíduo a fim de obter os objetivos que persegue; d) é uma
configuração histórica, isto é, submetida ao vir-a-ser da história
Para apreender o significado exato da instituição matrimonial, é
e ao pluralismo das culturas.
preciso ter em mente a noção genérica de "instituição" e acrescentar a
concreção específica no campo "matrimonial". A integração das duas Integrando as abordagens anteriores, pode-se definir a instituição
vertentes, genérica e específica, oferece o conteúdo global da realidade como
que se procura definir. um produto duradouro, convencional, suscetível de mudança, com funciona-
mento social de papéis orientado para um objetivo; impõe obrigações ao indi-
víduo e conota uma autoridade formal e sanções jurídicas 1•
1. NOÇÃO GENÉRICA DE "INSTITUIÇÃO"

O pano de fundo etimológico do termo orienta a noção de "insti- 2. NOÇÃO ESPECÍFICA DE INSTITUIÇÃO "MATRIMONIAL"
tuição" para uma realidade estabelecida, resultante de um ato criador
dessa realidade. Por definição, a instituição é pregada unicamente no que O quadro formal de "instituição" tem verificação no âmbito huma-
se refere à realidade humana; por outro lado, o institucional tem seu no do casamento. Quando dizemos que o casamento, além de constituir
lugar adequado na condição social e histórica do ser humano. uma "í~tima comunidade de vida e amor", é uma instituição, afirmamos
o segumte:
A partir dessa orientação básica, podemos assinalar do seguinte modo
os elementos essenciais da estrutura formal ou lógica da instituição: - O casamento baseia-se em algl,lmas estruturas dadas e permanen-
- a gênese da instituição reside na condição cultural do ser huma - tes do humano: as originadas pela distinção sexual entre homem
e mulher.
no. O homem não é um ser fechado sobre si mesmo. A biologia
humana é uma biologia aberta e com notável indeterminação. - O ~as~mento é a configuração cultural que assegura os objetivos
Em virtude de sua indeterminação e de sua plasticidade, as ne - atr1bmdos pelo grupo humano à relação entre o homem e a
cessidades humanas ultrapassam o reino da "natureza" e atingem mulher.
o reino da "cultura". As instituições humanas, que pertencem ao - O casame?to é uma estrutura anterior aos indivíduos que estes
reino da cultura, têm uma origem na peculiaridade da constitui- devem aceitar para normalizar seus papéis e suas funções conjugais.
ção bioantropológica do ser humano. - Enquanto realidade histórica e cultural, a instituição matrimonial
- A configuração da instituição pode ser reduzida ao seguinte dado: está submetida às variações impostas pelo vir-a-ser da história e
é uma objetivação de pautas sociais que, prévias ao indivíduo, pelo pluralismo de cultura.
asseguram os interesses do grupo. Nesse sentido, a instituição é
uma objetivação preformada, de caráter supra-individual, que de i . L Definição. de G. HASENHÜITL, recolhida por W. ERNST, Le mariage comme
modo duradouro organiza e assegura as finalidades do grupo . nstitution et as mise en cause actuelle, Paris, 1978, p. 98, nota 2.

196 197
CASAL CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRJMONIAL

O casamento enquanto instituição é a configuração cultural de uma harmoniza por inteiro com esse "ideal". Ao lado do casamento e da
realidade interpessoal. Se o casal conjugal se define pela relação de ami- familia conjugal, existem outros modelos de convivência que se afastam
zade heterossexual, a instituição matrimonial é entendida como a estru- do <tsquema tradicional.
tura sociocultural do casal conjugal. Essa estrutura é, por definição, an-
terior aos casais concretos; é a objetivação dos interesses do grupo social Segundo o esquema proposto por Toffler, nesta "terceira onda" da
no âmbito concreto da relação heterossexual, constituindo a configura- cultura, a família conjugal (família nuclear) perdeu seu papel único e
ção normativa a que devem ater-se os comportamentos do casal conjugal. hegemônico enquanto modelo social de organização humana 3 • Prolife-
Sintetizando tudo o que foi dito, pode-se definir a instituição ma- ram novas formas, entre as quais convém assinalar as seguintes:
trimonial como
o complexo de normas relacionadas entre si, que regula o estabelecimento e a - Pessoas que vivem sós
dissolução de uma união entre partes de sexo diferente, que é duradoura por
princípio, com vistas à procriação, se caracteriza pela comunidade de domicílio
e pela cooperação econômica e define direitos e deveres recíprocos das partes, • não por necessidade e contra sua vontade, como acontece em situa-
como também os de seus respectivos parentes e descendentes 2 • ções conhecidas (pessoas mais velhas, mulheres solteiras, pessoas
viúvas ... ), mas por decisão livre e como opção de vida (temporária
ou definitiva);
II. CRISE ATUAL DA INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL
• são lares unipessoais não-familiares (de solteiros, separados, divor-
A instituição matrimonial encontra-se numa profunda crise de iden- ciados);
tidade. O casamento tradicional não fica à margem da crise comum pela • esta forma de vida pode ocorrer "antes" do casamento, "depois" do
qual passam todas as instituições no momento atual da cultura ocidental. casamento, "entre" dois casamentos, "sem" referência ao casamento.
As profundas variações da cultura têm sua ressonância e sua concreção
no âmbito do casamento. A nova compreensão da sexualidade, a revolu- - Casal heterossexual estável
ção feminista, a passagem do autoritarismo à democratização das formas
de vida, o desaparecimento progressivo da família extensa, o conheci- • é a forma de "coabitação" mais semelhante ao casamento;
mento e o uso dos métodos científicos de controle da natalidade - eis • nesta forma de convivência, desaparecem as formalidades (e impli-
fatores culturais de hoje que incidem diretamente no significado e na cações) legais;
função da instituição matrimonial. • admite muitas variantes: com àu sem filhos, temporária ou inde-
Entre os fatores que causam, e denotam, a situação de crise da finida.
instituição matrimonial, destaca-se um: a existência de comportamentos,
cada vez mais vigentes sociologicamente, contrários ao valor normativo
- Lares atípicos
da instituição matrimonial.
a) Lares sem filhos: casais (matrimoniais ou não) que renunciam a ter
1. FORMAS "ATÍPICAS" NA ORGANIZAÇÃO DA "VIDA EM COMUM" filhos. Estilo de vida "livre de filhos". Em lugar de constituir lares
"centrados nos filhos", constituem lares "centrados nos adultos".
Se aceitamos o casamento e a decorrente familia conjugal como a Existem organizações dessas formas de convivência: Aliança Nacio-
forma "típica" de organizar a vida em comum, a realidade atual não se nal para a Paternidade Opcional (Estados Unidos), Associação
Nacional de Pessoas sem Filhos (Reino Unido).
2. F.-X. KAUFMANN, El matrimonio desde el punto de vista de la antropología
social: El derecho natural, Barcelona, 1971, pp. 40-41.
3. A. TOFLER, A terceira vida, Rio de Janeiro, 1995, cap. 7: "O futuro de família".

198 199
CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRJMONIAL
CASAL

b) Lares uniparentais: famílias nas quais está presente um ~co pro- Concretamente, a taxa de casamentos (casamentos ao ano por cada mil
genitor (mãe ou pai). Causas: maternidade durante o celibato, rup - mulheres solteiras maiores de quinze anos) caiu 20,5 por cento durante
tura matrimonial (separação ou divórcio), adoção por parte de o período do censo. Além disso, os novos casamentos têm menos filhos,
mulheres ou homens sozinhos, recurso a técnicas de reprodução têm-nos mais tarde, cresce espetacularmente a porcentagem de casamen-
humana (fecundação artificial de mulher sozinha) etc. tos sem filhos, e estes deixam antes o lar paterno.
c) Lares agregados: quando os cônjuges divorciados e com filhos se 2. Mas o mais notável é o crescimento dos lares não-familiares. Dos
casam de novo e levam os filhos para constituir uma família amplia- 15,7 milhões de novos lares que se criaram no período citado, 55,6 por
da. Essas unidades de convivência, com "polipais", nascem de rup- cento não são familiares: além disso, dos 44,4 por cento restantes, a
turas prévias do casal. metade tem só um chefe de família. Desse modo, só 22 por cento dos
novos lares são famílias completas. Os não-familiares cresceram em 73,5
- Formas de convivência ccafamiliares)) e/ou ccaconjugais)) por cento, seis vezes mais depressa que a população, dado agregado que
pode ser desmembrado nos seguintes crescimentos dos lares atípicos:
• Casais homossexuais. a) De homens ou mulheres não-casados com residência própria (au-
• Comunidades ou "casamento em grupo".
mentam 118,3 por cento e 89,3 por cento, respectivamente).
• Vinculação de pessoas mais velhas (aposentados) sem formalidade
b) De viúvas ou viúvos sozinhos (aumentam 31,9 por cento e 16,4 por
jurídica. cento, respectivamente) .
Essas e outras formas de relação se apresentam como contrárias e c) Por fim, o aumento de lares combinados formados por dois ho-
alternativas à instituição matrimonial. De fato, são sinal da tendência mens (crescem 25,1 por cento), por duas mulheres (crescem 19,2
desinstitucionalizadora do mundo atual. Não faltam, aliás, teorizações
" ou "eiormas novas"
por cento) ou por arranjos vários de ambos os sexos (crescem 55,8
que as justificam e as propõem como " pre1ormas
e
por cento )4 .
alternativas de vida em comum.

Dados da França 5
2. EXTENSÃO SOCIOLÓGICA DA CRISE
O ano de 1972 foi um ano recorde para a nupcialidade na França,
Para captar o significado da crise pela qual e~tá passan.do, a .institui- com 412.000 casamentos e com um índice de nupcialidade de 616 para
ção matrimonial, é conveniente observar ~ua amplitude ,soCI?log1ca .. Esta os homens e de 947 para as mulheres. De acordo com esses dados de
se manifesta no número de pessoas que vivem fora do amb1to matrimo-
1972, só 8,4 por cento dos homens e 5,3 das mulheres deveriam per-
nial (ou de família conjugal) e, como causa e efeito, na taxa de nupcialidade.
manecer definitivamente solteiros. Essa previsão não se efetuou, já que
Em seguida, apresentam-se alguns dados sociológicos referentes a em 1984 só ocorreram 285.000 casamentos (um déficit anual de 120.000
três países: Estados Unidos, França e Espanha. com relação aos casamentos previsíveis), baixando o índice de nupcialidade
a 555 para os homens e a 580 para as mulheres (taxa de celibato supe-
Dados dos Estados Unidos (censo de 1980) rior a 44 por cento). No quadro seguinte, podem apreciar-se os dados
assinalados:
Os dados do censo norte-americano de 1980 evidenciaram uma
série de tendências de enorme importância, tais como: 4. E. LAMO DE ESPINOSA, "<Tiene futuro la familia?", El País, 13-II-1983, p. 11.
1. Diminuição relativa dos lares familiares: de 1970 a 1980, _05 5. J. WERCKMEISTER, "Le mariage et la familie en France: évolution des idées
casais que se casaram cresceram menos que o aumento da populaça 0 · et des comportements depuis 1972", Revue de Droit Canonique, 36 (1986), pp. 167-181.

201
200
CASAL CASAL VERSUS I NSTITUIÇÃO MATRIMONIAL

1972 1984. Em síntese,


Número de casamentos .................... .. ............... . 412 .000 285 .000 o número de casamentos baixa de forma significativa; o fenômeno da coabita-
Índice de nupcialidade (homens) ......... .. ...... .... ... 916 555 ção se amplia; as pessoas que não formam um casal são cada vez mais nume-
Índice de nupcialidade (mulheres) ..... .. .... .......... . 946 580 rosas. A instituição matrimonial mostra-se seriamente ameaçada - pela primei-
ra vez em séculos - a partir de 1972 6 .

Outro sinal do descenso da nupcialidade é o seguinte dado: os


A situação na Espanha
divorciados voltam a casar-se em menor número do que antes. Compa-
rando as cifras de 1977 e de 1982, constata-se um notável descenso. No A situação espanhola foi descrita e avaliada do seguinte modo:
gráfico seguinte, indica-se a freqüência de novos casamentos nos divor-
A evolução da taxa de nupcialidade na Espanha nos últimos anos proporciona
ciados (em porcentagem): dados relevantes sobre a profunda mudança no modelo da família que está se
operando na Espanha. A taxa de nupcialidade durante este século não baixara
de 7 por 1.000 até 1978 . A partir desse ano, produz-se uma progressiva e
1977 1982
vertiginosa diminuição do número de casamentos celebrados na Espanha. A
Homens ............................................................. . 63,7 46,4 taxa de nupcialidade baixa a 6,6 por 1.000, em 1979; a 5,7 por 1.000, em
Mulheres ............................................................ . 57,3 42,1 1980; a 5,3 por 1.000, em 1981, e a 4,9 pr 1.000, em 1982, último ano de
cujos dados oficiais dispomos.
O que significa essa brusca queda da taxa de nupcialidade em comparação com
Diante da diminuição dos casamentos, surgiu um aumento notável outros países de nosso ambiente social e cultural? A resposta é: nossas cifras
de casais não-casados. Em 1968, eram 67.000; em 1982, sobem para atuais estão já debaixo das registradas na maioria dos países ocidentais. Com
efeito, a taxa de nupcialidade em 1982 foi na Alemanha Ocidental 5,8 por
600.000; em 1985, estimava-se que ultrapassassem um milhão. Por outro
1.000; na Bélgica, 6,5; nos Estados Unidos, 10,8; na França, 5,9; na Itália, 5,5;
lado, o fenômeno da coabitação não é algo passageiro (simples "coabi- na Irlanda, 5,9. Só se situam debaixo da Espanha alguns países nórdicos, como
tação juvenil" antes de casar-se), mas constitui uma situação estável: a a Suécia e a Dinamarca.
proporção dos casais que se casam não supera 15 por cento ao ano. A dimensão quantitativa do fenômeno não deixa de ser também significativa.
O número de casamentos contraídos em 1982 foi 70.000 menos do que os
Entretanto, o aumento da coabitação não compensa o descenso do registrados em 1978. A queda da taxa -de nupcialidade se produz, entre outros
número de casamentos (estima-se que supra só três quintos do déficit de fatores, pelo aparecimento e expansão de outras formas não institucionalizadas
nupcialidade) . A própria coabitação se encontra ameaçada por outro fe- de relações estáveis de casal. Os dados nos revelam - tal como aconteceu em
nômeno: a existência de adultos sozinhos (com ou sem filhos) que, outros países ocidentais - que as chamadas "uniões de fato" se transformaram
já numa alternativa ao casamento socialmente, não marginal, alternativa que
mesmo mantendo relação de amizade heterossexual, não convivem com
está atingindo uma amplitude que não tem precedentes nos tempos modernos
o(a) companheiro(a). Em dez anos (de 1975 a 1985), o número de de nossa civilização. Se a tendência apontada se consolida nesta década, pode-
progenitores sozinhos aumentou em 43 por cento, segundo se indica no se calcular que daqui a dez anos o número de casais não-matrimoniais possa
quadro seguinte (em milhares): alcançar na Espanha uma cifra que se aproximaria de um milhão. Com relação
à França, a jurista Marie Zimmerman afirmou: "No quadro dessa evolução, se
a taxa de nupcialidade se mantivesse na França, significaria que um terço dos
1975 1985 franceses não contrairiam matrimônio no futuro" . E já vimos que a taxa de
nupcialidade na França é hoje superior à espanhola.
Pais sozinhos ......... .. ..... ..... ..... ..... .... ....... ......... ... 142 167
Mães sozinhas ........ ... .... ............. ................ .. ...... . 581 866
Total ..... ........................... ..... ......... ... ... .... ... ....... . 723 1033 6. Id., ibid., p. 172.

202 203
CASAL CASAL VERSUS INSTITUJÇÀO MATRJMONIAL

Esse fenômeno, curiosamente, não está despertando na Espanha a atenção que Essa v1sao personalista não tolera a tendência exageradamente
sua importância social exige. Implica, antes de tudo, que o modelo de unidade
familiar institucionalizado está perdendo ou já perdeu a posição de monopólio
institucionalista do casamento, segundo se pode constatar nos estudos
social e legal que fora um pilar básico no modelo de organização da sociedade antropológicos atuais sobre a realidade matrimonial.
européia. Mais ainda, elevam-se vozes que condenam a instituição matrimo-
Tudo isso significa que estamos assistindo a uma das transformações de costu- nial como contrária à "comunidade de amor". Indicamos de forma sin-
mes, valores e modos de vida mais profundas dos últimos tempos na sociedade
tética as objeções em que se concretiza esse mal-estar:
espanhola.
Não são já inadiáveis um debate e uma análise séria de todas as suas con- - A instituição matrimonial frustra o valor da sexualidade enquan-
seqüências?7 to doação livre e não diretamente relacionada com a procriação.
- A intimidade do casal se sente agredida por exigências sociais
que às vezes têm seu apoio em convencionalismos morais (limi-
III.CAUSAS DO MAL-ESTAR DIANTE
tação das relações sexuais ao casamento) e em formulismos ad-
DA INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL
ministrativos (celebração jurídica do casamento).
A existência de formas vinculantes contrárias e alternativas à insti- - A instituição matrimonial é, por definição, prévia à liberdade das
tuição matrimonial não é só um dado da riqueza sociológica nos costu- pessoas, o que supõe ter de aceitar os interesses do grupo acima
mes amorosos ou nas estruturas socializadoras da afetividade heterosse- do bem pessoal.
xual. Ela tem, além disso, um significado diretamente crítico e acusatório: - Admitido o elemento institucional na configuração do casal
os casais não-casados se constituem em formas vinculantes porque não conjugal, corre-se o risco de fazer deslizar a hierarquia de valores
encontram na instituição matrimonial uma canalização para interesses e ao pólo da instituição em prejuízo dos valores próprios da vida
objetivos pretensamente legítimos. de casal.
Por razões sistemáticas, agrupamos as críticas atuais à instituição Todas essas objeções concretas se resumem na afirmação de que
matrimonial em torno de dois núcleos: as que provêm da considera- existe uma contradição entre o valor da "íntima comunidade de vida e
ção e da tomada de consciência do "personalismo" inerente à vinculação amor" (vida de casal) e a instituição do casamento.
afetiva heterossexual; as que se centram na acusação de "ideológica"
à instituição tradicional do casamento.
2. FUNÇÃO "IDEOWGIZADORA" DA INSTITUIÇÃO
TRADICIONAL DO CASAMENTO
1. 0 POSTULADO DO "PERSONALISMO": ESPLENDOR
DO CASAL E OBSCURECIMENTO DA INSTITUIÇÃO Este segundo grupo de críticas se dirige mais à instituição "familiar"
do que à instituição "matrimonial". O casamento-instituição é objeto
Um importante grupo de críticas à instituição matrimonial foi sur- dessas críticas na medida em que se encontra na base da família.
gindo na medida em que se descobria com maior intensidade a dimensão Apresentamos as principais objeções concretas que provêm da "crítica
personalista da vida relacional e, mais concretamente, da relação afetiva social" do casamento. Segundo essa crítica social:
heterossexual. A antropologia contemporânea situa em primeiro plano os
- A instituição matrimonial justifica e apóia, de forma ideológica,
aspectos interpessoais da vinculação matrimonial; isso levou a questionar
os valores da classe burguesa.
a própria instituição matrimonial a fim de enfatizar a vida interpessoal
- Para as correntes de pensamento socialista, que remonta a Engels,
que pulsa sob a instituição.
a instituição matrimonial tem sua origem e sua justificação na
propriedade privada e, por conseguinte, na estrutura social de
7. E. NASARRE, "Cambios en la familia", Ya, 10-1-1985. tipo capitalista.

204 205
CASAL CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRlMONIAL

- Para certas correntes de pensamento crítico, o casamento é um eia prolongada) e as implicações socioeconômicas são razões óbvias que
importante foco de repressão, evidenciado na repressão sexual e na testemunham a favor da instituição matrimonial.
distribuição autoritária dos papéis no âmbito do grupo familiar. Mas o que se pode e se deve discutir é o caráter e a extensão do
- A afirmação da indissolubilidade do casamento e a negação do institucional no interior da vida do casal. Diante de épocas passadas e
divórcio são consideradas fatores ideológicos que a sociedade recentes em que predominou a compreensão institucionalista no casa-
introjeta indevidamente na vida do casal. mento, cremos que no momento atual se deveria enfatizar que:
- Para vários grupos "progressistas", a instituição matrimonial e - O institucional é de caráter secundário em relação com a prima-
familiar é uma causa do machismo e uma dificuldade para a zia do interpessoal; esse caráter secundário não deve ser interpre-
liberação feminista . tado sob o signo da temporalidade, mas da axiologia.
Essas e outras objeções concretas têm como denominador comum - O âmbito de influência do institucional tem de perder extensão;
o fato de considerar a instituição matrimonial como o cavalo de Tróia a dimensão institucional do casamento deve reduzir-se aos as-
introduzido na vida do casal para dominá-lo ideologicamente a fim de pectos estritamente sociais, respeitando o valor da "privacidade"
que sirva aos interesses classistas de determinados grupos sociais. segundo corresponde à sensibilidade de uma "sociedade indus-
trial avançada".
É preciso reconhecer que as críticas observadas precisam de muitas
matizações. Não se pode dizer que sejam inteiramente imparciais nem Ao postular a redução do institucional no casamento, a ética não
que atinjam a objetividade da realidade. Apresentamo-las porque expri- pretende reduzir a dimensão de abertura do casal conjugal. Pelo contrá-
rio, a redução institucional favorecerá a ampliação dos âmbitos de aber-
mem o mal-estar difuso diante da instituição do casamento. Mais que a
tura da vida do casal. Não será um casal "fechado" pela instituição, mas
etiologia real da doença, elas expressam o estado de espírito do enfermo.
"aberto" à vida interpessoal e comunitária.

IV. CRITÉRIOS DE ORIENTAÇÃO


2. EQUILÍBRIO DIALÉTICO ENTRE "PESSOA"
E "INSTITUIÇÃO" NA VIDA DO CASAL CONJUGAL
A partir da contestação (factual e teórica) do casamento enquanto
instituição, é necessário realizar uma reformulação teórica e prática do
Toda consideração dualista e maI?-iqueísta vicia as formulações e as
tema. A urgência dessa reformulação evidencia -se ao se levar em conta as soluções de qualquer questão. O casamento-instituição não pode ser
implicações envolvidas pelo problema da instituição matrimonial. pensado com mentalidade dualista e maniqueísta, crendo-se que o
Do ângulo da ética, destacam-se três orientações básicas, que ofe- institucional é o princípio do mal e o pessoal, o princípio do bem. Pelo
recemos como critérios esclarecedores para a reformulação teórica e prá- contrário, reconhecemos uma reciprocidade real entre o aspecto pessoal
tica da dimensão institucional do casal. e o aspecto institucional na realidade do casal conjugal.
Por outro lado, essa relação recíproca perderia sua autenticidade se
1. REFORMULAÇÃO DA DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CASAL
fosse pensada e vivida sem tensão. Negar, teórica e vivencialmente, a
tensão entre o pessoal e o institucional no âmbito do casamento constitui
Julgamos que não se pode pôr em dúvida hoje a necessidade de u~a armadilha a favor da instituição e em detrimento da pessoa. Com
certa institucionalização para a vida do casal. A peculiaridade da sexua- ~fe1~0, quando se suprime a tensão, surge o predomínio do objetivismo
lidade humana (na qual o controle instintivo está reduzido ao máximo e mstitucionalista.
em que se percebem uma notável indeterminação e plasticidade), a con- Sem dualismos maniqueístas mas também sem falsos irenismos, a
dição específica da reprodução humana (com a necessidade de uma infan- relação entre o pessoal e o institucional deve ser formulada como um

206 207
CASAL CASAL VERSUS INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL

equilíbrio dialético. Isso pressupõe considerar cada uma das duas polari- - O conhecimento intercultural ajudará a relativizar as formas
dades como instâncias positivas e proveitosas para a realidade total do institucionais próprias, assim corno a descobrir valores "conver-
casal conjugal, vê-las reciprocamente conectadas a fim de que nenhuma gentes" e "comuns" que orientem o sentido hurnanizador de
delas suprima a outra, e orientar o equilíbrio na direção de um valor cada instituição concreta.
superior: a "humanização" enquanto valor convergente e garantia de - O estudo imparcial da dinâmica de cada cultura proporcionará
autenticidade tanto do pessoal como do institucional. o quadro referencial adequado para julgar sobre a coerência ou
Propondo corno solução o equilíbrio dialético entre "pessoa" e incoerência da instituição matrimonial.
"instituição" na realidade do casamento, não negamos a tensão entre - Toda forma institucional nova deve garantir um mínimo de es-
essas duas dimensões, mas na verdade descartamos o hiato e a oposição tabilidade social e de realização pessoal.
entre elas, a fim de abri-las a uni valor superior que as critica e as
autentica.

3. EM BUSCA DO PLURALISMO DE FORMAS INSTITUCIONAIS

A futura reformulação da instituição matrimonial deve ser canaliza-


da pelas trilhas do pluralismo de formas institucionais. Deve ser superado
o monolitismo, às vezes apoiado em razões metafisicas e em motivos
religiosos, com que foi pensado o casamento-instituição nos últimos
tempos.
Urna vez consolidada a orientação personalista na compreensão do
casamento, a tarefa mais importante de toda reflexão sobre a realidade
conjugal é a de buscar o justo pluralismo de formas institucionais. Se a
filosofia personalista e dialógica proporcionou as categorias adequadas
para redescobrir a vida interpessoal do casal, nos próximos anos será a
crítica sociocultural que oferecerá o instrumental metodológico para dis-
cernir a coerência das múltiplas formas que se apresentam corno variações
e alternativas da instituição matrimonial vigente.
Julgamos improcedente negar a possibilidade de mudanças e até de
formas alternativas com relação ao casamento-instituição. As falhas
constatáveis na instituição matrimonial vigente e a irresistível ascensão de
outras formas de vinculação heterossexual com caráter alternativo do
atual modelo normativo são razões suficientemente válidas para orientar
a vida e a reflexão sobre o casamento na direção de formas institucionais.
A dificuldade reside em propor critérios válidos para discernir a
autenticidade das novas formas institucionais. Cremos que pelo menos
devem ser levados em conta os três critérios seguintes:

208 209

J
ANTROPOLOGIA E ÉTICA
DO AMOR CONJUGAL

I. LUGAR DO AMOR CONJUGAL


NO ÂMBITO DA REALIDADE DO CASAMENTO

O que denominamos "casamento" constitui uma realidade evidente-


mente complexa. O institucional e o pessoal, o econômico e o
cultural, o político e o religioso, o vir-a-ser histórico e as mudanças
atuais: tudo se mescla nessa realidade humana. O casamento é uma au-
têntica encruzilhada, um "quatro caminhos", da geografia do humano.
Pondo entre parênteses a vertente de "família" e reduzindo a pers-
pectiva ao âmbito da "conjugalidade", o casamento se integra por meio
de dois fatores essenciais: a vida do casal conjugal e a configuração socio-
jurídica. Limitando a consideração à vida do casal e deixando de lado a
configuração sociojurídica, constata-se um elemento básico e nuclear na
realidade viva do casal conjugal: o amor conjugal.
Com efeito, pode-se definir o casal conjugal como a forma de re-
lação humana baseada no amor de amizade heterossexual.
Ao estudar o casal conjugal a partir do caráter privilegiado do amor,
não se pretende levar essa realidade a "reducionismos" tentadores, tais
como:
- O reducionismo do "terreno privado": fazendo do casal uma
realidade tão intimista que esqueça os horizontes da comunidade.
- O reducionismo do "apoliticismo": configurando a vida do casal
de costas ao compromisso real na transformação do mundo.

213
ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL
CASAMENTO

- O reducionismo da "fonte inesgotável de plenitude afetiva": ideali- É um amor livre, isto é, nascido do encontro gratuito entre duas pessoas
zando o casal de tal modo que seja ele considerado, às vezes de não condicion~das previamente, tal como acontece no amor paterno-filial
maneira neurótica, como a compensação de carências afetivas, pas- ou fr~t:rnal. E um amor totalizador, não no sentido de uma posse
sadas e presentes. excluslVlsta, mas na forma positiva de uma doação total e definitiva. É um
amor fecundo, com a fecundidade própria de todo ser vivo: propiciando
Ressituar a vida do casal conjugal na área de jogo do amor é, pelo
a con~nuidade da espécie a partir da originalidade inalienável do indiví-
contrário, proporcionar-lhe o horizonte mais adequado ao desenvolvi-
duo. E um amor fundamentado na promessa e na decisão na medida em
mento de suas autênticas funcionalidades no âmbito da realidade comple-
que supera o caráter momentâneo da paixão e se situa no nível da infinitude
xa do casamento. Se neste último a vida do casal não é tudo, mas de fato
e da eternidade.
o fator mais decisivo, o mesmo se deve dizer do amor conjugal com
relação ao casal: o amor conjugal não é tudo, mas na verdade o fator mais É Fromm que ressalta de maneira particular a última característica
que acabamos de assinalar no amor conjugal 2 . Para Fromm, o protótipo
decisivo.
do amor é o amor fraternal: "a espécie mais fundamental de amor básica
Ao conceder essa importância decisiva ao amor conjugal para a
em todos os tipos de amor, é o amor fraternaP. Ele entende p;r amor
constituição e para a vida do casal, situamo-nos numa corrente de pen- fraternal o "sentido de responsabilidade, cuidado, respeito e conhecimen-
samento e de vida que está já generalizada na cultura ocidental; referimo- to com relação a qualquer outro ser humano, o desejo de promover sua
nos à orientação "personalista" do casamento. vida"4; descobre nele, de um modo prototípico, a ausência de exclusivi-
dade: não está restrito a uma única pessoa.
II. SENTIDO ANTROPOLÓGICO DO AMOR CONJUGAL Pe~o. contrári~, o amor erótico é para Fromm o pólo oposto; sua
caractenst:J.ca especifica é
Localizado o amor conjugal no núcleo configurador do casal, con- o desejo de fusão completa, de união com uma única pessoa. Por sua própria
vém observar sua importante riqueza significativa. A antropologia enfatizou natureza, é exclusivo e não universal, sendo também, talvez, a forma de amor
a densidade real do amor conjugal 1 • mais enganosa que existe. 5
A riqueza antropológica do amor baseado na conjugalidade mani- Para superar as ambigüidades do amor erótico, Fromm situa nele
festa-se quando é ele considerado em suas variadas vertentes. Que nos um fator importante: a vontade. .
baste recordar as seguintes perspectivas. Amar alguém não é meramente um sentimento poderoso, é uma decisão, é um
JU!gament~ , é uma promessa. Se o amor não fosse mais do que um sentimento,
nao ex1stmam bases para a promessa de amar-se eternamente. Um sentimento
1. CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DO AMOR CONJUGAL começa e pode desaparecer. Como posso julgar que durará eternamente se meu
ato não implica julgamento e decisão? 6
Em primeiro lugar, as características que definem o amor conjugal O amor conjugal, iniciando-se e baseando-se no amor erótico trans-
diante de outras formas de amor fazem dele uma realidade privilegiada. cende-o. Por isso, tem todas as singularidades e qualidades d; amor
, .
erouco, mas transcendidas pela força do encontro interpessoal na pro-
1. M. NEDONCELLE, Vers une métaphysique de l'amour, Paris, 1946; J. GUITION,
L'amour humain, 2ª ed., Paris, 1955; P. TILLICH, Liebe, Macht, Gerechtigkeit, Tubinga,
1955; J. ORTEGA Y GASSET, "Estudios sobre e! amor", em Obras completas, V, 3ª ed. , 2. FROMM, A arte de amar, Buenos Aires, 1988, pp. 67-72.
Madri, 1955, pp. 549-626; G. THIBON, Sobre el amor humano, 3ª ed., Madri, 1961; P. 3. Id., ibid., p. 61.
LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad dei otro, II, Madri, 1961, pp. 177-184; id., Sobre 4. Id., ibid., p. 61.
la amistad, Madri, 1972; E. FROMM, A arte de amar, São Paulo, 2000; STENDHAL, 5. Id., ibid., p. 67.
Dei amor, Madri, 1968. 6. Id., ibid., p. 71.

215
214
ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL
CASAMENTO

messa e na decisão. Por ser amor heterossexual, participa da tendência à tual" . O amor matrimonial abrange o homem total, inclui todos os as-
fusão total e exclusiva, mas por ser amor de amizade abre-se ao horizonte pectos constitutivos da realidade da criatura, sentimento e vontade, corpo
do universal e do eterno. Essa complexidade do amor conjugal leva e espírito, sexo, eros e ágape. Qualquer limitação a um desses setores é
Fromm a fazer a seguinte observação prática: uma ameaça destrutiva do amor.
A idéia de uma relação que pode dissolver-se facilmente, se não se mostra bem- - Ao abarcar a pessoa em sua totalidade, o amor conjugal se realiza
sucedida, é tão errônea quanto a idéia de que essa relação não deve dissolver- por meio da tensão entre "pessoas" e "condição sexuada". O amor con-
se em nenhuma circunstância7 . jugal é amizade entre pessoas, mas ao mesmo tempo é amizade baseada
na aceitação da diferença sexual. A comunicação conjugal autêntica se
estabelece mediante a diferente condição sexual, masculina e feminina,
2. .AMOR CONJUGAL: ENCONTRO HETEROSSEXUAL
mas sem esquecer a igualdade fundamental enquanto seres pessoais.
A segunda perspectiva que ilumina a realidade antropológica do - Existe outra importante tensão no amor conjugal: a que se ori-
amor conjugal se situa na condição de encontro heterossexual. O amor gina da dupla tendência à intimidade e à abertura. O amor conjugal é
conjugal nasce do "apaixonar-se" e se prolonga no "estar apaixonados". universal na exclusividade e exclusivo na universalização. Intimidade e
A paixão é a razão do amor de amizade heterossexual, que é a definição abertura exprimem a riqueza significativa do amor conjugal. A mediocri-
dade do amor conjugal se avalia pela perda de uma ou outra das pola -
do amor conjugal.
ridades assinaladas.
No capítulo 4, seção V, descrevemos o significado antropológico do
- Tensão peculiar do amor conjugal é também a que se concretiza
encontro heterossexual fazendo uma fenomenologia da paixão. Tudo o
na temporalidade. O amor conjugal é uma realização finita (num "aqui"
que se disse naquele contexto tem aplicação para analisar o amor conju-
e num "agora"), mas ao mesmo tempo vivida com horizonte de infinitude.
gal enquanto encontro heterossexual. Seguindo Ortega y Gasset, indica-
Podem-se aplicar ao amor conjugal duas condições que Laín Entralgo
mos quatro características específicas do encontro heterossexual: atenção, descobre no encontro de apaixonados: o caráter "hiperbólico" e o caráter
necessidade de comunhão, exaltação vital, idealização da pessoa amada. "adverbial" 9 . O caráter hiperbólico do amor conjugal se acha acentuado
Essas quatro características constituem também a trama inevitável pelas expressões do "tudo" e do "sempre", que denotam a apetência e
do autêntico amor conjugal. O amor do casal conjugal é centelha, sem- a decisão de infinitude. O caráter adverbial condiciona o amor conjugal
pre viva, do encontro apaixonado 8 • em três direções: o "aqui", o "assim''" e o "agora" 1º. Sempre chamou a
atenção essa condição temporal e eterna do amor conjugal. Condição
que se relaciona estreitamente com o caráter exclusivo e definitivo do
3. TENSÕES DIALÉTICAS DO AMOR CONJUGAL próprio amor conjugal.
O significado antropológico do amor conjugal se manifesta também Com as observações anteriores sobre as características específicas do
ao descobrir-se nele uma série de tensões dialéticas que denotam a riqueza amor conjugal, sobre o conteúdo de encontro apaixonado e sobre a ri-
q_ue~a tensional da vida do casal conjugal, cremos ter assinalado as prin-
de sua realidade. Ressaltamos concretamente as seguintes:
cipais vertentes do significado antropológico do amor conjugal.
- O amor conjugal compromete todos os níveis de comunicação
da pessoa. Utilizando expressões talvez expostas a interpretações inexatas,
pode-se dizer que o amor conjugal é ao mesmo tempo "carnal" e "espiri- 9. LAÍN ENTRALGO, op. cit., II, pp. 178-181.
" 10. Anotamos a definição dada por LAÍN ENTRALGO do encontro heterossexual:
, U~ homem apaixonado é um ente sexuado, necessitado e hiperbólico, que através de um
7. Id., ibid., p. 72. aqui', um 'assim' e um 'agora' vive de maneira absorvente e exaltada uma necessidade de
8. LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad dei otro, II, p. 181. comunicação espiritual e fisica com determinada pessoa de outro sexo" ( op. cit., II, p. 181 ).

217
216
CASAMENTO ANTROPOLO GIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL

III. OS PROBLEMAS DO AMOR CONJUGAL HOJE - Tendência à normalidade sociológica, sobretudo em determina-
dos ambientes, das relações sexuais pré-conjugais.
À luz projetada pelo esboço anterior de antropologia, vamos cons- - Aumento dos "encontros" esporádicos e passageiros entre os
tatar agora os problemas suscitados pelo amor conjugal na atualidade. jovens sem compromisso interpessoal, nem sequer social.
A ética tradicional centrou sua atenção em três qualidades, ou pro- - Existência de formas vinculantes, paralelas e alternativas à realidade
priedades, do amor conjugal: a monogamia, a fidelidade e a indissolu- do casamento, que não se autojustificam pela referência atual ou
bilidade. Em conseqüência, a problemática, ou a "patologia", do amor futura do amor conjugal.
conjugal era reduzir a três situações descritas com três termos fortes: Esses e outros fatores sociais problematizam o amor conjugal em
poligamia, adultério, divórcio. seu início. Sem pretender um retorno a modelos superados, cremos que
Cremos que os problemas do amor conjugal apresentam hoje uma a situação presente não é a mais adequada a um começo perfeito do amor
diversificação mais matizada. Por outro lado, no momento de descrever conjugal.
as situações problematizadas, não deve prevalecer uma consideração ex-
cessivamente moralizante. Daí a necessidade de fazer uma descrição não 2. As CRISES INERENTES À CONDIÇÃO EVOLUTIVA DO AMOR CONJUGAL
abstrata, mas a partir dos núcleos reais dos quais brota atualmente a
problematicidade do amor conjugal. O amor conjugal, uma vez iniciado, não acontece por inteiro e de
Reconhecendo que existe uma notável diversidade em função da uma vez. Pelo contrário, é uma realidade em permanente desenvolvimen-
idade e da situação social dos distintos casais, cremos, porém, que os to e evolução.
problemas do amor conjugal se centram hoje, em termos gerais, nos Em virtude de sua condição evolutiva, é normal que surjam crises
seguintes aspectos de sua realidade: mais ou menos agudas. Prescindindo das formas concretas em que os
casais singulares vivem as crises de sua evolução inter-relacional, podemos
assinalar algumas situações típicas que costumam provocar uma variação
1. Ü "COMEÇO" DO AMOR CONJUGAL
crítica no amor conjugal.
O início do amor conjugal se encontra estruturalmente proble- Eis as principais situações que imp~cam uma crise no amor conjugal:
matizado hoje. Não se trata das dificuldades pessoais dos casais tomados - O necessário abandono do sistema de vida da familia de proce-
em particular, mas da estrutura em que ocorre o início do amor conjugal. dência de cada cônjuge e a constituição de outro, adaptado ao
É certo que foram superadas formas históricas deficientes: começar casal recém-constituído, costumam ser o primeiro fator de crise
a vida do casal com total "desconhecimento" mútuo e da realidade em no recém-estreado amor conjugal; essa primeira etapa coincide
questão; iniciar o casamento por razões de "conveniência" dos pais ou com a aprendizagem dos novos papéis de marido e mulher,
dos próprios cônjuges etc. Contudo, não podemos afirmar que as estru- aprendizagem não carente de dúvidas, de angústias e de retornos
turas socioculturais de hoje sejam as mais adequadas a um perfeito come- momentâneos a dependências parentais anteriores.
- A presença do primeiro filho, sobretudo se acontece no começo
ço do amor conjugal.
do casamento, origina uma nova crise no amor conjugal; à con-
Como manifestações da problematicidade no começo do amor con- dição de casal se acrescenta agora a de pais, modificando bastan-
jugal, podemos constatar os seguintes dados da realidade social: te as relações próprias do amor conjugal .
- Perda de contornos estruturais e até de funcionalidade social e - A escolarização dos filhos supõe também variações notáveis na
pessoal do até recentemente chamado "noivado". vida do casal.

218 2 19
CASAMENTO ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL

- Outros momentos críticos para o amor conjugal costumam coin- 4. CONTESTAÇÕES TEÓRICAS E COMPORTAMENTOS DESVIANTES
cidir com o casamento dos filhos, com as alterações normais da D~TE DA FIDELIDADE E DA EXCLUSIVIDADE DO AMOR CONJUGAL
biologia sexual da mulher e do homem, bem como com a acei-
tação da velhice. Constitui um traço antropológico do amor conjugal seu caráter de
Não julgamos necessário desenvolver mais este aspecto das crises do fidelidade e exclusividade. Essa característica se transformou em critério
amor conjugal provenientes de sua condição evolutiva; é um tema suficien - normativo no âmbito da ética ocidental. Ora, poucos aspectos do casa-
temente formulado pelos estudiosos e uma realidade suficientemente viven - mento são tão contestados teórica e praticamente como este na atualidade.
ciada pelo casal 11 • Entretanto, nem por isso deixamos de considerá-lo um Segundo diz um recente estudo sobre a sexualidade humana,
núcleo importante de contínua problematicidade na vida do casal e como o casamento monógamo tradicional sofre hoje uma série de ataques a partir de
um ponto de particular atenção na educação para o amor conjugal. diversas frentes. Um primeiro resultado desse ataque é a instauração, na prática
se não na teoria, do que se denominou "monogamia consecutiva", isto é, a
norma de contrair um matrimônio monógamo após outro. Hoje, temos de
3. A AMEAÇADA PECULIARIDADE DO AMOR CONJUGAL contar com a possibilidade de que um de cada três casamentos termine em
divórcio [ ... ]. Ao lado desse fenômeno, desenvolveu-se uma diversidade de
Outra fonte de problematicidade para o amor conjugal é a ameaça modalidades que permitem aos casados estabelecer relações sexuais "secundá-
que continuamente se faz sentir sobre sua peculiaridade. Com freqüência, rias" à parte do vínculo conjugal primeiro, muitas vezes com o consentimento
a condição do amor conjugal se desvanece e dá lugar a situações viciadas e até a colaboração do cônjuge. Essas relações, que em outros tempos se
desde a raiz: agrupavam sob a categoria geral do adultério, talvez devam ser consideradas
- Como situação extrema, pode-se indicar aquela em que pratica- hoje um fenômeno distinto 13 •
mente desaparece o amor conjugal ao ser suplantado; a) pelo O mesmo estudo observa que
amor parental (o "parental" absorve o "conjugal"); b) pelo amor são muitas e diversas as causas dessas pressões sofridas pelo casamento
exclusivamente erótico, que por isso mesmo adquire componen- monógamo. Podemos identificar os seguintes fatores-chave nessas novíssimas
tes possessivos de certo .caráter sadomasoquista. tendências. Em primeiro lugar, o simples fato da dilatada longevidade que o
- Sem chegar ao extremo da eliminação do amor conjugal, sua homem atinge hoje fez que o casamento "até que a morte nos separe" seja uma
peculiaridade pode ficar obscurecida pelos múltiplos mecanismos realidade cada vez mais difícil. Muitos casais contraem matrimônio pouco antes
psicológicos que desvirtuam a autenticidade da relação típica do ou depois de fazer vinte anos, o que supõe algumas perspectivas de cinqüenta
ou mais anos em comum antes que ocorra a morte de um dos dois; daí o
casal conjugal.
aumento da possibilidade de incorrer em infidelidades em virtude da mera
Se toda relação interpessoal se mostra problemática, muito mais o passagem do tempo. Em segundo lugar, vivemos num ambiente altamente
será uma relação como a do casal, que deve ser: relação de pessoas, relação erotizado e permissivo, no qual se revela muito fácil, em todos os níveis, a
de amizade e relação baseada na diferença sexual. Todas as fraquezas atividade sexual extramatrimonial. Em terceiro, a prosperidade e a mobilidade
psicológicas (angústias, obsessões, fobias etc.) assumem um relevo cha- tornaram possível desenvolver essas atividades de maneira mais discreta, coisa
mativo ao existir na vida relacional do casal. Os psicólogos estudaram que há alguns anos ficava fora das possibilidades econômicas de muitas pessoas.
detidamente os perigos a que está exposta a vida do casal 12 • Em quarto, a possibilidade de controlar por completo a concepção fez que o
contato extramatrimonial se mostre livre de riscos para homens e mulheres por
igual. Em quinto lugar, a presença da mulher em todos os campos de negócios
11. Ver, a título de exemplo, J. LEMAIRE, Los conflictos conyugales, Bilbao, 1971 ; e da cultura dá lugar a contatos mais numerosos entre homens e mulheres, que
R. MASSIP, La armonía entre los esposos, Bilbao, 1971; M. ORAISON, Armonía de la fazem já parte da vida comum em todos os domínios. Por fim, a aceitação
pareja humana, Madri, 1967; vários autores, La vida de la pareja, Bilbao, 1972. social (quando não moral) das relações pré-matrimoniais com um ou mais
12. Cf. F. DUYCKAERTS, La formación dei vínculo sexual, Madri, 1966; F. GARRE,
La pareja humana constitutiva de la familia: La familia, diálogo recuperable, Madri, 1976,
pp. 243-261. 13. Vários autores, La sexualidad humana, Madri, 1975, p. 165 .

220 221
CASAMENTO ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMOR CONJUGAL

companheiros conduziu a um enfraquecimento do sentido da responsabilidade - Por último, a própria institucionalização do casal (casamento
para com o outro cônjuge no casamento 14 • civil e/ou casamento canônico) causa problemas ao amor con-
Como fruto desses e de outros fatores surge na sociedade uma jugal, sobretudo nas situações-limite.
grande variedade de comportamentos contrários ao caráter de fidelidade Pelo que ficou dito, manifesta-se a notável "vulnerabilidade" do
e de exclusividade do amor conjugal. Este se sente problematizado no amor conjugal. A vida do casal conjugal é uma importante zona de
núcleo mais íntimo de seu ser.
problematicidade humana. Isso não implica ter uma visão pessimista da
situação atual. Pelo contrário, cremos que a crise por que passa o amor
5. RESSONÂNCIA SOCIAL NA VIDA DO CASAL CONJUGAL conjugal tem caráter catártico contanto que saibamos reorientar a vida e
a compreensão do casal segundo as mudadas e mutantes situações do
Na configuração atual do amor conjugal, desempenha um papel momento atual.
decisivo a maneira de entender e de realizar o projeto humano na socie-
dade de hoje. Limitando-nos à constatação dos fatores socioculturais que
problematizam a realidade do amor conjugal, assinalamos os seguintes: N. SINAIS DE ORIENTAÇÃO COM VISTAS AO FUTURO
- Os fatores socioculturais que originam a "desintegração do amor
na sociedade ocidental contemporânea" 15 atuam também de modo Nesta última parte da reflexão, pretendemos oferecer algumas pistas
negativo na vida do casal; espírito mercantilista, afã de posse, de orientação levando em conta, por um lado, o ideal descrito e, por
imaturidade agressiva, individualismo, egoísmo, falta de solidarie- outro, a problemática atual. Se na descrição do ideal demos a sensação
dade que leva ao isolamento etc. são outros tantos elementos da de excessivo otimismo e na análise dos problemas, de excessivo pessimis-
cultura ocidental contemporânea que têm evidentes ressonâncias mo, oxalá essas duas posturas sejam compensadas ou integradas com o
e claros apoios na vida do casal. realismo destas orientações finais.
- Não faltam ideologias de matiz utópico e revolucionário que Não se trata de "moralizar" sobre o amor conjugal, nem em termos
pretendem descobrir no amor conjugal o "sepulcro da revolu -
de "receituário casuístico" nem de "lamentação patética". O que se pre-
ção" e que, por conseguinte, procuram opor-se frontalmente à
tende é descobrir os valores básicos capazes de reorientar a importante
vida do casal, considerando-a um reduto reacionário e burguês.
realidade do amor conjugal.
Essa acusação difusa, globalizante e pouco matizada, ao provir
de setores ideológicos de esquerda, contém elevado grau de Restringindo-nos ao mais essencial, concretizamos os valores bási-
atração e até de sugestão, sobretudo em ambientes e em grupos cos do amor conjugal em quatro opções teórico-práticas.
condicionados por um alto nível de crítica diante da ordem
estabelecida.
- A existência de formas de vinculação interpessoal paralelas e al- 1. FÉ NO VALOR HUMANIZANTE DO AMOR CONJUGAL

ternativas ao amor conjugal comporta, em certa medida, um


A primeira opção consiste na afirmação teórico-prática do amor
questionamento radical ao sentido e à função do casal conjugal.
- As condições sociais em que hoje se desenvolve a vida do casal conjugal como um fator desencadeador de processos humanizantes. Dian-
também repercutem no amor conjugal. Pense-se, por exemplo, te de concepções e perante realizações práticas que relegam o amor con-
no trabalho da mulher fora do lar. jugal a etapas precríticas, infantis e regressivas da humanidade, é necessá-
rio tornar patente seu sentido humanizado e sua função humanizadora.
14. Id., ibid., pp. 165-166. O amor conjugal manifesta suas qualidades humanizadas e humani-
15. FROMM, op. cit., pp. 101-126. zadoras:

222 223

J
CASAMENTO
ANTROPOLOGIA E ÉTICA DO AMO R CONJUGAL

- Por meio da criação de âmbitos comunicativos em que o amor instituições educacionais se centraram no "parental" e no "familiar", no
de amizade seja o eixo da relação interpessoal.
futuro devem assumir maior destaque as insistências sobre "o conjugal".
- Mediante o planejamento da sexualidade ao integrá-la no con-
texto plenamente significativo do humano. Em termos de slogan, poderíamos expressar da seguinte maneira o
- Na captação dialética do pessoal e do institucional no quadro de que foi dito antes: "da família ao casamento", "do casamento ao casal'',
uma síntese superadora de extremismos parciais. "do casal ao núcleo da conjugalidade, isto é, ao amor conjugal" . Somen-
te a partir da posse do núcleo da conjugalidade será possível estruturar
O amor conjugal é uma possibilidade que a história humana tem a vida do casal conjugal
para ampliar e aprofundar os âmbitos de humanização. Os valores da
comunicação, do amor, da fusão mútua, da fidelidade, da plenitude eró-
tica, da fecundidade etc. são outros tantos sinais da capacidade humani- 3. PROPICIAR A TENSÃO DIALÉTICA ENTRE
zadora do amor conjugal. INTIMIDADE E ABERTURA NO AMOR CONJUGAL

Unicamente descobrindo seu valor humanizante, podemos conti-


Tal como observamos anteriormente, uma das zonas mais proble-
nuar apostando no amor conjugal. Pelo contrário, a permanência nele de
máticas hoje no amor conjugal é seu caráter de fidelidade e exclusividade.
fatores infantis, de pressões institucionais e de egoísmos possessivos cons- Qual a solução adequada?
titui a máxima garantia de seu descrédito.
Não cremos que a solução passe nem deva passar pela proibição
A aposta no valor do amor conjugal supõe, portanto, a afirmação jurídica ou pela condenação moralizante:
teórico-prática de sua função humanizante. É a opção mais básica de
- Uma organização jurídica penalizadora e proibitiva dos comporta-
todo projeto autêntico sobre o futuro do amor conjugal.
mentos contrários à fidelidade conjugal não é, enquanto tal, solução
adequada a pessoas e grupos livres.
2. AflRMAÇÃO DE SUA PECULIARIDADE NO ÂMBITO - Tampouco a condenação moralizante, enquanto tal, soluciona um
DA REALIDADE COMPLEXA DO CASAMENTO-FAMÍLIA problema que não depende unicamente das tendências negativas da
vontade individual.
Concretizamos a segunda opção na afirmação da peculiaridade do A solução deve passar por uma reformulação da dialética entre in-
amor conjugal no âmbito da realidade complexa do casal institucionalizado timidade e abertura inerente à realidade do amor conjugal. A fidelidade
como casamento e família. Esta opção envolve: e a exclusividade não devem ser entendidas nem vividas como tendências
- Enfatizar a originalidade da "conjugalidade", aspecto não redutível intimistas ou egoístas do casal. Pelo contrário, devem ser entendidas e
a nenhum outro dos que compõem a vida do casal. vividas como apoio e potenciação da abertura ao grupo.
- Educar as crianças, os adolescentes e os jovens para a relação
específica de conjugalidade.
- Impedir que prevaleça, tanto nos sistemas educacionais como na 4. Do AMOR CONJUGAL À TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

estrutura do casal, o "parental" em detrimento do "conjugal"·


O amor conjugal não pode constituir nenhum tipo de empecilho
- Equilibrar a força da instituição matrimonial com a vitalidade
para o compromisso e para a tarefa das pessoas na transformação da
prevalecente do amor conjugal.
realidade. O amor conjugal tem de tornar-se "forte" não para si, mas
O futuro do amor conjugal depende, em larga medida, da capaci- para a entrega e o serviço.
dade que apresentem as novas gerações de organizar a vida do casal a
A dimensão de fecundidade é essencial ao amor conjugal. Ora, a
partir da peculiaridade da "conjugalidade". Se em gerações passadas as
fecundidade não se esgota na procriação, nem sequer na educação dos
224
225
CASAMENTO

filhos. Ela tem de atingir cotas mais elevadas de "produtividade", para


empregar expressões próprias de E. Fromm.
(J~13
Se é certa a acusação, teórica e real, de que o amor conjugal é a
"tumba da revolução", isso não depende do autêntico amor, mas do
distorcido. A vida do casal é a potenciação para a entrega mais plena ao
serviço de transformação social.
Por outro lado, na própria maneira de formular e de realizar a vida
do casal, podem-se plantar as sementes da autêntica revolução social. A O CASAMENTO:
partir do amor conjugal, por exemplo:
- Pode-se propiciar a "revolução feminina" mediante a igualdade ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?
do casal.
- Pode-se apoiar a igualdade social mediante a harmonia na com-
plementaridade do casal.
O futuro do amor conjugal é decisivamente avaliado pela força que
1. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
projeta na transformação da realidade social. Por isso, assinalamos essa
opção no âmbito das prioridades teórico-práticas do amor conjugal.
S EMPRE existiram comportamentos contrários à norma vigente. Com
maior ou menor abundância, sempre ocorreram relações sexuais
extraconjugais. Nesse sentido, nossa situação atual não é melhor nem
pior que outras situações históricas passadas.
Entretanto, o radicalmente novo da situação presente é a "intencio-
nalidade" significativa com que esses comportamentos se apresentam.
Não se vivenciam como algo contrário à norma com o decorrente sen-
timento de culpa (seja culpa psicossqcial, seja culpa ético-religiosa); na
verdade, adotam-se esses comportamentos com a intenção de provocar
uma mudança revolucionária na norma, ou, ao menos, sem vivenciar
nenhuma dimensão de culpa.
É preciso acrescentar a essa intencionalidade significativa que acom-
panha muitos dos comportamentos concretos as formulações teóricas
com as quais se desejam justificá-los. Essas justificações teóricas não são
formuladas, de modo geral, no domínio do saber filosófico-moral; elas se
apresentam sobretudo com roupagem literária (em romances, obras de
teatro) e com uma roupagem cinematográfica (filmes, televisão).
Essa é uma nova maneira de "teorizar" com a qual devemos contar
para poder estabelecer um diálogo proveitoso. Caracteriza-se pelos se-
guintes traços principais: carência de precisão nos raciocínios; mescla, às
vezes caótica, dos diferentes planos do problema num clima artificialmen -

226 227

~-----1111 ......___
CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

te ( = literariamente) criado; preponderância das situações-limite em que ção das diversas formas pelas quais se manifestam as relações sexuais
as normas vigentes não encontram uma fácil colocação; prevalência dos extraconjugais. Podemos pensar nas seguintes modalidades: encontros
fatores emocionais sobre os racionais; fácil conexão e fácil provocação amorosos passageiros; uma sólida "relação" muito semelhante ao vínculo
com e de uma mentalidade difusa, massificada e, no fundo, pré-crítica. matrimonial; formas substitutivas do casamento (toda uma gama de vín-
Não julgamos necessário para o desenvolvimento do tema fazer culos de acordo com sua aproximação com o ideal do casamento ver da -
uma descrição e uma análise detalhadas dos comportamentos e de suas deiro ); relações permanentes dos divorciados.
justificações, contrários à norma vigente de recusar toda relação sexual Que resposta ética dar? Evidentemente, não pode nem deve ser a
extraconjugal. Basta admitir, de maneira global, essa situação crítica no mesma em todos os casos enumerados. Mas o que não procede é repetir
momento atual. mecanicamente a norma vigente: toda relação sexual extraconjugal é
O problema está formulado: a possibilidade de uma relação sexual proibida. Essa forma de resposta (não a resposta em si mesma) não nos
dos cônjuges, ou de um deles, fora do âmbito do casamento. Prescindi- parece séria do ponto de vista científico.
mos aqui do problema da poligamia. No fundo, nas diversas formas de
poligamia se exige e se expressa - embora de modo diverso do que II. OS DADOS DA ANTROPOLOGIA SEXUAL
ocorre no casamento monogâmico - uma monopolização das relações
sexuais no âmbito da instituição matrimonial. Referimo-nos aqui à rela- 1. NECESSIDADE DE UMA INSTITUCIONALIZAÇÃO
ção sexual fora do casamento, sejam quais forem as formas matrimoniais. PARA A SEXUALIDADE E O AMOR
Naturalmente, focalizamos o casamento monogâmico da cultura ociden-
tal por ser a instituição que nos diz respeito. Descobrimos em nossa cultura ocidental, de uma maneira às vezes
até exacerbada, a dimensão "personalista" da sexualidade. É uma avalia-
A antropologia cultural diz-nos que existe uma tendência a concre-
ção autêntica: a sexualidade tem de ser avaliada a partir da pessoa e para
tizar e a monopolizar as relações sexuais no interior do casamento. Não
a pessoa. Mas a avaliação "personalista" não é o mesmo que avaliação
obstante, ela nos diz também que o casamento não precisa institucionalizar-
"individualista".
se com base na exclusividade nas relações sexuais entre os cônjuges; pelo
contrário, os costumes e as leis - ou, ao menos, a tolerância social - A sexualidade não é assunto individual; não é sequer um assunto
costumam autorizar o comércio sexual paramatrimonial, e às vezes até o entre duas pessoas. O comportamento sexual se abre ao "nós" social.
impõem. Em muitas sociedades, isso é o que acontece com o homem Infelizmente, em nosso mundo de caráter tão social, a vivência e a relação
casado; mas também se aplicam regulações semelhantes à mulher casada, da sexualidade caminham rumo a um esquecimento do princípio de que
isto é, ela é autorizada a manter relações sexuais extramatrimoniais em também os "outros" contam no momento de pensar sobre a regulação
geral, ou pelo menos com os que pertencem à sua própria geração - do comportamento sexual. E isso não só pela influência, de tipo extrínseco,
circunstância que durante muito tempo foi erroneamente interpretada que possa ter todo comportamento com vistas aos outros, mas pela
como casamento de grupo -; também pode impor-se a ela esse comér- própria razão intrínseca da sexualidade em si.
cio carnal extramatrimonial sob a forma de direito de hospitalidade, de Por essa razão, deve-se insistir na necessidade de uma "institucio-
ius primae noctis, de "prostituição sagrada" etc.1 nalização" da sexualidade. Sem essa dimensão social, a sexualidade huma-
Em nossa situação atual, proliferam as chamadas "relações livres"· na se desintegra e se transforma numa força de destruição pessoal e
Não queremos fazer - porque o julgamos desnecessário - uma descri- social.
Por que afirmamos a necessidade de uma institucionalização para a
1. H . SCHELSKY, Sociología de la sex ualidad, Buenos Aires, 1962, p. 38. sexualidade? São muitos os pontos de vista a partir dos quais se pode

228 229
CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚN ICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

observar essa necessidade; vamos limitar-nos a algumas considerações des para a liberação e a canalização de nossos impulsos instintivos 3 • A
mais importantes. importância da regulação sociocultural no comportamento sexual foi
enfatizada por Bürger-Prinz no estudo das anomalias sexuais. Segundo
ele, é preciso manter harmonia entre três componentes do sexual: o
2. ESTRUTURA SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE biológico-instintivo, o sociólogico e o cultural; a anomalia sexual se ori-
gina precisamente na insociabilidade sexual primária 4 • Schelsky fala das
Em primeiro lugar, os dados positivos que a sociologia e a etnologia
"bases socio-antropológicas" da sexualidade 5 .
nos proporcionam testemunham a presença de certas linhas reguladoras
da sexualidade. Não se conhecem nenhuma sociedade nem nenhuma O comportamento sexual tem uma estrutura sociocultural na qual
cultura que não tenham estabelecido e instituído diversas normas para poder desenvolver-se. Detivemo-nos nesse aspecto no capítulo 5 deste
regular as relações sexuais. A hipótese de Bachofen da promiscuidade livro. Remetemos a ele .
sexual inicial não passa de uma teoria sem nenhum apoio científico na Podemos, pois, afirmar que o comportamento sexual humano tem
realidade. necessariamente uma configuração cultural e social. O nível sociocultural
Embora em todas as sociedades existam normas sociais e estas te- é um elemento integrante do fenômeno humano do sexual. Não deve ser
nham uma mesma função, mal encontramos idênticos modelos regulado- considerado como algo externo ou acrescentado, mas como um fator a
res com um mesmo conteúdo concreto. Também não é idêntico o grau mais da noção e da realidade do sexual.
de obrigatoriedade nesses modelos. Isso nos fala da grande variedade de
formas e opções reguladoras da sexualidade. Com efeito, muitas delas são 3. EXIGÊNCIAS DE UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA INTEGRAL
induzidas a partir do grau de evolução e da própria maneira de formular-
se uma cultura determinada. Destacamos até agora a necessidade da institucionalização para a
Deve-se destacar outro caráter na organização sexual que encontra- sexualidade a partir dos dados empíricos da antropologia e a partir das
mos em todas as culturas. A organização sexual de uma cultura ou so- bases socioantropológicas que configuram o impulso sexual humano en-
ciedade determinada tem uma unidade interna e uma coesão orgânica. quanto humano. Mas a necessidade de uma institucionalização para a
Não se pode trocar nem modificar arbitrariamente uma norma concreta sexualidade é exigida também a partir de uma visão antropológica integral.
sem levar em conta as restantes. Diante da visão finalista, natural, gerativa e institucional da sexuali-
Procurando descobrir o porquê dessa presença constante das dade (naturalmente, no âmbito do casamento), afirma-se hoje a dimensão
regulações sexuais em todos os povos, examinou-se a origem ou causa personalista desta. A sexualidade culmina e se realiza na relação eu-você.
desse aspecto sociocultural da sexualidade e se procurou atribuir-lhe o O encontro interpessoal amoroso entre homem e mulher constitui a for-
lugar que ocupa no quadro de todos os outros elementos que integram ma privilegiada do diálogo eu-você que realiza a pessoa. O amor transforma-
a sexualidade. se no centro da nova visão do casamento. Mas essa visão é incompleta.
Plessner faz residir essa necessidade na natureza cultural do ho- Deve-se reconhecer hoje que a interpretação do casamento a partir do amor
pessoal é também um tanto unilateral. Já os bispos africanos no concílio consi-
mem2. Gehlen afirma que as normas sociais que regulam o comportamento
humano são um elemento importante da cultura e da promoção da
humanidade; servem para superar as dificuldades e os riscos vitais implica- 3. A. GEHLEN, Der Mensch. Seine N atur und Stellung in der Welt, 4 ª ed., Berlim,
1950.
dos pela insegurança de nossos instintos; além disso, oferecem possibilida-
4. H . BUERGER-PRINZ, Psychopathologie der Sexualitiit: Die Sexualitiit des
Menschens, Stuttgart, 1955, pp . 539-547.
2. H. PLESSNER, Die Stufen des Org anischen und der Mensch, Berlim, 1928. 5. SCH ELSKY, op. cit., p. 12.

230 231
CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

deravam essa teologia do casamento muito bonita, mas irreal. E os teólogos Também poderíamos ver a necessidade da institucionalização para a
eram incapazes de encontrar uma resposta. O que ocorre é simplesmente que sexualidade e o amor se abordássemos a questão a partir da corrente
o eu e o você só se dão sobre o pressuposto do nós, e que, portanto, a pessoa filosófica do estruturalismo. O homem não só é liberdade (= personalismo),
no puro sentido do encontro eu-você não acontece. Essa é uma abstração
como também estrutura (= estruturalismo). Mas não julgamos necessário
favorecida pela era do individualismo, que esquece a profunda conexão de
todas as pessoas no conjunto da sociedade, que é a que possibilita e forma o prolongar o tema por esse caminho, embora o julguemos de extremo
ser pessoa. Ou seja, assim como a sexualidade não é só algo individual, assim interesse e de grande riqueza em termos de conclusões.
também o eros não é apenas algo pessoal. Eros e sexo são, ao mesmo tempo, Não devemos entender a institucionalização como algo extrínseco à
o mais público e o mais íntimo. Deles dependem a vida e a morte de toda a
realidade da sexualidade e do amor. Também não deve ser considerada
sociedade, que depende do indivíduo tanto quanto o indivíduo delas6 .
um fator de tipo opressivo ou repressivo. Mais ainda, sua principal in-
Por sua própria essência, o amor e a sexualidade estão submetidos
cumbência é ajudar na realização dos aspectos personalistas. É certo que,
à regulação social. Vimo-lo em todas as culturas. A natureza do homem
muitas vezes, a institucionalização leva a esses desvios. Mas é então que
não é só natureza, mas história. Por isso, precisa de uma institucionalização
deve ser criticada e até reprovada. A institucionalização pertence à pró-
para realizar-se em plenitude.
pria natureza intrínseca da sexualidade e do amor; e nesse nível deve ser
Chegamos à mesma conclusão se aceitamos uma corrente atual do entendida e expressa.
pensamento que considera a sexualidade no que se refere à sociabilidade:
Quando o organismo individual se projeta na direção do ambiente que o cerca,
o indivíduo se vê obrigado a adaptar-se equilibradamente a ele e a superar-se III. RELAÇÃO ENTRE SEXUALIDADE E CASAMENTO
nele, embora só seja do ponto de vista do casal, cujo equilíbrio fisiológico e
afetivo exige "uma concordância entre alguns automatismos singulares" . Isso Para responder à pergunta que nos ocupa - referente a saber se a
quer dizer que o sexual se apresenta, neste nível de comunicação com o am- relação sexual só é lícita no âmbito do casamento -, temos de examinar
biente, como uma forma viva de organização, "testemunho de garantia ao
previamente a relação que existe entre casamento e sexualidade. É um
mesmo tempo de uma situação permanente no mundo". De fato, brotando na
consciência sob a forma de um desejo que nasce do inconsciente, a sexualidade ponto essencial no desenvolvimento do tema. Da compreensão dessa re-
modifica o sentimento de "ser no mundo". Ela se instala na existência impon- lação mútua se depreenderão diversas conclusões de grande importância.
do-lhe um estilo novo, uma orientação para o outro, implicando uma vida em No atual movimento de revisão e. de processo a que se submete a
comum cuja realização é a relação interpessoaF.
moral sexual, uma das objeções básicas se refere à maneira como se
Essa concepção da sexualidade com vistas à sociabilidade pode ser entende a relação entre sexualidade e casamento.
vista em P. Ricoeur, Ch.-H. Nodet, M. Oraison. Podemos encontrá-la A principal censura se baseia no fato de que a moral cristã menosprezou du-
também em Thibon, que afirma que, ao entrar no circuito social, a rante séculos a sexualidade e a tolerou tão-só com vistas à procriação no
sexualidade consegue uma autêntica sublimação; a sociabilidade freia os casamento. A sexualidade enquanto tal - insiste-se - não foi reconhecida
apetites totalitários do sexo e impede que o indivíduo se feche egoista- como um bem do casamento, como uma expressão peculiar de amor, tendo,
mente em si mesmo 8 • pelo contrário, o casamento sido considerado, no fundo, como demasiadamen-
te bom para a sexualidade e, em conseqüência, não se descobriu nenhuma
conexão entre a sexualidade e o amor. Mas esse isolamento, esse conceber a
6. J. RATZINGER, "Zur Theologie der Ehe", Tübinger Theol. Quart., 149 (1969 ),
sexualidade como "meio para um fim", vem a ser, afinal de contas, o mesmo
pp. 53-74; resumido em Selecciones de Teología, 9 (1979), p. 245 .
das situações de hoje em que alguns expoentes extremos declaram que a sexua-
7. SECRETARIADO GENERAL DE LA REVISTA CONCILIUM, "Humanización
de la sexualidad", Concilium, nº 55 (1970), pp. 311-312. lidade é um simples "meio para satisfazer uma necessidade". Atualmente -
8. La sexualidad, Barcelona, 1965, pp. 9-21 (Ricoeur), 94-120 (Nodet), 308-309 continua-se objetando -, essa moral eclesiástica está caindo no extremo con-
(Oraison); G. THIBON, La crise moderne de l'amour, Paris, 1953. trário. Explica-se a sexualidade como algo tão singular em seu significado que

232 233
CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

só pode oferecer uma realização pessoal no casamento monogâmico indissolúvel. sivamente do amor e teria sua estabilidade e coesão interna pela presença
Mas o fenômeno humano fundamental não é o casamento, mas a sexualidade9 .
dos vínculos erótico-sexuais. Essa concepção não repousa sobre a reali-
O que dizer dessa censura? Não há dúvida de que a sexualidade tem dade dos dados da antropologia cultural. É antes um produto da men-
uma estrutura relacional. Tem um dinamismo de abertura ao "você" e de talidade ocidental e da sociedade européia dos últimos séculos.
edificação de um "nós" social. Fora casos excepcionais, a sexualidade A esse respeito, afirma J. J. López lbor:
humana se realiza na formação de um "nós" comunitário, ou, ao menos,
Por regra geral, cada um, quando vê o que é a vida humana, aceita que o
na impregnação erótica de comunidades não estritamente sexuais. casamento é uma seqüela de inclinações sexuais que há entre dois sexos, e que
No entanto, devemos confessar que se deu muito mais importância de alguma forma há uma relação causal entre o impulso sexual e o casamento.
à "institucionalização" (neste caso, o matrimônio) do que à "realidade" Desse ponto de vista, o impulso sexual serviria de base para a atração entre os
dois sexos; e essa estrutura básica seria consagrada depois, por assim dizer, pelo
da sexualidade. Concordamos com as palavras que acabamos de citar: "o fato do casamento. Falo do casamento em geral como instituição social; não
fenômeno humano fundamental não é o casamento, mas a sexualidade" . como sacramento. Contudo, este é um ponto de vista que corresponde à
À luz desse princípio, é preciso revisar a relação que se estabeleceu entre mentalidade ocidental da sociedade européia dos últimos séculos e à mentali-
casamento e sexualidade. dade ocidental que dela deriva [ ... ]. O instinto sexual não pode ser a base do
casamento[ ... ]. A união sexual não pode ser a base do casamento, precisamen-
E não pensemos apenas na moral tradicional como a ideologia que te porque lhe falta o caráter de permanência que, mesmo sendo mais ou menos
sustenta essa desvalorização da "realidade" diante da "instituição". Se no longa, constitui a base da união matrimonial 11 .
modo de conceber o casamento como uma instituição para a procriação Quais são, pois, os fatores fundamentais que originaram, estabiliza-
havia uma "instrumentalização" da sexualidade, também pode existir essa ram e afiançaram as instituições do casamento e da família? São dois, de
visão instrumentalizadora no momento de entender o casamento como acordo com Schelsky12 • Por um lado, a instituição do casamento e da
uma aliança para planejar-se pessoalmente. família se originou pela necessidade de uma relação duradoura entre a
A compreensão e a realização da sexualidade estiveram muito con- mãe e a prole, relação da qual também participa o pai, dado que este tem
dicionadas pelo casamento; e também a compreensão e a realização do a seu cargo a tarefa de proporcionar o sustento e a segurança necessários
casamento estiveram muito condicionadas pelo sexual. Será preciso revi- à vida. A relação mãe-filho torna-se necessária para assegurar a vida do
filho, que nasce mais inerme do que qualquer animal. O homem nasce
sar essa mútua relação?
como um ser prematuro. Seus instintos não são como os instintos segu-
ros do animal. ·
1. ANOTAÇÕES DE ANTROPOLOGIA CULTURAL Essa situação de ser inerme, de animal deficitário, de animal enfermo, como
dizia Nietzsche, é que obriga por sua própria natureza a criar uma relação
Os estudos de antropologia cultural elucidam bastante a compreen- especial entre a mãe e o filho, e, por conseguinte, com o pai; e é em função
são do significado da instituição matrimonial e sua relação com a sexua- dessa necessidade de amparo que se constitui a família. A família se constitui
não sobre a base do comércio sexual entre os pais, mas sobre uma relação
lidade. A partir deles, fazemos as anotações que seguem:
distinta de co-participação 13 .
A primeira coisa a observar é que "o casamento não é uma institui-
Já J. Fiske assinalava em sua obra The Meaning of Infancy (1883)
ção primariamente sexual" 1º. Crê-se, às vezes, que o impulso sexual é o
que o ser humano se caracteriza por uma infância de duração excepcio-
fator determinante da estrutura interna do casamento; este nasceria exclu-

11 . J. J. LÓPEZ IBOR, Aspectos psiquiátricos de la moral dei amor: Moral y hombre


9. F. BOECKLE e Th. BEEMER, "Presentación", Concilium, nº 55 (1970), PP· nuevo, Madri, 1969, pp. 101-102.
165-166. 12. SCHELSKY, op. cit., pp . 34-37.
10. SCHELSKY, op. cit., p. 34. 13. LÓPEZ IBOR, op. cit., pp. 105-106.

234 235
CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

nal, em comparação com a dos animais. Daí a necessidade de uma pre- necessária do ponto de vista da antropologia cultural. E isso não se dá
sença dos progenitores em torno da prole para possibilitar-lhe a sobre- nem precisa nem primariamente em razão da sexualidade e do amor, mas
vivência. em razão dos fatores que estão na origem do casamento como institui-
Nos últimos anos, voltou-se a insistir de modo particular na relação ção. Com efeito, no casamento monogâmico e estável se salvaguardam e
constitutiva da mãe com o filho. De Spitz 14 a Rof Carballo 15 , considera- têm perfeita acolhida as duas razões fundamentais que estão na origem
se essa relação uma relação transacional que constitui o filho não só no do casamento e da família: o cuidado dos filhos e o controle econômico.
plano psíquico, como também até no biológico. Esse fenômeno da rela-
Do que foi dito decorre que o casamento, tal como adiantávamos
ção necessária entre a mãe e o filho é a origem das formas de vinculação
antes, não é fundamentalmente uma instituição para a sexualidade.
afetiva, que conferem, por sua vez, um significado novo à relação sexual.
Daí se origina a tendência a monopolizar as relações sexuais no âmbito De nenhuma maneira, o casamento e a família devem ser entendidos, simples-
mente, como uma institucionalização do sexual; neles só há uma regulação
matrimonial.
indireta das relações sexuais, cuja importância e permanência se devem à inclu-
O segundo fator que está na origem da instituição matrimonial é a são de fatores fundamentais de índole não-sexual. Portanto, toda estabilidade
motivação econômica. A família representa uma fórmula de comunidade das relações intersexuais pareceria originar-se precisamente de fatores cuja ín-
econômica. Nesse sentido, pode-se admitir a afirmação dos etnólogos de dole não é sexual 18 .
que "o casamento é, fundamentalmente, uma instituição e uma comuni- O casamento e a família não devem ser interpretados como institucionalizações
dade econômica" 16 • do problema sexual, estando de fato determinados pela própria natureza social
O casamento deve sua estabilidade social às tarefas em beneficio da do homem, produzindo secundariamente uma regulação da vida sexual segun-
do aquelas institucionalizações 19 •
segurança e do sustento que os pais realizam com relação aos filhos e aos
cônjuges entre si. Daí que, da perspectiva da antropologia cultural, o O casamento não é uma instituição primariamente sexual; mas o
casamento e a família devam ser entendidos como uma comunidade casamento é uma regulação social das relações sexuais. Esta é a segunda
predominantemente econômica, fundada evidentemente nas relações se- afirmação importante que a antropologia cultural nos oferece acerca do
xuais, mas originada sobretudo pela necessidade de prestar ao filho uma casamento.
proteção prolongada, imprescindível até em termos biológicos. A liberdade sexual extraconjugal é uma ameaça aos valores não-
Nesse sentido, a forma do casamento estável e monogâmico surgiu sexuais contidos na instituição matrimonial. Daí o surgimento da tendên-
como a solução ótima para realizar o significado do casamento. Contra- cia a monopolizar as relações sexuais ·dos cônjuges no âmbito do casa-
riamente à tese de Bachofen da promiscuidade inicial (seguida do ma - mento (tendência à monogamia cada vez mais estrita) e, por conseguinte,
triarcado e, depois, do patriarcado), deve-se sustentar que "a promiscui- a controlar as relações sexuais extraconjugais.
dade institucionalizada não existe, e provavelmente nunca existiu" 17 • A
Isso envolve um fenômeno duplo, de grande importância para en-
solução óbvia para os problemas da família é o casamento estável e
monogâmico. tender a relação entre sexualidade e casamento. Por um lado, o casamen-
to tende a dessexualizar todas as outras estruturas sociais, e, por outro,
Previamente a toda consideração moral que o justifique e lhe dê
tende a erotizar cada vez mais a vida intramatrimonial.
explicitação, o casamento monogâmico e estável aparece como a solução
O casamento tem, do ponto de vista da antropologia cultural, uma
função de dessexualização de muitos aspectos da vida social. Com essa
14. R. A. SPITZ, E/ primer ano de la vida dei nino, Madri, 1968.
15 . J. ROF CARBALLO, Cerebro interno y mundo emocional, Barcelona, 1952 .
"repressão" do impulso sexual, permanecem livres no homem muitas
16. SCHELSKY, op. cit., p. 36.
17. J. P. THIEL, "La antropología cultural y la institución de! matrimonio", 18. SCHELSKY, op. cit., p. 37.
Concilium, nQ 55 (1970), p. 170. 19. LÓPEZ IBOR, op. cit., p. 106.

236 237
CASAMENTO Ü CASAMENTO : ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

energias para que possam ser canalizadas a outros campos distintos do to de funções econômicas, sociais e políticas que antes possuía. Desse
sexual. Segundo o esquema freudiano, o princípio do prazer tem de modo, constitui-se num reduto de "concentração" do sexual.
sucumbir diante do princípio da realidade; só assim são possíveis a cultura Mas aqui ocorre um fenômeno interessante, muito bem analisado
e o progresso humano. A visão pessimista freudiana de que para progre- por Schelsky21 : o que se refere à não-perduração da monogamia estrita
dir é preciso fazê-lo por meio do desprazer, ou, ao menos, por meio da numa cultura determinada.
não-gratificação espontânea dos impulsos, receberia nesse dado da antro-
A monogamia oferece a estrutura mais perfeita para o desenvolvi-
pologia cultural um apoio real. mento da instituição matrimonial. A monogamia e a estabilidade colocam
As forças sexuais impulsivas "excedentes" se orientam para fins não- a vida sexual na altura mais sublime da existência e do espírito humanos.
sexuais. E isso se consegue mediante a dessexualização que o casamento É a forma mais aperfeiçoada de relação entre homem e mulher.
impõe aos diversos aspectos da vida social. Mas o ideal de monogamia e a realidade monogâmica do casamento
Teríamos aqui a explicação de por que nas grandes culturas (como engendram neste último uma concentração excessiva do sexual, sobretu-
a dos sumérios, babilônios, gregos, romanos, germanos etc.) a aquisição do nas culturas promocionais. Nessa situação, vivencia-se o casamento
do poder bélico e da força plasmadora social e política é coincidente (e, como uma realidade de plenitude interpessoal. Como de qualquer manei-
em certa medida, causada) com uma defesa maior da família e uma ra a realidade do casamento não satisfaz essa apetência, busca-se satisfazê-
observância estrita da monogamia. la fora do casamento. E assim uma apetência que foi suscitada no âmbito
do casamento tem de culminar fora dele.
A monogamia estrita, ao propor-se concentrar e restringir nas relações matri-
2. EXIGÊNCIAS SEXUAIS INTRACONJUGAIS
moniais a totalidade de relações sexuais dos cônjuges, cria novos motivos de
adultério e confere um caráter peculiar às relações extraconjugais, que aumen-
Se, por um lado, o casamento tem a função de dessexualizar os tam progressivamente ao lado do relaxamento e da decadência do rigor em
outros aspectos da vida social, por outro tende a erotizar a vida intra- matéria de moralidade sexual2 2 •
conjugal. À medida que aumentam as regulações restritivas das relações Embora essa "concentração" da sexualidade no casamento ofereça possibilida-
sexuais extraconjugais, nessa mesma medida o casamento costuma carre- des de sublimação espiritual e psíquica indubitavelmente elevadas, em geral
também contribui para desenvolver forças e exigências que minam a estabilida-
gar-se de intensas exigências sexuais. Esse fenômeno costuma unir-se à
de do casamento e da família e provocam um relaxamento das normas e esque-
maior evolução e desenvolvimento das culturas. Uma cultura evoluída, mas sexuais23 .
como a nossa, restringiu, até a anulação (no modelo social, não na rea-
A situação de nossa época no que diz respeito a esse problema
lidade), toda relação sexual extraconjugal; e ao mesmo tempo configurou
deveria ser definida como uma cultura na qual prevaleceu, e continua a
um tipo de casamento e de família no qual prevaleceu o erótico-sexual.
prevalecer, a concentração das relações sexuais no casamento como exi-
E isso a tal ponto que na cultura e mentalidade ocidental o casamento
gência imperativa (a partir das leis, da moral vigente). Não obstante, de
parece justificar-se quase exclusivamente pelo afetivo-sexual. É o chama-
fato as possibilidades sexuais extraconjugais (pré-matrimoniais e parama-
do "casamento por amor". trimoniais) se multiplicaram e tendem a multiplicar-se cada vez mais.
Na base dessa avaliação está o que tem de válida a hipótese de Estamos caminhando para uma mudança na concepção do casamen-
Marcuse de uma sociedade "integralmente erótica" 2º. Quando uma so- to, enquanto fenômeno da antropologia cultural? Se a elevada erotização
ciedade chegou a um patamar de bem-estar e de luxo (embora à custa
da repressão do princípio do prazer), está capacitada a liberar o casamen -
21. SCHELSKY, op. cit., pp. 43-50.
22. Id., ibid., p. 45 .
20 . H. MARCUSE, Eros e civilização, São Paulo, 1999. 23. Id., ibid., p. 43.

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CASAMENTO Ü CASAMENTO: ÚNICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

do casamento burguês tem sua origem na decadência de suas funções IV. ORIENTAÇÕES ÉTICAS
institucionais no plano do econômico, do político e do social, e se essa
erotização provoca uma excessiva "concentração" do sexual no âmbito Recordemos o caminho percorrido nestas reflexões. Em primeiro
do casamento, temos de admitir que a instituição familiar tende a mudar lugar, constatamos o problema da vida sexual do casal; impugna-se teóri-
de significado, ao menos no que tinha de instituição econômico-social? ca e praticamente a norma de que toda relação sexual deve ficar restrita
Mais ainda, poderíamos pensar que a força de controle social das relações ao âmbito da instituição matrimonial; surgem novas formas de relações
sexuais no interior do casamento deveria ser reinterpretada no novo pré-matrimoniais; proliferam as relações extraconjugais. Em segundo lugar,
contexto sociocultural? oferecemos algumas abordagens do problema para analisá-lo antes de dar
uma solução; vimos a necessidade de uma "institucionalização" para toda
Caberia aqui voltar a recordar a hipótese de Marcuse da "erotização"
realização perfeita do amor e da sexualidade humana; e examinamos a
dos aspectos não-sexuais da vida social. Mas, tendo chegado a este ponto,
relação entre a sexualidade e a instituição matrimonial.
não podemos senão fazer perguntas. Não podemos prever com clareza o
modo de avanço da cultura. Agora, depois dessa análise, voltamos a examinar o problema. Ei-lo
formulado com crueza:
Uma terceira contribuição importante que a antropologia cultural
nos oferece é a de dizer-nos que a instituição matrimonial é extremamen- Na doutrina da Igreja, o casamento é considerado o terreno exclusivo das
relações sexuais. Toda atividade sexual pré e extramatrimonial excluiria do reino
te variada. Não se limita a um único esquema institucional.
dos céus. Por outro lado, essa maravilhosa instituição do casamento não foi
Não julgamos necessário apresentar dados para provar essa afirmação. elaboração própria da igreja. Foi fruto maduro de uma longa experiência hu-
Também não cremos imprescindível elaborar uma explicação das diversas mana, com a finalidade inicial de assegurar a simples sobrevivência mediante a
formas de instituição matrimonial. Unicamente recordamos algumas varian- garantia de alguns cuidados maternos e de um mínimo de segurança econômica,
tes de interesse com relação à forma de nosso casamento ocidental. com uma flexibilidade variável e uma também variável liberdade sexual pré e
extramatrimonial.
Em muitas culturas, o casamento, ao contrário da cultura européia, Essa flexibilidade diminuiu em grupos reduzidos como conseqüência de uma
não se realiza num único momento. O pacto matrimonial em certos evolução para a estrita monogamia, na qual o amor único e fiel era visto como
grupos da África constitui um processo que se prolonga por um longo reflexo e concretização da própria aliança. Essa visão, confirmada e purificada
tempo, com freqüência durante anos. A formalização do consentimento por Jesus, marcou com seu selo toda a civilização ocidental.
matrimonial em muitos povos dificilmente é compatível com um concei- Essa situação mudou rapidamente. Antibióticos e anticoncepcionais eliminaram
o risco do sexo como o filtro elimina o fumo. Desmitificada e dessacralizada
to legal romano do consensus irrevogável que se faz num momento pre-
a sexualidade já não tolera uma excessiva restrição. As novas gerações rebelam~
ciso e com uma formalidade precisa. se contra as imposições de uma sociedade hipócrita: make love, not war. O
Embora se perceba uma tendência geral à monogamia, nem por isso homem atual, submetido ao constante bombardeio de estímulos eróticos com
deixa de ocorrer a poligamia. Mas não se deve entender esta última com os quais a publicidade comercial de nossa sociedade de consumo procur; con-
uma mentalidade excessivamente européia. vencer e atrair seus clientes, exige as razões dessas proibições 24 .

O casamento, segundo dissemos, é uma regulação social das rela- A ética se encontra diante de um desafio. São-lhe pedidas razões e
ções sexuais. Entretanto, não aparece em todos os povos uma forma explicações. O que fazer?
idêntica de regulação das relações extraconjugais. Há um mais e um A primeira coisa coerente é aceitar o desafio e submeter o problema
menos na limitação dessas relações. O mesmo se deve dizer com relação a uma reformulação sincera e profunda. Não se pode continuar repetindo
ao divórcio. mecanicamente a norma proibitiva. Compreendemos que para muitos o
Falamos até agora em termos e em perspectivas da antropologia
cultural. Em seguida, procuraremos encaixar todos esses dados no mun- 24. J. SNOEK, "Matrimonio e institucionalización de las relaciones sexuales",
do da ética. Concilium, n2 55 (1970), pp. 271-272.

240 241
CASAMENTO Ü CASAMENTO : ÚN ICA INSTITUIÇÃO PARA A SEXUALIDADE?

simples fato de submeter o tema a reformulação, seja qual for a solução 2. A sexualidade e o amor têm uma estrutura que deve ser respei-
a que se chegue, suporá um choque violento. Será como remover uma tada para que eles encontrem sua realização autêntica. Requer-se possuir
árvore de raízes profundas e de uma segurança que se julgava definitiva. de antemão uma antropologia da sexualidade e do amor para conhecer
No entanto, é legítimo reformular o problema. E isso por razões suas estruturas básicas. Recordemos que a sexualidade é um dinamismo
gerais que se apresentam nos tratados de ética fundamental. O decisivo que abrange toda a pessoa: ela não pode ser reduzida a uma pura expres-
no comportamento responsável dos homens não é a norma, mas o "valor são de genitalidade. A sexualidade é uma força de liberação e auto-
moral". É o valor que dá sentido à norma e constitui o verdadeiro objeto realização pessoal: não pode ser manipulada como fator de alienação e de
do ato moral. Daí se segue que uma norma moral não é uma restrição aniquilação da pessoa e da sociedade.
da liberdade humana, mas uma urgência que o objeto portador do valor 3. No interior das estruturas antropológicas básicas da sexualidade
dirige à liberdade para impeli-la a cultivar e salvaguardar o valor. e do amor, é preciso acrescentar que uma relação sexual plena deve ser
Mas dessa doutrina decorre também que a vivência do valor no a expressão de um amor total, exclusivo e definitivo. Se o amor não tem
plano da existência humana nunca pode expressar-se de uma maneira essas qualidades e essa densidade, não se pode recorrer a uma expressão
totalmente adequada no plano da formulação normativa. Mais ainda, as e a uma linguagem de tamanho compromisso quanto o da relação sexual.
formulações normativas, pelos condicionamentos histórico-culturais a que Seria frustrar e alienar a própria pessoa, enganando-se a si mesmo, enga-
estão submetidas, têm sempre algo de provisório. Por isso, é necessário nando o companheiro e enganando a sociedade.
revisá-las continuamente para que saibam adequar-se o máximo possível 4. À estrutura antropológica do amor heterossexual pleno pertence
ao valor que procuram cultivar e salvaguardar. a aceitação por parte dos outros. Tanto é assim que
Pede-se à ética uma resposta, e a ética tem de dá-la. Mas não se o que constitui o casamento é o amor pessoal dos cônjuges (quanto mais
pode dizer a ela, nem ela pode dar, uma resposta de tipo legalista nem pessoal, melhor), mas na medida em que é aceito e ordenado pela comunidade.
de caráter casuístico. É evidente que a ética tem de emitir um parecer E toda intenção de fundamentar o casamento, ou suas características de uni-
sobre situações de fato e, portanto, concretas; já santo Tomás de Aquino dade e indissolubilidade, a partir somente do amor pessoal e sem fazer referên-
afirmava a necessidade de que os raciocínios de ordem ética tomassem o cia ao caráter social e inclusive jurídico do homem, está fadada ao fracasso 26 .
caminho do concreto e do contingente 25 • Contudo, a ética deve também A sexualidade só é plenamente humana se se encontra histórica e
projetar-se acima das constatações e experiências e propor os valores culturalmente institucionalizada. É necessário fazer claramente essa afir-
gerais que é preciso tender a verificar em cada situação concreta. mação diante de uma tentação atual· de excessivo "personalismo", que
Partindo dessa função dialética da ética, vamos propor algumas pistas surgiu como reação diante da visão excessivamente naturalista de épocas
de solução. Entre os valores que é necessário salvaguardar em toda rea- passadas.
lização concreta e em toda formulação normativa da relação sexual, des- Para que a sexualidade seja plenamente humana e salvadora, não basta ao "eu"
tacamos os seguintes: ver-se arrancado de sua solidão por um "você"; ambos devem, além disso, ter
a coragem de inserir-se na história de seu povo, dedicando-se a seu futuro
1. A sexualidade e o amor têm um valor em si mesmos, na medida mediante a aceitação de transformar-se em passado. Em última análise, essa
em que estão enraizados na pessoa. Não se pode "instrumentalizá-los", dimensão social da sexualidade encerra uma referência ao absoluto. Importa
como se fossem um meio para obter um fim (a procriação) ou uma observar que esse chamado ao social, ao direito, não é elemento ocasional, mas
realidade para justificar outra (o casamento). A sexualidade e o amor têm, constitutivo da própria sexualidade 27 .
portanto, um valor que escapa a toda justificação estrutural. A sexualida-
de e o amor não recebem sua legitimidade do casamento.
26. RATZINGER, loc. cit., p. 245.
25. Suma Teológica, São Paulo, 2001 , II-II, q. 1, pró!. 27. SNOEK, op. cit. , p. 276.

242 243
EXERCÍCIO RESPONSÁVEL
DA PROCRIAÇÃO

U M dos bens mais destacados do casamento é a possibilidade de


originar uma família. A maioria dos casais integram na relação
interpessoal de amor heterossexual o desejo eficaz de culminar a con-
jugalidade no exercício da maternidade/paternidade. O amor conjugal
tem um dinamismo interno que o faz progredir rumo à constituição de
uma comunidade mais ampla de pessoas (não só cônjuges, mas também
pais e filhos) .

I. SIGNIFICADO DA FECUNDIDADE HUMANA

Cremos ser conveniente expor esse significado a partir de dois ân-


gulos de compreensão: 1) da perspectiva do casal, visto que a fecundidade
é uma realidade do casal, e 2) da perspectiva da sociedade, dado que a
fecundidade é um fator importante da sociedade humana. É preciso adotar
essa dupla perspectiva porque, na solução dos problemas concretos relacio-
nados com o planejamento familiar e o controle da natalidade, devem-se
levar em conta esses dois ângulos de visão, pois se perdemos um deles a
solução fica distorcida.

l. PERSPECTIVA DO CASAL CONJUGAL

Da perspectiva do casal, que sentido tem a fecundidade?

24 5
CASAMENTO E XERCÍCIO RESPONSÁVEL DA PROCRIAÇÃO

a) Explicações históricas insuficientes Portanto, a fecundidade é a floração, o dom da conjugalidade. Não


podemos entender a fecundidade isolada da conjugalidade. A procriação
Existiram na cultura ocidental algumas compreensões incorretas ou é a redundância da conjugalidade. Este é o sentido que a fecundidade
incompletas sobre o sentido da fecundidade no nível do casal humano. tem no âmbito da compreensão antropológica do casamento.
Recordamos as três mais importantes:
- Entender a fecundidade como justificação do casamento. É incorreto
2. PERSPECTIVA DA SOCIEDADE
entender a fecundidade como a justificação total do casal ou da institui-
ção matrimonial. Essa compreensão é de origem estóica. O estoicismo via Do ângulo social, temos de dizer que a fecundidade é o grande bem
na procriação a única finalidade da instituição matrimonial. e a grande carga que tem a comunidade humana.
- Entender a fecundidade como a justificação ou ccdesculpa)) da in-
timidade conjugal. Outra compreensão incorreta do sentido da fecundidade
no âmbito do casamento é entendê-la como a justificação dos atos de a) A fecundidade como bem social
intimidade do casal. A justificação do ato conjugal tão-só pela procriação
O bem supremo da comunidade humana é a fecundidade , visto
não é doutrina fundada na Bíblia; na realidade, a origem dessa exclusi-
que, afinal de contas, o maior bem que ela possui é a população, são os
vidade provém de tendências pagãs rigorosas transmitidas a nós pelo
componentes dessa comunidade. O maior bem de uma comunidade
pensamento agostiniano. sociopolítica não são nem as estruturas econômicas, nem as instituições
- Entender a fecundidade como o fim primário do casamento. A culturais, nem as realidades políticas: é a fecundidade ou a procriação. É
compreensão da fecundidade como fim primário do casamento tem seu a partir daí que se compreende a enorme importância que tem a procria -
apoio na noção reducionista de "natureza humana" definida predominan- ção no interior da comunidade humana.
temente por seus elementos biológicos.
As três formas enumeradas de compreender a fecundidade no nível
b) A fecundidade como cat;ga social
do casal são incorretas. Se partirmos delas, teremos algumas soluções
para o problema da paternidade responsável viciadas pela raiz. Mas a procriação é também a maior carga que a comunidade hu-
Todas essas explicações padecem de uma visão inexata do casamento mana possui. A atenção à populaçãü humana é o principal objeto do
e da sexualidade. Esta é entendida como uma realidade "em função de" "orçamento" da comunidade; é precisamente para essa realidade que
algo; por outro lado, o casamento é avaliado fundamentalmente como existem todas as instituições: de caráter educacional, de caráter sanitário,
um "contrato natural". de caráter econômico etc. Este aspecto de carga se percebe sobretudo nos
países de explosão demográfica, que costumam ser ao mesmo tempo
países em vias de expansão econômica.
b) Explicação correta

A conjugalidade é o núcleo do casal humano; é a relação dos côn- II. "RACIONALIZAÇÃO" DA FECUNDIDADE HUMANA
juges; é a "íntima comunidade de vida e amor"; é o entregar-se e o
compartilhar a existência. A conjugalidade envolve a fecundidade, já que Uma vez indicado o significado da fecundidade humana, tanto no
toda relação interpessoal autêntica é de caráter criativo. Ora, sendo uma nível do casal como no da sociedade, perguntamo-nos acerca da forma
relação tão profunda e tão íntima, a conjugalidade é fecunda no sentido de seu exercício. Referimo-nos nessa pergunta aos critérios que devem
mais pleno da fecundidade humana. elucidar e marcar a forma de realização da fecundidade humana.

246 247
CASAMENTO EXERCÍCIO RESPONSÁVEL DA PROCRIAÇAO

Sintetizamos esses critérios numa expressão: "racionalização da pro- 2. RACIONALIZAÇÃO DA FECUNDIDADE DO CASAL CONJUGAL
criação". A procriação não pode ser deixada às leis puramente instintivas. ("PROCRIAÇÃO RESPONSÁVEL" E "PLANEJAMENTO FAMILIAR")
Tampouco pode ser de tal maneira "programada" que se transforme
numa realidade meramente técnica. Pelo contrário, entendemos por ra- O direito e o dever de uma população cada vez mais humana se
cionalização da procriação um exercício da fecundidade que seja: humano traduz, em termos éticos, na normatividade expressa pelo princípio de
"procriação responsávef'. Os filhos não devem ser fruto da instintividade
(e não meramente técnico) e crítico (e não instintivo).
ou da irresponsabilidade, mas do amor maduro e responsável das pessoas.
A racionalização da fecundidade humana é exigida pela peculiarida-
Os sujeitos principais da responsabilidade na procriação humana são
de da sexualidade humana. Esta é, sem dúvida, mais que função procriativa.
a comunidade conjugal e a comunidade social:
Por outro lado, a procriação no âmbito da espécie humana não é auto-
- Cabe à comunidade conjugal (aos esposos) emitir o julgamento
maticamente regulada pela instintividade, tendo na verdade de ser respon-
último sobre o exercício do dom de sua fecundidade, levando em conta
savelmente (isto é, "humanamente") regulada. Essa condição antropoló-
o sentido fecundo de seu amor conjugal, os diversos valores que entram
gica está na base da problemática moral da regulação da natalidade, dos
em jogo (os seus, os dos filhos nascidos ou ainda por nascer etc.),
métodos de controle, do planejamento familiar e demográfico. discernindo as circunstâncias.
São vários os âmbitos em que tem de realizar-se a racionalização da Eis um elenco de aspectos que devem ser levados em conta pelo
fecundidade humana. Dá-se a cada um deles um nome específico. Indi- casal:
camos em seguida os principais âmbitos com suas expressões específicas.
• Bem-estar fisico, psicológico, emocional dos esposos. Não parece o
mais indicado engendrar um filho quando a saúde da mãe ou do pai
1. RACIONALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO ("CONTROLE DEMOGRÁFICO") está seriamente comprometida.
• Estabilidade do lar: se existe perigo real de uma ruptura, não é sinal
Não cabe à ética propor "soluções técnicas" para o problema da de responsabilidade querer um filho para solucionar o problema; às
população. Sua missão é iluminar essa realidade a partir da proclamação vezes, essa estratégia dá resultados positivos, mas com maior freqüên-
explícita da dignidade da pessoa e dos valores de uma autêntica comu- cia vem se acrescentar aos problemas já existentes um novo.
nidade humana. Eis dois critérios fundamentais dessa iluminação: • Condições da moradia, situação. econômica, idade dos pais etc.
• Bem dos filhos já nascidos.
- É direito de todo ser humano entrar na história e fazer parte da
• Bem do filho que pode vir a nascer: os esposos devem ver se existe
"população" com as condições e garantias que lhe possibilitem uma vida
um perigo fundado de engendrar um filho com graves malformações
plenamente "humana". Por isso mesmo, todo nascido tem direito a não
ou deficiências que possam pesar como uma grave hipoteca para seu
ser "programado" como um objeto a mais · de nossa técnica, mas a ser
futuro. Os esposos também devem pensar, no âmbito das previsões
"amado" com um afeto que se traduza em possibilidades reais de uma humanas normais, se estão em condições de oferecer ao filho pos-
autêntica humanização. sível um clima aceitavelmente humano para seu desenvolvimento,
- É dever da comunidade humana criar as condições que tornem contando com os serviços que podem esperar da sociedade.
possível uma "população" da Terra cada vez mais justa e uma racionali- • Situação geral da sociedade: superpovoação ou baixo índice demo-
zação da demografia que corresponda a um processo de crescente gráfico, recursos disponíveis, ofertas reais para uma vida digna etc.
humanização com a distribuição justa dos recursos econômicos, com um Ao examinar as razões para regular sua fecundidade, os esposos não
"hábitat" em que seja possível a convivência familiar, com o equipamento devem limitar-se ao horizonte familiar; seu olhar deve dirigir-se também à
adequado de estruturas educacionais e sanitárias etc. situação geral da sociedade para que suas decisões sejam menos unilaterais.

248 249
CASAMENTO EXERCÍCIO RESPONSÁVEL DA PROCRIAÇÃO

Por outro lado, convém observar que o "princípio da paternida- III. AVALIAÇÃO TÉCNICA E ÉTICA DOS MÉTODOS
de/maternidade responsável" não deve ser entendido nem realizado DE CONTROLE DA NATALIDADE
como um cálculo frio que elimina o amor nas relações do casal e dimi-
A utilização dos métodos para regular a natalidade tem uma dupla
nui o desejo e o afeto pelos filhos esperados ou já nascidos. Pensar nos
vertente: a "científico-técnica" e a "ética". Interessa-nos aqui expor a
filhos já nascidos, no que pode nascer, no bem da família e da socie-
dimensão ética; não obstante, convém recordar alguns detalhes referentes
dade, tal como o exige uma paternidade responsável, é uma forma à vertente científico-técnica.
lúcida de amar.
Além disso, o "princípio da paternidade/maternidade responsável"
1. VERTENTE CIENTÍFICO-TÉCNICA
não está em oposição à atitude de generosidade nem ao número elevado
de filhos, embora em determinadas situações tenha sido entendido e O estudo dos métodos anticoncepcionais pressuporia uma análise
vivido como justificação de posturas egoístas, hedonistas e consumistas. muito diversificada: do ponto de vista científico-técnico, do ponto de
Estas últimas posturas são imagens distorcidas da autêntica paternidade/ vista sociológico, do ponto de vista jurídico etc. Conscientemente,
maternidade responsável. limitamo-nos a enumerar os métodos mais comuns e de maior utilização.
- A função da sociedade: a comunidade social (por meio de seus Entre eles, destacamos os seguintes:
vários serviços: autoridades, sociólogos, médicos, psicólogos etc.) tem o - Abstinência periódica: método do calendário, método da tempe-
direito e o dever de informar acerca dos aspectos "técnicos" em que os ratura basal, método Billings.
cônjuges devem fazer a opção procriativa, ao mesmo tempo que lhe cabe - Coitus interruptus.
a obrigação de criar algumas condições adequadas ao exercício justo da - Barreiras mecânicas: preservativo, diafragma.
procriação por parte dos cônjuges. As intervenções da comunidade social - Barreiras químicas.
têm um limite na dignidade da pessoa e no valor inalienável de suas - Dispositivos intra-uterinos.
decisões. - Hormonais: pílula, injeções.
Uma consideração "técnica" dos métodos de controle da natalidade
Embora o tipo de ajuda que se pode exigir da sociedade por parte
deveria levar em conta diversos aspectos: a eficácia; o custo; a educação
dos esposos dependa de muitas circunstâncias, indicamos alguns tipos de
requerida para sua utilização; as contra-indicações tanto somáticas como
ações desse serviço social aos esposos: psíquicas; a simplicidade do uso. Todos esses fatores são os que indicam
• Educação sexual adequada acessível a todos. a maior ou menor validade técnica de um método de forma concreta 1 •
• Informação leal sobre os diversos métodos de controle da natalidade.
• Dotação de serviços e meios para que os casais possam tornar efetivo
2. VERTENTE ÉTICA
seu direito a uma paternidade responsável de acordo com as con-
vicções de sua consciência bem-formada. Podemos resumir do seguinte modo os critérios éticos com relação
• Criação de condições adequadas em matéria de habitação, emprego, aos métodos de controle da natalidade:
sistema sanitário, educação, ajuda à família etc. - O exercício da procriação responsável deve conciliar-se com o
A procriação responsável supõe um diálogo sincero entre os espo- respeito à vida humana.
sos e destes com a sociedade, com uma sociedade desejosa de ajudar os
cônjuges que, por sua vez, estejam lucidamente abertos à realidade 1. Para uma informação sobre métodos anticoncepcionais, cf. S. DEUX e M.
social. RlVIERE, Anticonceptivos y contrai de natalidad, Barcelona, 1977.

250 251
CASAMENTO

- O controle ético dos diversos métodos anticoncepcionais deve


transcender uma consideração puramente "instintiva" e puramente "bio-
logista" da sexualidade humana, devendo ser buscado numa visão inte-
gral tanto do casamento, como do amor humano.
- Nesse sentido, parecem objetivas as críticas que se fizeram à
noção de "natureza" e de "caráter artificial" utilizada pela doutrina tra-
dicional da Igreja até a encíclica Humanae vitae. Por outro lado, essa
doutrina tradicional se baseia numa consideração excessivamente "procria-
tista" do casamento.
BIBLIOGRAFIA
- Os métodos atuais não reúnem, na opinião dos técnicos, uma
eficácia absoluta. Não existe, até agora, um método que tenha todas as
vantagens acima assinaladas: eficácia, pouco custo, eliminação de contra-
indicações etc. 1. SEXUALIDADE
Por isso mesmo, é incoerente e arriscado inclinar a avaliação ética
ABRAHAN, A., e PASINI, W. (eds.), Introducción a la sexología médica, Barcelona,
a um método determinado. 1980.
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(não abortivos nem esterilizantes) deve ser objeto do responsável ÁLvAREz VrLIAR, A., Sexo y cultura, Madrid, 1971.
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BATAILLE, G., O erotismo, Lisboa, 1998.
temporária ou permanentemente, uma nova gravidez; se é possível escolher
BEAcH, F. A. et alii, Sexo y conducta, México, 1970.
entre vários procedimentos, optar-se-á pelo que envolva menos elementos
negativos e exprima adequada e suficientemente o amor mútuo; no momento CALAME, e., L'amore in Grecia, Roma, 1985.
de escolher os meios, também desempenha um papel a disponibilidade concre- CASTILLA DEL PINO, e., Sexualidad y represión, Madrid, 1971.
ta numa determinada região ou num momento dado ou para um casal deter- CENCILLO, L., Raíces de! conflicto sexual, ·Madrid, 1975.
minado; mas, sobretudo, os cônjuges deverão levar em conta que a entrega e COMFORT, A., La sexualidad en la soba:'dad actual, Buenos Ares, 1966.
a procriação só são entendidas corretamente como expressão e realização de DE BEAUVOIR, S., O segundo sexo, Rio de Janeiro, 2 vols., 2000.
um autêntico amor pessoal2. DE RAcHEWILTZ, B., Egitto magico-religioso, Turin, 1961.
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