Você está na página 1de 2

O homem de quem se não gosta

(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 19/02/2016)

Baptista Bastos

Serviu quem muito bem entendeu, e nunca foi o Presidente de todos os


portugueses. Pelo contrário: fraccionou a sociedade portuguesa.

Entrevistados pelas televisões, dois representantes de associações militares disseram,


alto e bom som, que não reconheciam o dr. Cavaco como supremo comandante das
Forças Armadas. E aduziram um aluvião de razões para justificar a abominação. Não
deixa saudades, acrescentaram. O desprezo pelo homem que vai embora, não tarda, é
transversal à sociedade portuguesa. Nas artes, nos ofícios, nos serviços, nunca um
Presidente da República foi tão condenado. E a culpa é dele próprio: tolamente
arrogante, autoritário, ignorante e inculto, desajeitado e impositivo, ele representa o que
de pior o português em si encerra. Acresce que nos longos anos que esteve no poder,
como primeiro-ministro e, depois, Presidente, cometeu tolices, injúrias e disparates,
fruto dessa soberba e dessa ignorância que deram azo a histórias e anedotas
devastadoras. Quando falava, nada dizia para um povo já informado, atento e sarcástico.

A separação a que procedeu, entre os portugueses, foi-lhe fatal, desde o princípio. Ficou
famosa a frase “Deixem-nos trabalhar!”, e a foto dele e dos seus colaboradores, em
mangas de camisa, muito atarefados e zelosos. Era primeiro-ministro e logo nos
apercebemos de que, do país e de quem cá vive, ele pouco entendia. No entanto, possuía
uma imagem de gravidade até às orelhas, um penteado à Cary Grant e umas camisas
muito brunidas; tudo isso contava, numa terra onde o respeitinho é muito bonito.

Agradou logo àqueles que, moldados pelo salazarismo, constituíam a zona mais
cinzenta e reaccionária de entre nós. Portugal ainda vivia nas sombras de um passado
nefasto e entre os medos uma revolução interrompida. A Igreja e os senhores da finança
desempenharam, aqui, um papel crucial. A satisfação dessa parte da sociedade rejubilou,
quando ele, numa atitude sórdida, premiou, com reformas opíparas, antigos agentes da
PIDE, e recusou uma pensão de sangue à viúva de Salgueiro Maia, um dos impolutos
capitães de Abril.

É preciso relembrar que este homem, tacanho por natureza e educação, nunca tomou a
mais leve atitude contra o fascismo, é o produto típico de um prazo e de uma época
ainda não dissolvidos por completo, e que demonstra extrema dificuldade em adaptar-se
aos tempos outros. Pessoalmente, chego a ter compaixão por esta desgraça ambulante,
que nunca sabe onde meter as mãos, que nunca está à vontade em nenhuma parte, e que
parece não entender coisa alguma.

Mas não pode ficar isento de culpas. A natureza profunda das suas acções a
comportamentos não se associa às características da democracia. A guerrilha
estabelecida contra José Sócrates é um dos episódios mais desacreditantes do seu
mandato; e a utilização do verbo “indicar”, em vez do “indigitar”, quando aludiu a
António Costa, para primeiro-ministro, fornecem o retrato moral do indivíduo e a
dificuldade ostentada para aceitar o inevitável.

O rol das indigências do dr. Cavaco é enorme e nada nele serve de exemplo positivo.
Serviu quem muito bem entendeu, e nunca foi o Presidente de todos os portugueses.
Pelo contrário: fraccionou a sociedade portuguesa, e não teve uma palavra de desagrado
quando assistiu à debandada de jovens portugueses para o estrangeiro, resultado de uma
política velhaca que ele apoia com desfaçatez.

Não deixa saudades, de facto. Adeus.

Você também pode gostar