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DOENÇA CELÍACA E QUALIDADE DE VIDA | 467

COMUNICAÇÃO | COMMUNICATION

Doença celíaca, hábitos e práticas


alimentares e qualidade de vida

Celiac disease, eating habits and


practices and life quality of life

Halina Mayer Chaves ARAÚJO 1


Wilma Maria Coelho ARAÚJO 1
Raquel Braz Assunção BOTELHO 1
Renata Puppin ZANDONADI 1

RESUMO

Esta comunicação apresenta o cenário da doença celíaca e suas implicações em hábitos, práticas alimentares
e qualidade de vida de indivíduos intolerantes ao glúten. Apresenta dados importantes sobre a questão que,
mundialmente, é considerada problema de saúde pública. Por ser uma doença cujo tratamento é funda-
mentalmente dietético, a terapia durante a transição alimentar deve ser bem conduzida pelo nutricionista para
melhor adesão do paciente à dieta, considerando que a inclusão de novas práticas alimentares pode significar
uma ruptura com a identidade individual e cultural: a alimentação de cada cidadão não pode ser deslocada da
sociedade. Nesse contexto, a melhoria da qualidade de vida passa a ser um dos resultados esperados tanto das
práticas assistenciais quanto das políticas públicas para o setor nos campos da promoção da saúde e da
prevenção de doenças. A vigilância sanitária contempla as ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir
riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação
de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde. O conhecimento do cenário da doença celíaca no
País se justifica pela necessidade de fundamentar as ações da política de alimentação e nutrição ancoradas no
conceito de alimentação saudável com ênfase na dieta isenta de glúten. Os artigos pesquisados foram sele-
cionados nas bases de dados MedLine e SciELO, considerando o período de 1995 a 2006.
Termos de indexação: Alergias alimentares. Doença celíaca. Hábitos alimentares. Intolerância ao glúten.
Qualidade de vida.

ABSTRACT

This study presents information on celiac disease and its implications on the eating habits and practices, as
well as on the quality of life, of gluten-intolerant patients. Papers published from 1995 to 2006 were searched
in the MedLine and SciELO databases. This paper includes important data about this disease, which is considered
a public health problem throughout the world. Since it is a disease whose treatment is essentially dietary,
therapy during food transition must be well conducted by the dietician in order to improve the patient’s

1
Universidade de Brasília, Faculdade de Ciências da Saúde, Departamento de Nutrição. Campus Universitário Darcy Ribeiro,
Gleba A FM/FS, Asa Norte, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: H.M.C. ARAÚJO. E-mail:
<halina.araujo@terra.com.br>.

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adherence to the diet since the introduction of new food practices may mean a rupture with the individual’s
culture and identity: the diet of each citizen cannot be disconnected from the society in which he or she lives
in. In this context, quality of life is included, as quality of life is expected to improve both because of the care
provided and because of the public policies for the sector in the areas of health promotion and prevention of
diseases. Sanitary surveillance contemplates the activities that are capable of eliminating, reducing or preventing
health risks and intervene in the sanitation problems that are secondary to the environment, production and
circulation of goods and provision of health-related services. Knowledge about celiac disease in the country is
justified because of the need to base food and nutrition policies on the concept of healthy eating, emphasizing
a gluten-free diet.
Indexing terms: Food allergies. Celiac disease. Eating habits. Gluten intolerance. Life quality.

INTRODUÇÃO assim como ocorre em outras partes do mundo,


pode permanecer sem diagnóstico por prolongado
A Doença Celíaca (DC) é uma doença período de tempo2.
autoimune desencadeada pela ingestão de
A prevalência da doença celíaca entre os
cereais que contêm glúten por indivíduos gene-
países e em populações europeias ou de ancestra-
ticamente predispostos. Além do consumo do glú-
lidade europeia varia de 0,3% a 1,0%; muitos
ten e da suscetibilidade genética, é também ne-
casos, provavelmente, permanecem sem diagnós-
cessária a presença de fatores imunológicos e
tico3. No Brasil, os dados estatísticos oficiais são
ambientais para que a doença se expresse1. Mun-
desconhecidos; estima-se que existam 300 mil
dialmente é considerada problema de saúde públi-
brasileiros portadores da doença, com maior inci-
ca devido à sua prevalência, à frequente asso-
dência na Região Sudeste1. A doença celíaca é
ciação com morbidade variável e não específica
mais frequente em mulheres, numa proporção de
e à probabilidade de aparecimento de com-
2:14, e atinge predominantemente os indivíduos
plicações graves, principalmente osteoporose e
de cor branca. No Brasil, devido à miscigenação
doenças malignas do trato gastroentérico2.
racial, já foi descrita em mulatos5.
O tratamento da doença celíaca é funda-
Pesquisa sobre o rastreamento de prováveis
mentalmente dietético. Consiste na exclusão do
casos dessa doença entre pacientes adultos
glúten, termo utilizado para descrever frações pro-
usuários dos laboratórios de análises clínicas de
teicas encontradas no trigo, centeio, cevada, aveia
um hospital universitário mostrou que a preva-
e em seus derivados. Para garantir uma dieta isen-
lência nesses indivíduos é de 1:501 na forma silen-
ta de glúten, o celíaco deve sempre conhecer os
ciosa e clássica6. Estudo que consistiu em um ras-
ingredientes que compõem as preparações ali-
treamento de prováveis casos de doença celíaca
mentares e fazer leitura minuciosa dos ingredien- entre crianças usuárias do laboratório de análises
tes listados nos rótulos de produtos industrializa- clínicas no mesmo hospital apresentou uma preva-
dos. Os celíacos relatam que a oferta de alimentos lência de 1:2157, e outro trabalho, a prevalência
sensorialmente apropriados é restrita, o que torna de 1:185 (0,54%) em crianças componentes de
a dieta monótona, e que os produtos disponíveis um grupo de usuários de laboratório de análises
no mercado são normalmente de alto custo. clínicas de um hospital8. Esses estudos levam a
crer que a prevalência da doença celíaca no Brasil,
se não for similar à encontrada na Europa, em
DOENÇA CELÍACA
muito se aproxima.

Prevalência
Manifestação e diagnóstico
Atualmente não há dúvidas de que a
doença celíaca é uma afecção mais comum no A doença celíaca se manifesta por meio
Brasil do que previamente se supunha. Ademais, do contato da gliadina com as células do intestino

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delgado, provocando uma resposta imune a essa que, em outro período de tempo, tais pacientes
fração, com a produção de anticorpos. O consumo podem apresentar atrofia subtotal dessas vilo-
de cereais que contêm glúten por celíacos preju- sidades intestinais, que revertem à normalidade
dica, frequentemente, o intestino delgado, atro- com a retirada do glúten da dieta1.
fiando e achatando suas vilosidades e conduzindo,
A doença celíaca assintomática, compro-
dessa forma, à limitação da área disponível para
vada fundamentalmente entre familiares de pri-
absorção de nutrientes9.
meiro grau de pacientes celíacos, vem sendo
Pode potencialmente afetar qualquer ór-
reconhecida com maior frequência nas últimas
gão e não apenas o trato gastroentérico. Sua eclo-
duas décadas após o desenvolvimento de marca-
são e o aparecimento dos primeiros sintomas
dores sorológicos específicos1. A realização de ras-
podem ocorrer em qualquer idade e variar entre
treamento sorológico com os anticorpos antitrans-
indivíduos, inclusive no mesmo indivíduo em dife-
glutaminase e antiendomísio é aceita como diagnós-
rentes fases da doença, o que dificulta o diagnós-
tico definitivo quando os resultados são positivos
tico10.
e confirmados pela biópsia intestinal, seguida pela
Richard Logan, em 1991, comparou a dis-
resposta sorológica à dieta isenta de glúten10. Tal
tribuição das formas da doença celíaca a um
técnica permite a identificação de outras formas
iceberg: os casos de apresentação sintomática
de manifestação da doença, além da digestiva1.
corresponderiam a sua porção visível e os de apre-
sentação assintomática, à porção submersa11. Tal O suposto diagnóstico da doença celíaca
fato é um obstáculo a ser superado no que diz se baseia no exame clínico, na anamnese deta-
respeito à saúde pública, pois pacientes não lhada, na análise histopatológica do intestino del-
diagnosticados tendem a apresentar complicações gado e na avaliação dos marcadores séricos. O
relacionadas à qualidade de vida. diagnóstico final deve ser fundamentado na
A doença celíaca pode ter as seguintes biópsia que revela vilosidades atrofiadas, alon-
formas clínicas de apresentação: clássica, não gamentos de criptas e aumento dos linfócitos
clássica, latente e assintomática1. A forma clássica intraepiteliais12.
se manifesta principalmente nos primeiros anos
de vida com sintomas como diarreia ou consti-
O PAPEL DO GLÚTEN NA
pação crônica, anorexia, vômitos, emagrecimento,
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
comprometimento variável do estado nutricional,
irritabilidade, inapetência, deficit do crescimento, O glúten é uma substância elástica, ade-
dor e distensão abdominal, atrofia da musculatura rente, insolúvel em água, responsável pela estru-
glútea e anemia ferropriva5. tura das massas alimentícias. É constituído por
As formas não clássicas caracterizam-se frações de gliadina e de glutenina, que, na farinha
pela ausência de sintomas digestivos ou, quando de trigo, totalizam 85% da fração proteica. Forma-
presentes, ocupam um segundo plano. Apresen- -se pela hidratação dessas proteínas, que se ligam
tam-se mais tardiamente na infância. Os pacientes entre si e a outros componentes macromoleculares
podem mostrar manifestações isoladas, como por meio de diferentes tipos de ligações químicas.
baixa estatura, anemia por deficiência de ferro O trigo é o único cereal que apresenta gliadina e
refratária à ferroterapia oral, artrite, constipação glutenina em quantidade adequada para formar
intestinal, osteoporose e esterilidade2. o glúten. No entanto, essas proteínas podem ainda
A forma latente é identificada em pa- estar presentes em outros cereais, como cevada,
cientes com biopsia jejunal normal, consumindo centeio e aveia, nas formas, respectivamente, de
glúten; diferencia-se das outras formas uma vez hordeína, secalina e avenina.

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A gliadina e a glutenina são a base da uti- D O E N Ç A C E L Í A C A, H Á B I T O S,


lização da farinha de trigo na preparação industrial PRÁT ICAS ALIMENTARES
E QUALIDADE DE VIDA
ou doméstica de produtos de panificação e de
massas. Isso se deve à funcionalidade dessas pro- A dieta ocidental inclui muitos itens ali-
teínas, que determinam características importan- mentícios à base de trigo. A adesão e a obediência
tes na aceitação dos alimentos, afetando significa- à dieta isenta de glúten requer autodeterminação
tivamente sua qualidade sensorial. Tais proprieda- do celíaco e de seus familiares. Estudo realizado
des resultam da habilidade que apresentam com com os membros cadastrados na Associação de
respeito ao desenvolvimento de características Celíacos do Brasil (ACELBRA) mostrou que, dentre
sensoriais, cinestésicas, de hidratação, de atividade os 91,4% participantes da pesquisa, 69,4% ade-
superficial, estrutural, dentre outras. riram à dieta isenta de glúten15, estando de acordo
Esses cereais, consequentemente, podem com os dados apresentados na literatura: 65,0%
ser adicionados durante o processamento ou o e 70,0%2.
preparo de alimentos na indústria, em domicílio No Canadá, pesquisa evidenciou que
ou nos serviços de alimentação. É comum a adição 88,0% dos celíacos mantêm dieta isenta de
de trigo na produção de cafés instantâneos, acho- glúten16; na Índia, a dieta é seguida por 89,6%
colatados em pó, sorvetes, chicletes, sopas e pa- dos pacientes17. Outro estudo, também realizado
pas enlatadas/desidratadas, embutidos cárneos, no Canadá, identificou que as principais razões
maioneses, molhos de tomate, mostardas, iogur- para a ingestão de alimentos que contêm glúten
tes, alimentos infantis. A presença de gliadina por celíacos eram: erro ou engano (65,0%), es-
pode ainda ocorrer pela contaminação da farinha colha própria (36,0%) e falta de alternativa
de trigo no ambiente, pelos utensílios, pelos mani- (27,0%). Demonstrou, ainda, que com relação
ao nível de satisfação com produtos isentos de
puladores de alimentos que elaboram produtos
glúten, a maioria dos celíacos relatou estar me-
com ou sem farinha de trigo.
dianamente ou muito satisfeita com informações
Piccolotto13 analisou 177 produtos indus- apresentadas nos rótulos, disponibilidade regional
trializados disponíveis no mercado nacional. dos produtos, sabor, variedade e textura. Apenas
Desses, 83 eram produtos de panificação, 34 12,0% dos celíacos entrevistados, porém, mos-
bebidas, 24 condimentos, 22 embutidos cárneos traram-se satisfeitos com o preço de produtos sem
e 14 produtos desidratados. Os resultados obtidos glúten18.
por ensaio imunoenzimático comercial baseado
Trabalho desenvolvido com 2.681 adultos
num anticorpo monoclonal para ω-gliadinas mos- celíacos, no Canadá, revelou que 44,0% dos en-
traram que o glúten esteve presente em 84% dos trevistados relataram grande ou moderada difi-
produtos. Dos 98 alimentos naturalmente isentos culdade na escolha dos componentes de sua dieta.
de glúten, apenas 19 (19,38%) não apresentaram Entre os problemas citados, destacam-se: dificulda-
a proteína em sua composição; 4 amostras con- de em determinar se os alimentos eram livres de
tinham teores de glúten entre 0,016 e 0,046% e glúten (85,0%) e de encontrar alimentos isentos
apenas uma amostra apresentou teor entre 0,10% de glúten no mercado (83,0%)18.
e 0,30%. Tais resultados se devem provavelmente Situações como viajar, alimentar-se fora do
ao fato de que, durante o processamento, pro- lar e relacionar-se com amigos e familiares podem
dutos naturalmente isentos de glúten sofreram representar problemas para os celíacos e interferir,
contaminação inaceitável aos celíacos. Segundo dessa forma, na sua vida social. Seguir uma dieta
o Codex Alimentarius (1995, 1997)14, o limite máxi- isenta de glúten representa mudanças no estilo
mo diário permitido aos celíacos é 10mg de de vida; 79,0% de celíacos entrevistados numa
gliadina. pesquisa disseram evitar frequentar serviços de

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alimentação e 43,0% disseram evitar viajar em O comportamento de consumo como


função da dificuldade de encontrar produtos pró- expressão da classe social é definido por Bourdieu
prios no mercado e do risco da ingestão acidental como habitus, que traduz estilos de vida, julga-
de produtos com glúten18. Uma outra pesquisa mentos políticos, morais e estéticos. O hábito ali-
com 253 adultos celíacos, nos Estados Unidos, mentar é um código que extrapola o ato de comer,
revelou que a aderência à dieta isenta de glúten podendo levar à compreensão da organização da
exercia impacto negativo sobre o ato de alimentar- produção econômica de uma sociedade e suas
-se fora do lar (86,0%) e de viajar (82,0%)19. relações sociais. É por meio dos hábitos alimen-
No Brasil, com o objetivo de minimizar as tares que os indivíduos, ou grupos, respondem a
dificuldades da adesão ao tratamento, surgiram pressões sociais e culturais, selecionam, consomem
as Associações de Celíacos. Em fevereiro de 1994, e utilizam porções de conjunto de alimentos dispo-
os pais de alguns celíacos fundaram a ACELBRA níveis21.
(Seção São Paulo)1, que objetiva, principalmente, Por sua vez, os padrões alimentares obede-
orientar os pacientes quanto à doença e à dieta cem a uma lógica em que opera, de um lado,
sem glúten, assim como divulgar a doença20.
uma estratégia de subsistência em que são maxi-
Além disso, a ACELBRA visa ainda exigir o mizados os recursos e fatores dos quais dependem
cumprimento da Lei nº 8.543 (Brasil, 1992) na área a reprodução da força de trabalho e a sobrevi-
de vigilância sanitária, que obriga as indústrias vência da família e, de outro, um sistema de conhe-
alimentícias a imprimirem em caracteres desta- cimento e de princípios ideológicos pelo qual se
cados uma advertência nos rótulos e nas emba- procura otimizar a relação alimento/organismo.
lagens de produtos industrializados que contêm Da conjunção desses planos resultam os padrões
glúten ou seus derivados. Em 2003, foi publicada que caracterizam os hábitos alimentares21.
a Lei nº 10.674, que obriga os produtos alimen-
tícios comercializados a portarem informação A alimentação está envolta nos mais diver-
sobre a presença de glúten como medida preven- sos significados e as práticas alimentares incluem
tiva e de controle da doença celíaca. Assim, todos as etapas que vão desde os procedimentos rela-
os alimentos industrializados deverão conter em cionados ao preparo do alimento até o seu consu-
seu rótulo, obrigatoriamente, as inscrições “con- mo propriamente dito. A subjetividade veiculada
tém glúten” ou “não contém glúten”, conforme inclui a identidade cultural, a condição social, a
o caso. religião, a memória familiar, a época22.
Segundo a Associação dos Celíacos do Para Poulain & Proença23, os dados que
Brasil20, os pacientes transgridem a dieta por vários permitem descrever e compreender o fenômeno
motivos: falta de orientação relativa à doença e alimentar podem se distribuir sobre uma sequência
ao preparo de alimentos, descrença na quantidade de elementos: as práticas observadas, as objeti-
de produtos proibidos, dificuldades financeiras, vadas pelos seus traços, as reconstruídas com a
hábito do consumo de alimentos preparados com ajuda de instrumentos de anamnese ou rememori-
farinha de trigo, falta de habilidade culinária para zação, as descritas de maneira espontânea, as
o preparo de alimentos isentos de glúten. normas sociais expressas pelo indivíduo, as opi-
A alimentação é componente prioritário nas niões, as atitudes, os valores e as representações
sociedades contemporâneas e tem repercutido, simbólicas.
de forma crescente, na área de saúde. A mesa é Fome, sabor, aparência do alimento, tem-
o centro das relações; simboliza organização, críti- po disponível ao preparo seguido da conveniência
ca familiar, alegrias, dissabores, novidades. Os ou facilidade de compra e, em alguns casos, a
efeitos socializantes de alimentar-se em grupo condição financeira para adquiri-lo são suposta-
harmonizam, fortalecem vínculos, estabilizam es- mente fatores de motivação para a seleção dos
truturas de convívio21. alimentos22.

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Os gostos são construídos de acordo com da questão se amplia, pois à qualidade, à eficácia
o que a cultura estabelece como aceitável. As e à segurança esperadas somam-se outros ele-
pessoas tendem a rejeitar sabores aos quais não mentos inerentes a um bem essencial, tais como
estão acostumadas e permanecem restritas às pre- disponibilidade, preço e acessibilidade, que não
parações características de sua cultura22. Tais parti- podem ser subjugados à lógica de mercado.
cularidades provavelmente justifiquem a dificul- Os serviços de saúde e certas categorias
dade que indivíduos possam apresentar de adesão de produtos sob controle sanitário são indispen-
às novas práticas e hábitos alimentares, determi- sáveis à consecução do direito à saúde, pelo quais
nadas por situações fisiológicas específicas. as ações de vigilância sanitária ultrapassam o
Os hábitos alimentares estão envolvidos âmbito da defesa e proteção da saúde do consu-
com o sentimento dos indivíduos. Relacionam-se midor para abarcar a população como um todo.
com valores familiares e culturais. Nesse aspecto, Indo além, a própria questão do consumo reporta-
pode-se considerar que a restrição alimentar causa -se à reflexão sobre o direito de ser consumidor
sofrimento, rompimento do afeto, perda do ali- de bens e serviços necessários a uma boa quali-
mento. A experiência da doença impõe uma ruptu- dade de vida, o que não tem sido equacionado
ra obrigatória de um hábito alimentar e a adesão para todos os segmentos nas sociedades atuais28,29,
a uma dieta isenta de glúten implica a adoção de inclusive para os portadores de doenças.
novas práticas alimentares. Se os celíacos não
transgridem a dieta, essas novas práticas podem-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
-se tornar hábitos alimentares.
Aderir a uma dieta isenta de glúten não Nos celíacos, os quadros de desnutrição e
influencia apenas o consumo de alimentos, mas hipernutrição são comuns; a desnutrição é decor-
também a qualidade de vida dos pacientes. rente da má absorção de nutrientes e da dificul-
Na área da saúde, o interesse pelo con- dade da ingestão alimentar em função dos sinto-
ceito de qualidade de vida é relativamente recente mas apresentados. Nos indivíduos em tratamento,
e decorre, em parte, dos novos paradigmas que o quadro de hipernutrição se deve à maior absorção
têm influenciado as políticas e as práticas do setor de nutrientes, decorrente da possível melhora des-
nas últimas décadas24,25. ses sintomas, que estimula maior ingestão ali-
mentar e ao fato de os alimentos para celíacos
A literatura destaca que a avaliação da
normalmente apresentarem maior quantidade de
qualidade de vida não deve se limitar, simples-
lipídios em sua composição.
mente, a medir a presença e a gravidade dos sinto-
mas de uma doença. Deve também ser capaz de Em função do tratamento para essa doença
mostrar como as manifestações de uma doença ser unicamente dietético e da dificuldade da exclu-
ou tratamento são experimentadas pelo indi- são dos cereais que contêm glúten da dieta,
víduo26. observa-se a importância do profissional de Nutri-
ção na avaliação do estado nutricional, na orienta-
As necessidades em saúde se ampliam em
ção relativa à escolha, ao preparo dos alimentos
decorrência de um conjunto de interações de
e à contaminação por glúten na etapa de preparo
processos de natureza econômica, social, cultural,
ou distribuição do alimento e nas orientações rela-
política e científico-tecnológica que não têm sido
tivas à deficiência de absorção de macro e mi-
capazes de operar repercussões positivas na saúde
cronutrientes. Verifica-se também a necessidade
e na qualidade de vida de amplos contingentes
de acompanhamento constante para avaliar a
populacionais27. adequação da ingestão dietética, presença de
Quando se trata de produtos, processos e transgressões - voluntárias ou não - e sinais de
serviços de interesse da saúde, a complexidade comprometimento nutricional, que são fatores

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determinantes na qualidade de vida do paciente redigiu e discutiu o manuscrito. W.M.C. ARAÚJO parti-
celíaco. cipou da concepção e da discussão e da redação do
artigo. R.B.A. BOTELHO e R.P. ZANDONADI participa-
O nutricionista, assim, estimula a adesão
ram das discussões do artigo.
ao tratamento, evita a monotonia e acompanha
a ingestão alimentar. Além disso, deve estar atento
para que haja uma transição alimentar não traumá- REFERÊNCIAS
tica para melhor adesão à dieta.
1. Sdepanian VL, Morais MB, Fagundes-Neto U.
Os celíacos, além dos fatores supracitados, Doença celíaca: a evolução dos conhecimentos
apresentam dificuldades relativas à alimentação desde sua centenária descrição original até os dias
fora do lar em função do desconhecimento da atuais. Arq Gastroenterol. 1999; 36(4):244-57.
população sobre esse assunto. É comum observar- 2. Pratesi R, Gandolfi L. Doença celíaca: a afecção
-se nos serviços de alimentação e em unidades com múltiplas faces. J Pediatr. 2005; 81:357-8.
produtoras de refeição a utilização de farinha de 3. Catassi C, Fornaroli F, Fasano A. Celiac disease:
from basic immunology to bedside practice. Clin
trigo em preparações que tradicionalmente não Appl Immunol Rev. 2002; 3(2):61-71.
deveriam contê-la, como peixe grelhado, feijão,
4. Gandolfi L, Pratesi L, Cordoba JC, Tauil Pl, Gasparin
molhos, o que dificulta a adesão ao tratamento M, Catassi C. Prevalence of celiac disease among
e, consequentemente a melhoria da qualidade blood donors in Brazil. Am J Gastroenterol. 2000;
de vida desses pacientes. Deve-se, portanto, cons- 95:689-92.
cientizar o setor de alimentação fora do lar para 5. Rauen MS, Back JCV, Moreira EAM. Doença celíaca:
que se preocupe e faça a inclusão de celíacos. sua relação com a saúde bucal. Rev Nutr. 2005;
18(2):271-6. doi: 10.1590/S1415-527320050002
Considerando ainda que a vigilância sani- 00011.
tária contempla as ações capazes de eliminar, 6. Garcias SG. Rastreamento de prováveis casos de
diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir doença celíaca entre pacientes adultos usuários
nos problemas sanitários decorrentes do meio de laboratórios de análises clínicas em Hospital
ambiente, da produção e circulação de bens e da Geral, no Distrito Federal [dissertação]. Brasília:
Universidade de Brasília; 1999.
prestação de serviços de interesse da saúde e
7. Modelli ICS. Rastreamento de prováveis casos de
constitui-se um subsetor específico da saúde públi- doença celíaca entre crianças usuárias de labora-
ca com uma face mais complexa, ela passa a tório de análises clínicas em Hospital Geral, no
compor o elenco dos direitos fundamentais dos Distrito Federal [dissertação]. Brasília: Universidade
indivíduos no seu amplo espectro de ação. de Brasília; 2001.
8. Pratesi R, Gandolfi L, Garcia SG, Modelli IC,
Nesse aspecto, verifica-se a necessidade Almeida PL. Prevalence of coeliac disease:
de melhor caracterizar o cenário da DC, consi- unexplained age-related variation in the same
derando que a natureza das ações de vigilância population. Scand J Gastroenterol. 2003; 38:747-50.
sanitária é eminentemente preventiva, devendo 9. Thompson T, Dennis M, Higgins LA, Lee AR,
atuar sobre fatores de riscos e danos e seus deter- Shavrett MK. Gluten-free diet survey: are Americans
with celiac disease consuming recommended
minantes associados a produtos. Deve-se atentar
amounts of fibre, iron, calcium and grain foods?
para o fato de que a alimentação de cada cidadão J Hum Nutr Diet. 2005; 18:163-9.
não pode ser deslocada da sociedade. A inclusão 10. Pratesi R, Gandolfi L. Doença celíaca: a afecção
de novas práticas alimentares pode significar uma com múltiplas faces. J Pediatr. 2005; 81(5):
ruptura com a identidade individual e cultural. 357-8.
11. Sdepanian VL, Morais MB, Fagundes-Neto U.
Doença celíaca: a evolução dos conhecimentos
COLABORADORES desde sua centenária descrição original até os dias
atuais. Arq Gastroenterol. 1999; 36(4):244-57.
H.M.C. ARAÚJO participou da concepção do 12. Brasnki D, Troncone R. Celiac disease: a reappraisal.
projeto, da realização das pesquisas bibliográficas, J Pediatr. 1998, 133:181-7.

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Revista de Nutrição Rev. Nutr., Campinas, 23(3):467-474, maio/jun., 2010

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