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ma densa escuridão já se mos- guimos que o equipamento funcionasse,
Luiz Henrique Martins Arthury trava pela janela do laborató- indo logo em seguida para o séc. XIX para
Centro de Ciências Tecnológicas, rio, quando finalmente estáva- testar seu desempenho. A viagem não foi
Universidade do Estado de Santa mos com tudo arrumado para a última nada agradável, não apenas pelo mal estar
Catarina, Joinville, SC, Brasil viagem. Eram 18:45 h. Esperava o ponto corporal, mas também porque provocou
E-mail: mahavantara@hotmail.com. crítico do processo, enquanto esticava mi- lapsos de memória, juntamente com uma
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nhas costas. Estava um pouco cansado certa confusão “existencial”. Mas a pro-
com isso tudo pois, depois da primeira messa, de fazermos um “tour” completo
viagem ao século retrasado, já não sabia pela história para darmos um alô aos “res-
ao certo a qual eu mesmo pertencia. Pen- ponsáveis” pela compreensão que temos
sava se ele também estava com os mesmos do universo, tinha sido feita e deveria ser
sentimentos. cumprida. Não por um sentimento de
Da última vez que nos encontramos culpa, de talvez quebrar a promessa, mas
estávamos em Estocolmo, em 2079, porque devíamos isto, a nós e a eles. Mes-
acompanhando as comemorações dos du- mo não gostando dos detalhes históricos,
zentos anos do nascimento de Einstein, ao contrário dele, que adorava, eu sabia
juntamente com a premiação pela ideali- que devia continuar.
zação do QCM (manipulador do con- Eram 18:50 h. O ponto crítico fora
tinuum-quadridimensional), aparelho então atingido. O mal estar habitual co-
que tornou possível a nossa peregrinação. meçou a tomar conta de nós, enquanto a
Há mais de seis meses não nos víamos, e pressão corporal baixava a ponto de prati-
somente durante a cerimônia fomos tro- camente dormirmos. Quando acordamos,
car umas palavras: o Sol brilhava alto. O mar estava calmo
- Parabéns, Dr. - Tomei a iniciativa, em Mileto. Após uma pequena refeição e
embora um pouco hesitante. - Parabéns providenciarmos os trajes da época, fomos
a você também. - Disse ele, de forma mais então em busca deles. Chegamos mesmo
simpática que eu. a conversar com os três: Thales, Anaxi-
- Não pensei que seria tão cedo, afinal mandro e Anaxímenes. Eu, claro, achei
faz apenas oito meses da primeira viagem. tudo um absurdo. Como estes três filóso-
- Continuei, tentando manter a conversa. fos, que eram considerados precursores
- Acho que o comitê deseja reverenciar da explicação da Natureza, sem invocar
nosso trabalho o quanto antes, para não os Deuses, podiam ter ideias tão absurdas?
menosprezar nosso feito. Como minha formação era científico-tec-
- Ainda mais depois das indiferenças nológica, não conseguia perceber a rele-
Este texto dirige-se a alunos e interessados em
que recebemos assim que anunciamos a vância de conhecer os pormenores e subje-
conhecer mais de perto a história da física clás-
sica, e não visa uma responsabilidade maior
possibilidade tecnológica de criar e ma- tivismos alheios. Ainda que viessem de
quanto aos detalhes inerentes a esta. É uma nipular os wormholes. “ilustres pensadores”. Para Thales, por
crônica, e um ponto de partida informal (porém - Pois é. Nada como uma competente exemplo, a água constituía a base de tudo.
historicamente compromissado), com a inten- demonstração, para calar as resistências. Mas como? Não sabia ele que há vários
ção de dar um apanhado geral dos principais O que pretende fazer com o dinheiro? - outros elementos? Os outros dois, Anaxi-
pensadores, relevantes para o fim desejado, com Continuei. mandro e Anaxímenes, com ideias malu-
breves relatos e discussões sobre suas ideias. É - Não sei ainda. Depois que voltarmos cas como o “apeíron”, e o ar compondo
parte integrante deste texto discussões sobre
da “Última Viagem” terei bastante tempo tudo o que existia, também não ajudava.
ciência, suas características e justificativas. Du-
rante as conversas favor ignorar as reais difi-
para pensar nisso. Enquanto o Dr. conversava, admirado, eu
culdades de comunicação que haveria quanto Senti um frio na espinha ao ouvir não podia conter uma feição de rejeição,
às diferentes línguas, bem como perdoar as “li- aquilo. Ele realmente não tinha esquecido mas o Dr. não permitia que eu abrisse a
cenças poéticas” e possíveis anacronismos. da promessa que fizemos quando conse- boca. Por certo estava temeroso que eu

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falasse uns impropérios, mesmo depois do - Pois então amigo Aristóteles. Nunca, atraso no conhecimento astronômico? -
nosso acordo, de jamais revelarmos quem nessa sua cabecinha, passou-lhe pela ca- Disse eu, mais tarde, esperando um balan-
somos e de onde (ou quando) viemos. beça arremessar uma pedra para perceber çar de cabeça concordando comigo. -
Depois de um dia de conversas, já per- seu real movimento? Aquelas ideias de epiciclos, equantes... Que
to da noite, o Dr. disse-me: - Mas eu não preciso. - Disse ele, com bagunça!
- Percebi seu descontentamento com um tom estóico. - Sei que, mesmo que a - Novamente lá vem você... Pois eu
as ideias dos nossos amigos. Como sei que trajetória não se dê exatamente como digo, não diria atraso, e sim avanço! Não fosse
sua formação histórica e cultural está no ela tenderá a fazê-lo em um mundo ideal, o movimento circular de Platão e de todos
limite tendendo a zero, vamos fazer disto sem a corruptibilidade existente. os outros que o adotaram como princípio,
também uma grande escola para você. - Você está de rodeios... Veja só. - Pe- provavelmente estaríamos ainda pensan-
Não percebe o grande salto de raciocínio guei uma pedra e joguei-a ao longe. - Per- do que a Terra está sustentada por quatro
que temos aqui? Pela primeira vez temos cebeu como ela faz uma movimento cur- elefantes, apoiados sobre tartarugas que
uma tentativa de se libertar dos desígnios vilíneo em sua trajetória? E não tem nada se apoiam, por sua vez, em serpentes que
dos deuses, com explicações mais “coeren- dessa história de “antiperistasis”. Pois na flutuam na existência. E não esqueça que
tes” para a Natureza. ausência de ar as coisas continuam se os planetas possuem uma órbita pratica-
- Coerentes? - Respondi, quase que em movimentando, e para sempre! mente circular!
um grito. - Como podem ser coerentes? - Movimento no vazio? Isto é um - Agora você deve estar brincando,
- Coerentes ao seu tempo. Com o co- absurdo. - Disse Aristóteles, agora não Dr! Qualquer criança do jardim da infân-
nhecimento disponível. muito estóico. - Não só este movimento cia sabe que os planetas e tudo o mais pos-
- Quase zero, você quer dizer. - Disse não existe, como o próprio vazio não exis- suem órbitas elípticas.
eu, de forma irônica. te! Como pode não haver algo? Tudo tem - É mesmo? Pois eu o desafio, na pró-
- Sim, quase zero! Mas não é assim seu destino, seu lugar natural. É essa a xima viagem para Titã, a ver a diferença.
que começa? Ou você acredita que suas causa do movimento de qualquer coisa, e Mais tarde, quando encontrarmos Tycho
equações diferenciais caíram do Céu? Que nada mais existe além das coisas em seu e Kepler, você compreenderá melhor.
algum “Moysés” subiu em uma monta- lugar natural, dentro do Universo. E tam- * * *
nha e disse: a taxa de variação temporal bém não entendi o seu “para sempre”. Se Já estava precisando de uma folga dos
do momento é igual à força aplicada? Tudo fosse assim, não haveria um fim para o “velhos tempos a.C.”, quando “desembar-
começa com pouco, mas este pouco que é Universo e isto é outro absurdo. O Uni- camos” na Idade Média. Os caras por aqui
tudo! Percebe que estas pessoas já estão verso tem sua hierarquia, da Terra ao Pri- já estavam com uma argumentação mais
formando uma ideia de composição, de meiro Motor. E acaba aí. Não tem nada madura (pelo menos para mim, sei que o
combinação e de concentração? depois, nem sequer existe um depois. Dr. me repreenderia novamente se dissesse
- É. Talvez eu esteja me precipitando. - De onde eu venho essas suas pala- isso a ele). Um tal de Filoponos, na alta
Aquele cara, o Heráclito, já tem uma boa vras o levariam para o manicômio. - Ao Idade Média, teve “peito” para contradizer
ideia do dinamismo das coisas. dizer isto o Dr. deu-me uma pisada no pé Aristóteles, ainda mais depois que os caras
Continuando nossa viagem, conhe- que tive que disfarçar a dor. E Aristóteles de chapéu engraçado, nas igrejas, adota-
cemos Empédocles e Pitágoras, sendo este continuou: ram suas ideias. Filoponos, embora admi-
último de maior interesse para mim. Afi- - Não sei o que é esse tal de manicô- tisse uma “força impressa”, assim como
nal ele gostava de números! Achava que mio, mas sei que você não tem o mínimo Hiparco uns setecentos anos antes dele, já
eles estavam mesmo no cerne de tudo, juízo para analisar o Universo. Como se percebia uma “resistência” oferecida pelo
com suas relações e simbolismos. Só não bastasse eu jogar uma pedra! Não sabe ar. Demorou uns mil anos até que Buridan
gostei de todo aquele misticismo, que por você que a Natureza é muito mais sutil viesse com o “ímpetus” dele, propriedade
sinal não deixaria de me perseguir tão que como ela mesma se nos apresenta? É que era fornecida ao objeto em movimen-
cedo. Com Empédocles ouvi pela primeira preciso muito mais que jogar uma pedra! to, e que só cessava por influências exter-
vez a ideia de “quatro elementos” consti- E ainda assim, as conclusões que tiramos nas. Gostaria de levar Tartaglia e outros
tuintes de tudo e, como o Dr. dissera, mais dos eventos aqui na Terra não podem ser colegas afins para conversar com Aristó-
um passo para estruturar um modelo aplicadas, jamais, para as esferas além da teles. Teria dado, no mínimo, uma acir-
para a Natureza. Por falar em modelo, fi- nossa. Pois estas são de uma outra natu- rada conversa.
quei quase maluco ao estudar os modelos reza. Mas a Idade Média já estava ficando,
criados para explicar o sistema solar (que Realmente desisti de convencer aquele para mim, um pouco em trevas. Foi quan-
para os pensadores da época era o Uni- cara. Na verdade fui obrigado a desistir, do nos deparamos com pessoas que fariam
verso!). O “fogo central” de Filolau me fez não só devido às repreensões do Dr., mas Aristóteles sair “dando estrela”. E, vejam
pensar no poder da crença em uma infor- porque percebi que eu mesmo não era tão só, algumas destas pessoas eram daquelas
mação que não se podia, de forma algu- bom com argumentos. Eu estava acostu- que usavam chapéu engraçado! Dois
ma, comprovar. O Dr. me garantiu que mado a fazer e mostrar os resultados, mas “Nicolaus” começaram a mexer profun-
depois iríamos conversar sobre isto, que não poderia fazer isto ali. Não poderia di- damente nas estruturas de Aristóteles. O
veríamos que muitas das nossas próprias zer como eu sei as coisas que sei. E mesmo primeiro deles, Nicolau de Cusa, já ousava
ideias também não podem ser compro- que eu pudesse, acho que ele encontraria dizer que o universo não tem limites, e que
vadas. Eu estava pagando para ver! uma saída para qualquer questionamen- não tem esse papo de natureza diferente
* * * to. Difícil este Aristóteles. E não tive sorte acima da Terra. É tudo farinha do mesmo
Na próxima parada, fomos falar com também com Ptolomeu, que não me con- saco! Não preciso dizer que gostei dele, se
Aristóteles. E, depois de já ouvir algumas venceu (e muito menos eu a ele) com o bem que ainda ouvia muito a palavra Deus.
coisas ao seu respeito, diria umas poucas geocentrismo. Na verdade, não deixaria tão cedo de ouvir
e boas para ele. Mal deixei o Dr. falar, e - Percebeu como a crença em um mo- esta palavra, e eu e o Dr. ainda teríamos
comecei o meu ataque: vimento circular condicionou séculos de uma conversa séria sobre isto.

Física na Escola, v. 11, n. 1, 2010 Sobre modelos, sistemas e ideias: de Thales a Newton 37
Com Nicolau Copérnico finalmente vi comentei com o Dr.: pensador antes de mim já falava neles.
meu querido Sol em seu lugar. Depois de - Gente fina esse Copérnico. Meio - Sim, eu sei: nosso amigo “Pita”. Mas
falar com Aristarco, ainda nos “anos a.C.”, temeroso, mas uma cara legal. E as ino- usar estes conceitos para descrever o sis-
que, ao contrário da filosofia aristotélica vações não acabam aqui, não é mesmo? tema solar, é coisa sua, não?
dominante, defendia que o Sol estava no - É claro que não. Agora é que esta- - É. Mas já descobri que foi apenas
meio daquilo tudo, cogitei por quanto mos chegando perto daqueles que irão uma conjectura. Meus últimos cálculos
tempo levariam o absurdo do geocentris- abrir caminho para o surgimento do gran- mostram que foi tudo uma grande via-
mo em frente. E levaram longe! Estamos de Newton. Quanto à cautela de Copér- gem, como você disse. O legal é que estou
praticamente na renascença, e só agora nico, é perfeitamente compreensível. Sabe conseguindo mostrar que o modelo do
vem um cristão (literalmente!) me dizer aqueles caras cujo chapéu você acha en- meu colega Tycho não tem razão de ser, e
que a Terra não é o centro do Universo... graçado? Pois é... eles estão pegando pesa- que Copérnico é “o cara”. Na verdade nem
E provavelmente influenciado pelo nosso do. Apenas uma geração depois de Copér- tanto, pois também descobri que os pla-
amigo Aristarco! Copérnico, assim como nico, temos Giordano Bruno que será netas não descrevem órbitas circulares.
eu, não gostava nem um pouco das estra- queimado vivo! Veja só. - Ele me mostrou um desenho
tégias dos geocentristas em “salvar os fe- - O quê? Por quê? O que ele fez? Dor- onde representava a órbita de um planeta.
nômenos”. A ironia é que ele ainda man- miu com a filha de um desses caras? - Percebe?
teve algumas destas estratégias, embora - Não, não. É pior: defende que o Uni- - Percebe o quê? - Perguntei em se-
seu modelo fosse de uma matemática bem verso é infinito, que nem a Terra e nem o guida. - Só vejo um círculo!
mais acurada. Como matemática é a mi- Sol estão no centro de tudo, e que até existe - Não, não. É uma elipse. Embora sua
nha praia, tivemos algumas boas conver- vida em outros planetas! excentricidade seja pequena, vê-se que não
sas: - E é queimado por isso? Acho que é um círculo. Os dados que “peguei em-
- E aí, Copérnico. E como é que você meu nariz vai sangrar de nervosismo. prestado” de meu colega mostram que
se defende da crítica do pessoal que diz Mas o que estamos esperando? Vamos já tem que ser assim.
que a Terra tem que estar parada, pois se salvá-lo. Agora percebia o que o Dr. queria di-
assim não o fosse, um objeto atirado para - Não, você ficou louco? Não pode- zer. Para mim aquilo era um círculo, e
cima não cairia no mesmo lugar? - Per- mos fazer algo que modifique a este ponto fiquei realmente impressionado de saber
guntei, sem os habituais puxões de orelha a história. É muito perigoso... Espero que que nesta época já havia um espírito tão
do Dr. não tenhas já feito alguma alteração... grande de precisão. E, ao constatar que o
- “E aí?” Hum, bem... “E aí” pra você - Eu? Ãhn... É claro que não. Só bati próprio Kepler abandonaria (como o fez,
também. Pois é. Não tenho uma resposta um papinho com o Copérnico, nada mais. com seus sólidos perfeitos) suas teorias
definitiva para esta questão, mas - deixe - Melhor assim. Agora descanse um se os dados assim o exigisse, tive que dar
eu falar baixinho, pois isto pode ser peri- pouco. Lembra quando te falei do Tycho o braço a torcer. Apesar de suas “viagens”,
goso - sei que a Terra está em movimento. e do Kepler? Pois é... Amanhã vamos estes caras eram geniais.
É mais coerente assim. Quando jogamos conhecê-los. * * *
algum objeto para o alto, de alguma for- * * * Talvez mais genial ainda seja o Ga-
ma este objeto continua acompanhando No dia seguinte conhecemos um cara lileu. Quando descobri que ele não consi-
o movimento de Terra, e por isso parece de nariz engraçado, parecia o homem de derava a Bíblia como fonte de conhecimen-
que estamos parados. A história ainda me lata. Fomos ao seu castelo, que parecia que tos científicos, que construiu uma luneta
dará razão. sairia andando de tantos aparelhos utili- e “descobriu” os anéis de Saturno, as luas
- Com certeza! - Respondi, já perce- zados para medição da posição dos astros. de Júpiter, as fases de Vênus... Incrível!
bendo o impropério. - Quer dizer, é claro Achei incrível, quase sobre-humano, a Sem falar nos seus estudos sobre a queda
que um raciocínio tão belo e coerente de- quantidade e qualidade dos dados colhidos dos corpos, movimento dos projéteis e na
verá prevalecer sobre os outros. por Tycho e seus ajudantes. E, mais uma inércia que, embora circular, daria pistas
- Espero que assim seja. Mas, por fa- vez irônico, é o fato de ele acreditar em decisivas para a consolidação de uma nova
vor, não diga a ninguém que eu te disse uma Terra estática. Se ele soubesse que física. Iniciei uma conversa com o Dr.:
isto! Não sei se quero que saibam das seus dados não só levariam à destruição - Esse Galileu se superou! Uma única
minhas ideias. deste modelo, como também à destruição pessoa fazer tantas novas descobertas...
- Como não? Você precisa mandar isto do dogma do movimento circular! Acho O que me deixa furioso é todo aquele epi-
já para uma gráfic... quer dizer... precisa que ele “teria um filho”... sódio com a Igreja. Que direito eles têm
divulgar suas ideias. Já sei: e se dissesse, Mais tarde fiz questão de dar uma de julgar um gênio do porte de Galileu?
você ou alguém, que é apenas um modelo fugidinha do Dr. para dar uma palavrinha - Realmente este fato pode ser tudo,
matemático para a explicação dos movi- com Kepler: menos simples. Desde o início do nosso
mentos que observamos aqui da Terra? - E aí, Kepler. Calculando muito? “tour” você tem ouvido a palavra Deus,
Talvez assim fosse possível manter estas - “E aí”? Ãhn... Pois é... Aqui estou mas você ainda não parou para pensar na
ideias em voga tempo o suficiente para calculando muito sim. - Respondeu ele, sua importância para estes caras, não?
descobrirem que se trata da verdade. meio não entendendo. Mesmo sendo ateu, você deve reconhecer
- Excelente ideia! Acredito que esta - Aquele seu papo dos sólidos perfei- que não é fácil contrariar uma visão
possa ser a solução. Muito obrigado, sr... tos é uma viagem, não? - Continuei. predominante. Ainda mais se a maioria dos
- Chame-me apenas de “colega”. - - Uma viagem? Acho que compreen- que te cercam são os “do chapéu engra-
Retruquei. do o que quer dizer... Sim, é uma viagem çado”. Como vimos, você não vai querer
* * * a um mundo de relações. Mas esta ideia confusão com eles. E Copérnico e Galileu,
Mais tarde, esperando o sono chegar, não é exclusividade minha, um grande entre outros, sabem disto muito bem.

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Mesmo provavelmente não tendo subido rística é normalmente a “chave de ouro” ser testadas e refutadas, mas acabam pre-
na torre de Pisa para demonstrar suas de uma teoria: é quando ela, além de suas valecendo devido à sua simplicidade (em
ideias, Galileu chamou muita atenção com explicações de fenômenos existentes, per- relação ao sistema geocêntrico) e poder ex-
seu sistema heliocêntrico, pois isto ia mite a previsão de novos fenômenos, que plicativo e preditivo. Analogamente temos
claramente contra as sagradas escrituras. são posteriormente verificados, é que a a teoria da evolução e do big bang que,
Onde já se viu a Terra andar, se é o Sol que teoria científica mostra seu poder. mesmo em nossa época, também ofere-
é parado por Josué? É uma afronta! Neste período, conhecido como “ciên- cem poucas maneiras de serem refutadas
- Mas Galileu tinha provas! E o teles- cia normal”, as atividades produzidas se (e também ratificadas), mas que produ-
cópio? Corroborava as suas ideias... - Falei fundamentam em alguma teoria pré-con- zem resultados fantásticos quanto à expli-
indignado. cebida e paradigmática, sendo raro o cação de fenômenos. Novamente, o moti-
- O que é que tem o telescópio? O que surgimento de ideias realmente novas. vo de sobreviverem e compartilharem sig-
o faz pensar que isto é uma prova? - Disse Quando isto acontece, temos a “Revolução nificativo respeito na comunidade cientí-
o Dr. também indignado. Científica”, onde antigos conceitos e teo- fica é o fato de produzirem resultados
- Ora, Dr. É evidente que é uma prova. rias são substituídos por outros mais cor- efetivos na explicação, e mesmo predição,
Sabemos como o telescópio funciona, e retos e/ou abrangentes. Assim, uma nova de fenômenos. Ou seja, teorias que sobre-
como ele permite conhecer coisas que teoria científica, para sobreviver ao ataque viveram não pelo seu método, mas por
estão muito distantes. feroz (benéfico e necessário) da comuni- seus resultados.
- Sabemos? Quem “sabemos”? Nós! dade científica, deve oferecer uma exatidão Com isto chegamos às ideias de Paul
Eles não! Nem mesmo Galileu! Já vejo que maior que a antecessora, ao mesmo tem- Feyerabend a respeito da ciência, onde a
está na hora de uma pequena lição. Tenho po em que a engloba, ou seja, a substitui mesma, além das características já des-
certeza que você não teve aulas de filosofia com vantagens. Deste modo, a ciência critas, deve gerar resultados. Importante
da ciência. Serei breve, mas preste atenção: progride de forma essencialmente descon- dizer que resultados, aqui, não significa
- Sentei, já resignado com o “sermão”, e tínua, aonde cada ideia vai sendo substi- necessariamente aplicação prática direta,
ouvi: tuída por outra melhor. mas sim uma aplicação ainda que concei-
- É importante frisar que, ainda na Uma definição mais categórica de tual e abstrata. Exemplo disto seria o de-
nossa época, existem muitos estudos a ciência, e muito aceita pela comunidade senvolvimento de modelos matemáticos
respeito do que é Ciência, produzindo-se, científica, é associada à ideia de Refutabi- avançados que não possuem qualquer
a cada ano, uma copiosa literatura a res- lidade (Popper). De forma a complementar ligação direta com o mundo físico, mas
peito. Todos concordam que a Ciência pode as características já descritas, a noção de que produzem um repertório maior de fer-
ser caracterizada por várias atividades refutabilidade é essencial para caracterizar ramentas de raciocínio que podem ajudar
como pesquisa, experimentação sistemá- completamente (ou quase, como veremos) na resolução de outros problemas que, aí
tica e controlada, refutação e confirmação, o fazer científico, estabelecendo que um sim, geram frutos tecnológicos diretos.
embora uma conceituação mais categórica conhecimento só é científico na medida Finalmente poderíamos dizer que a
seja sempre controversa. Não obstante, te- em que pode, com os procedimentos já ciência é, ainda, uma constante batalha
mos um certo consenso que podemos uti- citados, ser refutado. Assim, o conheci- entre teorias rivais (Lakatos), sendo que a
lizar para um princípio geral norteador. - mento esotérico a respeito dos Anjos e sua teoria que explica melhor os fenômenos a
E continuou: hierarquia, para citar um exemplo, não é que se propõe explicar acaba fazendo com
- Os conceitos de ciência mais bem científico justamente por não oferecer ma- que outras, que não conseguem o mesmo
aceitos nos dias de hoje são fundamenta- neiras de ser refutado, e o conhecimento feito, degenerem-se, por decisão metodo-
dos nos estudos de filósofos da ciência de que nossas características hereditárias lógica dos cientistas pesquisadores.
como Thomas Kuhn (1922-1996), Karl são produzidas com base no código gené- - Ufa! Dr., preciso urgentemente de
Popper (1902-1994), Paul Feyerabend tico nas nossas células o é, pois oferece ar. Preciso de um “período de incubação”
(1924-1994) e Imre Lakatos (1922-1974). maneiras para sua refutação, através de para digerir tudo isto! Mas acho que já
Com estes filósofos cientistas temos um experimentos que (neste caso) compro- percebo que realmente não é tão simples.
entendimento de como a ciência evolui ao vam sua veracidade. E falando nos caras de chapéu engraçado...
longo do tempo, com a ideia de “ruptura Esta é a ideia mais difundida concer- como você lida com Deus, Dr.? - Perguntei.
de paradigmas” (Kuhn) que acontece de nente à ciência e sua conceituação, e só - Eu não lido! Nem sequer penso nele!
tempos em tempos. Ao longo da maior não é absolutamente aceita pois deixa de Se começasse a discorrer sobre isto, pro-
parte do tempo, a ciência é um conjunto fora uma observação crucial: o fato de vavelmente teria motivos, ainda que
de procedimentos – o método científico - pesquisas históricas mostrarem que algu- subjetivos, para negá-lo, como também
que visam desenvolver um conhecimento mas ideias científicas revolucionárias não para aceitá-lo. Se aceito sua existência, en-
através da elaboração de uma tese e ideali- se dão como o “método científico” exige, tão, de certa forma, não estou sendo cien-
zar maneiras de testá-la. Para isto utiliza- e sim através de caminhos muitas vezes tífico em acreditar em algo que não pode
se um aparato experimental adequado “propagandistas” (baseados na coerção e ser, de modo algum, verificado. Por outro
onde o experimento possa ser feito de for- não na demonstração), que não oferecem lado, se nego categoricamente sua exis-
ma controlada e passível de repetição, por maneiras de serem refutadas, mas que le- tência, então também não estou sendo
qualquer cientista, com o intuito de pro- vam à produção de teorias de extraordi- científico, por refutar algo que não oferece
duzir dados que ratifiquem, retifiquem ou nário sucesso. Exemplo disto é justamente maneiras de ser refutado!
refutem a tese testada para, idealmente, o sistema heliocêntrico, desenvolvido ini- - Então como é que é? Você fica em
chegar a um conhecimento com cada vez cialmente por Aristarco, e melhor de- cima do muro?
mais sucesso de explicação e predição de senvolvido por nosso amigo Galileu, onde - Para se ficar em cima do muro é
novos fenômenos. Esta última caracte- suas afirmações não podem, nesta época, necessário ponderar as duas alternativas,

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o que não é o caso. mencionar que Descartes não admitia a - Ora! A menos que tenhas uma teo-
- Você me confunde, Dr.! ideia de ser enganado por Deus, ou seja, ria, obtida com a razão, que explique os
- Bom, se o que você quer é um nome Deus não nos mostraria algo que perecesse seus dados, eles não me servem de nada!
para o que eu sou, então talvez a palavra ser verdade se assim não o fosse. Mas, já Como não podia revelar mais deta-
mais próxima seja o “agnóstico”: uma no primeiro instante, fiquei admirado ao lhes, novamente constatei, pelo jeito mais
pessoa que não sabe se acredita ou não constatar que Descartes não admitia que difícil, que não seriam os meus argu-
em Deus. Na verdade, no meu caso, é um nem mesmo Deus pudesse alterar as leis mentos que fariam alguma diferença...
pouco mais que isso: eu simplesmente não da natureza! Poderia tê-la criado mas, * * *
pondero nem uma, nem outra alternativa! uma fez o feito, é “por sua conta”, ou seja, Então, finalmente, o grande gênio! Du-
Apenas não penso a respeito. Não vejo as leis inerentes ao universo são imutáveis rante toda nossa viagem dei um jeito de
nada demais nisto. Por que afinal temos e governam sua existência futura. E nós, escapar de perto do Dr., para trocar umas
que escolher um lado? Por quê? Na ciência com nossa razão, podemos conhecê-las. palavrinhas sem ser censurado. Queria
o fazemos? Eu acho que não. Se escolho a Fui, também, dar uma palavrinha com treinar para o grande momento: falar com
física quântica como explicação, não pre- ele: o maestro da Natureza, aquele que, por
ciso abandonar qualquer outra teoria con- - E aí Descartes. E aquela viagem do certo, já é um cientista pleno, sem rodeios
corrente por isso, nem negar a existência “vórtex”? religiosos, e que somente com a matemática
de uma outra. Apenas uso a que dá me- - “E aí”? “Viagem”? Não estou enten- vai desvendar finalmente os segredos do
lhores resultados no momento. Acho que, dendo. Mas o “vórtex” surge com a neces- Universo! Aquele que, sem preconceitos ou
de certa forma, sou um “anarquista pes- sidade de se explicar o motivo de os objetos crenças descabidas, vai ser o sintetizador
simista”: não só não compartilho da visão serem atraídos pelo chão. Como não pode de todo o conhecimento físico produzido
positivista e cientificista, como também haver o vazio, então através da dinâmica até então. Aquele que é citado em todos os
creio ser, a verdade, intangível ao homem. dos três elementos que constituem o Uni- livros de Física, que produziu uma nova
É mais que o princípio da incerteza: acre- verso temos este efeito que chamamos de matemática, que sepultou de vez o
dito - percebe o “acredito”? - que nem “queda”, assim como em um redemoinho misticismo: Newton. Isaac Newton.
mesmo haja uma verdade! Prefiro encará- de água a serragem vai para o centro. Na verdade, antes disso, o primeiro
la como uma construção nossa, cuja bus- - Mas você ainda está nessa de “ele- que encontrei foi o Robert Hooke. Só para
ca nos rende bons momentos de conversa, mentos”? Pensei que já tinham esquecido “testá-lo”, perguntei:
juntamente com novos brinquedinhos, isto. Afinal, Aristóteles já está bem morto - E aí, incrível Hooke. Sabia que, a
como o nosso manipulador do conti- e enterrado! - Disse eu. partir de três elementos e sua dinâmica
nuum-quadridimensinal. Isto pode até - Vejo que és um homem culto, temos os movimentos dos planetas ao
parecer o que chamam de relativismo, de conhece Aristóteles. redor do Sol?
pragmatismo, ou outro “ismo”. Se não - Pois é, de onde eu venho sou cha- - “E aí”? “Incrível”? Sei que sou bom,
há como não termos um “ismo”, então mado de “o grande mestre pensador, co- mas não é para tanto... Ah, sobre sua
prefiro o “Dadaísmo”. nhecedor de todos os segredos do Uni- pergunta, vejo que conheces Descartes. En-
- Dada o quê? verso”. - Estufei o peito e aproveitei. tão, como deves ser da área, sabes que o
- É isso mesmo: uma recusa de “is- - Também sou amigo de Aristóteles e que faz com que os planetas girem ao redor
mos”. Se vão chamar isto também de um de Platão, mas sou mais amigo da Verda- do Sol é o resultado do seu movimento
“ismo”, então que o façam. Não vou per- de! Estes caras foram geniais, mas os tem- natural juntamente com a atração do Sol.
der uma única noite de sono por isto. pos são outros. Os meus elementos não - É isso aí! Como sabes? - Perguntei
Sinto-me até um pouco fulo em ter que são os dos nossos velhos amigos gregos. empolgado.
falar sobre tudo isto, porque quando Além do mais, minha física é válida para - E não sou eu o incrível Hooke? Mas
expressamos uma ideia criamos uma todo o Universo! já que sei que você é do meio, poderia me
identidade que pode e é usada contra nós, - Mas, assim como Aristóteles, você fazer um favor?
para colocar-nos sob algum estereótipo. não aceita que o vazio possa existir. - Mas é claro, será um prazer.
Mas, por falar em sono, vamos descansar, - Não. Caso assim o fosse, os objetos - Tem um cara, muito misantropo,
“Sancho Pança”. Precisaremos de energia se movimentariam para sempre, uma vez um tal de Newton. Conheces?
para conhecer alguns outros gigantes. que só uma influência externa pode parar - Se conheço? Estava indo mesmo na
* * * um movimento. casa dele! - Aproveitei.
Depois de uma longa noite de sono, - Mas é isto mesmo! - Comentei - Então pode, por favor, perguntar a
não que precisássemos esperar alguma espantado, ao reconhecer a 1a Lei de New- ele sobre um problema que tem me inco-
coisa, afinal podíamos ir a qualquer tem- ton! - E por isto mesmo é possível o vazio! modado nos últimos dias?
po assim que quiséssemos, mas porque o Não sabe você que ninguém está “empur- - Manda lá.
corpo pedia, descobri, como nunca, que rando” nosso planeta para que ele perma- - É o seguinte: que tipo de curva des-
pensar dá uma canseira... Quando voltás- neça em sua órbita? creve um objeto que está em uma órbita,
semos, leria mais história e filosofia. - Sei, mas neste caso, minha teoria em torno de um corpo, cuja atração varia
O próximo cara legal que conheci foi do vórtex dá conta da explicação. Além com o inverso do quadrado da distância
René Descartes. Ele tinha uma “fé” muito do mais, se assim não o fosse, deveria ha- entre eles?
grande na razão, chegando mesmo a dizer ver uma “atração a distância”, o que é - Mas essa é fácil! Quer dizer... Esta
que, se reconheço algo como verdade, en- claramente descabido. deve ser fácil para o grande Newton. -
tão certamente é verdadeiro. No início me - E se eu te mostrasse dados que con- Consertei a tempo.
pareceu uma tautologia, mas o Dr. trariassem suas teorias? - Agora eu pe- Pois então lá estava eu, e agora com
prontamente me esclareceu as ideias ao gava um! uma boa desculpa, na porta do Newton.

40 Sobre modelos, sistemas e ideias: de Thales a Newton Física na Escola, v. 11, n. 1, 2010
Bati: como você bem falou, minha razão não ou um artista. Bem, na verdade, quase
- Sim? se deixou abalar. Continuei firme com sempre: temos muitas pessoas por aí que
- Ne... Ne... New... Newton? - Gaguejei. meus amigos Pitágoras e Hermes Trisme- não são mais que um chimpanzé de calça
- Pois não? gisto, rumo à desvelação dos espíritos de jeans. Mas em geral é isso. Desculpe o clichê
- Primeiramente quero dar os meus atração responsáveis pela gênese de minha histórico, mas não deixa de ser verdade:
parabéns, quer dizer, agradecer por ter teoria física. Newton é fruto de sua época! E, como tal,
permitido que eu chegasse até aqui, opss... Eu fiquei atônito. O que eu estava ou- não é descabido que ele tenha colocado os
Ter permitido que seu endereço me trou- vindo? Era como se Mozart se sentasse pés na alquimia. Afinal, é justamente por
xesse até aqui, para... para... - Diabos, não ao piano e tocasse uma música do Little ter sido um grande perscrutador que ele o
dava uma dentro! Richard! Estava tudo errado! fez! Pois ali estava um conhecimento a ser
- Por favor, meu jovem, apresse-se. - Espera aí, Isaque! Transmutação? desvendado, fosse ele “científico” ou não.
Tenho muito o que fazer. Trismegisto? Espírito? Vamos deixar este * * *
- Tá legal, indo direto ao assunto. Um vinho de lado, não está te fazendo bem. Assim tínhamos concluído a viagem.
tal de Hooke solicitou-me que lhe fizesse Onde está o Físico que há em você? Chegando em casa, novamente em 2079,
uma pergunta. - Ora... Aqui mesmo! Como ia dizen- fui prontamente registrar minhas lem-
- Aquele chato, novamente. O que do, nos meus estudos alquímicos... branças.
houve agora para enviar alguém me im- - “Pó pará”... Não estou te reconhe- * * *
portunar? Será que acabou o seu nan- cendo. Só falta me dizer que caiu uma Fiquei alguns dias escrevendo feito
quim? Ou deu uma martelada no dedo e maçã na sua cabeça! um louco, e mostrei posteriormente ao
não consegue mais escrever? Deus permita - Maçã? Bem... Não que eu me lem- Dr. Enquanto ele lia, eu fazia (ou fingia
que sim! bre. Se bem que também não lembro onde que fazia) alguns exercícios. Ao terminar,
Já notando seu humor, fiz a pergunta estão os meus cálculos sobre a elipse... ele me disse:
rapidamente, a qual ele prontamente * * * - Criativo, Teobaldo. Realmente teria
retrucou, como se estivesse competindo Parafraseando a gurizada da me- sido uma grande viagem. Quem sabe um
em um show de perguntas e respostas: cânica quântica, era como se o chão ruísse dia você possa manipular o continuum-
- Uma elipse. sob meus pés. Então o grande cientista, quadridimensinal. Mas, para isto, volte à
- Como sabes? - Perguntei estupefato. apesar de grande, não era tão cientista realidade, em 2004, e continue seus exer-
- Ora, eu a calculei já faz algum tem- assim! Eu realmente estava precisando ter cícios de Física Geral!
po. uma conversa com o Dr., para tornar isso
Não querendo abusar, mas já abu- tudo um pouco mais palatável:
sando, perguntei se podia dar uma olhada - Dr., sei que não era para eu ter fa- Saiba mais
nos seus cálculos. Para minha surpresa, lado com ninguém sem sua presença, mas I. Fernández, D. Gil-Pérez, J. Carrascosa, A.
ele me convidou a entrar (pois até então não pude resistir a algumas curiosidades. Cachapuz y J. Praia, Enseñanza de las
eu estava na porta!), enquanto ia ao seu - Tudo bem, eu já esperava isso. De Ciencias 20
20, 477 (2002).
escritório procurar suas anotações. Esperei qualquer forma, é sua curiosidade que faz P. Feyerabend, Contra o Método (Francisco Al-
durante quase uma hora, quando fui ver de você um cientista. Só espero que você ves, Rio de Janeiro, 1977).
Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções
o que estava acontecendo. não tenha dito besteira.
Científicas (Perspectiva, São Paulo,
- Newton? Lembra de mim? Visita! - Eu também espero! Sabe... Uma das 1970).
- Ah, sim. Desculpe, estava fazendo coisas que mais me perturbou nesta I. Lakatos, in A Crítica e o Desenvolvimento
uns raciocínios. O que você queria mes- história toda foi ter conhecido Newton. do Conhecimento, organizado por I. La-
mo? Ah, sim. A elipse. Bom, eu não en- Não deve ser surpresa para você, Dr., mas katos e A. Musgrave (Cultrix e EDUSP,
contrei, mas depois eu calculo novamente. fiquei chocado com o lado místico dele. São Paulo, 1979), p. 109-243.
Quer tomar um vinho? Afinal, como podem coexistir, em uma R. de A. Martins, Boletim da Sociedade Bra-
sileira de História da Ciência 9 , 3
Eu estava perplexo. Eu? Tomando pessoa, pura genialidade científica com
(1990).
vinho na casa do Newton? Ah, se o Dr. não misticismo? Eu pensei que Newton fosse M.R. Matthews, Caderno Catarinense de En-
ficasse lá conversando com o Huygens! E, muito mais que isso. sino de Física 1212, 164 (1995).
para aproveitar que ele estava com um - Espera aí, rapaz. Ele é muito mais! M.A. Moreira, artigo em página pessoal
pouco de “uva” no sangue, perguntei: Como pode um traço de personalidade apa- (2003). Disponível em http://
- Como foi isso? Digo... Como você gar o outro? Não pode! Embora, infeliz- w w w. i f . u f r g s . b r / ~ m o r e i r a /
Pesquisa.pdf. Acesso em 20/2/2009.
conseguiu estruturar seu raciocínio? mente, tendamos a analisar as pessoas deste
M.A. Moreira, N.T. Massoni e F. Ostermann,
Aposto que foi a matemática aliada à razão. modo, isto não altera o fato de ambas as Revista Brasileira de Ensino de Física
- Arrisquei. idiossincrasias não serem mutuamente 29
29, 127 (2007).
- É isso mesmo. Sabe, sou fiel ao gran- excludentes. Ou você vai julgar a física de L.O.Q. Peduzzi, As Concepções Espontâneas,
de Deus, mas não gosto nem um pouco Einstein por ele não ter sido um bom a Resolução de Problemas e a História e
dos católicos. Sabe? Aqueles caras de cha- violinista? Vai julgar as ideias de Ruther- Filosofia da Ciência em Textos de Física
péu engraçado? Outro dia tive sérias ford por ele ter dito que toda ciência é física (UFSC, Florianópolis, 1998).
L.O.Q. Peduzzi, A; Zylbersztajn, e M.A. Mo-
discussões com alguns destes fanáticos, ou mera coleção de selos? Se bem que Ru- reira, Revista Brasileira de Ensino de
porque não aceitavam o fato de que é pos- therford não esteja de todo errado, mas... Física 14
14, 239 (1992).
sível a transmutação dos elementos. Co- Vai julgar as contribuições de Feynman à K. Popper, Conjecturas e Refutações (UnB, Bra-
mo se a alma dos elementos não pudesse ciência por ele ter sido fanfarrão e mulhe- sília, 1994).
ser purificada ou alterada, a ponto de rengo? Uma única pessoa que seja é sempre R.S. Westfall, A Vida de Isaac Newton (Nova
termos o ouro a partir do chumbo. Mas, muito mais que um cientista, um músico Fronteira, Rio de Janeiro, 1993).

Física na Escola, v. 11, n. 1, 2010 Sobre modelos, sistemas e ideias: de Thales a Newton 41

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