Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Agência e Tecnologias
Agência e Tecnologias
TECNOLOGIA E SUBJETIVAÇÃO:
A QUESTÃO DA AGÊNCIA
Rosana Medeiros de Oliveira
Universidade de Brasília
ABSTRACT: The criticism to the subject of interiority and to the philosophies of consciousness, which consider
a unified and coherent individual the source of action, has atributed to another great unified agency the origin
of all action. The language, the discourses, the society, the culture, the history replace the role of the subject as
agency. However, they keep being unaldutered instances credited with the privilege of the action. The subject is
discarded, but there is still an idealistic continuity sustaining that the agency can only be placed in the field of
the human-among-themselves. This study is developed exactly to be against this prerrogative of an agency
restricted to humans-among-themselves, as well as to defend the hybrids, the social technical collectives and the
machines. This work will explore concepts from Gilles Deleuze, Felix Guattaari, Bruno Latour and Pierre Levy,
articulating them in order to deal with a concept of subjectivity which could avoid the agency credited only to
humans-among-themselves.
KEY-WORDS: subject, social technical collectives, hybrids, subjectivity
nua justificando a bifurcação sociedade-natureza, su- “quase-objetos” ou “quase-sujeitos”, ou seja, aos híbri-
jeito-objeto, humano-máquina (DOMENÈCH, M.; TI- dos. O humano, para ele, não deve ser pensado por
RADO, F. & GÓMEZ, L, 2001, p. 26). contraste às coisas. Deve-se pensar a existência de
No entanto, estes termos são instâncias quase-objetos e quase-sujeitos em vez de pensar em
purificadas. A distinção bem marcada entre agência uma pura liberdade da existência humana e em obje-
– comumente reputada ao humano, ao sujeito, à lin- tos prático-inertes. Não existe natureza de um lado e
guagem, à sociedade etc. – e objetos, ou técnicas, ou sociedade de outro, as duas não constituem pólos dis-
máquinas, faz parte do que o sociólogo Bruno Latour tintos. Os artefatos participam nos coletivos pensantes:
(1994) denominou “projeto da modernidade”, no qual da caneta ao aeroporto, dos alfabetos à televisão, dos
a ação é relacionada a uma potência apenas, a po- computadores aos sinais de trânsito. É preciso perce-
tência dos “humanos-entre-eles”, transformando o resto ber as grandes máquinas híbridas constituídas de pe-
do mundo em objetos intermediários ou forças mu- dras e humanos, tinta e papel, palavras e estradas de
das. O projeto da modernidade consistia na operação ferro, redes telefônicas e computadores: “estes gran-
de separar o sujeito do conhecimento do objeto a ser des monstros heteróclitos que são as empresas, as
conhecido, a teoria como espaço purificado do co- administrações, as usinas, as universidades, os labo-
nhecimento e a prática como local da ação1 . ratórios, as comunidades e coletivos de todos os ti-
Esta perspectiva é abalada quando nos depa- pos” (LÉVY, 1998, p.191).
ramos com os dispositivos-materiais e coletivos- No entanto, Latour adverte que os híbridos
sociotécnicos que moldam nossas formas de pensar. são considerados comumente como misturas de for-
São os agenciamentos intermediários, as redes, que mas puras. Dos híbridos, é comum a procura do que é
dão sentido aos termos natureza, sociedade, objeto, proveniente dos sujeitos (ou da sociedade) e o que é
sujeito. Pois não há razão pura, nem um sujeito proveniente dos objetos. Contudo, não há uma Natu-
transcendental estável, nem os humanos-entre-eles, reza transcendental, exata, verdadeira e povoada de
como pura agência, visto que desde o nascimento so- entidades (uma coisa-em-si) que foi um dia descober-
mos constituídos por meio de línguas, de máquinas, ta pelos humanos. Nem há um Social, um espaço puro
de sistemas de representação que irão estruturar nos- do humano, dos humanos-entre-eles, que não seja tam-
sas experiências. Quem pensa não é o sujeito nu, bém constituído pelos objetos, pela linguagem e pelos
monádico, face ao objeto, nem grupos intersubjetivos, afetos e perceptos nem sempre capturados na lingua-
nem estruturas, línguas, epistemes, nem tampouco gem. O autor, então, propõe uma modificação do lu-
inconscientes sociais que pensam em nós. O pensa- gar do objeto e do sujeito, tirá-los de sua posição de
mento não é um atributo de uma entidade unificada e “coisa-em-si” para levá-los ao coletivo (os coletivos
senhora de si mesma, nem um centro ordenador em sociotécnicos) sem contudo aproximá-los da Socieda-
torno do qual giram tecnologias intelectuais, mas um de.
efeito de coletivos heterogêneos. Não existem distin- Pierre Lévy é outro teórico que sustenta posi-
ções reais e bem demarcadas entre os seres humanos ção semelhante. Propõe dar um fim à polarização
e as técnicas. Estas não constituem regiões do ser fun- humanos e máquinas, escapando das oposições fáceis
damentalmente separadas. Sociedade, religião, lín- que colocam de um lado os humanos, a carne, e de
gua, filosofia, ciência, técnica, não são forças reais, outro as máquinas, o metal, o silício. Lévy defende a
mas abstrações, dimensões de análise (LÉVY, 1998, idéia de um coletivo pensante de humanos-coisas. Esse
p.13). coletivo humanos-coisas seria dinâmico, repleto de
Estas macro-identidades ideais não possuem “singularidades atuantes” e “subjetividades mutantes”
meios de ação. As entidades emergem a partir da “re- totalmente afastados do sujeito da epistemologia quan-
lação”, do movimento, ou seja, da existência contí- to das estruturas formais “linguagem”, “sociedade” etc.
nua, e não de uma essência permanente. O que há de Em seu livro “As tecnologias da inteligência” (1998),
primordial não são essências, mas vínculo, passagem, afirma:
relação. Comumente o humano, a linguagem, a soci- A distinção feita entre um mundo objeti-
edade são considerados ponto de partida; no entanto, vo inerte e sujeitos-substâncias que são
pretendo ressaltar que toda entidade ao ser analisada os únicos portadores de atividade e de
revela-se como uma rede em potencial. Ou seja, tota- luz está abolida. É preciso pensar em
lidade aberta, que possui múltiplas entradas, com- efeitos de subjetividade nas redes de
posta por uma série de elementos heterogêneos interface e em mundos emergindo provi-
conectados. soriamente de condições ecológicas lo-
Em sua obra “Jamais fomos modernos”, Bru- cais. (p.161)
no Latour pretende abandonar o mundo das represen- Em outra passagem relaciona seu posicio-
tações modernas de objetos e sujeitos e chegar aos namento com uma tendência da filosofia francesa re-
57
Oliveira, R.M. “Tecnologia e subjetivação: a questão da agência”
presentada pelos autores por ele citados: sujeitos é substituída por uma materialista, ligada às
(...) Como os rizomas de Deleuze e práticas, aos acoplamentos heterogêneos.
Guattari, as redes de Latour ou de Callon Portanto, pensar em coletivos que produzem
não respeitam as distinções estabelecidas agenciamentos, mas que não remetem simplesmente
entre coisas e pessoas, sujeitos pensantes aos “humanos-entre-eles”, à sociedade ou à lingua-
e objetos pensados, inerte e vivo. Tudo o gem, implica abandonar a noção de sujeito como cen-
que for capaz de produzir uma diferen- tro e possibilidade para a ação. Félix Guattari argu-
ça em uma rede será considerado como menta que a subjetividade é fruto de um agenciamento
um ator, e todo ator definirá a si mesmo social múltiplo, e não há porque separar homem e
pela diferença que ele produz. Esta con- máquina. A relação do humano com a matéria – com
cepção do ator nos leva, em particular, a natureza, com os objetos, com as máquinas – é uma
a pensar de forma simétrica os huma- relação não de formatação, mas de acoplamento, de
nos e os dispositivos técnicos. As máqui- composição. O campo de subjetivação é constitutivo
nas são feitas por humanos, elas contri- tanto do sujeito-objeto quanto do meio. Ou seja, a
buem para formar e estruturar o funcio- subjetivação em Guattari é pensada como um proces-
namento das sociedades e as aptidões so de agrupamento, de composição, de agenciamentos
das pessoas, elas muitas vezes efetuam heterogêneos de corpos, práticas, juízos, técnicas.
um trabalho que poderia ser feito por Nesse sentido, falar em subjetividade é uma
pessoas como você ou eu. Os dispositi- forma de tentar escapar à idéia tradicional de sujeito
vos técnicos são portanto realmente ato- da consciência. Descentrar a questão do sujeito para
res por completo em uma coletividade a subjetividade. O sujeito é comumente compreendi-
que já não podemos dizer puramente do como uma forma de apreensão pré-reflexiva, como
humana, mas cuja fronteira está em per- unificador dos estados de consciência. No entanto,
manente redefinição. (LÉVY, 1998, como afirma Guattari, o sujeito não é evidente, “não
p.137) basta pensar para ser como o proclamava Descartes
Neste trecho, Lévy chama atenção para uma (...) o sujeito advém no momento em que o pensa-
concepção de ator diferente da concepção tradicio- mento se obstina em apreender a si mesmo e se põe a
nalmente trabalhada nas ciências humanas, ou seja, girar como um pião enlouquecido” (2002, p. 17). O
aquela que relaciona ao humano toda fonte de ação. sujeito, nesse sentido, é um recurvar-se que cria uma
Para Lévy, o ator é caracterizado pela heterogeneidade interioridade aberta. Um espaço reflexivo. Há diver-
de sua composição, de humanos e não-humanos, po- sas formas de existir que se instauram fora da consci-
dendo ser qualquer pessoa, instituição ou coisa que ência. A proposta de falar em processos de subjetivação
produza efeitos no mundo e sobre ele mesmo. A pala- consiste na tentativa de falar dos diversos componen-
vra ator ganha nova dimensão, indicando tes que não passam necessariamente pelos indivíduos
acoplamentos heterogêneos que produzem efeitos, que – como os processos socioeconômicos, as máquinas
constituem agências. comunicativas, os complexos urbanos – mas que po-
Essa noção de ator assemelha-se a noção de dem, em seu cruzamento, instaurar uma dobra, uma
máquina utilizada por Félix Guattari. As máquinas, interioridade que emerge como “território existenci-
para Guattari, não se referem a um espaço purificado al”, fundando uma intencionalidade.
das técnicas, mas a uma organização de fluxos, a Nesta concepção, o sujeito tradicional das fi-
uma engrenagem de produção regida por forças que losofias da consciência é abandonado, mas outro
circulam e afetam o mundo. São mecanismos produ- emerge em seu lugar. O sujeito passa a ser pensado
tores e reprodutores e devem ser concebidos como como um espaço de montagem contínua, como um
“atratores que recurvam o mundo ao seu redor” processo de subjetivação. Torna-se um artefato em
(GUATTARI, 2000). Constituem acoplamentos hetero- constante engendramento, mas que não deixa de ter
gêneos que agenciam. Máquina, na acepção indicada materialidade e capacidade de agenciamento. O pro-
por Guattari, consiste em uma tentativa de abando- blema consiste em concebê-lo como instância
nar o vocabulário que torna possível remeter ao sujei- purificada, a-histórica ou independente da linguagem
to como agência, para substituí-lo por uma lingua- e dos coletivos sociotécnicos.
gem completamente nova que enfatize os O filósofo Gilles Deleuze desenvolve uma pro-
acoplamentos heterogêneos que produzem efeitos. A posta interessante para contornar a questão da
noção de máquina aqui é de extrema importância pois intencionalidade do sujeito. De acordo com ele, a
repudia a esfera da ontologia, não se caracteriza pelo subjetivação como processo constitui um “dentro” que
o que é – como os sujeitos – mas pelo que faz, pelos é “a dobra do fora”. O conceito de dobra, utilizado
efeitos que produz. A linguagem idealista de almas e por Deleuze, possibilita escapar ao dualismo de uma
58
Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005
60