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O TRÁGICO:
EX PERIÊN CIA E CON CEITO
U baldo P U P P I *
RESUMO: O conceito do trágico está de algum m odo liga do à violência . O presente estudo preten
de estabelecer a relaçilo essencial vigente entre violência institucional e situaçilo trágica, a situação trági
ca sendo ao mesm o tempo conseq üência e denún cia da violência institucional. Assim entendido, o trági
co é primeiramen te expresso sob forma poética, na arte dramá tica denominada precisamen te' tragédia;
em seguida , por derivação, sob forma conceitual, na análise da própria realidade histórica . A análise da
história a tual poderá revelar todo o po tencial trágico acum ulado na violência do poder.
UNITERMOS: Trágico; tragédia ; violência do poder; violência sofrida ; violência denunciada; de
núncia poética; denúncia conceitual.
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de toda a produção teatral c o nhecida co ca, na demiurgia d o autor dramátic o , não
mo trágica e considerada significativa pa é conceb ida para vencer, m a s , pela fatali
ra o tema : em gabinete de bib lioteca o dade de sua derrota n a qual são m ostra
equivalente de um trabalho de cam p o . A das todas as últimas conseqüências a que
constatação d ireta que daí resultou foi a leva a violência institu í d a , é propo sta co
de que a concepção do trágico investida mo denún c i a .
na ação dramática possui três termos es
Há d u a s óticas, portanto, n a situação
senciais e definiente s ; cada u m d o s dois
trágica, uma indissociável d a outra: a óti
primeiros sendo constituídos de uma série
ca da personagem , que ignora a verdadei
de componentes , e o terceiro indicando a
ra causa ou causa remota d a violência so
relação especial que se estabelece entre
frida, e tudo o que consegue enxergar, o
eles. A primeira série é a d o s componentes
vê do ponto de vista do vencido ; a ótica
existenciais, vividos pela personagem trá
do autor, que denuncia ao p ú blico a vio
gica sob a égide d a fatalidade o u inevita
lência institucional e causa d o i n fortúnio
bilidade: o mito do destino . A segunda, é
que, por sua vez, causa o ponto de vista
a série dos componentes externo s , que de
do vencido . Denúncia pelo s o frimento até
sencadeiam o processo d o destin o . O ter
as últimas conseqüências , eis o comple
ceiro term o , a vítima do destino , literal
mento definidor d a situação trágic a . N a
mente o " destinatário " , o u personagem
íntegra: " situação de violência institucio
trágica, na origem é sempre concebida co
nal, sofrida individualmente até as últi
mo herói. E ste último ter m o , aparente
mas conseqüências como denúncia " .
mente insignificante, adquire, em deter
minado estágio ideológico da história, ca Dessa definição derivam d o i s corolá
pital importância para a caracterização d o rios. Primeir o : a causa d o i n fortúnio vivi
trágico . do pela personagem trágica é desconheci
Diante da força desencadeada pelos da para ela, não para o autor ; a incons
componentes extern o s , isto é , do " desti ciência do Édipo Rei é u m estratagema
no" (/JÕ t e a) , o " destinatário " so fre montado na con sciência e p o r decisão d e
inexora velmen te, em seus com ponentes Só foc1es . Segundo corolário : o a u t o r trá
existenciais , um efeito corresp ondente de gico faz arte, não produz reforma nem
violência (àváYXrr) . O " destino-ativo " , promove revoluçã o . E nquanto tal, não re
/JOtea (m oira ) , produz o u induz o forma nem revoluci o n a ; denuncia . A tra
"destino-passivo " , àváYlCrr (anan q ue) . A gédia é uma arte de denúncia . D e nuncia o
moira é concebida como uma instituição contexto opressor, a violência contextual,
mítica que sela a so rte (anan q ue) de in servindo-se da personagem trágica c o m o
divíduos escolhi d o s . A situação trágica é , instrumento de sua denúncia . O público,
portanto, u m a situação de violência insti supostamente incon sciente c o m o a perso
tucional sofrida individualmente n o plano nagem , é levado, p o r mediação d a ideolo
existencial . gia do vencido, ao nível de consciência do
autor . Que portanto a tragédia intervenha
Não é passivamente, porém , que o positivamente na formação d a consciên
"destinatári o " da violência so fre e reag e . cia coletiva é tão irrecusável como irrecu
Passivo tem d o i s significa d o s : " ser o s u sável é o fato que só a consciência coletiva
porte d a violência" e " reagir acomodada cria condições aceitáveis para a s verdadei
mente" . O " destinatári o " suporta a vio ras trans formações sociai s .
lência, mas luta agonicamente, isto é , co
mo herói, contra sua causa próxima e A definição acima é pertinente e
em issária, mesmo sem saber que na esca abrangente . Contém os c o nceitos essen
tologia trágica será sempre um herói ven ciais não redu ndantes e convém a todas as
cido . Precisamente, a personagem trági- singularidades do definido . É portanto a
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. chave que permite compreender, não só as tos e à ação de Marx , - j á é a vítima trá
diferenças entre as diversas concepções d a gica da inj ustiça social, esta não é todavia
tragédia, mas, sob a s diferenças, também associada às relações de produçã o .
'
aquele fundo comum que as constitui a
M ais recente metamorfose no gêne
todas como legí timas tragédias . P o r falta
ro, a tragédia " social " está excelentemen
de bem compreender essas d i ferenças não
te representada entre nós com "A Gota
se chega a bem definir o conceito d o trági
d' Á gua " , de Paulo P ontes e Chico Buar
co, como inversamente, por falta de bem
que de Holanda, que se inspira, como em
definir o conceito d o trágico, não se chega
plano afastado, na " M edéia" de E urípe
a bem compreender essas d i ferenç a s .
des e, como em primeiro plano, na " M e
É assim que ao nascer, na G récia An déia" de Eduvaldo Viana Filho . A varian
tiga, a tragédia é de cunho essencialmente te contemporânea da tragédia denuncia,
religioso , como todo o mundo sabe. Res sempre por meio de pobres personagens
ta, porém , saber que ela é de natureza reli marcadas como vítimas exemplares, a vio
giosa para poder caracterizar a violência lência institucional contida nas contradi
da religião mítica num m o m ento d e emer ções da formação econômica e política
gência dos direitos d a razão e d a auto manipulada por centros esotéricos de de
afirmação do homem . Cabe a René Gi cisão .
rard 3 o mérito de ter demonstrado que a O estudo da tragédia em sua natureza
tragédia grega foi a primeira e grandiosa e em sua história autoriza tirar as seguin
denúncia histórica d a violência institucio tes conclusões . 1 . E xiste uma caracterí sti
naI S . ca existencial do fenômeno denominado
trágico . 2 . O s componentes existenciais
Com Shakespeare, sobretudo o d a do fenômeno trágico se revelam indissolu
maturidade, a denúncia religiosa d a tragé velmente relacionados com compo nentes
dia grega é sub stituída pela denúncia da externos, que são de o r dem contextual ou
violência maquiavélica, institucional na institucional , e pelos quais são desenca
política ou instituída p o r políticos sem es deados . 3. O conjunto dos componentes
crúpulo. Pela primeira vez a tragédia ves externos do fenômeno trágico variou no
te roupas novas, con feccionadas agora no correr da história da tragédia, acompa
a telier da política, com o estofo d a ambi nhando grosso m odo as variações da pró
ção e vontade de poder, d a intriga e astú pria história das ideologia s : de m ítico
cia, de evicções e desterros o u homicídio s . religiosa na origem , se estende e se substi
Já é a tragédia " p olítica " , n o sentido d e tui gradualmente pelo " p olític o " , numa
Machiavel, m a s n ã o ainda a tragédia " so primeira passagem , e pelo " social " , nu
cial" no sentido m oderno . ma segunda passagem . 4 . Obviamente,
Shakespeare p orém , fiel nesse parti certos comp onentes existenciais do fenô
cular à norma clássica, ainda centraliza o meno trágico também so freram altera
desenrolar da tragédia em torno do herói ções, enquanto outros perm aneceram
pinçado na classe social dom inante e " no inalterado s . I nalterado permanece o " so
auge da fama e da prosperidade" 1 . Büch frer as conseqüências de modo exem
ner, com W oyzec k , é quem derruba de seu piar " , isto é, " até as últimas con seqüên
trono o herói tradicional e , em seu lugar, cias, como denúncia " ; alteradas, em cada
exalta a humildade da personagem trági passagem , serão as relações existenc iais
ca, constituída de anti-heróis anônimos, (individuais e sociais) provocadas a partir
chamando assim a atenção d o espectador de contextos, quer " m í tico-religioso " ,
para a classe social dominada . M a s se quer "político " , quer " social " .
W oyzec k , - proletário d a primeira revo É chegado o momento para a explica
lução industrial, anterior porém aos escri- ção, j á aflorada antes, sobre o componen-
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fos O conceito existencial d o trágico, isto 1 . Em nenhum dos filósofos que clas
é, o trágico como c onceito d o real; não sicamente propuseram classificações ou
mais, ou não apenas , como conceito poé estruturas das tonalidades afetivas do ser
tico . Um conceito , porém , sob pena de to humano (pouco importa se com o nome
tal indeterminação, nunca é solitári o . Ne de paixões, emoções, ou ainda sentimen
cessariamente ele é solidário : na ordem d a tos) , o trágico , assumido hipoteticamente
inclusão, do sentido , d a referência, d a como uma dessas tonalidades específicas ,
afirmação , da estrutura, d o sistema . N a d e modo algum comparece: P latã o , Aris
ordem da inclusão , de próximo em próxi tóteles, Tomás de Aquino, Descartes,
mo se inscreve, pelo j og o das relações de Bergson .
semelhança e d i ferença, em classes suces 2 . Tampouco comparece como " exis
sivamente mais amplas, até as últimas ca tencial " (eksistentia!) em filósofos que re
tegorias genéricas . N o extrem o oposto a correram a esse conceito o u a conceitos fi
essas categorias genéricas últimas, a classe losóficos afin s : nem em H e idegger, na " a
mais próxima é que c o n fere as últimas de nalítica existencial " , nem em Sartre, Ga
term inações específic a s . É p o i s , pela in briel Marcel ou M erleau P o n t y . H á exce
clusão do conceito d o trágico em sua clas ção para Kierkergaard e Unamuno, mas
se mais próxima que ele receberá sua de para eles, precisamente, o conceito do trá
term inação mais p recisa e sua definição gico não é classificável, p o r situar-se nos
essencial . Desde S ócrates, essa é uma tare limites entre a razão e a Fé. Não são am
fa de filósofos: neles deve m o s buscar o bos instrutivos à pesquisa porque, de um
que procuram o s . lado, extrapolam d a filosofia, colocando
questões de ordem teológica, e , de ou tro
Ler porém todos o s filósofos indiscri lado, extrapolam d o próprio conceito do
minadamente, nem é factível para u m trágico , que não foi elaborado sob regime
mortal, m e s m o que também filó s o f o , nem cultural de fé sobrenatural, mas d e razão
é bom critério . É p reciso planej ar metodi natural . Além d o mais, a Revelação cris
camente a leitura com base em u m critério tã, na qual se funda a teologia d a fé, des
ao mesmo temp o racional, econômico e trói as condições de existência do anti
suficiente . O critério a qui assumido para go trágico de cunho religioso * . P ara não
orientar a leitura d o s filó sofos foi o se trair, pois, o significado originário do
guinte . H á a priori uma tríplice p o s s sibili conceito do trágico , que tem sua história e
dade de classi ficar o conceito real d o trá sua evolução embutidas na história do
gico: ora como u m a emoção especí fica en teatro , ou para não lhe atribuir simplista- '
tre outras, no sentido d e tonalidade afeti mente um significado vale-tudo, que leva
va; ora como um " ex i s tencial" (eksis ten ria à confusão das línguas, é preciso antes
tia!) entre outros, na concepção que lhe dá determinar-lhe o significado preciso e as
Heidegger opondo " ek sistential " a " eki s variantes pelas quais passou, e que consti
tentiell " , este situando .,.� na classe ante tuem hoje a sua tradição . S ó a partir daí
rior ; ora como u m � {�Et�O limite entre se tornaria inteligível todo outro emprego
outras, no sentido ae\J..a�er� . Adotando derivado da palavra . Apelar pela tradição
essa tríplice possibilida<j.e' ��Tn'o três pistas nem sempre é apego ao passad o , pode ser
para a leitura d o s (jlósofo� a pesquisa exigência histórica de racionalidade e cla
i�
chegou às seguintes consta açpes ., reza de pensamento .
• Em contraposição, o horizonte cristão é por excelência instância de denúncia da violência i n ibidora, repressora e vio
ladora dos d ireitos do homem e , m a i s a i n d a , de toda reverente conside ração de existências hum a n a s . E s s a instância, num
sentido, já foi anexada à própria teologia, integrando, sem porém esgotá - I a , a hoje denominada teologia da libertação . Em
outro sentido, a m plia e reforça as possib ilidades da arte trágica de con teúdo sócio-político-eco n ô m i c o .
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um ópio para o povo, n a ótica d o Jogos e di fique e que sua onipotência se dissimule
do ethos, pode ser trágico para o in sob um véu : devo morrer, devo. so frer, de
divíduo . vo lutar, estou s u bmetido ao acaso,
encontro-me inevitavelmente preso aos la
Assim reformulada, a situação-limite
ços da culpabilidad e . Essas situações fun
é a classe à qual c o nvém o trági c o , j á an
damentais implicadas em nossa vida, n ó s
tes caracterizado c o m o "um so frimento
a chamamos situações-limites . I s s o q u e r
exemplar até as últimas con seqüências " .
dizer q u e n ã o podemos ultrapassá-las,
Por trágico , enquanto a fetando pessoas e
não podemos transformá-la s " .
situações reais , entendo p o i s u m a
situação-limite espec i ficada c o m o um so B asta aí inserir o fator histórico , c o m
frimento exemplar provocado pela violên a s devidas implicações . Digamos então
cia institucional . que as situações-limites nos são impostas,
ou pela realidade ontológica, c o m o quer
Uma vez circunscrito o tema e pro ele, ou pela história, como também quere
posta a definição d o trág i c o , resta anali mos nós; as primeiras aparecendo m e s m o ,
sar em detalhe as duas partes constitutivas e m última análise, como condição da pos
da definição . Toda definição prop riamen sibilidade aleatória das segundas . Quanto
te dita é produzida mediante a determina às implicações d o fator históric o , devem
ção do gênero próximo e d a d i ferença es elas ser aclaradas a partir das d i ferenças
pecí fica . A primeira parte d a definição específicas . A d i ferença especí fiE;a da
proposta, " situação-limite " , constitui o situação-lim ite trágica é um " s o frimen
gênero próxim o ; a segunda parte, " so fri to" que, possuindo um caráter obviamen
mento exemplar provocado p o r violência te pessoal, se revela no entanto " exem
institucional " , constitui a d i ferença es plar " para a comunidade, à qual é mani
pecí fic a . O que, porém , é gênero próximo festado . E é m anifestado à c o m u nidade
para a definição d o trágic o , j á é determ i para a tomada de consciência do p o tencial
nação do gênero ulterior e m ais geral " si de violência freqüentemente d i s farçado
tuação " . Antes p o i s de saber o que é nas pregas das relações sociais e da estru
"situação-lim ite " , é necessário reportar tura e manipulação d o poder . Mas, além
se à " situação " . A análise fenomenológi de postular um " s o frimento exemplar " , o
ca faz ver que é na situação que se p roces fenômeno trágico não p redetermina mais
sa a interação, o efeito sinérgic o , entre de nada. Não diz c o m o será esse sofrimento
um lado reações pessoais e de outro lado o e quais tonalidades a fetivas serão aciona
mundo físico e as formas institucionais (e das . A firma apenas que o sofrimento , pa
conômicas, sociai s , política s , culturai s , ra ser verdadeiram ente exemplar, deve
religiosa s ; enfim , históricas) . atingir " suas últimas conseqüências " , o
Elucidado o conceito geral de situa que quer dizer: os lim ites p revisíveis da
ção , deve esta ainda ser determinada em iniqüidade e atrocidade embutidas nas
sua modalidade de situação-lim ite . C o m formações históricas .
adições q u e ampliam a concepção olimpi O trágico , portanto , é o sinal natural
camente m etafísica de Jaspers, de uma grave anom alia no corpo social .
refundindo-a e m função d o histórico, a Assim como o so frimento e o mal-estar fí
concepção aqui adotada é m u ta tis sicos são o sinal algésico de alerta para o
mutandis a . dele, bem representada nesta desvelamento da d isfunção que ameaça a
passagem tirada da Einführung in die saúde e a integridade físic a , assim tam
PhiJosophie : " E u posso trabalhar para bém o trágico , na ordem da experiência
mudar uma situação . M a s h á aquelas que vivida, é a denúncia tácita das formas his
subsistem em sua essência , m e s m o que tóricas violentas ; denúncia c o m vistas a
sua aparência m o m entaneamente se m o - uma tomada de consciência c o letiva . E i s
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ABSTRACT: The concept of th e tragic is someh o w connected with vio/ence. The present enquiry
has the purpose of esta blishing the essentiaJ re/ationship existing between institutiona/ vio/ence and the
tragic situation, the /atter being at the sam e time conseq uen ce and denouncement of the form er. Un
derstood tha t way, the tragic is first expressed under a poetica/ form which is precise/y caJ/ed tragedy in
drama tic arts: then under a conceptua/ form , in the ana/ysis of the historica/ rea/ity itself, by derivation.
The ana/ysis of current history may reveaJ alJ the poten tiality of the tragic accum u/ated on the vio/ence
ofpo wer.
KEY- WORDS: Tragic; tragedy; vio/ence of po wer; endured vio/ence; denounced vio/ence; poetica/
denouncement; conceptua/ den o un cemen t.
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