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U M P R O J E T O D E M E L I K O H A N I A N & J E A N - C H R I S T O P H E R O Y O U X

C O S M O G R A M S É U M A E X T E N S Ã O D E S E V E N M I N U T E S B E F O R E , U M A I N S T A L A Ç Ã O D E M E L I K O H A N I A N

SUMÀRIO

04 05 07 08 09
ANDRÉ GAUDREAULT CHARLES MUSSER BEATRIZ COLOMINA ROBERT WHITMAN MEDARD GABEL

JOHN TRESH 11
JEAN-LUC NANCY 12
DAVID ELBAZ 13
CECIL BALMOND 15
PATRICIA FALGUIÈRES 16

17 19 22 25
RICHARD DRAYTON GILLES CLÉMENT EDOUARDO VIVEIROS DE CASTRO PEKKA HIMANEN
26 27 29 31
ANNA HALPRIN SASKIA SASSEN PAUL GILROY & EDOUARD GLISSANT DAVID HELD
32 34 36 37
BRUNO LATOUR PETER SLOTERDIJK JANE POYNTER TACITA DEAN

INTRODUÇÃO

C osmograms é um ensaio em pelo menos três sentidos distintos. Primeiramente, é um


ensaio de interpretação de uma proposta cinematográfica inédita, Seven Minutes
Before, 2004, realizada pelo artista Melik Ohanian no âmbito da participação francesa na
A extensão infinita do mundo além dos limites da Terra é uma das especificidades essenciais
do momento histórico em que vivemos. Os termos da mundialização e da globalização, que
se difundiram desde a metade da década de 90, designam essa nova realidade de abertura
XXVI Bienal de Artes de São Paulo. No entanto, quase não se fala sobre o filme ao longo infinita do mundo. Mas também aí a conseqüência é, no mínimo, paradoxal. Porque quanto
dessas páginas. Não se trata, pois, de um catálogo mas de uma espécie de atlas que reúne mais se abre, mais o mundo se criouliza e se dispersa, mais sua unidade abstrata se desagrega
práticas, apresentações de obras de outros artistas, pensamentos e idéias passíveis de enquanto esfera autônoma unificada. Como se uma das conseqüências fundamentais da
situarem numa perspectiva mais ampla um filme de 17 minutos projetado simultaneamente reversão do tempo em espaço fosse a passagem de uma unidade presumida e fabricada pelo
em sete telas, de forma real, sem corte e sem montagem, sete trajetórias sincronizadas de um continuum da História à constatação não hierarquizada da pluralidade dos mundos. O mundo
mesmo percurso que culmina numa explosão em algum estúdio solto do Vercors. não pode mais ser concebido como uma natureza única e estabilizada sobre a qual
concepções e representações venham fazer valer seu direito. É muito mais o próprio mundo
Paradoxo: o título do filme insiste na idéia de um desenvolvimento temporal, mas o resultado
que, segundo a cultura à qual pertencemos, já é sempre um outro mundo. Quanto mais o
parece privilegiar a construção de um espaço. Se, de um modo ou de outro, toda forma de
espaço se estende como um horizonte ilimitado, mais a humanidade que o povoa se
gravação é uma combinação de espaço e de tempo, é a aparente inversão das prioridades, a
subdivide. Nomear o mundo hoje é, de imediato, se situar na escala do diverso no movimento
importância que se dá ao espaço em relação ao tempo – característica maior do cinema de
mesmo que constitui o esforço de globalização.
exposição – que se enfatiza aqui.
Portanto, é o próprio livro que, finalmente, é um objeto paradoxal; todos os seus elementos
Todo o propósito do livro é ampliar, explorar e expor uma ruptura na modernidade baseada
remetem ao Todo, todos os seus discursos, suas abordagens, suas práticas são outras tantas
nessa hipótese. Talvez estejamos em vias de compreender que o verdadeiro progresso não se
perspectivas para o dizer ou o desdizer; ele é também, ao mesmo tempo, a evidência de um
representa mais, necessariamente, sob a forma de uma escala graduada e vetorizada segundo
objeto heterogêneo, explodido, falando várias línguas simultaneamente. Nisso, ao menos, ele
a medida do tempo. A questão moderna por excelência – que história se deve contar? – se
pode ser lido como uma ontologia do espaço-mundo contemporâneo.
encontraria hoje abafada, recuada, invertida, para redescobrir, em todas as escalas, a
preocupação com o onde eu moro e como morar. A característica mais simples de um Cosmograms tenta, pois, traçar uma linha ligando uma obra de arte a um conjunto de idéias
cosmograma é ser uma forma que reúne: um conjunto, uma coleção, uma construção e de objetos que apresentam, por voltas insuspeitadas, muitos pontos comuns. É um espelho
ordenada. Um cosmograma funciona como aquilo que Tacita Dean diz sobre cronômetros nos que reflete num filme que lhe serve de suporte um conjunto de discursos suscetíveis de o
navios: permite saber onde se está. A ausência de cosmograma equivaleria a essa “doença do situarem num contexto mais amplo. O livro tende a reproduzir, a partir de uma matéria
tempo” que faz os navegadores se perderem nos oceanos. Tudo aqui nos fala, pois, de espaço: discursiva polifônica, o que é a experiência do filme. É a tentativa de fazer existir, não através
mas de qual espaço se trata? da escritura mas, sim, do ordenamento dos próprios textos, uma experiência não diretiva de
leitura, importada de um outro suporte. Nesse sentido, Cosmograms é um ensaio de tradução.
O arranjo simultâneo, e até a simples justaposição de acontecimentos ou de realidades
Essas três maneiras de ser um ensaio – um ensaio crítico de interpretação: de que nos fala
diferentes, revelou ser, muito cedo, uma particularidade própria do cinema. Instrumentos
essa obra?, um ensaio sobre o conceito de mundo, um ensaio de tradução de um filme em um
como o kinetoscope ou o mutoscope, a prática do que se denominou “os exibidores” são
livro – nos remetem, todas elas, à mesma idéia central de que nossas ações seriam, daqui por
marcas concretas disso, muito antes que a invenção dos diferentes procedimentos de
diante, menos guiadas por um sentido projetado da História do que por nossa
montagem imobilizasse, através da institucionalização das imagens em série, um sentido
responsabilidade em relação ao espaço. Para além da montagem, se trataria de inventar outras
único para os textos. Documentando certas formas ainda não instituídas da projeção no
formas de ligações, uma estética da coabitação onde cada um se tornaria responsável pelo
cinema dos primeiros tempos, interessando-se por alguns dispositivos, por alguns objetos que
meio ambiente que cria.
se situam entre diferentes gêneros, criou-se, ao longo do livro, um começo de genealogia que,
indo além de sua heterogeneidade histórica e formal, tenta reconstruir essa história Todos os textos reunidos aqui foram realizados com base em entrevistas revistas e corrigidas com os autores.
marginalizada e pouco levada em conta, tal como foi iniciada principalmente pelas
JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX - TRADUÇÃO DE IRACI D . POLETI
exposições mundiais da segunda metade do século XX. A insistência no mundo enquanto
objeto específico e a insistência na exposição que é seu corolário necessário – por diferença JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX VIVE EM PARIS . É CRÍTICO DE ARTE E CURADOR DE EXPOSIÇÃO . NO INÍCIO DA DÉCADA DE 90 ,
CRIOU A EXPRESSÃO “ CINEMA DE EXPOSIÇÃO ”; DESDE ENTÃO , NÃO DEIXOU DE SE INTERROGAR SOBRE O SIGNIFICADO E AS
e oposição à projeção – fizeram, de fato, das Exposições Mundiais, um lugar de invenção REPERCUSSÕES HISTÓRICAS DE TAL TRANSFORMAÇÃO DA FORMA CINEMATOGRÁFICA . É TAMBÉM DIRETOR DE FILMES OU
privilegiado para os dispositivos cinematográficos não-convencionais. DE DISPOSITIVOS FÍLMICOS DE CARÁTER DOCUMENTÁRIO .

PRODUCTION
COSMOGRAMS
A VERSÃO BRASILEIRA DE COSMOGRAMS TEM COORDENAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
A REALIZAÇÃO DE COSMOGRAMS FOI POSSÍVEL GRAÇAS AO APOIO ESPECIAL DE
N O B R A S I L D A E X O E X P E R I M E N T A L O R G ., S Ã O P A U L O
P.CHARPENEL - M &J G E N S O L L E N - JC.LEMAITRE - J &M S A L O M O N

AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS AOS AUTORES E A TERRELL LAMB - TERRE PARKER - JACQUES PEIGNÉ
CECILE ZOONENS - TELMA BALIELLO - BRIAN HOLMES - DOMINIQUE MARCHAIS - HAROLD CHARRE
KATE GLAZER - VANESSA BERGONZOLI - CAROLINE FERREIRA - KATE MULLIGAN - SHARON NOLAN
EMMA SPARY CLAUDE LEBLANC - ALEXANDRE LEMONIER - CAPACETE ENTRETENIMENTOS /
HELMUT BATTISTA & DENISE MILFONT - VERONIQUE FAYARD - GREGORY DOUEST-LASNE - LIGIA - EXO
CONCEPÇÃO GRÁFICA MELIK OHANIAN EXPERIMENTAL.ORG - SAO PAULO - JEAN MARC LAFORET JEAN PAUL REBAUD - NATHALIE VIOT -
I M P R E S S O E M S Ã O P A U L O , B R A S I L , M A R Ç O 2005 A REPRESENTAÇÃO FRANCESA NA XXVI BIENAL DE SÃO PAULO TEM O APOIO DE - DAP - MINISTÈRE
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AOS AUTORES E KRISTALE COMPANY © 2005 DE LA CULTURE - AND - AFAA - ASSOCIATION FRANÇAISE D’ACTION ARTISTIQUE.
ruído do trem rodando, do barulho das rodas, recriando as condições Penso que a diferença essencial entre a imersão e a identificação-
da época da viagem por estradas de ferro. projeção é que, no primeiro caso, o espectador perde suas
A NDRÉ G AUDREAULT referências. De uma certa maneira, pode-se pensar que o cinema
Observa-se também, no dispositivo de Ohanian (pelo menos tal como narrativo clássico permite também uma certa forma de imersão,
posso imaginá-lo), que a presença simultânea de sete telas torna porque há vários modos de perder suas referências. Na época do
ANDRÉ GAUDREAULT É PROFESSOR NO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA ARTE E DE ESTUDOS
CINEMATOGRÁFICOS DA UNIVERSIDADE DE MONTREAL . ESPECIALISTA SOBRE O CINEMA DOS caduco qualquer recurso à montagem alternada. O dispositivo, que panorama, estava-se no interior da cabina, da plataforma. Com o
PRIMEIROS TEMPOS . DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE RÉCIT CINÉMATOGRAPHIQUE - nos mostra de modo simultâneo sete histórias singulares, esvazia cinema narrativo clássico, pode-se dizer que, de certa maneira, a
1991 - COM F . JOST , PATHÉ , 1900 , E FRAGMENTS D ’ UNE FILMOGRAPHIE ANALYTIQUE DU
qualquer veleidade de fragmentação linear de tipo montagem imersão, que pode ser total (mas isso não é necessário), se deve ao
CINÉMA DES PREMIERS TEMPS - 1993 -
alternada. Sem dúvida, pelo fato de só disporem de uma única tela – fato de que a adesão do espectador aos mundos da ficção projetada
mais ainda, de uma tela de tamanho restrito -, é que os é muito forte. Pode até acontecer, em alguns casos, que se perca
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI “cinematografistas” (é assim que os primeiros diretores de filmes se momentaneamente a consciência do lugar exato em que se encontra
designavam a si próprios) desenvolveram certas técnicas, de fato. Toda a arquitetura das salas funciona nesse sentido, nem que
PARIS _ 01 DE AGOSTO DE 2004 especialmente a fragmentação do espaço e do tempo em vista de seja só pela disposição das cadeiras, o grau de escuridão prescrito, o
recompor um todo unificado. Pode-se presumir que, se tivesse sido silêncio que deve ser mantido.
possível dispor de telas simultâneas, não teria havido,

O dispositivo de Melik Ohanian parece conter, de modo alegórico, a aparentemente, necessidade de se recorrer de forma tão intensa à
montagem alternada.
Uma retomada da história das primeiras projeções de imagens
animadas permite compreender melhor tudo o que o cinema perdeu
tensão que se encontra na história do cinema, especialmente em seu
– ganhando talvez outra coisa, é claro – com a homogeneização das
início, entre atração e narração. O paradigma da atração, que é de
Aliás, no início do cinema, antes que os códigos da montagem práticas à qual levou a virada da década de 10. Antes de 1908, grosso
ordem “pontual”, consiste na afirmação do dispositivo
alternada estivessem completamente desenvolvidos e passassem a modo, os filmes não eram alugados, eram vendidos. Portanto, é na
cinematográfico como fator de artifício e do espetacular para deixar
dominar, houve diversas tentativas de expressão da simultaneidade oficina de cada um dos “exibidores” (como se dizia na época) que se
o público admirado e interpelar o olhar do espectador. Por outro lado,
temporal através do intérprete, por meio de “expedientes” da mesma exercia o único controle sobre a representação: na realidade, era o
o paradigma da narração, que é de ordem “vetorial”, dá bastante
ordem, diria eu, que aqueles que se encontram em Ohanian. Tanto “exibidor de imagens animadas” quem decidia sobre a maneira como
primazia à história contada. Com Ohanian, está-se em presença de
pela apresentação de ações simultâneas em cenários divididos, ele ia mostrar o filme. E os “fabricantes de imagens animadas”
sete imagens pouco “narrativizadas”, especialmente porque as
quanto também pela segmentação da tela em espaços fragmentados. perdiam, por sua vez, qualquer controle sobre a cadeia de exibição.
chamadas imagens são fruto de intervenções que se situam no plano
Tomemos como exemplo um filme norte-americano de 1907, College A institucionalização do cinema iria, na seqüência, possibilitar aos
do “profílmico” (em termos do “arranjo” do dispositivo de
Chums (Porter), em que há uma cena que mostra dois enamorados “fabricantes” que se tornassem “produtores”, que retomassem o
encenação) mais do que no plano do “filmográfico” (em relação às
conversando ao telefone. Um aparece à esquerda da tela, o outro à controle, o que faz, por exemplo, com que, quando apresenta um
intervenções sobre o enquadramento e a seqüência) - assim, por
direita e, entre os dois, vê-se a cidade que os separa. Tem-se, então, filme hoje numa sala, você o apresenta, em princípio, da mesma
exemplo, não há realmente montagem no interior de cada uma das
três fragmentos simultâneos que são representados numa única e maneira como é mostrado na sala vizinha. Em geral, existe apenas
tomadas e, a priori, o conteúdo do que aí se mostra é relativamente
mesma tela. Há coabitação, num mesmo espaço - o espaço “da tela” uma versão “autorizada” e é esta que você deve apresentar. Depois
simples, mais descritivo do que narrativo).
- de três espaços diferentes, espaços “da relação tempo-espaço da de 1908 – 1910, o que se vende não é uma película, não é uma cópia;
narrativa proposta pelo filme”. Outro exemplo: The Story the é muito mais um direito de projeção e o comprador de tal direito é
Por outro lado, há o aspecto de pura atração da explosão que vem
Biograph Told (Biograph, 1903). Um indivíduo encontra-se em seu obrigado a devolver, em seguida, a cópia alugada a quem a
pontuar o fluxo narrativo e que, por seu caráter homogêneo - porque
escritório, no trabalho, e está bolinando a secretária; o telefone toca, “emprestou” a ele. Aí está a diferença – uma diferença essencial –
haverá uma harmonização das sete telas pelo ruído e pelos efeitos
ele responde e a imagem da pessoa que chama, sua mulher, se entre a exibição cinematográfica de ontem e a exploração
espaciais da explosão, eu imagino -, unifica a narração das sete telas,
sobrepõe à primeira imagem. Há, portanto, superposição completa de cinematográfica de hoje. Na época da cinematografia-atração, é como
ao mesmo tempo em que a faz bifurcar. Está-se, pois, diante de uma
um espaço B (particularmente carregado, pois a parede do fundo é se houvesse duas indústrias paralelas que estavam lado a lado e que
tensão atração/narração. E, se desenvolvo longamente a metáfora
recoberta de papel florido) – o de sua mulher – sobre um espaço A – existiam em paralelo uma à outra: a dos fabricantes de imagens
que tomo emprestada de um dispositivo da arqueologia do cinema -
o do escritório onde se encontra o marido. O que não deixa de animadas e a dos exibidores de imagens animadas, que também
eu preferiria, na realidade, falar de arqueologia da imagem, porque,
provocar uma certa dificuldade de leitura para um espectador que representavam uma “indústria” – mais próxima do artesanato –, a da
justamente, é necessário evitar estudar os dispositivos ditos pré-
não pára de se surpreender por se achar, assim, inopinadamente, exploração das imagens. Em outros termos, na época da
cinematográficos como “pré”-cinematográficos, senão se nega seu
diante de uma imagem embaralhada. Trata-se, desse modo, de dois cinematografia-atração, eram exploradores de imagens que
valor próprio - penso imediatamente no panorama. O panorama, um
momentos simultâneos que são representados um sobre o outro (no mostravam os filmes, enquanto hoje são exploradores de salas que os
dispositivo que data de 1790, foi aperfeiçoado na Inglaterra por
ponto em que o dispositivo de Melik Ohanian prevê um corte de sete mostram. Naquela época, as imagens animadas eram, com
Robert Barker e teve uma popularidade bastante grande, em especial
espaços diferentes). A superposição provoca uma ilegibilidade de um freqüência, apresentadas em versões que poderiam ser classificadas
na década 1830-1840, principalmente com Daguerre (sob a forma do
limiar que só o cinema dos primeiros tempos (ou a “cinematografia- como “não autorizadas”! De fato, era o exibidor que decidia tudo
Diorama) que, como se sabe, é também um dos inventores da
atração”) podia se permitir. O mais cômico no filme da Biograph é sobre a composição de seu programa e sobre a maneira como seriam
fotografia. Geralmente, os panoramas do começo eram circulares: os
que, em seguida, o marido leva sua mulher para assistir a um apresentadas as imagens que o compunham. O exibidor tinha uma
“visitantes” eram colocados no centro do dispositivo, sobre uma
espetáculo de vaudeville. Na cena anterior (a da sobreposição das função verdadeiramente “editorial”. Podia mostrar três imagens
espécie de plataforma, fazendo com que tivessem, assim, a impressão
duas imagens), se havia visto que, no momento mesmo em que o Lumière, uma imagem Pathé, uma imagem Edison, na ordem por ele
de estar imersos “na” imagem. Trata-se um pouco da prefiguração da
marido tinha começado a bolinar a secretária, um empregado do decidida. Podia intervir na composição de uma imagem e, por
imersão do espectador obtida recentemente com algumas tecnologias
escritório se pusera a virar a manivela de um aparelho de imagens - exemplo, mudar a arrumação das cenas que a composição alinhava.
novas. Um dos primeiros reflexos dos “panoramistas” foi utilizar o
o biograph, precisamente – e que ele havia gravado toda cena que o Podia retirar uma cena, acrescentar uma outra tirada de outro
dispositivo para fazê-lo mostrar um evento único, um gênero de
casal terá o “prazer” de descobrir junto, pois um dos números do conjunto e fazer uma mistura dos gêneros. Era como ele queria. Além
punctum temporis, em certo sentido, um momento pontual da
espetáculo de vaudeville, naquela noite, consiste exatamente numa disso, era o exibidor quem decidia sobre o acompanhamento sonoro
história (na maioria das vezes, a História com H maiúsculo, aliás –
projeção cinematográfica... e musical das imagens, bem como sobre seu acompanhamento
representações de batalhas, de conquistas, de vitórias etc.).
Entretanto e de forma muito rápida, tendeu-se a não respeitar a verbal, por alguém bom de lábia, que fazia comentários em voz alta
Pode-se conceber o período que antecede a institucionalização do durante a projeção. Disso se pode concluir facilmente que não houve
“unitemporalidade” e a fazer figurarem aí momentos diversificados
cinema como uma espécie de laboratório. Procurou-se expressar a duas sessões no mundo que tenham sido semelhantes de uma sala
de uma mesma série de descrição de acontecimentos. Desse modo,
simultaneidade temporal de diferentes maneiras, tentando, às vezes, para outra. Naquela época, o espetáculo cinematográfico durava de
freqüentemente os panoramas integravam, num só quadro, uma
superar os limites próprios do dispositivo cinematográfico, um vinte a quarenta minutos, às vezes até uma hora, e era
variedade de segmentos temporais através de uma representação
dispositivo monocular que apresenta, portanto, um único espaço. necessariamente composto de dez, quinze ou trinta imagens,
unificada. Tal representação pertencia, então, tanto à esfera da
Para encenar essa eclosão do espaço homogêneo, a técnica que montadas segundo a ordem prevista pelo exibidor. É claro que, de
narração quanto à da atração.
prevaleceu foi a montagem alternada. Foi dessa forma, pois, que se tudo isso, nada era imposto pelos fabricantes de imagens. Portanto,
procurou expressar a simultaneidade dos diversos elementos de um entidades locais é que decidiam sobre o espetáculo. Como eu disse
No caso do dispositivo de Melik Ohanian, é um pouco como se esse
mesmo espaço-tempo da história proposta. Pode-se sentir autorizado, acima, o exibidor podia igualmente se permitir intervir no interior da
princípio fosse retomado, mas a partir de um corte no espaço. No
aliás, a falar de “relação espaço-tempo do desenvolvimento da própria imagem. Caso comprasse uma imagem de doze cenas – doze
espaço do lugar de representação e, ao mesmo tempo, no espaço de
história” no caso do dispositivo de Melik Ohanian, à medida que ele
cada uma das telas, enquanto o panorama homogeneizava a “quadros”, como se dizia na época – ele poderia muito bem inverter
apresenta um espaço global que é construído de modo a desenvolver a ordem de tais quadros ou, ainda, fazer uma miscelânea de duas
diversidade na representação “fabuladora” de um único momento.
uma “narratividade” mínima que, logo, vai culminar num momento versões do filme. Existe, aliás, ao menos um caso documentado de
Por exemplo, no caso de uma batalha qualquer, poderia haver, num
chave (um clímax) que refletirá em cada uma das sete “histórias” um exibidor que, aparentemente, gostou de oferecer aos seus
canto, um dos momentos iniciais da conquista pelos ingleses dessa
individuais mostradas nas sete telas. espectadores uma versão bastante original da Paixão, pois ela
ou daquela parte do território; num outro canto, um plano mais
próximo de um personagem representado no momento da reação que alternava sistematicamente os quadros rodados por Pathé e os
terá tido uma vez tal conquista plenamente realizada etc. Em casos Entretanto, a grande diferença em relação ao dispositivo que está rodados por Gaumont! Na época, a exibição das imagens animadas
desse tipo, há uma certa aposta, considerando-se a homogeneização sendo instalado no âmbito da exposição é que, justamente, as sete era um pouco como um albergue onde só tem o que cada um leva!
da representação visual. Penso que há um parentesco profundo – imagens em simultaneidade não se combinam segundo um princípio Desse modo, a Paixão do Cristo “fabricada” por Pathé por volta de
involuntário, imagino – entre essa forma de construção de momentos de causa e efeito. A heterogeneidade de cada uma é privilegiada. 1904 abrangia cerca de trinta quadros, que eram postos à venda
compósitos e o que entrevejo no projeto de Melik Ohanian. É como Estamos, aqui, mais próximos do dispositivo da câmera de controle, segundo a ordem cronológica da história narrada. Entretanto,
se, nas duas extremidades da cadeia da história do cinema, houvesse com sete câmeras colocadas de maneira aleatória em sete direções também se punha à venda um jogo de mais ou menos vinte imagens
essa recorrência da prática do panorama. distintas em torno de um eixo. É como se existisse um espaço e um outro, igualmente bom, de cerca de doze imagens! E mais, cada
homogêneo, construído a partir de um tipo de eclosão do ponto de uma dessas imagens era vendida separadamente...
Houve também o “panorama desfilante” (cf. a imagem que desfila em vista em sete movimentos de câmeras, as sete colocadas em ângulos
cada uma das telas de Ohanian). Em vários panoramistas, havia essa diferentes, e que vão desembocar no mesmo ponto. Isso se situa bem O termo “exibidor”, que gosto de utilizar, é o que se empregava na
vontade de “imobilizar” a imagem. Na seqüência, pode-se pensar nos na visão que temos hoje do que é o espaço eclodido, do que é uma época, principalmente em Méliès. Em 1907, em seu famoso texto para
famosos “Hale’s Tour” norte-americanos (início do século XX), salas temporalidade fragmentada. Corresponde à não-obrigação que temos o Annuaire de la photographie [Anuário da Fotografia] (para uma
de projeção nas quais o espectador se sentava no espaço de um de nos submeter a um único ponto de vista, às veleidades reedição bastante recente do referido texto, ver “Georges Méliès.
cenário que reproduzia um compartimento de trem. Projetavam-se aí contemporâneas de abrir perspectivas. Desse modo, o dispositivo põe Propos sur les vues animées”, Les dossiers de la cinémathèque, La
imagens panorâmicas que desfilavam como se o espectador estivesse em cena um espaço mais favorável à imersão do sujeito espectador, Cinémathèque québécoise, Montréal, 1982, n° 10, p. 7-16), ele
no trem. O dispositivo era concebido para reproduzir as sensações do que é “tomado” “no meio” de sete câmeras. escreveu: “Muitas vezes ouvi, nas salas de exibição, as reflexões mais

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disparatadas”; ou ainda: “Chego enfim à quarta categoria das uma lupa todas as exposições internacionais que se realizaram a
imagens cinematográficas. Esta foi denominada pelos exibidores partir de 1887, parece-me que se recolheria um grande número de
‘imagens para transformações’...” Utiliza-se pois, realmente, o termo amostras desse tipo de coisa. Se recorro a uma lembrança de
na época, um termo que exploro deliberadamente nos discursos que juventude, posso, por exemplo, citar o caso da exposição
faço sobre a cinematografia-atração a fim de evitar que se pense que internacional de Montréal, em 1967, e do pavilhão da Companhia
aqueles que mostravam imagens animadas no início do século XX Telefônica Bell que, com sua tela circular, antecipava as salas IMAX.
eram exploradores de salas, como já disse acima. Até mais ou menos As exposições internacionais são, realmente, o contexto ideal para
1906, havia um mínimo de salas dedicadas ao cinema (apenas uma
ou duas em algumas das maiores cidades do mundo ocidental). As
experiências espetaculares do gênero, pois exigem um financiamento
ad hoc imponente (com freqüência, são tecnologias pesadas demais
C HARLES M USSER
imagens eram apresentadas principalmente por exibidores para serem facilmente generalizadas e comercializadas). Um outro
ambulantes, em salas da municipalidade, em salões de festas, em exemplo, o “cinerama” de Grimoin-Sanson, previsto (digo “previsto” CHARLES MUSSER É PROFESSOR TITULAR DE ESTUDOS AMERICANOS , CINEMA E TEATRO NA
YALE UNIVERSITY . ESCREVEU EXTENSAMENTE SOBRE OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA ,
teatros, em barracas de feira etc. porque ele, afinal, não terá sido explorado nenhuma vez...) para a
INCLUINDO O LIVRO THE EMERGENCE OF CINEMA - 1990 -
Exposição Internacional de Paris, de 1900, e que consistia em um
No início, quando se ia ver imagens animadas, o que importava era dispositivo com projetores múltiplos, num cenário simulando um
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
ver imagens que se mexiam. Simplesmente, e o assunto tinha pouca balão. Os espectadores deveriam colocar-se no cesto do similar do
importância. Penso em Méliès que, por ocasião da primeira sessão de balão e dez aparelhos deveriam projetar imagens que cercariam o
cinematógrafo à qual assistira, havia ficado extasiado ao ver que as espectador (como no pavilhão de Bell, em 1967) e lhe dariam a NOVA YORK E PARIS _ 16 DE JULHO E 01 DE AGOSTO DE 2004
folhas mexiam (particularmente na imagem intitulada Le Repas de impressão de subir pelos ares. As telas formavam uma espécie de
bébé [Lumière, 1895]). Méliès e os outros espectadores da época
estavam habituados a não ver essas folhas mexerem, pois, no
rotunda completa e permitiam uma imersão total num espaço
panorâmico homogêneo. A história do cinema mostra uma série de E m Seven Minutes Before, o filme em telas múltiplas que Melik
Ohanian apresentou no pavilhão francês da Bienal de São Paulo, há
dispositivo cênico (teatral ou outro), eram desenhadas numa tela de tentativas para tornar a imersão sempre maior.
um único momento em que se juntam os sete temas do filme. De
fundo.
certa maneira, o que ocorre no filme é uma reorganização da forma
A idéia que percorre todas as pesquisas que fazemos sobre o cinema
A utilização que se faz hoje do termo “dispositivo” deve muito à pela qual o tempo se desdobra. Ao invés de cortes interligados, o
dos primeiros tempos é a de tentar mostrar em que pontos se tem, na
teoria psicanalítica, mas também ao estudo de Jean-Louis Baudry filme é projetado simultaneamente em sete partes, em telas distintas.
origem, dois sistemas em funcionamento, dois sistemas que não têm
sobre o dispositivo. Trata-se de uma noção que rapidamente chamou Assim, Ohanian oferece uma forma de organizar e representar o
o mesmo “princípio primeiro”, dois sistemas que são concorrentes
a atenção. No tempo da cinematografia-atração, a sala improvisada espaço-tempo muito diferente daquela que se vê em alguns cinemas
um do outro e que não levam, absolutamente, ao mesmo lugar. Isso
em que se projetavam imagens punha em evidência justamente os – até num filme de Quentin Tarantino – embora talvez partilhe alguns
pode ser constatado no simples plano da cronologia. Um primeiro
diversos elementos constitutivos do referido dispositivo. Ainda não dos mesmos impulsos.
período se esboça e vai até 1907 – 1908, o da cinematografia-atração.
havia salas especializadas e o dispositivo de projeção estava, assim, Nesse período, o cinema responde a imperativos muito variados que
O filme Napoleon (1927), de Abel Gance, poderia ser considerado um
exposto à vista dos espectadores durante a representação. O aparelho não são de ordem “puramente” cinematográfica. Certas
óbvio precursor, pois o diretor não se limitou a separar as telas: a
de projeção era colocado no centro da assembléia e constituía, tanto especificidades cinematográficas realmente estão em via de se
certa altura, passavam-se cenas de ações diferentes nas três telas –
quanto as próprias imagens, o objeto de atração. Olhavam-se a implantarem, particularmente com Méliès e seus efeitos especiais,
um tríptico de imagens sincronizadas.
imagem e o “bicho luminoso”, tão “atraente” quanto o que o referido mas o cinematógrafo é considerado um aparelho de reprodução. É um
aparelho apresentava. É praticamente a mesma coisa que vive o dispositivo do qual se serve primeiro e antes de tudo com a idéia de É freqüente que o espaço e o tempo surjam em primeiro e segundo
espectador hoje quando vai a uma sala IMAX (ou, pelo menos a reproduzir espetáculos que se fazem sobre “outras” cenas que não planos. O filme, ou obra de arte, pode priorizar um ou o outro, mas
algumas dentre elas), nas quais, uma vez acabada a projeção, aquela do cinema. Antes da institucionalização (um fenômeno que se o espectador pode desviar sua atenção e centrá-la naquilo que o
convida-se para sair pelo alto da sala a fim de se poder admirar a produz entre, digamos, 1908 e 1915), o aparelho cinematográfico era, cineasta pode parecer não enfatizar. Imagine as tomadas panorâmicas
“máquina de imagens”. portanto, antes de tudo, um aparelho de gravação. Na época, se de antigamente, que muitas vezes eram voltadas para o espetáculo do
existe arte em algum lugar, é diante da câmera, não na câmera. Pede- espaço. Muitas vezes, as alterações da iluminação tinham o objetivo
Por sua vez, a máquina de imagens dos irmãos Lumière era
se a um artista pintor para pintar cenários que serão colocados diante de sugerir o passar do tempo. Uma vez estabelecido o espetáculo do
constituída segundo o princípio do dispositivo da lanterna mágica,
da câmera; toma-se um artista de teatro e se pede a ele que espaço, o tour de force, a atração de uma impossível – mas crível –
que todo mundo conhecia na época. Para uma projeção de imagens
represente “artisticamente” diante da câmera etc. A arte do cinema mudança temporal passaria para primeiro plano.
animadas, utilizava-se então uma verdadeira lanterna mágica e não está (ainda) no cinema. Não há aspecto artístico no próprio
substituía-se o passador de imagens normal pelo Cinematógrafo. Nos cinema. O cinematógrafo serve primeiro e antes de tudo para Quando a expressão panorama foi empregada pela primeira vez no
dois casos (projeção de lanterna mágica e projeção de diferentes participantes de séries culturais em voga na época cinema, esse efeito de movimento através do espaço freqüentemente
cinematógrafo), observemos isso, são imagens fixas que passam no (fotografia, espetáculo cênico, espetáculos mágicos, lanterna mágica era obtido colocando-se a câmera num trem, ou num barco
“passador de imagens”. A particularidade desse passador de imagens etc.). São, pois, esses participantes de séries culturais já estabelecidas deslizando pela água. Ainda em 1896, a American Mutoscope
muito especial que é o cinematógrafo é o fato de chegar a substituir
que se apropriam do cinematógrafo para responder a imperativos Company instalou uma câmera num veículo sobre trilhos que
as imagens fixas umas pelas outras numa cadência bastante rápida que, de uma certa forma, não pertencem ao cinema. Normalmente, circulava pela cidade. Essa penetração de espaço, a sensação de estar
para que o espectador tenha a ilusão de que as imagens são animadas esses participantes são fiéis à sua própria série cultural. Com o submerso, baseava-se num desdobrar da temporalidade. Muitas vezes
(mas, nós sabemos bem disso, essas imagens não são
cinematógrafo, Lumière faz fotografia animada, Méliès faz sketches eram chamados “passeios fantasmas”.
verdadeiramente animadas!). Por outro lado, como antecipou uma de
mágicos filmados etc. No período seguinte (1907-1915), vê-se emergir
minhas colaboradoras (Karine Martinez), a expressão “imagens uma indústria cinematográfica que tende a se separar pouco a pouco À medida que perdia força essa sensação inicial de passeios
animadas” é, provavelmente, percebida no começo como um fantasmas, surgiram esforços crescentes no sentido de criar
dessas outras séries culturais que, num primeiro momento,
oximoro. Porque uma imagem, no início (em todo caso, antes da documentários narrados, nos quais o espectador fosse um passageiro
acolheram o cinematógrafo. Desenvolve-se, então, um discurso de
invenção do Kinetograph Edison e do Cinematógrafo Lumière), já é autonomia do cinema, a partir, principalmente, da tribuna dos jornais em viagem. Havia a idéia de que o espectador, sentado na sala de
sempre da ordem do fixo. corporativos (Moving Picture World, Ciné-Journal etc.). espetáculos, viajava pelo espaço e pelo tempo – sua cadeira se
tornava o assento num trem ou o banco de um barco.
Uma vez passado o efeito de novelty, uma vez que o dispositivo Alguns cinematografistas do início recusaram-se a seguir o
torna-se familiar, o interesse do espectador se dirige para o que é A própria idéia ou definição de “panorama” mudou muito cedo.
movimento. É o caso de Méliès, o que, aliás, explica seu fracasso a
mostrado na tela, para o conteúdo da imagem. É mais ou menos Aquilo que agora chamamos “tomada panorâmica” foi muito difícil
partir de 1908. Ele quis continuar a fazer seus filmes como os fazia
nessa época (entre 1903 e 1906), que se começa a retirar o aparelho antes, numa via que estava prestes a se tornar uma alternativa. Mas de conseguir. Implica um movimento rotativo da câmera,
de base da vista do espectador, colocando-o numa cabina situada no normalmente apoiada num tripé. O primeiro filme de Edison em que
o cinema não se faz sem dinheiro... E qualquer via alternativa que
fundo da sala. Esconde-se, pois, o “bicho” atrás de uma parede e ele isso foi feito foi Return of the Life Boat (1897). Nesse filme de uma
não seguisse a música do tempo corria o risco de perder espectadores
é enjaulado. Além disso, começa-se, com o mesmo movimento, a e, portanto, de encontrar alguns problemas financeiros. No início da única tomada, um bote salva-vidas chega a terra e, quando está para
dispor as cadeiras em semi-círculo, de forma a fazer os olhares década de 10, havia menos oportunidades para as formas sair do enquadramento da câmera, o cinegrafista retoma a cena para
convergirem para a tela. Procede-se, então, a uma espécie de mantê-la enquadrada. Definitivamente, o resultado chama a atenção
alternativas.
organização do olhar – ele é dirigido, é “domado”, graças à para o espaço fora do enquadramento, dando ênfase ao espaço fora
disposição das cadeiras e à sua fixação (sua ancoragem no solo). No Nos jornais especialmente destinados aos participantes da então da tela, mas também centra a atenção do espectador na natureza
início, como as cadeiras não eram fixadas ao piso, a disposição dos nascente indústria do cinema, que foram publicados a partir de 1907, incontrolável da ação que se passa, do tempo.
espectadores podia ser aleatória, e havia uma participação efetiva do encontram-se textos sobre o que deve ser e o que não deve ser o
público. Estava-se mais na ordem da celebração, da partilha, do que cinema, assinados por diferentes participantes culturais. Alguns deles Em nada surpreende que os fabricantes de equipamento tenham
na da experiência isolada que o cinema institucional iria propiciar declararam guerra às práticas alternativas. Depois de 1907-1908, o aperfeiçoado rapidamente a tecnologia necessária para produzir
mais tarde. cinema começa a ser visto como uma prática cultural autônoma. panorâmicas mais suaves; e, por volta de 1899 ou 1900, as empresas
Procura-se, então, dar autonomia ao cinema e a legitimá-lo. Cada vez cinematográficas já produziam extensas tomadas panorâmicas da
O dispositivo cinematográfico conheceu, evidentemente, algumas
mais novos apostadores investem no mundo da cinematografia, livres trágica inundação de Galveston, assim como longas panorâmicas, em
tentativas visando à sua mutação. Tomemos, a título de exemplo, o
de qualquer vínculo com as séries culturais concorrentes. Foi isso, câmera lenta, das cataratas de Niagara ou paisagens de cidades
procedimento do tríptico segundo Abel Gance (a famosa “polivisão”),
provavelmente, que fez a fortuna de Pathé, que foi uma das importantes. A técnica da panorâmica – na qual a câmera se move,
experimentado por seu Napoléon (1927). Trata-se aqui muito mais de
principais forças a levar o cinema para a via industrial e que, ao lenta e continuamente, sobre um tripé – era importante porque
um desses casos de espécie, relativamente visionários (este
contrário de Edison, Lumière e Méliès por exemplo, não tinha aquele movimento, suave e aparentemente frágil, sugere uma
“anuncia”, em parte, o cinemascópio), que não têm,
compromissos com alguma série cultural concorrente do cinema. suspensão do tempo, como se pode ver nos filmes Circular Panorama
necessariamente, descendência direta. No caso do dispositivo
Para ele, o cinema devia, primeiro e antes de tudo, ter um futuro of the American Falls (Edison, 1900) e Circular Panorama of Atlantic
imaginado por Gance, o que é notável é que ele tenha planejado
comercial. Para Charles Pathé, o cinema era um comércio que devia City, N.J. (Edison, 1900). A atenção do espectador deixou de se fixar
ultrapassar os limites do quadro não se limitando apenas à ampliação
encontrar seu nicho, criar seu próprio público e ocupar seus próprios nas paradas e re-inícios que ressaltavam uma passagem urgente, e
da visão. De fato, não só as três telas projetam, à maneira do
segmentos de mercado... cautelosa, do tempo. O espectador podia transcender o tempo. É
cinemascópio, uma só imagem, como também há, por momentos,
interessante notar que alguns desses filmes, particularmente Pan-
montagem entre as imagens da tela central e aquelas mostradas pelas
American Exposition by Night (Edison, 1901), são contínuos,
telas laterais. As telas se respondem, assim, uma à outra, e permitem
“panoramas” sem descontinuidade, que começam a ser rodados à luz
a “expressão” de uma variedade de pontos de vista. A história do
BASEADO EM ENTREVISTA COM JC ROYOUX - TEXTO REVISTO PELO AUTOR , EM COLABORAÇÃO COM do dia e, quando terminam (num tempo de menos de um minuto de
cinema está cheia de tentativas do gênero. Caso se examinasse com PIERRE CHEMARTIN .

05
projeção), já é noite escura, com as luzes elétricas da exposição surgem. As preocupações de Griffith são semelhantes, ainda que que visitava, John C. Rice podia ser visto beijando May Irwin em uma
proporcionando o espetáculo visual. Em geral, no entanto, essas articuladas de modo muito distinto. Era o cineasta (Griffith) que, sala e beijando Ada Lewis (que fazia o papel de Lydia Languish) em
tomadas panorâmicas com a câmera num tripé abordavam a enquanto narrador fictício, mudava rapidamente de um espaço para outra. Via-se, portanto, John C. Rice representando num espaço e
temporalidade de uma maneira diferente: poderíamos dizer que o outro. Ele foi o máximo expoente da edição paralela. Muitas vezes, John C. Rice fazendo algo semelhante – mas sem qualquer relação –
espetáculo do espaço era muito mais importante que o do tempo. Na isso significava o movimento entre espaços numa temporalidade em outro. Enquanto forma de diversão teatral, uma das coisas que o
realidade, o esforço para integrar tais cenas numa narrativa contínua condensada e intensa. O resgate do último minuto salienta o tempo, cinema conseguia fazer era enfatizar o espaço: o desempenho do
criava, muitas vezes, uma separação significativa. The Execution of mas também o espaço. Essa pequena porção de espaço é coberta pelo mesmo ator ocorrendo simultaneamente em dois espaços distintos.
Czologosz (Edison, 1901) e The Country Doctor (Biograph, 1909), por pequeno tempo que resta. Mas nem todos os seus filmes usam o No entanto, os aspectos “simultâneos” ou temporais parecem tão
exemplo, começam com longas, extensas panorâmicas; só após as espaço e o tempo dessa maneira. Em Intolerance (1916), Griffith ia e importantes quanto os espaciais. Até então, isso nunca fora possível.
panorâmicas é que a narrativa (e o fator tempo) surgem em cena. vinha entre períodos de tempo absolutamente diferentes. Embora a
separação do tempo fosse dramática, ainda havia uma evolução firme Talvez valesse a pena deixar de lado como o tempo e o espaço se
Quando essas panorâmicas longas e suaves se tornaram populares, da narrativa em cada um dos fios do enredo. No final, essa separação entrelaçavam no início do cinema e discutir, ao invés disso, os
ocorreram outras tentativas semelhantes de submergir o espectador constitui um filme, mas não uma narrativa. Consiste em várias métodos de exibição daquela época, que podem repercutir na
no espaço. Em “Ballon Cinéorama”, apresentado na Exposição de narrativas que sugerem uma narrativa maior. Existe uma progressão, abordagem de Ohanian. Bem no começo da exibição cinematográfica,
Paris de 1900, o auditório era submerso num mundo com uma visão mas é mais emocional e conceitual do que narrativo. A narrativa dos ocorreu uma situação em que imagens múltiplas eram mostradas
de 360 graus. Jacques Deslandes e Jacques Richard citam o fato numa dias de hoje é mais esperançosa; sempre termina com a alegre simultaneamente, com o kinetoscope1 e, depois, o mutoscope2. Eram
passagem de sua Histoire comparée du cinéma. No início do cinema, sugestão de que a história sempre caminha rumo à felicidade geral. máquinas em que se observavam as imagens por orifícios (peephole
pelo menos nos tempos de Lumière, colocava-se o rolo de filme e ele Esses períodos de tempo distintos são, naturalmente, vinculados a machines) enquanto rodava a bobina do filme. Em alguns lugares
rodava até o final. Era muito linear e forte, em sua temporalidade, espaços distintos – e a geografias distintas. O que quero sugerir é que havia várias dessas máquinas e os usuários viam todas elas,
mas também valorizava os espaços em que a ação decorria. Basta ver poderíamos comparar Ohanian e Griffith vendo-os completamente passando de uma à seguinte. Em 1894-1895, esses kinetoscopes
os títulos: Employees Leaving the Factory (1895) ou The Train at La diferentes, mas eles têm muito em comum no impulso de mostrar mostravam, em geral, filmes de dançarinos de várias regiões do
Ciotat (1895). Mesmo quando não era mencionado nos títulos, o espaços distintos, telas distintas, ações distintas. mundo. Embora todos pudessem ter sido filmados nos estúdios Black
tempo ocupava um lugar central no filme. Com o Vitascope de Edison Maria, de Edison, podiam ser vistos dançarinos turcos, ingleses,
– que foi a primeira experiência bem-sucedida de projeção de Também podemos analisar o período anterior a Griffith, quando as índios norte-americanos, um dançarino mexicano que lançava facas
imagens filmadas nos Estados Unidos – os filmes passaram a ser relações entre espaço e tempo se davam de modo muito diferente. etc. De certa forma, os dançarinos representavam as diferentes
exibidos num enorme rolo e as pessoas viam as mesmas imagens até Houve esforços no sentido de conectar espaços e, dessa forma, culturas do mundo, diferentes espaços geográficos. É evidente que se
oito vezes. O filme tinha que passar muitas vezes seguidas porque narrativizá-los, mas não de uma maneira rapidamente identificável. podem perceber paralelos potenciais entre os primeiros kinetoscopes
chegava a levar três minutos para se mudar uma bobina – 15 Um exemplo: por ocasião do lançamento do iate Meteor do príncipe e as sete telas usadas por Ohanian.
segundos de projeção para três minutos de escuridão era algo que Guilherme, da Alemanha, os cinegrafistas de Edison o filmaram em
O passo para o cinema, que somente exigia um projetor, foi um passo
não funcionava. Esse é um dos motivos pelos quais em Nova York e duas tomadas diferentes, no estaleiro. Havia, portanto, dois filmes
na direção de uma maneira mais eficiente de exibir filmes.
Boston passaram a usar dois projetores. Enquanto repassavam o filme sobre o lançamento do Meteor ao mar: Christening and Launching
Conseqüentemente, o cinema afastou-se da idéia de exibir imagens
já exibido, iam mudando a bobina no outro projetor. Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor” e Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor”
múltiplas simultaneamente, embora não da mesma pessoa. Um
Entering the Water (ambos produzidos em 25 de fevereiro de 1902).
Os temas apresentados no Vitascope de Edison variavam. Podia ser exibidor só precisava de um ou dois projetores, o que tornava a
Edison vendeu as duas versões em separado. Os exibidores podiam
uma dançarina, como Annabelle Whitford, que fez Serpentine Dance exibição do filme muito mais barata.
mostrar o “Meteor” sendo lançado ao mar de um ângulo e, depois, de
e Butterfly Dance. Se a projeção fosse de boa qualidade, quase outro. De certa forma, isso é muito normal para nós, nos dias de hoje,
Outra coisa que merece ser abordada é a maneira pela qual a exibição
parecia que ela dançava continuamente, como se fosse um filme de porque vemos pela televisão um jogador chutar em gol e, em seguida,
em telas múltiplas de Ohanian retoma a idéia do processo de exibição
uma única tomada e o roteiro unido e linear. Nem dava para notar em câmera lenta, o mesmo jogador chutar em gol de um ângulo
como parte central do processo de criação. No início do cinema, os
quando o filme terminava ou começava; podia ser repassado diferente. Inicialmente, relacionavam-se duas tomadas no espaço
exibidores compravam filmes de diferentes produtoras e também
continuamente. O tempo era infinito, mas com sua repetição quando, em geral, as tomadas não se relacionavam no espaço. Essa
utilizavam a lanterna mágica. Assim, cada exibidor tinha sua
potencialmente interminável, também parecia suspenso. O espaço, relação construiu o espaço de uma maneira nova para os
programação específica; embora, em 1898, praticamente todos os
sim, era potencialmente estável e supremo. Entretanto, voltando à espectadores. Sabotou a idéia de uma progressão da narrativa, mas
exibidores mostrassem filmes sobre a guerra hispano-americana,
questão do primeiro e segundo planos e de onde o espectador centra também sua temporalidade, de certa forma confusa. Provavelmente,
todos os programas eram diferentes. O exibidor reivindicava uma
sua atenção, percebe-se que nesses primeiros filmes de Edison o as câmeras não começavam a gravação simultaneamente, ou não
certa autoria. A programação e a edição eram subordinadas à
espaço é pouco desenvolvido. Quase esquemático. Annabelle dança filmavam de forma contínua. O mais provável é que parassem, para
empresa de exibição. Nos primeiros anos do século XX, o que
contra um fundo preto. Além dela, dá para ver, no máximo, o continuar de novo, e por isso a relação entre o filme A e o filme B
aconteceu foi que a responsabilidade pela edição passou rapidamente
assoalho e um corrimão, de um dos lados. Outros filmes sugerem o constituía um verdadeiro desafio para um espectador que realmente
das mãos do exibidor para o controle do produtor. As unidades de
espaço de uma barbearia ou de uma oficina de ferreiro. A partir do quisesse explorar as relações espaço-tempo. Para eles, seria quase
programação tornaram-se cada vez maiores e o papel do exibidor
momento em que conseguiram uma câmera portátil, os cinegrafistas impossível começar e terminar ao mesmo tempo. Também era
cada vez menos criativo e mais o de dono de uma casa de
de Edison passaram a filmar cenas de rua e outros locais. Aqui, o improvável que o filme fosse rodado numa única tomada contínua. A
espetáculos. De início, o exibidor era o autor.
espaço ficou muito mais demarcado, mas persiste a interrogação de filmagem poderia começar e, quando ficasse evidente que o barco
até que ponto essa especificidade do tempo pode ter dado impulso a não seria lançado à água imediatamente, seria suspensa para ser Naquela época, os filmes eram feitos de seqüências curtas e era
uma temporalidade mais definida, mais desenvolvida e linear. retomada mais tarde. Ao contrário do espectador, que acompanha o possível organizá-los por serem curtos. Eram elaborados em blocos e
evento desde a filmagem do ponto A, prosseguindo continuamente esses blocos podiam ganhar a forma de frases. Havia uma liberdade
Esses primeiros filmes assemelhavam-se, muitas vezes, a quadros em
até o ponto C; e, no segundo filme, começando no ponto A1 e muito maior para os organizar devido ao formato pré-realizado. Na
movimento. É evidente que o principal motivo para as pessoas irem
prosseguindo até C1. Cada filme passava por etapas – começo- época, o cinema era uma extensão da lanterna mágica. Nos
ao cinema era a animação, o movimento, e, conseqüentemente, o
parada-retomada (tipicamente, por meio de cortes bruscos) – e, por espetáculos de lanterna mágica, ocorria uma tensão criativa entre
decorrer do tempo, ainda que este estivesse centrado no micro-nível
fim, terminava em momentos distintos. Poderia parecer que esses mostrar paisagens variadas – que é o que se fazia inicialmente – e
de observar um movimento real, como o ferreiro malhando
filmes antecipavam o tempo e, no entanto, parte da excitação era programas mais longos.
repetidamente a bigorna, tal como o faz na vida real.Mesmo antes do
mostrar um evento de duas diferentes perspectivas, de duas posições
cinema, sempre houve um interesse em achar formas de fazer as A empresa de Edison, que foi a pioneira do cinema nos Estados
geograficamente distintas. Dá para imaginar um artista querendo
imagens ganharem movimento. O cinema apenas padronizou a Unidos – e talvez no mundo –, tinha interesse em produzir
mostrar os dois filmes simultaneamente, um ao lado do outro – numa
maneira pela qual o movimento ocorre na tela, a continuidade por equipamentos. Edison vendia esses equipamentos e também vendia
espécie de díptico.
meio de fotogramas sucessivos, aquilo que chamamos a “moderna filmes, avulso, para exibição. O comprador podia exibir os filmes
imagem em movimento”. Mas havia outras maneiras de dar Há uma outra maneira pela qual é possível pensar como o cinema como desejasse. Não era incomum que exibidores cortassem pedaços
movimento às imagens e as pessoas o viam na tela. Isso também cria conjunções espaciais e temporais. O cinema foi absolutamente de filme de que não tivessem gostado. Concretamente, até a década
implicava fazer o tempo da tela mais análogo à nossa experiência de radical, no sentido de que tornou possível que coisas relacionadas de 1960, quando a censura de fato acabou nos Estados Unidos, cada
tempo no mundo real – para torná-lo mais convincente e ocorressem em espaços não relacionados. Imaginemos o filme mais Estado censurava os filmes à sua maneira. O sonho de uma exibição
intercomunicável. popular de Edison, The May Irwin Kiss (1986), no qual Irwin beija padronizada, em que tudo fosse idêntico e simultâneo em todo o
John C. Rice. Ele se inspira na penúltima cena de uma comédia país, só chegou com a televisão.
Se existia uma gangorra – ou talvez se pudesse dizer uma tensão
musical, The Widow Jones (1895), na qual o beijo sela o noivado de
criativa – entre o espaço e o tempo, também havia outra espécie de Em 1897, quando apareceu o primeiro Vitascope, havia cerca de 60
Jones (Irwin) e Billy Bikes (Rice). John C. Rice, como Bikes, ganha a
dialética entre os vários tipos de atrações isoladas e o decorrer da projetores nos Estados Unidos. Provavelmente eram usados de formas
viúva, uma herdeira, e sua fortuna. Esse filme apareceu primeiro
narrativa. Mesmo antes do cinema, já havia “cinemas de atração”, diferentes. Alguns deles tinham obturadores, enquanto outros, não;
num jornal, a análise cronológico-fotográfica de um beijo. Algumas
momentos de espetáculo sem narrativa, de surpresa e assombro, alguns eram rolos contínuos, outros não. Às vezes exibiam um filme
semanas depois, foi projetado na tela no Koster and Bial’s Music Hall,
projetados numa tela ou representados num palco; há, atualmente, pelo sistema dos rolos de bobina contínuos. Naquela semana, em transição, de um espetáculo de vaudeville para outro, e às vezes
uma espécie de cinema que os recria. O cinema propriamente dito era os exibiam em conjunto. Lyman Howe, que começou a exibir filmes
portanto, o beijo podia ser visto repetidamente no Koster and Bial’s
novo, espantoso, mas com uma noção mais ampla da prática da tela, em dezembro de 1896, se interessava, inicialmente, em criar
Music Hall e, simultaneamente, em outra sala, em outro espaço, John
ou de surpresa teatral. Paralelamente, aconteciam saraus de leitura, seqüências de narração. No final de 1896, ele tinha cinco filmes
C. Rice e May Irwin se beijavam, mas ao vivo. Na semana seguinte
de noite, sobre viagens, nos quais as pessoas se moviam no espaço e diferentes de um incêndio, incluindo os bombeiros saindo do quartel,
estreou em Boston o segundo Vitascope e o grande sucesso voltou a
no tempo. Havia também longas narrativas, como as fotonovelas de a corrida para chegar ao incêndio, a retirada de cavalos que se
ser The May Irwin Kiss. Dois artistas, absolutamente identificáveis,
Alexander Black. encontravam no prédio em fogo e o salvamento. Com esses cinco
beijavam-se, num close up, ao mesmo tempo e em diferentes lugares
do país. filmes, ele contava a história do incêndio. Outros exibidores
É tentador ver o filme em telas múltiplas de Melik Ohanian como
mostravam esses mesmos filmes em formatos variados,
radicalmente oposto ao cinema comercial e às figuras que Griffith Nesse meio tempo, The May Irwin Kiss tornou Rice muito famoso e descaracterizando a narrativa e enfatizando um espetáculo de
considerava centrais para sua formação. No entanto, Ohanian tem ele começou, imediatamente, a ensaiar o papel de Capitão Absolute, acontecimentos.
mais em comum com Griffith do que se pode pensar. Ambos se na peça The Rivals, do século XVIII, de Richard Sheridan. Ocorreram,
interessam em mostrar espaços múltiplos que se desdobram então, coisas muito engraçadas que não vou detalhar, mas, em
simultaneamente. Com Ohanian, o espectador tem a liberdade de BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
resumo, o Capitão Abolute acaba conquistando a mão de Lydia
olhar para uma ou para outra tela – ou para várias ao mesmo tempo. Languish, que é uma jovem herdeira. Quando a companhia de teatro 1 N.T.: Palavra de origem grega: kinetos (movimento) e skopos (observar, ou alvo).
Tem a liberdade de explorar os diferentes enredos de imagens que fez uma tournée pela Costa Leste dos Estados Unidos, em cada cidade

06
posteriormente, se tornou um lugar-comum muito útil para quem e um computador. O computador era um Ramac, uma nova versão da
trabalha em publicidade – a capacidade que temos de absorver mais IBM que respondia a perguntas sobre a vida nos Estados Unidos.
imagens do que pensamos ser possível. Charles e Ray Eames queriam Havia um universo de 3.000 perguntas possíveis – tais como
que o espectador sentisse que ainda faltava alguma coisa. Essa era “Quantos carros existem nos Estados Unidos?” – que as pessoas
uma das facetas muito importantes de sua maneira de compreender podiam escolher por meio de cartões magnéticos. Havia, portanto,
comunicação. Quando se chegava ao ponto em que uma pessoa três arquiteturas que, na época, nada tinham de tradicional. A
estava submersa em mais informações do que podia absorver, uma entrada para o local do domo era uma experiência completamente

B EATRIZ C OLOMINA parte de seu cérebro começava a fazer conexões. Havia mais imagens
e mais telas do que se podia ver num dado momento, pois as telas
diferente daquela de entrar num prédio público tradicional; o filme
em telas múltiplas também era uma experiência original de espaço; e
não só eram imensas, como estavam suspensas de uma cúpula o computador, um novo tipo de experiência espacial. A
BEATRIZ COLOMINA É PROFESSORA TITULAR DE ARQUITETURA NA PRINCETON UNIVERSITY . geodésica muito alta, projetada por Buckminster Fuller. Reduzido a multiarquitetura, e uma colagem de novas concepções de espaço
ELA É AUTORA DO LIVRO PRIVACY AND PUBLICITY : MODERN ARCHITECTURE AS MASS
MEDIA - 1994 - E A EDITORA DE LIVROS COMO SEXUALITY AND SPACE - 1992 - , E COLD
uma figura diminuta, era quase impossível ao espectador ver todas as coexistiam, assim, no mesmo espaço físico. É muito significativo o
WAR HOTHOUSES : INVENTING POSTWAR CULTURE FROM COCKPIT TO PLAYBOY - 2004 - telas de uma vez, pois o ângulo de visão não o permitia, o que fato de que os Eames não eram apenas cineastas, mas também
também foi proposital. arquitetos que davam um depoimento que passava despercebido para
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO a maioria dos arquitetos daquela época.
Em relação ao projeto Cosmogram, outro fator muito importante é o
Sputnik. A intenção dos russos, com o intercâmbio das exposições, Naquela época, a maioria dos intelectuais norte-americanos
NOVA YORK _ 18 DE JULHO DE 2004
era mostrar aos norte-americanos seus progressos em ciência e considerava os computadores coisas assustadoras. Mas Charles e Ray
tecnologia. Na verdade, os Estados Unidos deveriam ter levado seus Eames os adotaram. Acabaram trabalhando para a IBM,

C harles e Ray Eames encontraram-se envolvidos no planejamento foguetes para mostrar aos russos, mas recearam fazê-lo porque
avaliaram que estavam perdendo a guerra espacial, uma vez que o
disseminando a mensagem de que os computadores eram excelentes
e que arquitetos e projetistas deveriam utilizá-los em seu trabalho.
de uma grande exposição norte-americana em Moscou, em 1959.
Sputnik estava em órbita e os norte-americanos haviam tido várias Não deixa de ser significativo que o filme para telas múltiplas que os
Pretendia-se que esta exposição fosse a contrapartida de uma outra
experiências catastróficas. O surpreendente, entretanto – e não sei se Eames fizeram para o pavilhão da IBM na Feira Mundial de Nova
que os russos organizariam, no mesmo ano, em Nova York. A
isto foi consciente –, é que a forma pela qual o filme foi estruturado York, em 1964, chamava-se I THINK [EU PENSO] e seu objetivo era
primeira coisa que perceberam foi que, mesmo na ampla área que
tem tudo a ver com a idéia do Sputnik. O filme é como um olho, no o de convencer as pessoas de que os computadores pensavam, da
lhes fora reservada para a exposição, não iriam dispor de espaço
céu, que nos observa. Enquanto os norte-americanos se sentiam mesma forma que o cérebro de uma pessoa organiza pedaços e
suficiente. O filme, portanto, foi concebido, desde o início, como uma
apavorados com a idéia de um olho que os observava, o filme segmentos de uma informação.
forma de ampliar o espaço destinado à exposição.Primeiro passo:
reproduz o que fazia o Sputnik, pois atua como um mecanismo de
dois arquitetos concebendo um filme como meio de ganhar mais Os Eames queriam envolver todos os sentidos, e não apenas o da
vigilância que, progressivamente, nos observa com uma lente zoom.
espaço para aquilo que pretendiam comunicar. visão. Em 1952, num evento de multimídia que apresentaram na
O espectador começa por ver as constelações no céu, depois vistas Universidade da Geórgia, na cidade de Atenas, sentiam-se cheiros
Foi então que surgiu a idéia de um filme projetado em telas múltiplas,
aéreas, depois está à porta das casas e, em seguida, dentro das casas, durante a projeção de um filme. As imagens mostravam alguém
uma noção que ainda não tinham desenvolvido mas que exerceu
vendo as pessoas tomarem o café e se beijando: uma cena íntima da fazendo pão e os cheiros entravam pelo sistema de ar condicionado
muita influência na década de 60, com as experiências feitas por
vida privada projetada nas telas mais públicas possíveis. da sala. Imagens de fábricas barulhentas faziam-se acompanhar por
artistas com multimídia e expanded cinema1. O interessante é que os
uma trilha sonora tão forte que o espectador sentia as vibrações.
o casal Eames foi o primeiro a fazê-lo. Não havia precedentes na Portanto, de certa maneira, eles contrabalançam o medo de um olho Todo seu corpo era envolvido. Ao contrário do que ocorre num
arquitetura nem na arte. Os Eames já haviam feito experiências com no céu – não escondendo mas, sim, mostrando o que os russos cinema tradicional, na exposição de Moscou o espectador fazia parte
telas múltiplas para espetáculos de slides, utilizando um complexo poderiam ver em sua imaginação, ou seja: como vivemos bem, como de uma multidão, em pé ou em movimento. A incapacidade de
sistema pelo qual os vários projetores eram interconectados. Tiveram somos felizes, quantas piscinas temos etc. A idéia de centrar a absorver tudo induz a uma resposta emocional. E a emoção fazia
que mandar um técnico, na véspera de uma conferência, para atenção na vida doméstica, ao invés de foguetes, foi muito parte da experiência do filme com telas múltiplas.
garantir que todo o equipamento estivesse perfeitamente instalado e inteligente. Na exposição soviética em Nova York, no entanto, os
no lugar apropriado. Tanto o performance, quanto os aspectos russos exibiram o Sputnik propriamente dito, entre outros êxitos Um outro aspecto que é relevante nos filmes para telas múltiplas é a
técnicos, eram muito importantes para eles. Encontrei em seus tecnológicos. Os Eames tentaram diminuir a importância do Sputnik, obsessão que os Eames têm, e sempre tiveram, com o circo. Na
arquivos um documento de duas páginas com instruções mas, ironicamente, representaram o Sputnik de uma maneira mais verdade, quando estavam sem dinheiro, ainda na década de 40,
pormenorizadas sobre o funcionamento do equipamento. Também interessante: as conseqüências concretas que ele teria na era espacial. tentaram trabalhar num circo. Queriam ser palhaços e conseguiram o
em Moscou, trabalhariam com a mesma precisão. Os russos ainda estavam concentrados no objeto; os Eames, no que emprego. Se não tivesse coincidido com a oferta do contrato para
esse objeto significava em termos da nova realidade espacial de fazerem mobiliários de madeira compensada, os Eames teriam sido
O filme, cujo título era Glimpses of the USA, foi projetado em sete
nossas vidas. palhaços de circo. E continuaram próximos ao mundo do circo.
telas gigantescas, de 20 por 30 polegadas (de 50 por 60 centímetros),
Fizeram parte da diretoria do Ringling Brothers Circus, tiraram
com o formato de televisores. Tinham os cantos arredondados, o que A narrativa do filme é igualmente muito proselitista. Consciente, ou milhares de fotografias e fizeram filmes sobre o circo. A idéia de um
é interessante, pois a televisão comercial fora inaugurada, nos inconscientemente, eles compreendiam perfeitamente qual era a espetáculo com muitos cheiros e ruídos, no qual existem três círculos
Estados Unidos, apenas na década anterior. O filme consistia de missão do governo dos Estados Unidos. É um pouco assustador o fato concêntricos e o espectador não consegue acompanhar tudo
milhares de imagens – algumas em still, outras em movimento – de que, para evitar a censura, os Eames chegaram a Moscou com o simultaneamente tem uma relação profunda com o que eles tentaram
projetadas simultaneamente por sete rolos. A câmera praticamente filme somente na véspera da apresentação, quando o trabalho que trazer para a experiência com telas múltiplas, esta atualizada e de
não se movia. Todas as imagens foram reunidas e montadas a partir haviam produzido estava em plena sintonia com aquilo que o acordo com a nova era tecnológica. O que pode ser uma outra
de slides que os próprios Eames haviam tirado ou obtido de várias governo norte-americano tentava projetar para o mundo. A narrativa maneira de dizer que o fato de existir a nova tecnologia não significa
outras fontes, como as revistas National Geographic, Life, Vogue etc., destacava a incrível abundância nos Estados Unidos, o que lembrava que deva ser abandonada a experiência corporal. Isto sempre foi
assim como de fotografias conseguidas com a Nasa. Algumas das o espectador dos tempos difíceis por que passara a população de importante para eles. E a arquitetura sempre envolve todos os
imagens eram de filmes, como as de Billy Wilder e Marilyn Monroe Moscou para conseguir um pedaço de pão. Quando eram mostradas sentidos.
em Some Like it Hot, outras, de espetáculos de jazz e alguns clips de fábricas, por exemplo, o narrador dizia: “Aqui são as fábricas e aqui
movimentação em fábricas. A imagem de cada um dos sete projetores os estacionamentos para os operários” – o que pressupunha que todo E por que o formato da tela? E por que sete? Estas são perguntas
era diferente, mas sempre relacionada com um mesmo tema comum. trabalhador norte-americano tinha um carro e, em grande parte, era sobre as quais é possível especular, mas não exatamente responder.
Um exemplo: o filme começa com estrelas em todas as telas e o verdade. Nas imagens aéreas de áreas suburbanas, mostravam-se O que é nitidamente inovador nesse filme é a idéia de que um espaço
narrador diz que as estrelas no céu são as mesmas nos Estados piscinas em todas as casas, o que não era verdade. E aqui, casas com fechado não significa simplesmente paredes. O espectador não
Unidos e na Rússia. E termina com pessoas se beijando e dizendo todo tipo imaginável de eletrodomésticos, supermercados com precisa de tijolos; ele está encerrado por imagens. Estas imagens
boa-noite. O que eles pretendiam dizer é que todos nós partilhamos estacionamentos para os fregueses etc. definem um novo tipo de espaço, o que não era acessível à geração
do mesmo cosmos e temos emoções semelhantes. Tratava-se de um precedente de arquitetos. No entanto, ainda em 1920, num artigo
apelo à paz, diante da corrida armamentista. Se, de certa forma, Com a chegada do Sputnik, a noção de espaço ganha uma dimensão publicado pela revista L’Esprit Nouveau, Formation de l’optique
somos todos uma família, não devemos nos matar uns aos outros. global, o que já ocorria com a geração anterior de arquitetos. Le moderne, Le Corbusier menciona o Times Square com seus outdoors
Corbusier trabalhara na Argélia, na Índia, no Japão, na Argentina, criando uma nova forma de visão. As idéias de Le Corbusier eram tão
É interessante que o trabalho fotográfico intitulado The Family of nos Estados Unidos... Os arquitetos modernos já eram arquitetos avançadas para sua época que ele percebia essa nova realidade em
Man, de Edward Steichen, também foi apresentado durante a globais, mas ainda tinham os pés no chão. A idéia que Mies e Le que as imagens criam espaço – e não, os edifícios, que passam para
exposição norte-americana em Moscou. Dá para se refletir sobre a Corbusier tinham de um espaço universal ocupado por todo mundo é segundo plano. Mas não trabalhou essa percepção em sua arquitetura
relação entre a coleção de imagens em três dimensões de The Family uma visão horizontal do mundo e da paisagem. Um momento com a mesma intensidade com que o fizeram gerações posteriores.
of Man e dispostas de modo circular – que fora apresentada pela interessante do trabalho de Buckminster Fuller é aquele em que
primeira vez em 1955, no Museu de Arte Moderna de Nova York – e substitui a visão horizontal por casas espaciais, ou casas planetárias, As imagens são a nova arquitetura. É esta a característica dos Eames.
o arranjo com as telas múltiplas utilizado por Glimpses of the USA. em que a visão é para cima. Isto também pode ser encontrado num Eles entenderam que a matéria-prima de seu ofício deixara de ser o
trabalho de Alison e Peter Smithson de 1956, The House of the concreto, o aço ou o vidro, como fora para a geração precedente de
O filme foi organizado como um dia na vida norte-americana. Future, em que a casa se fecha totalmente ao mundo exterior. É uma arquitetos, e sua matéria-prima passou a ser imagens, dispersas em
Começa com um dia de trabalho. Das estrelas, à noite, ao amanhecer casa vazia, sem janelas para fora. Há um jardim, no centro, com vista publicidade, filmes, publicações e nas ruas. Não porque tenham
em várias paisagens através do país e, em seguida, pessoas tomando para o céu e, assim, a relação das pessoas com o mundo exterior não desenhado a cadeira, mas por terem desenhado a imagem da cadeira,
o café da manhã e saindo, para a escola ou para o trabalho, até o final se dá com o que está do lado de fora mas, sim, com o que está lá em o layout do anúncio da cadeira, o contexto em que a cadeira seria
do dia. Isto leva 9 minutos. Seguem-se 3 minutos sobre um dia de cima. Trata-se de uma transformação da compreensão de espaço, o acessível – por exemplo, aquela cadeira cor de laranja, em fibra de
final de semana nos Estados Unidos, com imagens de pessoas que é muito adequado ao projeto Cosmograms. Para aquela geração vidro! Nesse momento, mudou o papel do arquiteto. Tornaram-se
cortando a grama de seus jardins, ou cortando o cabelo, saindo para de arquitetos da década de 50, a noção de espaço era planetária. No profissionais da mídia.
a missa, passeando de barco, visitando museus, fazendo um momento em que se olhava para o céu, a ordem espacial mudava.
piquenique no parque, indo ao circo, a vida noturna, cinemas, jazz..., Atualmente, encontramo-nos cada vez mais cercados por imagens.
até se beijarem dando boa-noite. Um imenso número de imagens – A idéia de fazer o filme surgiu após Buckminster Fuller ter decidido Basta pensar na recente adoção de telas individuais, nos aviões, na
2.200 – foi projetado em apenas 12 minutos, algo sem precedentes. fazer o grande domo - geodésico. Num mesmo espaço, acabariam parte de trás das cadeiras. Os aviões ficaram repletos e insuportáveis.
Os Eames haviam feito uma pesquisa científica sobre a capacidade coexistindo, simultaneamente, três coisas: uma forma de arquitetura Mas essas telinhas criam uma parede virtual que preserva um
das pessoas absorverem imagens. Tinham consciência daquilo que, e engenharia muito inovadora, um filme projetado em telas múltiplas pequeno espaço, permitindo ao passageiro alguma privacidade em

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meio a um tremendo congestionamento, um espaço particular com para projetos do E.A.T. Embora a maioria delas nunca se tenha
cadeira/cama, mesa, TV e uma vista da paisagem de sua escolha. Há concretizado, acho isso importante. Existiam entraves de ordem
muito tempo que a tecnologia vem sendo utilizada dessa forma. R OBERT W HITMAN social e democrática para que artistas pudessem usar tecnologia para
Quando cheguei a Nova York, em 1980, espantou-me a capacidade participar das comunidades de uma maneira mais aberta. Uma coisa
das pessoas de se isolarem, no metrô, com o recém-criado walkman. preocupante com as máquinas tecnológicas, principalmente em
ROBERT WHITMAN , NASCIDO EM 1935 , É ARTISTA . VIVE E TRABALHA EM WARWICK , NOVA
Todo mundo tinha um aparelhinho daqueles. Até com o som era YORK . É UM DOS PRIMEIROS ARTISTAS DE PERFORMANCE MULTIMÍDIA DO PÓS - SEGUNDA fotografia e vídeo, é que elas permitem que o artista use as pessoas.
possível criar aquele espaço de privacidade no meio da confusão GUERRA MUNDIAL . EM 1966 , FOI UM DOS QUATRO CO - FUNDADORES - ESPECIALMENTE , COM Às vezes, eu próprio me sinto culpado, pois sou contrário à situação
ROBERT RAUSCHENBERG - DO GRUPO EXPERIMENTS IN ART AND TECHNOLOGY - EAT - O DIA
metropolitana. Os filmes para telas múltiplas dos Eames criaram um ART FONDATION DEDICOU - LHE UMA GRANDE EXPOSIÇÃO EM NOVA YORK , EM 2003 .
política que isso cria, na qual o artista usa as pessoas, fotografando-
novo tipo de espaço público, no qual uma multidão de pessoas juntas as de uma maneira quase fascista. É difícil utilizar imagens com
podia sentir o filme – não como cinema tradicional, mas como um TRADUÇÃO DE JÔ AMADO discrição, desde que previamente autorizado. Você não tem o direito
espetáculo envolvente e acolhedor. de tirar uma foto de uma pessoa sentada num restaurante e colocar
NOVA YORK _ 26 DE JULHO DE 2004 isso num painel, junto com um monte de porcaria. Isso não se faz!
Isso também tem uma relação com a mentalidade do pós-guerra. Os
Eames traziam o espectador para sua “casa”, para seu espaço Fora do E.A.T., eu queria fazer coisas de 25 dólares, ao invés de mil
“doméstico”. Para eles, o sentido de um bem-estar emocional coletivo N o final da década de 50, vários artistas começaram a empregar dólares e aí fiz um trabalho que foi um passeio. Não era muito
confortável porque as pessoas tinham que circular, mas eu já tinha
era muito importante. Uma cadeira Eames, assim como a casa ou as engenheiros. Sei que John Cage e David Tudor já tinham uma relação
estantes em compensado, é uma imagem que envolve quem a vê; cria com engenheiros de som. Billy Kluver tinha um contato com uma uma intenção bem clara antes de fazê-lo. Na verdade, foram dois
um espaço. A arquitetura sempre interage com o corpo e a saúde. instituição de arte sueca chamada Filkingan cujo principal interesse trabalhos. Um deles foi em fevereiro de 1971, num cais abandonado
Vem do tempo dos gregos. Se o corpo da década de 20 é exercitado, era ligado à música. Essa instituição fez um convite para que à beira do rio. A noite estava espetacular, muito clara e fria. O céu
saudável, o da década de 50 é diferente, traumatizado. Na década de participássemos de espetáculos com arte e engenharia. Quando se estava limpo. No meio do cais havia uma gigantesca pilha de entulho
20, a preocupação era com a tuberculose; na década de 50, com desfez essa relação entre suecos e norte-americanos, decidimos e, quando você entrava no cais, era possível ver uma luz intensa
doenças mentais. Era impossível voltar da guerra e retomar a vida seguir em frente e criamos o 9 Evenings Theatre and Engineering, em vinda do céu e entrando pelos buracos no telhado. Havia aquela pilha
normal. Fundamentalmente, a guerra destruía as pessoas, mesmo que meados da década de 60, e que foi montado no espetáculo do de entulho gozada e fantasmagórica, estava muito frio e as pessoas
não fossem fisicamente feridas. Todos os projetos feitos pelos Eames Armory, em Nova York. Participaram Dave Tudor, John Cage, Bob viam formas vagas de carros, de uma janela ou de uma porta. Lá no
para a organização de espaço – a casa de cartas, os brinquedos, as Rauschenberg, eu próprio, Yvonne Rainer, Steve Paxton etc. Eu final do cais, você enxergava a outra margem do rio, do lado de Nova
estantes de armazenamento, que são facilmente montáveis – podem trabalhava sozinho, de forma independente. Participava um artista Jérsei. O rio refletia as luzes de Nova York e de Nova Jérsei. No chão
ser compreendidos como um tipo de terapia. As pessoas conseguiam, sueco, Oyvind Fahlstrom. Essas apresentações foram o primeiro do cais havia milhares de pedaços de mármore, cascalho das
enfim, controlar o mundo em que viviam. Enquanto consumidores, esforço coletivo de um grupo de engenheiros. construções, corrimões de mármore, janelas e esquadrias, tudo de
eram responsáveis por seu espaço. Conseguir controlar uma parte de mármore. Foi fantástico: todos aqueles pedaços de mármore, brancos,
seu espaço, num mundo que corria o risco de explodir, era uma Meu trabalho consistia em várias projeções de diferentes tipos. Eu o criando uma atmosfera fantasmagórica na noite. Atravessava-se para
experiência terapêutica. pensava como uma espécie de cinema drive-in, mas eram as imagens o outro lado do cais, subia-se uma escada, passava-se a uma sala
que faziam o drive-in, e não as pessoas. Como o espaço era enorme, inteiramente cúbica e, em seguida, a uma outra sala que só tinha
Esse espaço controlável envolvia a pessoa, protegendo-a, dava a podiam entrar carros e os filmes eram projetados nas paredes. pequenas prateleiras. Todos esses espaços eram muito bonitos.
impressão de que existia um mundo à sua volta que lhe era íntimo, Comprei filme e rodei alguma coisa; o vídeo era feito a partir de Passando por outra sala e através de uma janela, chegava-se ao
que interagia com ela. Isto era ainda mais evidente no filme que os lugares distantes. Os espectadores viam a luz e a projeção, mas não telhado. Do telhado, passava-se por outra janela para um dos dois
Eames fizeram para o pavilhão da IBM, em 1964, em que as telas viam de onde ela vinha. Tínhamos alguns projetores e um vídeo da terminais de estrada de ferro, um pouco como um anfiteatro. As
assumiam o formato oval do pavilhão, projetado pelo escritório de idade das cavernas, em preto e branco, pré-histórico. A altura da tela pessoas chegavam a esse mezanino e era ali que se projetavam as
Eero Saarinen. A pessoa era incluída no espaço. Ou no filme que era de cerca de 2,5 metros. Os assuntos eram muito simples. Eu usava imagens. Meu interesse nessa relação era o de tentar levar o
fizeram para a Feira Mundial de Seattle, em 1962, The House of imagens que eram distorcidas por espelhos flexíveis. Uma dessas espetáculo para um espaço mais amplo.
Science, em que o espaço circular era contornado por telas múltiplas imagens era de uma pessoa com uma lente na mão; a lente se dirigia
e o espectador assistia sentado no chão. para o que ele apontava. Atualmente, é muito fácil fazer esse tipo de O projeto para desenvolver aplicativos de informática na zona rural
coisa. A tecnologia de hoje é brilhante. Meu médico me mostrou um da Índia é um exemplo do que quero dizer por espaço mais amplo.
Também as formas, daqueles tempos, eram orgânicas. Os Eames equipamento que usam e que é extremamente avançado, se Em termos diretos, nada tinha a ver com arte.
substituíram o aço e as velhas tecnologias por materiais comparado com aquelas coisas primitivas daquele tempo.
aconchegantes, como tecido, lã e madeira compensada, bem como as
novas tecnologias de cadeiras coloridas em material plástico, que De uma maneira geral, eu achava que era legal usar qualquer imagem Para o projeto da Índia, Billy Kluver foi convidado a fazer uma
transmitiam uma sensação de felicidade típica das décadas de 50 e de que pudesse fazer e, desde o início, estava particularmente proposta para desenvolver material educacional para aldeias
60. Paradoxalmente, essa idéia de felicidade também tinha algo de interessado em usar um tipo específico de arquitetura em meus indianas. Era um projeto do E.A.T. Sem entrar em detalhes, dá para
sinistro, como uma arma de outro tipo. Era outra maneira de dizer: trabalhos. Ou fazer arquitetura para cada obra, ou usar um espaço imaginar os aspectos políticos e incomuns do projeto, pois a maioria
“Nós somos felizes e vocês não são. Temos tudo isto e ainda com características muito especiais, que se adequasse à imagem que das fundações – em especial, as norte-americanas – é vista com
sorrimos!” O intenso bombardeio de imagens em Glimpses of the eu tentava fazer. Imagino isso como se fosse a natureza. Você dá um bastante ceticismo devido ao uso que a CIA fez de fundações. Pode
USA funciona como um enorme sorriso de auto-complacência. O tempo, tem uma idéia, ela evolui lentamente e então o espaço deve haver pessoas decentes fazendo coisas decentes, mas foram bastante
sorriso como uma arma. ser de uma determinada maneira. Com o filme e a projeção, você desacreditadas. Colaborando com a proposta que foi elaborada,
pode manter acumulado um pequeno catálogo de imagens que pode tínhamos uma equipe que incluía um colega ou uma pessoa ou um
Em seu livro Sociodynamique de la culture, de 1967, Abraham Moles utilizar no espetáculo. As imagens irão mudar o espaço, seu aspecto, rapaz com conhecimentos de hardware e um psicólogo. A proposta
fala sobre como se tornou impossível acumular sabedoria do jeito sua sensibilidade, sua natureza. Elas têm outro tipo de conteúdo de foi desenvolvida em torno de uma cooperativa de laticínios. O
que o faziam os eruditos de séculos atrás. Atualmente, somos memórias, mas um outro aspecto do trabalho com filme e projeção é pessoal da cooperativa fazia duas visitas diárias a duas diferentes
bombardeados com toda essa parafernália que cria um mosaico a forma pela qual o tempo é mensurado e esse é um dos elementos aldeias para lidar com o leite de búfalo. Isso permitia que fossem
cultural, do qual todo mundo acaba tendo uma compreensão distinta. que utilizo. Eu o penso da mesma forma que os músicos pensam o enviadas as fitas às aldeias, obter de cada aldeia o retorno sobre o
Os Eames trabalharam muito com a noção de que um discurso linear tempo. Você tem um certo ritmo e uma determinada idéia e, mais material que continham as fitas e levá-las de volta para revisar,
não era mais possível, talvez por sermos bombardeados com imagens tarde, uma outra idéia repercute na primeira e assim sucessivamente. editar, alterar ou adicionar material para que se tornassem mais
demais, informações demais, idéias demais. Portanto, deve ser criada Portanto, é possível fazer essas coisas com projeção, assim como ao inteligíveis para as pessoas a quem se destinavam. Era uma
uma trilha específica selecionando-se esse material. vivo. Integrando um todo. Às vezes, pode parecer desarticulado; às oportunidade de obter um retorno significativo da comunidade sobre
vezes, demasiado suave, o que também é legal. Depende da natureza que material interessava e qual não interessava. Era um projeto
Charles e Ray Eames não queriam comunicar uma mensagem que maravilhoso.
do trabalho.
fosse boa para todo mundo. Isto remete à cultura do consumo. Os
consumidores podem fazer suas opções, reorganizar o meio em que No princípio, o espetáculo parecia mais natural que as outras coisas, Parte do meu papel era dizer “Tudo bem, mas não mandem este
vivem, criar seu próprio conhecimento. Portanto, não se trata de o que eu não compreendia. Quando era criança, um dos trabalhos pessoal para as escolas de cinema de Nova York ou da Califórnia
comunicar uma mensagem, mas de construí-la, criá-la, tal como um que mais me excitaram e emocionaram foi quando vi um grande porque ali podem acabar com o que eles ainda possam ter em termos
cardápio chinês, uma diversidade de possibilidades na qual a pessoa palhaço norte-americano, Emmet Kelly, fazendo uma imagem. Fiquei de desenvolver sua cultura.” As pessoas que estão no poder sempre
pode construir seu próprio meio ambiente. atordoado. Olhei em volta e não conseguia acreditar que as pessoas querem ensinar a fazer as coisas da maneira “certa”, mas não
ali presentes não sentissem o que eu sentia. É o mesmo com o cinema compreendem que se você toma um produto que tenha sido
mudo. Parece normal você ver coisas teatrais cuja única linguagem é culturalmente poluído por outra coisa, aquela maneira pode não
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO COM KATE GLAZER a visual, como com Buster Keaton. Essas pessoas delimitam uma área funcionar. Talvez fiquem assustados com os Muppets, quem sabe?
de representação e teatro que foi completamente esquecida pelos Mas isso não se faz, as coisas têm que vir da própria cultura dos
1 N.T.: Com as inovações tecnológicas no campo da cinematografia, o vídeo passou
chamados dramaturgos – com exceção de Beckett e mais alguns. Mas povos. Meu objetivo era tentar limitar a poluição cultural. A poluição
a ser considerado um meio de comunicação artístico; o expanded cinema seria um
os dramaturgos “profissionais” já o ignoravam completamente e cultural seria a idéia de desenvolver uma imagem, ou uma técnica de
destes novos tratamentos da imagem. Gene Youngblood foi um de seus criadores.
agora, com o cinema sonoro, continuam ignorando. edição, que não seja natural para uma pessoa nascida naquela aldeia.
Limitar essa poluição é apenas uma maneira de deixar que o material
Depois de 9 Evenings, o grupo Experiências com Arte e Tecnologia seja criado fora da comunidade que o está utilizando. Com a
(E.A.T.) evoluiu bastante. Juntei-me ao E.A.T. porque detestava a globalização, é impossível evitar muita coisa, mas é muito melhor
idéia de que a relação era somente com artistas e tecnologia, e não deixar as coisas acontecerem de uma forma natural. Basta ver o que
com a sociedade como um todo. Já pude observar pessoas que se está acontecendo agora com essa nossa espécie de globalização que
preocupam com o chamado desenvolvimento do mundo artístico; mata o resto do mundo.
continuam fazendo tudo o que faziam antes. Não arriscam a
oportunidade de serem apanhados por uma onda e transportados No âmbito do E.A.T., também trabalhei com espelhos esféricos e suas
para uma praia, em outro lugar. Eu sempre procuro outra propriedades. Já fizera experiências com eles antes de usá-los no
oportunidade. Tentei integrar imagens da comunidade por meio de projeto de Osaka. No pavilhão de Osaka, utilizamos um espelho
minha estética. Meu envolvimento foi no sentido de tentar empurrar esférico de 210 graus. Era feito dentro de uma abóbada geodésica –
meu trabalho para dentro de áreas que sejam mais abrangentes. imaginada por um artista, Buckminster Fuller –, mas a abóbada em
Em 1970, Billy, Julie Martin e eu elaboramos cerca de 50 propostas si nada tinha a ver com o espelho. A abóbada era uma concha que

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lhe dava apoio. É aí que acho que está uma grande idéia do que TRADUÇÃO DE JÔ AMADO mundo funcionar. Numa semana, o tema poderia ser alimentação e a
significa trabalhar em colaboração. Os técnicos que construíram a equipe, ou o indivíduo que vencesse – que podia ser de Paris, de
abóbada estavam habituados a fazer aqueles grandes satélites FILADELFIA _ 23 DE JULHO DE 2004 Moscou, da Tanzânia ou de Beijing – teria que mostrar como era
meteorológicos. Mas como fazê-la? Pensou-se, então, numa estrutura possível alimentar toda a população do mundo. Alimentando-a, não
inflável. Até aquele momento, a única maneira de manter a pressão haveria fome no mundo por dez anos. A segunda rodada era ganha
era por meio de uma porta giratória, mas naquela época os japoneses A organização World Game foi criada por um grupo eclético de pela equipe ou indivíduo que conseguisse demonstrar a possibilidade
não tinham muita familiaridade com portas giratórias e a coisa não pessoas, das mais variadas origens. Eu trabalhara com Buckminster de fazer a mesma coisa em sete ou oito anos, ou, como alternativa,
iria funcionar. Alguém decidiu, então, que dentro da abóbada haveria Fuller no departamento de Projetos e Planejamento na Universidade eliminar a desnutrição e a fome, ou ainda possibilitar o acesso a água
uma pressão negativa que sugaria o espelho para dentro da do Sul de Illinois, onde ele morava. O departamento gravitava em potável para todos. A terceira rodada seria vencida pela equipe ou
construção – e foi essa a solução. torno dele e de suas filosofias, teorias e métodos. Outras das pessoas indivíduo que demonstrasse que tudo aquilo poderia ser feito em seis
envolvidas tinham uma formação que ia de planejamento urbano a anos e ser muito mais barato usando-se uma tecnologia diferente.
Você via a você próprio e todo mundo suspenso no espaço, de cabeça literatura inglesa, passando por arquitetura. Em certo momento, até
para baixo, mas ninguém via essa mesma imagem total. Essa é outra tivemos trabalhando conosco uma pessoa formada em Teatro Na semana seguinte, o tema seria energia, depois assistência médica,
idéia que já venho trabalhando há muito tempo. Não existe nada Experimental porque havíamos compreendido que a oficina do jogo depois educação, depois meio ambiente e, eventualmente, se poderia
escrito que diga que todo mundo deve ver a mesma coisa ao mesmo do mundo tinha muito a ver com teatro e nossos conhecimentos de voltar ao tema da alimentação. O objetivo de tudo isso era
tempo. O artista teria que compreender que aquilo que faz pode ser teatro eram aceitáveis, na melhor das hipóteses. desenvolver estratégias cada vez mais irresistíveis, tão atraentes que
visto de maneiras diferentes em lugares diferentes, o que acho ótimo. acabassem sendo adotadas. Um pequeno grupo de pessoas da cidade
David Tudor projetou um ambicioso sistema de som que permitia que Aquilo que viria a ser legalmente o World Game Institute foi criado de Genebra, na Suíça, participou do jogo de logística e colocou em
os sons fossem produzidos dentro da abóbada. O som podia em 1972. De início, chamava-se Earth M.D., nome que foi dado por envelopes as soluções para erradicar a varíola. Realizaram uma
aumentar ou diminuir, ou ocorrer à volta da abóbada, e podiam Howard Brown e por mim. Foi criado sem Fuller. Ele estava em pesquisa para descobrir quantas vacinas, médicos, enfermeiros,
existir dois sons que se interpenetravam – era um sistema acústico Carbondale e o Earth M.D. foi fundado em New Haven, Estado de técnicos de saúde e helicópteros seriam necessários para levar a cura
muito complexo. Fujiko Nakaya, um artista japonês, elaborou um Connecticut. Seis meses depois, Fuller me visitou; estava se mudando às regiões mais remotas, assim como quanto seria necessário para o
sistema de névoa e toda a construção ficava coberta pela névoa. Foi para Filadélfia e queria saber se eu queria voltar a trabalhar com ele. fazer. Seria algo como 300 milhões de dólares. Enquanto faziam o
um projeto em que realmente houve colaboração e, de certa maneira, Acabamos entrando num acordo e nos transformamos no World levantamento final da pesquisa, constataram que os Estados Unidos
pode ser chamado de obra de arte. Game Institute. e a Europa Ocidental gastam quase 200 milhões de dólares por ano
tentando impedir a entrada do vírus da varíola em suas fronteiras.
Elaboramos um sistema de programação artística. Vários artistas De início, o jogo do mundo que desenvolvemos era relativamente Perceberam, assim, que tinham em mãos um argumento muito forte
chegavam e desenvolviam um programa, ou tocavam um programa. simples – para as pessoas aprenderem sobre o mundo, de certa – uma ótima análise custo-benefício, em termos econômicos.
David Tudor tocou. Pauline Oliveros, que é uma compositora, forma, um jogo de trocas – mas tornou-se uma ferramenta muito Procuraram, então, responsáveis europeus e norte-americanos e
também tocou. Tínhamos uma dançarina japonesa, pois também sofisticada. A simulação evoluiu, tornando-se um jogo de economia disseram: “Olhe, nós não queremos caridade, não queremos que
tentávamos integrar a participação da comunidade artística japonesa. sócio-política que envolvia a solução de problemas e o levantamento façam um gesto nobre de altruísmo e nos digam ‘Pegue aqui os 300
de necessidades de uma determinada área – e não mais fichas e milhões de dólares e suma’. O que queremos é que vocês invistam
Trabalhar com a comunidade também fazia parte integral das pauzinhos. 300 milhões de dólares neste programa e lhes propomos um retorno
apresentações com telefone que fiz. Havia um vínculo com o E.A.T.,
de 5, 10, 20 bilhões de dólares nos próximos 10, 15, 20 anos. Vocês
mas era independente. Usava tecnologias muito mais abrangentes, Naquela época, achávamos que a ameaça mais séria à existência da
não vão perder e nós vamos ganhar, todos vamos ganhar. Vocês vão
usava o que estava ali, na sociedade. A primeira vez que o coloquei humanidade era a guerra termonuclear entre russos e norte-
lucrar com isso, o mundo vai lucrar com isso e a varíola será
em prática foi em 1970. Depois, em Nova York, Houston, americanos. Queríamos, então, explicitar isso, mas sempre num
erradicada.” Fuller e o pessoal, inclusive eu próprio, tínhamos a
Minneapolis... A última vez foi em Leeds, na Inglaterra, em 2002, contexto que abrangesse o restante dos problemas do mundo, tais
convicção de que era possível utilizar argumentos irresistíveis,
com telefones celulares. Peguei um mapa e marquei lugares de onde como o meio ambiente, a destruição da floresta tropical, a diminuição
economicamente irresistíveis, para livrar o mundo do analfabetismo,
as pessoas ligavam, de cabines públicas. Ligavam para a central, da camada de ozônio ou o analfabetismo de 900 milhões de pessoas.
da fome, da água poluída, da desnutrição, da falta de assistência
onde eu estava, eu atendia e gravava a conversa. Depois, ligava o Substituímos pela guerra nuclear a destruição do planeta e o prejuízo
médica. É possível usar tal tipo de argumento para todas essas coisas.
gravador de volta e dava algumas pistas para que chegassem aos ao bem-estar de bilhões de pessoas que não têm acesso a água
lugares marcados. Os diálogos eram mais ou menos assim: “Estou na potável, a assistência médica e a educação.
esquina das ruas tal e tal e há um prédio do outro lado da rua e uma Buckminster Fuller inventou o jogo do mundo observando o mundo
mulher passeando com o cachorro etc.”, numa descrição do local em Fuller era conhecido como arquiteto, mas não se formara em como um todo e com a convicção de que os recursos e tecnologia são
que estava a pessoa. “Há um guardanapo branco no chão” e aí, de arquitetura. Na verdade, apesar de ter 46 diplomas honorários, foi suficientes para todos nós. Foi isso que o fez começar a pensar sobre
repente, você tem a imagem da mulher passeando com o cachorro em expulso de Harvard duas vezes. Tinha uma visão abrangente, em o que deveríamos fazer para que o mundo trabalhasse para o bem de
um lugar e um guardanapo branco no chão em outro. “Está chovendo perspectiva, do mundo. Pelos padrões tradicionais, um arquiteto é todos no planeta. Aprendeu a ter essa perspectiva planetária quando
e estou com frio.” Eu ficava extasiado com a idéia dessas coisas contratado por um cliente. Fuller entendia que isso não bastava para estava na Marinha. Via os estrategistas militares do Pentágono, em
sendo combinadas. Quando descreviam alguma coisa, comunicavam que fizesse arquitetura; achava que você podia ser um arquiteto que Washington, ou os do Kremlin, em Moscou, olhando para o mundo
como se fosse uma imagem e você arquivava uma coleção delas. Você se antecipa no tempo, que você podia ter o mundo como seu cliente. de uma perspectiva global, mas também como uma situação de um
escutava uma por uma, mas estava tudo gravado. O que eu gosto é Num passo seguinte, Fuller diferenciava o cliente ideal de um jogo. Como podemos testar nossas idéias antes de implementá-las?
de escutar no rádio, numa emissão pública, mas neste caso, na praça arquiteto, que queria um planejamento global eficaz, e o indivíduo Ele achava que a idéia de “jogos de guerra”, enquanto ferramenta de
central da cidade, existiam aqueles alto-falantes potentes e as que queria uma casa ou a empresa que queria um edifício, ou uma planejamento, poderia ter algum mérito. Os objetivos dos jogos de
gravações eram emitidas por eles. Foi maravilhoso. Afinal, uma rádio fábrica, ou um planejamento urbano ou regional. E como procurar guerra daquela época eram relativamente diabólicos, como dizia
não é apenas uma coisa tecnológica; também é cultural e social. É um cliente que é a totalidade da humanidade, os 100% dos seres Fuller: tratava-se de destruir um número cada vez maior de pessoas,
muito mais abrangente e muito mais interessante que um monte de humanos do planeta, ao invés de procurar pessoas ricas que possam de um modo bastante preciso e num ritmo cada vez mais rápido. Mas
tubos. Se fosse num programa de rádio ao vivo teria sido espetacular. pagar pelos seus serviços? Ele achava que se fosse esperar que um Fuller achava que aquela ferramenta dos “jogos de guerra” podia ser
eventual governo das Nações Unidas o contratasse para esclarecer utilizada de outras maneiras. Ao invés de se ter um jogo de guerra
As gravações eram relacionadas a um local específico, feitas com alguns desses problemas, já estaria morto. Entendia que tinha um mundial, Fuller sugeria que se tivesse “um jogo de paz mundial”. Ele
pessoas daquela cidade. As pessoas tinham uma relação de mais direito moral de olhar para o mundo e seus problemas a partir de combinava suas experiências na Marinha com tecnologia e com
informação, mais específica, de maior sensibilidade com o lugar e uma perspectiva global, desenvolvendo soluções para esse cliente – o recursos, às quais qualquer pessoa poderia ter acesso por meio da
passavam uma experiência que eu não teria podido ter por mim mundo e a humanidade. Entendia que tinha um direito moral de inserção dessa ferramenta dos “jogos de guerra” na criação do jogo
mesmo. Traziam-me, realmente, algo de novo. Funciona de uma descobrir soluções desde que não violasse os direitos dos outros, ou da paz mundial. O objetivo desse jogo da paz era o de adotar uma
maneira que eu gosto porque as pessoas que participavam estavam se aquilo que se chamam os graus de liberdade. Em algumas de suas atitude como “Será possível?” para, em seguida, se testarem as
divertindo. E você acaba tendo um belo mapa de um lugar específico, conferências, Fuller explicava, bem-humorado, que se ele estivesse hipóteses. Será possível cuidar de 100% da humanidade, num padrão
feito pela justaposição de relações aleatórias entre todos aqueles na calçada conversando com você e visse um piano despencando de de vida mais alto do que o que temos atualmente, utilizando a
locais marcados e os locais de onde as pessoas me telefonavam. E o um arranha-céu sobre sua cabeça, sentia-se no direito de empurrá-lo tecnologia e os recursos de que dispomos? Se for possível, como fazê-
mapa ainda contém imagens culturais porque a linguagem das para longe. Embora fosse rude empurrá-lo, quando o piano se lo? O jogo da paz mundial pretendia testar várias estratégias, teorias
pessoas é sensacional, assim como aquilo que vêm. Num caso esmagasse no chão você diria: “Opa, obrigado.” Ou também poderia e tecnologias para ver se funcionavam. Esses eram os valores básicos
desses, trabalho como uma espécie de editor. ficar furioso e dizer: “Por que você me empurrou? Eu estava tentando subjacentes à idéia do jogo da paz mundial – que, mais tarde, seria
me suicidar.” E ele responderia: “Ora, você deveria ter dito. Você abreviado para world game (jogo do mundo). O jogo também
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER ainda tem o direito de se suicidar, se quiser. Mas não o faça de uma pretendia ser uma ferramenta que nos ajudasse a identificar, definir
maneira tão desastrada, no meio da multidão.” Ele achava que tinha e resolver problemas locais e globais num contexto global.
o direito de intervir desde que não violasse os direitos da
humanidade. Esse era um dos princípios éticos do seu trabalho – Essa ferramenta possuía um outro aspecto revolucionário: ao invés de
resolver o problema de uma maneira que respeitasse o ambiente, a ser apenas para jogos de guerra para uma elite composta pelo
integridade dos direitos individuais e seus graus de liberdade. E ele Pentágono e pelo Kremlin e mais alguns generais e almirantes, o jogo
trabalhava bem isso. do mundo destinava-se a toda e qualquer pessoa. Pretendia criar um
espaço ao qual você ou eu, ou colegiais parisienses, ou estudantes da
O primeiro jogo do mundo foi apresentado, mas não construído. Universidade de Iowa, ou da África, ou da China, pudéssemos ir e
Fuller foi escolhido para ser o arquiteto da Feira Mundial de ajudar a descobrir o que era necessário para termos um mundo
M EDARD G ABEL Montreal, em 1967. Foi selecionado porque já havia sido antes o melhor. Visava propor estratégias concretas para os setores de
arquiteto de outros pavilhões dos Estados Unidos. Quem o contratou alimentação, vestuário, habitação e educação para, em seguida, os
foi a United States Information Agency (USIA). Fuller bolou uma testar. Será que funciona? Fuller supunha que, à medida que um
MEDARD GABEL É EX - DIRETOR EXECUTIVO DO WORLD GAME INSTITUTE INC ., UMA enorme abóbada geodésica com mais de 80 metros de diâmetro. Há maior número de pessoas começasse a participar do jogo, elas
ORGANIZAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS PARA A PESQUISA , PLANEJAMENTO E EDUCAÇÃO , QUE quem pense que foi sua obra-prima. Ele fora contratado para fazer criariam um número cada vez maior de estratégias viáveis e
POR ELE FOI INICIADA EM PARCERIA COM BUCKMINSTER FULLER . DESENVOLVEU INÚMEROS
PRODUTOS , INCLUINDO O WORLD GAME WORKSHOP , UMA SIMULAÇÃO GLOBAL QUE
apenas a concha acústica do edifício, mas, sendo do jeito que era, irrecusáveis no sentido de melhorar o mundo. Não era apenas um
FUNCIONA EM CIMA DE UM MAPA GIGANTE DO MUNDO , DO TAMANHO DE UMA QUADRA DE também propôs um conteúdo para o edifício. Esse conteúdo, em suas exercício acadêmico. Fuller percebeu que, ao simular o mundo a
BASQUETE . ELE É O CEO DA BIGPICTURESMALLWORLD INC ., CUJA MISSÃO É TRANSFORMAR
O EXCESSO DE INFORMAÇÃO EM CONHECIMENTO SENSATO QUE LEVE À AÇÃO EFETIVA :
palavras, era um grande jogo logístico. Era um espaço no qual partir de fatos e números concretos – a mesma informação
WWW . BIGPICTURESMALLWORLD . COM jogariam pessoas do mundo inteiro, tentando descobrir como fazer o manipulada pelos especialistas em planejamento – o jogo conseguiria

09
minar a estrutura de poder. Era a mesma informação que eles “antecipatório” referia-se a lidar com o tempo de forma que se tivesse espalhadas e bem à vontade, enquanto na China ficavam espremidas.
utilizavam, mas olhava o mundo a partir de uma perspectiva global, certeza de resolver o problema para hoje e para amanhã, para as Era uma experiência em densidade populacional.
holística. gerações futuras.
Bem no início do jogo do mundo, enchíamos o mapa de gente,
Se os jogadores começassem a bolar argumentos irrecusáveis para A outra parte de seu pensamento tinha a ver com projetos: a mostrando a seqüência histórica em que o homem surgiu no mundo.
combater a fome, a desnutrição, o analfabetismo e a falta de integração da arte e da ciência, uma integração lógica das coisas. Se No ano 3.000 antes de Cristo o mundo tinha de 50 a 60 milhões de
assistência médica, o mundo teria que os aceitar. O que o jogo do você é um bom cientista e um bom artista, você junta as coisas de pessoas. Introduzíamos, então, uma linha do tempo: aparecia
mundo pretendia era mostrar que a cooperação para tornar o mundo uma maneira criativa e contribuindo com novas formas de resolver projetado num telão o mundo de 3.000 A.C. e sua população e as
melhor, para resolver os problemas daquele “pessoalzinho dali”, era problemas, de olhar o mundo. Era isso, em parte, o que Fuller queria pessoas iam entrando para o planisfério. Todas tinham na mão uma
no interesse de todos, ainda que nem todos compreendessem que dizer com “projeto-ciência”. Devemos olhar o mundo de uma maneira folha de papel e um cartão, em cima do qual constava quem eram –
tinham interesses comuns. Pela simulação, você tinha uma visão do diferente daquela pela qual o olhamos hoje, que nos trouxe até onde China, Índia, África etc. – e no canto superior direito a respectiva
todo, de como tudo era interligado. Portanto, ajudar outros povos estamos; temos que pensar para fora dessa caixa. data. Explicávamos-lhes que quando surgisse a data que lhes
nada tem de altruísmo ou de caridade; é em seu próprio interesse. correspondia no telão, se dirigissem para o planisfério. Era, portanto,
Fuller previa que, com essas estratégias, na medida em que Ele imaginava uma ética do planejamento, que seria um conceito de uma peça de teatro mostrando o crescimento populacional. No ano
constituíssem argumentos fortes em termos econômicos, e não mais com menos. Uma solução seria melhor se você resolvesse um 3.000 A.C., há uma única pessoa no mapa; passam-se mil anos e
apenas morais, todo mundo sairia ganhando. Não era algo como: “Eu problema com menos recursos, ou com menos energia, ou com entra outra pessoa; passam-se mais mil, e mais duas pessoas entram.
ganho, você perde”, ou “Você ganha, eu perco”, mas, sim, “Ambos menos tempo gasto. Era isso que ele sempre procurava fazer. E foi daí São saltos bruscos e no ano 1.000 depois de Cristo já entra um
ganhamos”. E, portanto, há um motivo para continuarmos. Esses, de que veio a abóbada geodésica. Era uma forma de encerrar enormes bocado mais de gente. O tempo vai passando, os séculos XV, XVI,
certa maneira, são os princípios filosóficos e a história inicial do que volumes de espaço utilizando o mínimo de material. Portanto, era XVII, XVIII, XIX e XX. Quando se chega a 1960, já há umas 50
viria a ser o jogo do mundo. melhor do que algo que pudesse encerrar o mesmo espaço com dez pessoas no mapa. E da década de 60 até nossos dias, mais umas 50
vezes mais material. Também isso remete à sua perspectiva global de entram no mapa. Percebe-se, então, essa corrida de último minuto
O jogo utiliza várias ferramentas. Um de seus objetivos é educar as que não podemos dar casa a toda a humanidade e fazer tudo o que é para o planisfério e você observa o crescimento populacional, sua
pessoas pelo mundo afora – sobre seus recursos, seus problemas, necessário, se gastamos material como se gasta atualmente. Se densidade e sua distribuição de maneira experimental. Não é um
suas opções e sobre o que cada um pode fazer para resolver os queremos proporcionar habitação para o mundo – casas como as que raciocínio intelectual do tipo “A população mundial duplicou desde a
problemas do mundo. Uma dessas ferramentas, educacional, é uma existem nos Estados Unidos, ou talvez na França – vamos precisar de década de 60”. E daí? Mas se você participa dessa experiência, na
simulação desenvolvida pelo World Game Institute pouco após a muito mais material para criar habitações na África, na Índia ou na qual as 50 pessoas entram para o mapa nos últimos 30 segundos da
morte de Fuller, mas baseada em suas percepções. Tratava-se de um China, utilizando nossa tecnologia. Ele se interessava em saber como linha de tempo, você compreende de uma maneira completamente
mapa gigante, do tamanho de uma quadra de basquete – cerca de 20 era possível fazer muito com pouco, de modo a se poder cuidar de diferente. Você compreende com o corpo, assim como com seu
metros por 10. Nele eram colocadas pessoas comuns, como colegiais, todo mundo no planeta. coração e sua mente. A oficina do jogo do mundo pretendia
universitários, empresários, ou mesmo dirigentes políticos, que contribuir com informações importantes, tais como a da população
ficavam responsáveis pelo mundo. Uns ficavam responsáveis pela O mapa propriamente dito foi feito pelo Departamento de Cartografia mundial, tornando-as acessíveis às pessoas de uma forma
África, outros pela China, ou pela Índia, Sudeste Asiático, América do do Departamento de Defesa norte-americano. Fizemos o primeiro em experimental e não apenas intelectual.
Norte ou Europa. O mundo era dividido em dez grandes regiões. 1981 e, nos 10 ou 15 anos seguintes, fizemos mais uns quinze. Fuller
Haveria cem pessoas nesse mapa gigante, cada uma desempenharia morreu em 1983. Esse foi um dos últimos projetos em que trabalhou. A primeira apresentação que fizemos com o planisfério foi na
o papel de 1% da humanidade (63 milhões de pessoas, em termos Criou um planisfério diferente de qualquer outro porque era o mapa Universidade do Colorado, em Boulder, durante uma conferência
atuais), as quais conduziriam o mundo a um futuro de dez, vinte, mais preciso do mundo. Como era geômetra, Fuller descobria como sobre geopolítica. A segunda foi durante a conferência anual da
trinta anos, lidando com os problemas que o afetam atualmente. tirar informação de uma esfera, tornando-a plana e sem qualquer Sociedade do Futuro do Mundo. Na época, Ronald Reagan era o
Permitia que essas pessoas aprendessem uma enormidade sobre o distorção aparente. No planisfério de Mercator (1578), a Groenlândia presidente dos Estados Unidos e estávamos no apogeu da Guerra
mundo, sobre seus problemas e como resolvê-los num prazo curto de tem quase o mesmo tamanho da América do Sul. No de Fuller, a Fria. Algumas pessoas discutiam “racionalmente” o holocausto
tempo. Aquela oficina do jogo do mundo levava cerca de três horas e Groenlândia tem 1/10 do tamanho da América do Sul. No planisfério termonuclear. A idéia de vencer uma guerra nuclear era loucura total,
meia. Fuller achava que, antes de fazer qualquer coisa, as pessoas de Mercator, não existem os pólos, Norte e Sul. No de Fuller estão lá, mas os russos e os norte-americanos estavam construindo 50 mil
devem ter conhecimento dos problemas e dos sistemas em que estão assim como a Antártida, que representa um patrimônio muito valioso armas nucleares. Foi o que se soube naquela época e ninguém tinha
implantados. dos bens da Terra. Sua inexistência num mapa significa, no mínimo, conhecimento disso. Um pequeno escritório de consultoria em
uma distorção. O planisfério de Peters é outro festival de distorções. Washington, o Center for Defense Information, dirigido por ex-
No início, as informações que coletamos para viabilizar o jogo do A forma da África não é aquela. Peters deve ter pensado que, como oficiais da Marinha norte-americana que eram pacifistas, divulgou
mundo foram obtidas dos anuários estatísticos das Nações Unidas. no planisfério de Mercator a área total estava distorcida, então iria essa informação e nós pensamos: “Vamos mostrar o que isso poderia
Um dos aspectos pouco conhecidos da ONU reside na enorme corrigi-la, mas também a distorceu e não é aquele o planeta em que vir a ser no mapa gigante.” Calculamos as dimensões da área
quantidade de informações que detém. Dados sobre saúde, da vivemos. O planisfério de Fuller também tem a vantagem de que você territorial que, em média, a explosão de uma arma nuclear deixaria
Organização Mundial da Saúde. A FAO tem as melhores estatísticas pode dobrá-lo e voltar a criar um globo. Era muito preciso porque os inabitável para os seres vivos pela escala do planisfério. Constatou-
sobre agricultura, alimentação, pesca ou fertilizantes. As estatísticas militares tinham ajudado nas informações e queriam ter os mapas se que seria o equivalente ao tamanho de uma moeda de 10 centavos.
sobre energia vieram de Nova York, assim como sobre população. A mais precisos do mundo. Esses mapas foram usados por pilotos de Compramos 50 mil fichinhas fosforescentes desse tamanho, de um
área cultural era com a Unesco. Coletávamos informação sobre todo grandes aviões a jato, para navegação. Constavam do planisfério colorido laranja vivo. Durante a oficina do jogo do mundo, a
o mundo sistematicamente, junto ao Banco Mundial e a todas as todas as cidades do mundo com mais de 5 mil habitantes, assim determinada altura colocamos todas as 50 mil fichinhas no mapa.
agências da ONU. Uma das coisas que rapidamente descobrimos foi como as que tivessem aeroportos. Era incrivelmente pormenorizado. Pensando em termos matemáticos, se você multiplicar por 50 mil a
que as informações de todas aquelas agências eram incompatíveis. O Olhando para esse mapa de pé, é como se você estivesse quase 5 mil área daquele pequeno círculo, você terá condições de pavimentar
World Game Institute criou uma ferramenta chamada Gerente de quilômetros acima da superfície da Terra. O ônibus espacial entra em toda a massa de terra do planeta. Se você fosse colocando as
Informação Global, cujo objetivo era reunir toda a informação em órbita à altura de seu calcanhar. Seu pé tem quase 500 quilômetros fichinhas uma a uma, seria uma coisa; mas nós não o fizemos:
único lugar e, eventualmente, mostrar as incoerências. de comprimento. As cordilheiras mais altas do planeta, como o despejamos todas elas de dentro de recipientes enormes. Foi uma
Himalaia, são do tamanho de uma moeda. experiência incrivelmente dramática, muito forte. Despejávamos as
Outra das idéias de Fuller era a de que a maneira de olhar o mundo fichinhas no planisfério e percebíamos imediatamente como ficaria o
está vinculada a sistemas: ele planejava ferramentas intelectuais, Uma das coisas interessantes sobre essa perspectiva é que, quando mundo se persistisse sistematicamente aquela insanidade e fossem
conceituais, que ajudavam a raciocinar sobre o planeta. A noção de você olha o mapa de pé, você vê toda a Terra, você vê através das utilizadas todas aquelas armas. As pessoas ficavam estupefatas, em
sistemas não pretende meramente registrar uma deficiência de fronteiras e dos obstáculos, através da geografia do mundo, vê como silêncio, e algumas choraram. O que fizemos, em seguida, foi deixar
energia nos Estados Unidos ou a falta de energia elétrica nos países somos um único planeta. O astronauta Buzz Aldrin, segundo homem perdurar aquele silêncio. Então aconteceu uma coisa curiosa: em
em desenvolvimento. Se um problema específico está inserido no a pisar na Lua, disse-me que ficar em pé olhando aquele planisfério cada apresentação que fazíamos – e fizemos algumas centenas – as
sistema energético e se o sistema energético faz parte de um sistema fora a melhor experiência que já tivera desde que voltara da Lua. pessoas começavam a catar as fichinhas do chão sem que ninguém
econômico, então você deve analisar o sistema por inteiro porque, ao Quando você está ali, a Lua não está a seus pés, ou a seus ombros, lhes dissesse para fazê-lo. Alguém iria lá e pegava uma, ou a chutava
examinar as partes em seu conjunto, talvez você comece a ou à sua frente; ela está a pouco mais de 2 mil metros acima da com raiva, e aí iria todo mundo e jogavam as fichinhas de volta para
compreender que o sistema ecológico e ambiental pode ajudar a superfície da Terra, à altura de um edifício de 70 andares. O sol está os recipientes. Nós usávamos essa experiência para alertá-los: “O que
resolver esse problema de energia. Você poderá notar que existe um a 40 quilômetros de distância. Em perspectiva, é muito interessante. vocês acabaram de fazer é o que é necessário fazer no mundo real.”
grande desperdício saindo do sistema energético e sendo jogado no Voltando à moedinha que representa as montanhas mais altas: E, em geral, quando terminava a oficina do jogo do mundo, dizíamos:
meio ambiente. E que, se você reduzir esse desperdício, poderá pegando a mesma moeda e deslocando-a para os oceanos, ela “Vocês acabaram de participar deste jogo do mundo, mas o
ganhar em eficiência: você poderá resolver seus problemas de representaria a média, em profundidade, de um oceano. Se você pega verdadeiro jogo do mundo está lá fora e vocês têm que ir lá fazer o
energia. duas moedas e coloca uma na parte superior do planisfério e a outra que acabaram de fazer aqui.”
no “chão”, entre as duas moedas se encontrará 99,99% de toda a
Examinando os problemas ambientais de uma maneira holística, você Após uma dessas apresentações, uma atriz bastante conhecida, Ellen
vida existente em nosso planeta e tudo aquilo em que ela se apóia,
também poderá ver que, das fontes de energia fundamentais – o sol, ou seja, a biosfera. O problema, aqui, é que 90% de toda a vida e de Burstyn, que ganhara o Oscar, disse-me que o que estávamos fazendo
o vento, as marés, a água, todos os ciclos e sistemas que nos tudo o que a apóia é da espessura da tinta com que o planisfério foi era teatro de vanguarda. No início, ninguém tinha consciência de que
proporciona o meio ambiente –, também é possível obter fontes de estávamos nos envolvendo em algo que, de certa forma, era teatral.
impresso. Uma coisa extremamente fina transformou um pedaço de
energia limpas e renováveis. Fuller propunha que se examinassem os rocha sem vida numa casa próspera e aconchegante para todos nós, Despejar as fichinhas no planisfério, por exemplo, foi um ato teatral
grandes sistemas, e não os problemas isolados. Também propunha criaturas biológicas. É essa folha incrivelmente fina e delicada que incrivelmente forte e melodramático. As pessoas da platéia seriam os
que se visualizasse “o grande quadro”; não apenas grandes sistemas, atores. Para nós, essa era uma perspectiva interessante. Também
envolve nosso planeta. O planisfério, portanto, era um instrumento
mas também em termos de tempo. Não queria resolver os problemas muito útil e poderoso para transmitir todo tipo de informações sobre tínhamos consciência de que se chamássemos a experiência de teatro
do aqui e agora porque, até elaborar uma solução, já seria amanhã e o mundo e sobre a relação dos vários países e continentes entre si e de vanguarda ninguém viria. Estávamos montando cerca de cem
o problema seria diferente e maior – haveria mais gente no mundo, oficinas por ano, envolvendo milhares de pessoas e, por isso, não
o curto espaço de interligação que existe entre nós todos.
por exemplo. A solução, portanto, não está em resolver o problema podíamos passar a chamar a experiência de teatro de vanguarda;
com que você lida hoje, mas também os problemas de amanhã, de Usávamos o mapa de maneiras muito interessantes. Colocávamos chamávamos uma simulação do mundo e de seus recursos e
forma a eliminar as causas do problema, e não apenas seus sintomas, pessoas no mapa: a China e a Ásia Oriental tinham 23 pessoas e só 5 problemas. Atualmente, o pessoal de uma sociedade sem fins
o que envolve pensar por antecipação. Fuller chamava uma parte do para a América do Norte porque a China e a Ásia Oriental lucrativos, a o.s. Earth, assumiu o projeto do jogo do mundo.
que fazia no jogo do mundo “projeto-ciência abrangente representam 23% da população mundial e os Estados Unidos Deixaram de usar o planisfério. Creio que devido aos custos de ter
antecipatório”. A perspectiva do sistema inteiro era abrangente; o somente 5%. Nos Estados Unidos, as pessoas ficavam mais que transportá-lo e montá-lo nos lugares onde se apresentam.

10
O jogo demonstrou a necessidade de mudanças fundamentais para o particularmente útil. Existem muitas críticas das noções de “cosmos” dos quais existiam no tempo de Bacon, mas, em sua maioria, só
mundo e, na realidade, demonstrou dramaticamente essa necessidade e de “cosmologia”, e com razão. Existe sempre um risco, com tais seriam descobertos muito depois: máquinas que produzem luz,
de transformações, permitindo que as pessoas passassem pela palavras, de que a definição se torne muito vaga. Em sua Crítica da máquinas voadoras, engenhos de guerra, geladeiras, ou seja, uma
experiência de perceber que tais transformações eram necessárias em Razão Pura, Kant passa várias páginas discutindo as Idéias relação, no estilo de Jules Verne, de todas as tecnologias que,
nome do próprio ser humano. Cada oficina do jogo era diferente cosmológicas; explica que não é possível existir uma ciência do posteriormente, seriam inventadas por uma sociedade tecnocrática. O
porque os participantes eram diferentes. Às vezes, pessoas cosmos enquanto um todo. Quando se questiona o princípio ou o fim que se percebe pela mistura com imagens bíblicas e uma retórica
encarregadas de dirigir os Estados Unidos, ou a África, ou a Europa, do universo, a imortalidade ou a redenção da alma, entra-se no reino profundamente religiosa é que, para Bacon, esse ícone da revolução
assumiam a liderança e operavam transformações mais ou menos da especulação; é impossível a existência de respostas seguras, pois científica, a ciência não se opunha à religião, mas a reformava a
radicais – formando organizações políticas ou econômicas unificadas não há experiência empírica em que se possa basear uma opinião. É partir de dentro. A observação empírica do mundo é uma forma de
da Europa, Rússia e África, por exemplo, ou da China e América evidente que o conceito de cosmologia é fundamental para a adorar a Deus por meio da valorização de sua obra. O
Latina. Havia uma variedade de maneiras de buscar solução para os antropologia e para a história das idéias, assim como leva à questão desenvolvimento de novas técnicas de agricultura é uma forma de
problemas do mundo que refletia as distintas ideologias políticas dos da hermenêutica – a dependência da parte em relação ao “todo”. melhor desempenhar a caridade, aumentando a fertilidade da terra
participantes do jogo. Se achassem que deveria ocorrer uma Portanto, as críticas à noção de cosmologia normalmente se alinham para que um maior número de pessoas possa partilhar as bênçãos de
transformação, ela ocorria; se não achassem, não ocorria. Quem com as críticas da idéia de cultura e com o projeto de interpretação. Deus.
realmente deveria participar desse jogo do mundo seriam os Tentar compreender a cosmologia de um povo, num local e numa
representantes das grandes empresas, responsáveis pela maior parte época distintos, implica adotar a posição de ir além do que se ouve e Por volta de 1800, a percepção da natureza como uma grande
da destruição. São exatamente essas as pessoas a quem o jogo é se vê e tentar apreender percepções, as categorias de compreensão máquina, um relógio que conhecemos como o grande divisor de
dirigido. De que adiantaria irmos falar com organizações destes “outros”. Mesmo que alguém tente “voltar às raízes”, tornar- águas da objetividade, se tornara dominante – e os Principia
ambientalistas sobre coisas que já conhecem perfeitamente? Você tem se parte da sociedade em questão e até se transformar – submetendo- Mathematica, de Newton, depois atualizados pela Mécanique Celeste,
que se dirigir às pessoas que, realmente, têm algo a ganhar. se aos rituais necessários para se tornar um membro daquela de Laplace, eram cosmogramas dessa linha de raciocínio, escritos em
sociedade –, haverá sempre mil maneiras de provar que não o linguagem matemática. É aqui que se dá a grande polarização entre
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER conseguiu. Resumindo, portanto, é praticamente impossível uma visão mecânica do mundo e o romantismo, muitas vezes
desvendar o que se passava na cabeça de um hipotético interlocutor, considerado como uma reação à industrialização e à mecanização. As
ou descrever sua visão do mundo, ou cosmologia, como uma espécie telas de Caspar David Friedrich são exemplos clássicos de
de reconstrução imaginária. cosmogramas que se adaptam a tal visão, estabelecendo um vínculo
simbólico entre o interior e o exterior, entre a luz (tanto enquanto
E é aqui que entra a noção de cosmograma. Sempre existem alguns realidade, quanto metáfora) e o ato de enxergar, mas de uma maneira
pontos de referência fundamentais que permitem às pessoas individualista, isolada da sociedade e da tecnologia. O famoso quadro
chegarem a um acordo – de certa forma, como os ritos e objetos do homem visto de trás e olhando para a tempestade no mar, por
simbólicos que Durkheim analisa em seu Les formes elémentaires de exemplo, é emblemático de uma certa versão do tema romântico,
la vie religieuse. As festividades anuais estabelecem tais pontos de convidando o espectador a se identificar com ele, a chegar aos limites
J OHN T RESH referência para reivindicar pertencer a um determinado grupo. E é da razão, a mergulhar num mundo dinâmico e natural. Em outras
precisamente isso que faz um cosmograma: coloca essa totalidade telas de Friedrich, vêem-se cruzes, templos, ruínas de cemitérios, que
numa forma concreta, como ponto de partida para novas sugerem uma espécie de sensibilidade humana numa relação
JOHN TRESH , ESTUDOU ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA , É UM FELLOW DA interpretações e ações – relações sociais, com outras culturas, com específica com a natureza, com a história da humanidade, com a
HUMANITIES INSTITUTE DA UNIVERSITY OF CHICAGO . ESCREVEU UM LIVRO INTITULADO
MECHANICAL ROMANTICISM : REBUILDING THE COSMOS IN THE FRENCH INDUSTRIAL entidades naturais, com animais ou plantas – e também estabelece divindade. Porém, sempre isolada – e, em alguns casos, até como
REVOLUTION . uma relação entre esferas ou níveis ontológicos distintos – o mundo negação – da ciência e da mecânica.
terreno, o mundo espiritual, Deus e os ancestrais, os pontos em que
se cruzam. É muito mais concreto do que uma cosmologia. Uma No entanto, essa polarização não é tão clara. Na primeira metade do
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO

cosmologia não pode ser vista: a “visão do mundo” está encerrada na século XIX é possível encontrar vários projetos de reforma que
cabeça das pessoas. Também permite uma abordagem mais simples: poderiam ser chamados “romantismo mecânico” e nos quais se
PARIS _ 24 DE JUNHO DE 2004
a pessoa pode se relacionar com um cosmograma de maneiras podem ver tecnologias, máquinas industriais e a vapor, os primeiros
diferentes – não é um padrão mental monolítico que determina seu passos da eletricidade e máquinas modernas para observação

A primeira vez que ouvi o termo “cosmograma” foi numa pensamento e sua ação. Portanto, um cosmograma sugere uma científica, como o daguerreótipo, como meios de recriar a totalidade
humana e natural, superando as divisões sociais, culturais e
conferência, na Universidade de Columbia. David Damrosch, que cosmologia como parte de práticas comuns, uma representação feita
ensina estudos religiosos, usou-o quando falava sobre o Tabernáculo, por quem tem uma visão do mundo daquela visão do mundo. intelectuais, para reunificar o mundo. Em meados do século XIX,
o templo construído por Moisés que é citado no final de xodo, o Auguste Comte partiria da rejeição a quaisquer referências a espíritos
segundo livro da Bíblia. O Tabernáculo é uma representação da Meu interesse, assim como o de outras pessoas que estudam a invisíveis, à metafísica, às coisas que não podem ser vistas. Porém,
totalidade do cosmos – dos poderes de Deus, de sua relação com os história da ciência, é estudar a ciência ocidental tal como os na última parte de seu trabalho, Comte passaria a encarar a ciência
homens e do lugar destes na relação com o restante da natureza. Na antropólogos fazem com uma cultura estrangeira, compreender como como um instrumento para construir uma sociedade global
época, eu estudava mudanças em representações do cosmos que diferentes tipos de atividades e de práticas se encaixam numa completamente unificada, tomando por modelo a igreja católica. Essa
ocorreram na França no início da revolução industrial. Vinha usando percepção absoluta do universo e como essa percepção muda com é a Religião da Humanidade. A sociologia não é, de forma alguma, o
o termo “cosmógrafo”, mas este o restringia à escrita. Procurava um novas descobertas, invenções, mudanças políticas ou contato com estudo meramente teórico e desinteressado da sociedade; pelo
termo que não somente abrangesse a escrita, mas também imagens, outras tradições. Para compreendermos a cosmologia ocidental, a contrário, conclama à transformação da sociedade, à sua
objetos, formas arquitetônicas, gestos rituais, “ações”. forma como funciona, também é importante diferenciar o reconstrução, partindo-se do modelo explícito da igreja católica, num
cosmograma da cosmologia, pois atualmente já existe uma disciplina mundo unificado em que não existem mais Deus nem fé que não
Decidi olhar o texto que Damrosch havia discutido. Aquela passagem científica especializada, chamada “cosmologia”, que estuda a história tenha sido posta à prova – tal como existiu um Deus na Idade Média
do xodo é um pormenorizado manual sobre como construir o templo do universo físico. É interessante observar a conexão entre que foi, finalmente, destruído de uma vez por todas com a Revolução.
dos hebreus. O papel que desempenha na narrativa da Bíblia é o de astronomia e teologia que, em algum ponto do passado, se A diferença está em que as crenças não são mais estabelecidas
reconstituir os vínculos e a aliança entre Deus, os homens e a separaram. Portanto, tentar apreender a “cosmologia” do Ocidente através da autoridade, mas através da razão e da observação.
natureza, vínculos que antes já haviam sido rompidos – o pecado moderno implica problemas complicados; e só é possível ter uma
Em 1849, com Catéchisme positiviste, Auguste Comte criou os novos
original, o dilúvio, a torre de Babel.O tabernáculo é um templo com visão de conjunto refletindo sobre como a ciência e a tecnologia se
ritos para a era positiva da humanidade. Criou uma série de
o projeto arquitetônico, o material utilizado – e até as cores – adaptaram a outros padrões de que dispomos para que o universo
cosmogramas que tinham por objetivo descrever a sociedade em sua
escolhidos por Deus. Adapta-se à vida religiosa de um povo nômade: fizesse sentido.
totalidade, dividida em suas distintas classes e funções, nos moldes
é portátil. Como uma tenda, pode ser desmontado e reconstruído e é
Pesquisadores de campo coletaram muitos cosmogramas, tais como de todas as diversas ciências pelas quais se conhecem todos os
feito a partir das tecnologias que os hebreus dominavam naquela
símbolos religiosos e objetos de outras culturas. Há muito tempo, a fenômenos naturais, os vários segmentos biológicos, físicos e
época: trabalhos de metal, tecelagem, desenho, tintura, trabalhos de
antropologia se interessa pela religião, o que não é estranho, pois o astronômicos da realidade, toda a história da espécie humana. Mas
madeira – e, a tudo isto, Deus chama pelo nome. No centro há um
advento da antropologia, no século XIX, coincidiu com o declínio da iria mais longe: o que ele construiu foi uma espécie de tabernáculo,
altar, a Arca da Aliança, e dentro, as tábuas da Lei, uma relação de
religião. Mas as religiões “deles” se contrapõem, muitas vezes, à uma nova arca da aliança. Comte regrediu, atualizou e reavaliou o
todos os membros de todas as tribos e todas as recomendações sobre
“nossa” ciência. Em termos de um estudo do mundo ocidental, imaginário cristão, porém com novos objetivos, uma vez que queria
ética e alimentação: listas dos vários tipos de ações, dos vários tipos
poderíamos pensar em cosmogramas fora do padrão religioso daquele restaurar a unidade cosmológica num mundo sem transcendência. O
de povos, de plantas e de animais.
do Tabernáculo. Muitas vezes se diz que ocorreu uma grande ruptura calendário positivista – gravado na parede norte da Biblioteca de
Em outras palavras, o texto do xodo é um cosmograma que contém entre o conhecimento da natureza e o restante da sociedade e que Sainte-Geneviève – é um imenso cosmograma. Assim como durante a
o projeto do lugar santo que iria encarnar as relações entre os isto teria tido início com a revolução científica e se teria completado Revolução Francesa, quando se decide recriar a sociedade, é
homens, Deus e a natureza. Também consiste numa maneira no século XIX. Então, a ciência teria tomado o lugar da religião. Mas necessário começar do zero. O calendário positivista dá novos nomes
interessante de refletir sobre o modo de trabalho empregado e o papel ao observar os cosmogramas a partir de alguns marcos de nossa aos dias da semana. Atribui a cada mês uma etapa essencial no
da tecnologia. O resultado de tal construção foi que, no sétimo dia, história, é possível ter um quadro diferente. desenvolvimento da sociedade humana até aquela data: do
quando as pessoas terminaram o trabalho e entraram no santuário – politeísmo, do fetichismo, do monoteísmo, do feudalismo, da
e depois que os sacerdotes haviam cumprido os necessários rituais na New Atlantis, um famoso texto de Francis Bacon, do início do século metafísica até o estado “normal”, trata-se de um processo cumulativo
ordem adequada – Deus apareceu aos hebreus e, na forma de uma XVII, também conhecido como fundador do método científico e da de construção, ao contrário do estado “patológico” de eras antigas.
nuvem, ocupou toda a tenda. Tratava-se de uma máquina para fazer observação empírica da natureza, é outro cosmograma e, na Há, por exemplo, um dia de homenagem à mulher, quando todo
Deus aparecer. O fundamental é que o vínculo com Deus se tornou realidade, utiliza e atualiza alguns aspectos do Tabernáculo do xodo. mundo é lembrado da contribuição que deram as mulheres à história
possível por meio de uma construção descrita de maneira É a história de um grupo de marinheiros, todos bons cristãos, que se da humanidade. Para Comte, a mulher representa a emoção, o lado
extremamente pormenorizada e técnica; e, nessa construção, há lugar perdem no mar e acabam sendo levados a uma ilha desconhecida. afetivo da humanidade. Portanto, essa organização do tempo, esse
para toda a sociedade e para toda a natureza. O importante – e é por São saudados por representantes da “Casa de Salomão”, o qual usa modo de procurar um novo foco de atenção e essa redistribuição
isso que difere da cosmologia – é que falamos de um texto que roupas de linho de cor vermelha, azul e violeta, justamente as cores social de crédito também participam numa psicologia e numa ética.
resultou numa prática concreta e organizou objetos, tecendo-os entre do Tabernáculo, e é carregado numa padiola decorada de cristal e Na realidade, é uma parcela da natureza da pessoa que é chamada e
si num inventário completo ou num mapa do mundo. ouro e com uma imagem de um anjo, tal como assento de homenageada nessa festa, a força ativa da afetividade é convocada
misericórdia de Moisés. Ele fala sobre os tesouros existentes no para reforçar a unidade do cosmos que o sistema descreve e cria. As
É a materialidade do cosmograma que o torna um objeto templo – a “Casa de Salomão” –, sobre inventos de todo tipo, alguns festas lembram aos homens a história da sociedade, dando

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visibilidade às relações sociais do presente. O calendário, tal como a lidamos com símbolos mas, sim, com as coisas como elas são. de um sujeito – e na idéia do «kosmotheoros», de um sujeito capaz
ciência aplicada da sociologia, é uma tecnologia para curar a Atribuímos às ciências a faculdade de se desvincularem de todas as de uma distância, no fundo infinita, pois possibilita a apreensão do
sociedade contemporânea, para trazê-la de volta a um estado questões sociais e éticas. Podemos ter uma compreensão de como mundo sob todas as suas faces. O mundo, ao contrário, é sempre a
“normal”. funcionam alguns domínios do conhecimento, tais como o perspectiva – pelo menos a perspectiva, para permanecer na ordem
conhecimento das estrelas, das propriedades de certas plantas, de do ver.
Estas preocupações de Comte podem parecer estranhas à luz do que Deus, da magia etc.; mas não sabemos como tornar explícitos os
normalmente se considera o positivismo – em especial nos países de vínculos entre esses domínios distintos. A história da ciência e os JCR _ Você diz: «m mundo é um meio no qual se está». A ecologia
língua inglesa, nos quais, em geral, significa confiar na observação e estudos científicos começam a mostrar como as ciências se baseiam seria, para você, o paradigma do pensamento do ou sobre o mundo ?
na lógica empíricas, rejeitando tudo o que sejam valores, fé, ou sempre em circunstâncias sociais específicas que só posteriormente
emoção no reino do conhecimento. Penso que esse equívoco a serão esquecidas ou apagadas. O que esses pesquisadores vêm JLN _ Eu fabriquei a palavra «ecotecnia», que não soa muito bem,
respeito do positivismo vai de mãos dadas com um equívoco maior tentando fazer – e tenho a felicidade de estar entre eles – é para dizer que o «oikos», o lugar familiar, o lugar de vida, não é mais
da sociedade ocidental que ainda carregamos. Existe uma corrente de reconstituir todos esses vínculos, essas situações sociais que tornam «natural», nem «familiar», nem dotado de suas próprias regras («oiko-
pensamento muito disseminada que sustenta, de certa forma, que se possível um “conhecimento autônomo” num dado momento. nomia»), mas, sim, é inextricavelmente imbricado com a «tecnia», a
o homem domina os segredos do átomo, o código genético e os transformação de todos os lugares e a dissipação dos fins claramente
princípios que combinam e recombinam a matéria, então nosso Portanto, a tarefa consiste em relacionar todos os diversos atribuídos e, mais ainda, do «fim supremo» da humanidade ou do
conhecimento é forte porque se separou totalmente das questões da cosmogramas que se encontram em circulação num determinado mundo. Havia lugares como a floresta, o mar, a praia, o campo, a
moral, da política – e fala-se sobre pesquisa científica como se esta lugar, num determinado tempo, e descobrir como são utilizados, clareira (alusão a Heidegger!), ou ainda, sem dúvida, a ágora, a praça
fosse desvinculada de questões políticas ou éticas. Apesar de como agem entre si, como contêm, substituem, ou trabalham em da aldeia, a igreja, o hospício, o castelo, a fazenda, o quarto, e
argumentos infindáveis e de exemplos em contrário, ainda persiste concordância – ou hostilidade – uns com os outros. Então será também os desertos, as montanhas, as terras desconhecidas, as terras
essa noção de uma “ciência pura” que transcende completamente possível comparar esta partícula de tempo com episódios passados ou proibidas, os túmulos, e tudo isso se transforma em pólos de redes,
todas as relações humanas. No entanto, se não quisermos cair em futuros. Indo mais longe, o horizonte está sempre ali, no que Lévi- em nós e cruzamentos de vias de circulação e de comunicação. Onde
todo tipo de contradições e auto-decepções, devemos reconhecer que Strauss chamou “antropologia” por oposição à etnografia: a havia paisagens e países, há, cada vez mais, tecidos e fluxos. Quanto
ainda nos encontramos naquela situação fundamental de ter que comparação entre cosmogramas de mundos muito diferentes, tanto à «dissipação dos fins», é um desenvolvimento do que precede: aos
juntar tudo num único mundo. No início da industrialização, as no espaço quanto no tempo. Num outro plano, especialmente numa lugares correspondiam fins determinados – à igreja, a oração; ao mar,
pessoas o reconheciam: Comte, o Sacerdote da Humanidade, ou o exposição de arte internacional, devemos perguntar: “Que tipo de a pesca; ao deserto, o retiro etc. Porém, hoje, os fins imbricam-se
grande naturalista e cosmógrafo Alexander von Humboldt, ou o cosmograma é possível conseguir a partir de todos estes indefinidamente uns nos outros: por exemplo, pesca-se para comer
astrônomo François Arago, tentando unir o conhecimento sobre a cosmogramas locais, tão diferentes, às vezes até contraditórios?” Não peixe, mas, para se poder pescar, é necessário preservar as espécies
natureza de suas sociedades, suas orientações éticas, sua ordem sei o suficiente do idioma grego para dizer se existe um plural para a – ou até criá-los em viveiros – assim como as possibilidades de pesca,
social, em uma única representação. Tal como os cosmologistas de palavra cosmos. Mas cosmograma, decididamente, pode ser as rotas marítimas, o manejo dos equipamentos de pesca, seu
Dogon, os manipuladores de marionetes de Bali ou os xamãs de conjugado no plural. controle etc. São necessárias convenções internacionais, protocolos
Jivaro. sobre a natureza, a estrutura e o tamanho dos equipamentos, sobre a
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . circulação dos navios. É preciso regulamentar o comércio. Para isso,
Seria possível se perguntar quais são os limites do conceito de
são necessários engenheiros, contadores, inspetores, gestores.
cosmograma. Para além dos exemplos citados, haveria uma espécie
Escolas, instituições, sistemas de formação. A cada um desses cargos
de cosmograma ideal? E, tentando utilizar o conceito no presente,
corresponde um conjunto de funções criadas, e assim por diante. A
que tipos de representação seriam adequados ao mundo esquisito e
tal ponto, que a finalidade «comer peixe» se perde, de certo modo,
complexo em que vivemos? Aqui, não posso deixar de pensar na
nessa malha estreita de outros conjuntos de meios - e - fins. E, para
relação entre este projeto de pavilhão e o atlas Mnemosyne, de Aby
«acabar» criam-se aquaculturas ou, então, fabricam-se caranguejos
Warburg, uma coleção de imagens que sugere o espectro de
artificiais, outras finalidades. Em poucas palavras, seria possível
polaridades e fantasmas que habitam a mente do homem moderno, à
dizer: os fins intermediários cancerizam os fins finais. Aliás, a
medida que este adapta tradições antigas a um novo momento – tal
palavra «câncer» indica uma nova abertura de finalidades... Como se
como uma maneira, diz ele a certa altura, de acertar as contas e se
recuperar da esquizofrenia de nossa cultura. Existe, inevitavelmente, J EAN - LUC N ANCY sabe, hoje o câncer prolifera e torna necessárias muitas intervenções
sobre os ecossistemas, ao mesmo tempo em que suscita pesquisas e
uma continuação com alguns projetos do Iluminismo, como a
invenções terapêuticas, comportamentos e legislações etc., etc.
Enciclopédia – que d’Alembert chamou de mappemonde: os
JEAN - LUC NANCY , NASCIDO EM 1940 , PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE MARC Produz-se uma intermediação generalizada e sem fim nos dois
cosmogramas podem ser inventários de tudo o que existe e existiu; BLOCH DE ESTRASBURGO , É PROFESSOR CONVIDADO NA UNIVERSIDADE DE BERLIM E NA sentidos da palavra «fim» em francês.
podem voltar atrás em toda a história da humanidade; como nos UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA . PUBLICOU INÚMERAS OBRAS QUE ESTÃO TRADUZIDAS EM
MUITAS LÍNGUAS . DENTRE ELAS : LE SENS DU MONDE - 1993 - E LA CRÉATION DU MONDE
romances de Balzac, podem descrever uma história natural da JCR _ Haveria algum acontecimento na história que poderia ser
OU LA MONDIALISATION - 2002 -, AMBAS PELA EDITORA GALILÉE , PARIS .
sociedade. Mas os românticos, com sua obsessão pelo fragmento, nos indicado como data dessa mudança de sentido da palavra “mundo”,
conduzem a perguntar se há alguma coisa que pode não ser TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI como data do início desse fim marcado pela unificação ?
considerada um cosmograma. O fragmento nos remete à totalidade;
qualquer objeto que possamos encontrar é produto de uma infinidade JLN _ Sim, creio que o que nos ensinou isso e nos marcou (com e sem
WEB _ NOVEMBRO DE 2004
de relações que se espalham muito além deste instante no espaço e «s», em dois sentidos portanto) foi a primeira guerra chamada
no tempo. «mundial»: porque esse epíteto, muito abusivo para a aurora da
«globalização» atual, deve ter surgido (desconheço, de fato, quando
Muitas vezes, existe num cosmograma um objetivo que vai muito J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Seu livro, Le sens du monde [O sentido
e como essa denominação se impôs, em concorrência com a de
além da mera descrição ou representação: pode ser uma redescrição, do mundo], parece-me que se articula em torno de duas questões: a «grande guerra», que é mais européia e mais arcaica; trata-se de uma
no condicional ou no futuro – não o mundo tal como é, mas como constatação do fim (particularmente, do fim do mundo concebido pesquisa a ser feita) do sentimento de uma perturbação simultânea
poderia ser. Pode existir uma intenção utópica, o objetivo de projetar como universo ou como “reunião em um”) e o tema da vinda sem fim das relações entre Estados (primeira guerra excluída da definição
novas possibilidades para um mundo que parecia fixo. Um exemplo (o desaparecimento do sentido como pro-jeto). Perda da unidade e da estrita da guerra, como Carl Schmitt a analisou: guerra se
recente é o dos romances de Philip K. Dick, que mapeiam pontos em unificação de um lado; perda da significação como destinação, de pretendendo «punitiva» em relação a um mau governo, não em
que a ontologia comum escorrega, em que existem fendas na outro. Em sua opinião, o que, fundamentalmente, torna a unidade do relação a um povo etc.), das relações entre continentes (os norte-
realidade, fora da qual pode emergir um mundo novo e mais mundo impossível de ser apresentada? Isso implica sua eclosão em americanos na Europa), das técnicas (aviação militar, gás de combate
completo. Neste sentido, os cosmogramas têm uma relação com o múltiplos mundos plurais e singulares (cosmogramas?) que não mais etc.), das ordens de grandeza (número de combatentes, de mortos,
tempo como têm os ritos de passagem de todas as sociedades: o teriam a ambição nem os meios de constituir uma representação do amplitude dos meios), dos vínculos entre a guerra (as frentes) e a
tempo liminar, no qual são suspensas as relações comuns, em que há, cosmos ? sociedade (nunca antes tão estreitos e intrincados), da própria
muitas vezes, uma recriação simbólica do mundo e da sociedade, ao
consciência dos povos em relação à guerra, em relação a si mesmos
mesmo tempo em que há a formação de uma comunidade fora das JEAN - LUC NANCY _ O que torna a unidade do mundo impossível de ser
etc (a «der des der», a necessidade de superar os ódios nacionais:
estruturas sociais comuns. Após a seqüência ritual, os participantes apresentada é, de maneira muito paradoxal, sua unificação, porque a
depois da guerra, busca de encontros franco-alemães) etc. Não se
voltam a um mundo transformado, com as estruturas redefinidas, o unidade do mundo nunca fora senão a unidade projetada sobre ele
acabaria de analisar os elementos de gênese do «mundo mundial» na
cosmos refeito: então, o espaço de possibilidades se fecha de novo. por esse por aquele pensamento, por essa ou por aquele cultura. E a
história desse conflito.
Os cosmogramas costumam guiar essa recriação e restabilização do representação de um «kosmotheoros» capaz da visão total do mundo
mundo. Podem sugerir estruturas permanentes, assim como podem era, cada vez que ocorria, tributária de uma cultura, embora nem
Segue-se a isso, justamente, também uma perturbação das visões do
confirmar sua fluidez e eventualidade. sempre fosse a mesma e embora houvesse várias culturas
«mundo»: muito tempo após a convocação francesa de 1789 a uma
alimentando a representação de um olho divino universal. Tal
universalidade democrática, apelo que permaneceu ligado às
Também é importante o fato de qualquer cosmograma sempre tentar representação implica um pressuposto: que o mundo pode ser
individualidades nacionais, é uma outra universalidade que
re-situar as preocupações e ansiedades de uma pessoa numa disposto como um objeto, como um panorama ou como um cenário
desponta, não mais a de repúblicas iguais, mas a de um todo
estrutura mais ampla que a individual, o grupo social, a nação ou o integralmente visível para um espectador ideal ou absoluto. E isto é
internacional ou transnacional confusamente percebido e no qual se
presente. Essa dimensão de realidade é sempre acessível: somos exatamente o que, sem dúvida, o mundo contemporâneo nos obriga
descobre também que se tornou capaz de um desastre inimaginável
sempre parte de um sistema mais amplo, mas nem sempre temos a descartar: aprendemos, hoje, que o mundo não é um objeto nem
até então (já um pouco pressentido, em 1870, dada a crueldade do
consciência disso. Os cosmogramas implicam uma ecologia. Não um espetáculo. Um mundo que posso me representar em sua
combate moderno).
apenas no sentido empregado pelos ecologistas, mas com o sentido integralidade de mundo não é mais um mundo: é um universo, é um
que lhe dá Gregory Bateson em seu livro Steps to an Ecology of Mind. cosmos, é uma criação, nos sentidos mais tradicionais desses termos.
JCR _ Em que medida aquilo que se designa como mundialização ou
Bateson tem uma perspectiva antiessencialista que pressupõe a Compreendemos, hoje, que um mundo é, ao contrário, um meio no
globalização seria o sinal de uma divergência fundamental em relação
interdependência de todos os seres, vinculando a ecologia, em sua qual se está e que só pode ser apreendido do interior. Está-se num
à idéia de Cosmos ou de Universo ?
acepção biológica, à cibernética e ao que poderíamos chamar a mundo, e não diante dele.
história natural das idéias.
Do mesmo modo, pode-se dizer que nunca se vê um mundo: está-se JLN _ À medida que «mundialização» designa o paradoxo de um
Não menos importante é avaliar os cosmogramas, comparando-os nele, habita-se o mundo, explora-se o mundo, alguém se acha ou se mundo que perde sua situação cosmológica bem marcada, que se
entre si. Precisamos superar a idéia de que nossa sociedade não perde nele... – inúmeros conceitos que estão muito longe de ser da sente lançado no indefinido de uma expansão percebida também
necessita tais representações – que, com a ciência moderna, já não mesma natureza que a do «ver», que implica distância, afastamento como errância. Ele constitui mundo sem se reunir em uni-versum.

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A partir dessa perturbação ou dessa dissipação tendencial das inadequada, arruinada, desmoronada – ao absoluto do sentido, a um anoréxica, suceda ao frenesi de pregação da proteção ao consumidor
consistências nacionais ou culturais («França», «Alemanha», acontecimento supremo que não se realiza. É muito delicado dizer … Como suscitaria ele suas roupas, seu transporte, suas imagens?…
«Europa», «Estados Unidos da América», no lugar onde um isso porque nunca é simplesmente verdadeiro a respeito de nenhuma
«Universo» poderia ainda estender suas esferas acima ou além dos grande disposição e não quero, aqui, falar apenas de grandes JCR _ Ao ouvi-lo, parece que, para você, há fundamentos para se
povos e dos Estados, de repente a topologia se embaralha, tudo se pensamentos (desse modo, Hegel nunca é redutível ao hegelianismo considerar que estamos em via de viver a passagem de um certo
mistura e vem constituir «mundo». etc.), mas também das disposições íntimas e silenciosas, e mesmo paradigma do tempo e da história, marcado pela antecipação e pela
mudas (incapazes de falar), de todos os homens em sua relação a projeção, correlativa, desde o século XIX, ao ascendente intelectual,
JCR _ Seria possível tematizar essa mudança de representação ou de menos consciente, a mais aparentemente imediata à sua vida, à sua político e moral das filosofias da História, ao paradigma da inclusão
concepção do mundo como a passagem do universo ao «pluriverso»? morte, aos seus trabalhos, aos seus dias, aos seus amores. Cada e da imersão ?
Em que sentido, exatamente, se poderia dizer que o mundo de hoje disposição representada (isto é, discorrida, articulada de uma
JLN _ Vivemos, certamente, uma oscilação maior dos paradigmas, isto
constitui um não-cosmos ao invés de um cosmos ? maneira ou de outra) sempre comporta nela, sob ela ou além dela
é, das culturas, dos equilíbrios entre culturas e internas a cada
uma disposição mais secreta – e talvez esta não se deixe reduzir em
cultura. A mudança não é menor que aquela que acompanha o
JLN _ Essa passagem parece-me demasiado simples. «Pluriverso» relação ao absoluto. Talvez ela também seja capaz de se apreender a
nascimento da cidade grega ou o do Estado moderno, ou então que a
quereria dizer que em vez de se orientar para o uno, ou de se inclinar si mesma como o absoluto, o que é completamente diferente. Isto é,
mudança que se produziu em torno do budismo assim como aquela
em direção ao uno, se orientaria para o múltiplo. Mas, então, não se de apreender seu próprio afastamento, a distensão que a tende (a
de que resultou o cristianismo. E como essas mudanças, essa
«orientaria» mais, não haveria mais «versus». Creio que a substituição morte, o amor, o sentido, o impossível...) como absoluto, insuperável
oscilação traz em si a imprevisibilidade de seu futuro, sem a qual ela
do singular pelo plural não é suficiente. Porque a unidade insiste, e destacado do todo: absoluto espaçamento, vazio de uma abertura
não seria mudança.
mas de outro modo. Não se livra tão facilmente do uno. Realmente, que não abre para nada, mas que se abre. E esse «abrir-se» seria a
o uno é sua própria negação, como diz Hegel, mas essa negação não única – absolutamente a única – forma de «autoconstituição» sempre
Nunca uma época foi tão privada de representação de um princípio,
ocorre sem conseqüência. Ela trabalha a pluralidade: isto quer dizer possível (não há «fundar-se», «engendrar-se», «realizar-se» etc. – mas
de um pólo ou de um objetivo (seja ele divino, imperial, humano,
que é necessário aprender a se referir a essa negação. Um mundo é há um «abrir-se», e ele abre antes de tudo o «se»). Esta seria a
natural, científico, artístico). Nunca, sem dúvida, uma época
sempre uma postulação de unidade: o mundo, o nosso – este mundo «espacialidade do sentido»: ele se abre. O sentido é envio a ... : e este
restringiu tanto sua conduta a uma espécie de sobrevivência difícil,
de que, em resumo, não paramos de confirmar a unidade e mesmo a envio é para acabar «em nada», isto é, ele é infinito.
estreita, inquieta, à qual as maiores perspectivas de domínio e de
unicidade recuando cada vez mais os limites de nossa exploração do
engenhosidade não fornecem nem princípios nem objetivos. Isso, de
universo sem aí encontrar outros «mundos» de significação, mas E é aí que eu faria intervirem as disposições pensante e operante: elas
fato, está em marcha desde a primeira «guerra mundial» - mas hoje
apenas outros mundos físico-químicos, geográficos, geológicos, e não são as disposições, ou elas compõem a dupla disposição do «abrir-
isso se torna evidente. Todas as referências disponíveis pertencem à
mundos metafísicos, este mundo, portanto, exige sua unidade.. Mas se». Pensar, operar: deixar a abertura se abrir, o espaçamento se
esfera do passado, têm pelo menos um quê de «já visto, já dito». Não
como? Não mais a partir do mundo da unidade apresentável: ao espaçar.
é mais possível dizer «amanhã será...». «No future». Mas também não
contrário, sobre o modo da negação de tal apresentabilidade. Ora,
O espaçamento da abertura seria exatamente o que substitui o projeto há mais lugar para uma escatologia: não há presente abrindo-se para
isso nos leva a pensar: o que é feito de uma unidade que se retira ou
– mas, ainda uma vez, sob condição de que não nos enganássemos a eternidade. Não há mais tempo orientado e produtivo, não há mais
que se subtrai a si mesma?
sobre o «projeto». Realmente, houve e há os projetos científico, presente aberto para o absoluto – e sempre o tempo, o tempo que se
político, técnico, ético etc. Isto é, projeções de fins e de meios escoa em todos os sentidos ao mesmo tempo, para trás como para a
Pode-se dizer que o mundo é acósmico no sentido em que não é mais
coordenados a esses fins. Mas também sempre houve mais e outra frente, e de lado. Isso não é uma «revolução», justamente: é uma
«ordenado a» por uma potência superior a ele, fundadora, criadora ou
coisa além disso. Sem dúvida, se posso dizê-lo, sempre, ou na mutação, uma metamorfose, uma cesura também, um abalo, um
teleológica. Por causa disso, tampouco é «cósmico» no sentido em
maioria da vezes, houve o «jeto» puro e simples – ou então, absoluto tremor de (a) terra. Não tenho nenhum ponto de vista superior para
que essa palavra grega implicava uma idéia de beleza harmoniosa:
– no próprio projeto e, em resumo, do próprio projeto. Quero dizer afirmá-lo: mas a afirmação se impõe porque todo o resto se esquiva
ele não nos apresenta mais uma imagem bem composta, semelhante
que o científico ou o militante dedicando-se a uma pesquisa ou a uma na inconsistência das formas gastas.
a essas esferas encaixadas cuja música era tida como devendo
encantar os ouvidos dos anjos. O esquema cosmológico, hoje, é o de ação (é a mesma coisa) atribui também, ao mesmo tempo, a seu
Para concluir, não é uma afirmação que se apóie num saber, nem em
uma expansão indefinida de um dado finito (o que implica também a próprio «dedicar-se» um valor absoluto, aqui e agora imediatamente
resultados de uma análise, nem em recursos de uma filosofia. É uma
possibilidade, senão a necessidade, de uma implosão, de um fim do e absolutamente válido ou validável – em Kant, isso se chama uma
afirmação que é afirmada em mim, sobre mim, e mesmo contra mim,
mundo). Uma expansão, um espaçamento indefinido do próprio dignidade - «Würde». É o valor que não depende de nenhuma
pela força de uma imposição externa.
espaço. O mundo se afasta de si: eu não quero mais solicitar de projeção, mas da força da avaliação de que o «sujeito» ele mesmo
maneira metafórica o que os astrofísicos trabalham e calculam, mas está em seu «projeto», mas não em razão do «pro» da projeção: em
JCR _ Se existe algum sentido em querer espacializar o sentido do
qualquer que seja a relação com seu saber, creio que é interessante razão do «se lançar» dentro, e mais até do «ser lançado» dentro.
sentido considerando-o como co-presença, comunidade de entes,
dizer as coisas dessa forma. O mundo se afasta dele mesmo: ele se relações, é necessário pensar, simultaneamente, que o sentido possível
Se não há essa auto-avaliação absoluta e instantânea, é muito
separa de sua própria unidade, de sua centralidade e, portanto, da relação que cada um, cada singularidade mantém hoje com o
simples: é o suicídio (instantâneo ou muito prolongado na resignação
também de sua finalidade. mundo é uma relação”de um entre outros”: uma relação de inclusão e
terrível de uma vida inteira). É por isso, aliás, que foi possível dizer
de imersão ?
JCR _ Em que medida um mundo que não constitui mais Universo, que o suicídio é o único problema. Mas a raridade do suicídio é
que não é mais representável como a unidade do diverso – como também, em um sentido, a única resposta...
JLN _ Sim, com certeza. Se o sentido está na circulação em todos os
Cosmos, Globo ou Esfera – pode ele, entretanto, ser o lugar do sentido?
O pensamento e a obra (novamente, distintas da filosofia e da arte sentidos do envio ao outro, ao alhures, ao fora – e ao nada – que
Para dizê-lo de uma forma pouco feliz, que paradigma poderia vir a
como atividades específicas, finalizadas – o pensamento sempre constitui o sentido em geral, então, de maneira estritamente
substituir a renúncia a todas as intenções? Se a idéia de fim, se o fim
aberto pelo impensável e a obra pela ociosidade) são o que, na correlativa, cada centro de envio, cada ponto de emissão envia a
como pro-jeto é indissociável da construção de uma história, como
história, supera imediatamente a história. todos os outros. Mas esse envio não se dá a apreender nem a acolher
nomear o que vem em vez da e no lugar da história ?
por ele mesmo. «Um entre outros»: eu não domino o «entre» nem o
Isso não quer dizer que tudo se torna igual, exposto e simplesmente «um» que nele se imergem e que, ao mesmo tempo, dele se
JLN _ Acontece que a representação do «sentido» como realização de simultâneo. Isso quer dizer que os fins projetados devem ser, eles distinguem.
uma significação última não é senão um aspecto muito limitado das próprios, desvinculados do «fim último» ao qual estavam ligados por
possibilidades do pensamento. Acabamos acostumando-nos a uma algumas representações. Não só desvinculados desse fim último, mas BASEADO NUMA CORRESPONDÊNCIA POR E - MAIL COM JC ROYOUX
representação muito estreita, aquela, por exemplo, de uma causa que desvinculados, além disso, deles mesmos: não aderindo cada um a si
explica os efeitos (por que existe água? porque houve tal combinação como a um «bem» apropriável, mas se desvinculando dessa apropria-
de átomos…), ou então um fim (por quê a água? para facilitar as ção e não tendo valor senão enquanto um produzir o ser – ou o fazer;
trocas químicas na mobilidade do elemento...), e transpusemos isso aliás, aqui esses dois termos se alternam. Ser ou fazer ser – o que?
ora para o conceito global de uma «natureza», ora para o de um um instante de presença, isto é, de exposição ao mundo. Um instante
«deus», ora para o de um «homem» e de sua «história», de sua do mundo, o mundo de um instante.
«racionalidade» e de sua «prosperidade» ou então de sua «liberdade».
Mas estamos, agora, no fim dessas construções de visões ou de Fazer ser ou deixar ser implica, necessariamente, que isso seja
concepções do mundo. Então, podemos descobrir que os grandes tomado na co-presença, que não é apenas a dos humanos, mas a de
pensamentos do sentido sempre comportaram, de maneira essencial, todas as coisas do mundo. O «sentido» da co-presença não está senão
uma dimensão muito diferente: a de um sentido sem fim, de um na co-presença. É por isso que cada presença singular tem nela tanto
sentido separado, ausente, como queiram. Na verdade, nenhuma sentido quanto todas juntas – tanto, ou seja, tão pouco. A co- D AVID E LBAZ
filosofia «fecha» o sentido, e as religiões, caso sejam olhadas de presença não deve constituir uma nova assunção, uma representação
perto, tampouco o fecham, embora pareçam representar seu « de ordem superior. A co-presença não tem representação: decorre do DAVID ELBAZ É ASTROFÍSICO NO SERVIÇO DE ASTROFÍSICA DO CEA DE SACLAY , RESPONSÁVEL
fechamento» perfeito (e opressivo). O ápice da meditação religiosa contato e da lateralidade mais que da visão e da frontalidade. O outro PELO LABORATÓRIO DE COSMOLOGIA E EVOLUÇÃO DAS GALÁXIAS . EM ESPECIAL , É O
COMENTARISTA PRINCIPAL E O CO - AUTOR DO ROTEIRO DE L ’ ASTRONOME ET L ’ INDIEN ,
está sempre num abandono, num desapego que convém designar não é somente o outro frente a frente, é também aquele do lado a DOCUMENTÁRIO DE SYLVIE BLUM E CARMEN CASTILLO - 2002 - 52 MN - CO - PRODUÇÃO ARTE
como desapego do sentido dele mesmo. Ele compreende que ele não lado, no qual é possível ignorar-se ... FRANCE / EX NIHILO .

se acaba. Ou melhor, ele não o compreende. Mas não é o simples


absurdo (não é a liquidação do sentido). É o acesso ao sentido do JCR _ Será que as disposições de que você fala fazem apelo a
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI

insensato ou do além do sentido. dispositivos especiais? Seria possível entender o sentido do mundo que
você tenta nomear como a construção de dispositivos suscetíveis de
PARIS _ 28 DE JUNHO DE 2004
Aqui se apresenta o nó inevitável das grandes disposições possíveis permitirem algumas disposições ?
para tal acesso: a disposição trágica, a disposição dialética, a
JLN _ Não sei. Não creio que se possa programar tais dispositivos:
disposição mística. A essas três disposições, que sempre se compõem
mais ou menos entre elas de modos variáveis, podem ser
creio que é o contrário que sempre se produz. Disposições suscitam O VLT – Very Large Telescope (ou Telescópio Muito Grande) – está
dispositivos, não o contrário, ou muito raramente. Um tipo de fé situado numa altitude de 2600 m, a 130 km ao sul da cidade de
acrescentadas duas outras que são diferentes: a disposição pensante
ergue basílicas, outro, ermidas; um tipo de política constrói palácios Antofagasta, no Norte do Chile, no deserto do Atacama. É constituído
e a disposição operante (não falo aqui de filosofia nem de arte por
e um outro, quartéis. As disposições de que falo são, por outro lado, de quatro telescópios de 8,20 m de diâmetro, aos quais se juntam três
razões precisas que seria necessário considerar em outro lugar).
aquelas que também, para nós, se fecharam ou se isolaram… Como telescópios auxiliares móveis de 1,80 m. O VLT pertence ao ESO
As disposições trágica, dialética e mística têm em comum persistir nomear a ou as disposições que estão por vir?… Por exemplo, seria (European Southern Observatory, ou Observatório Europeu Austral),
numa última relação – ainda que seja inteiramente negativa ou possível imaginar que uma disposição ascética, contida, até um consórcio de 11 países europeus.

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O VLT é um conjunto de quatro telescópios de oito metros de bilhões de anos, o vazio vai dilatar completamente o universo e de uma estrela, uma estrela nascida no coração de uma galáxia que
diâmetro cada um, o que representa o maior tamanho que se pode poderia até deslocar as moléculas e os átomos. Enfim, trata-se de um necessita, ela própria, de um universo ainda mais vasto para existir...
obter para um espelho monolítico. Ao combinar seus quatro cenário possível segundo o estado de nossos conhecimentos atuais; Sentimo-nos bem próximos, portanto, desse universo de dimensões
telescópios, o VLT torna-se o maior telescópio do mundo. Dado que amanhã, certamente, haverá informações que nos permitirão inumanas.
a luz se comporta como uma onda, é possível utilizar suas compreendê-lo de outra forma. Por outro lado, não estamos
Quando se decodificou a linguagem da luz, descobriu-se que as
interferências (do mesmo modo como ondas sobre a água interferem, convencidos de que se trate realmente de uma energia do vazio. Fala-
estruturas do universo – das estrelas aos zilhões de galáxias –
produzindo saliências e reentrâncias) para chegar a informações que, se também de uma teoria da quinta-essência, do quinto elemento.
nasceram da coagulação de estruturas menores. Recuando no tempo
de outro modo, não seriam acessíveis – nesse caso, detalhes muito Como uma volta às teorias de Aristóteles que recusavam a existência
e, portanto, descendo nas escalas de grandeza que progressivamente
precisos sobre regiões do céu. No momento atual, utiliza-se essa do vazio e faziam apelo a uma quinta-essência, o éter. Reencontram-
construíram o universo que nos cerca, intervêm, no final da cadeia,
técnica para olhar estrelas em fase de nascimento ou estrelas em se as idéias da Antigüidade e tem-se um pouco a sensação de um anel
estruturas extremamente pequenas denominadas, segundo a teoria
torno das quais orbitam planetas, o que necessita uma enorme que se fecha: o atomismo perdendo seu poder, volta-se a uma teoria
atual, flutuações quânticas do vazio. Atingem-se os limites de nossa
precisão e da qual o VLT é a primeira etapa. A combinação de quatro mais ou menos alquímica da energia do vazio. Hoje, vivemos num
imaginação, mesmo da dos astrofísicos, quando se pensa que a Via
espelhos desse tamanho confere ao VLT uma precisão equivalente à mundo em que há duas ou três vezes mais energia no vazio que na
Láctea, com seus bilhões de estrelas, teria nascido de um ponto
que teria um telescópio equipado com um espelho de mais de 100 matéria. Um total de 90% dessa matéria é chamada “matéria negra”,
infinitamente pequeno.
metros de diâmetro. As primeiras imagens de interferometria acabam porque não se conhece sua natureza e porque não irradia luz. Hoje,
de sair. Desse modo, reconciliam-se quatro pontos de vista diferentes para compreender o universo, não basta mais um só olhar. É preciso Existem teorias que tratam do nascimento do próprio universo e,
em um só olhar, um olhar obtido graças ao computador. Há muito adotar um olhar com facetas multicoloridas, ou comprimentos de dentre elas, a do universo como “bolhas de champanha”, de Andrei
tempo já se renunciou à observação visual: como é fraca demais para ondas, e múltiplas escalas. Tomemos, por exemplo, duas galáxias que Lindé. Segundo esta teoria, múltiplos universos-bolhas nasceriam um
o olho, a luz dos objetos celestes é recolhida com a ajuda de câmeras parecem estar isoladas numa imagem óptica. Uma outra imagem, no pouco por toda parte dentro de um metauniverso, como as bolhas de
nas quais se acumula. Um trabalho de análise informática possibilita, domínio das ondas rádio e que permite detectar o gás de hidrogênio, uma taça de champanha. Alguns desses universos abortariam numa
em seguida, reconstituir uma imagem adaptada ao olhar humano, mostra um ponto de matéria que liga essas duas galáxias e descobre- fração infinitamente curta de segundo e outros funcionariam e
uma imagem com cores artificiais que, no entanto, parecem bem se que elas já iniciaram um processo de fusão que as levará, no dariam origem a universos como o nosso. Desse modo, poderia haver,
reais. Com as interferências, o que se inventa nas telas não são mais futuro, a formarem apenas uma única galáxia. Pode-se também alhures, universos paralelos com sua própria história e sua própria
imagens, mas a música da luz, porque a precisão espacial é obtida perceber indiretamente a presença de buracos negros, invisíveis no medida do tempo – fala-se de sua flecha do tempo. Constata-se aqui
graças à natureza temporal das ondas luminosas. domínio óptico, mas que assinalam sua presença por uma radiação que a ciência, às vezes, supera os próprios limites da ficção científica.
de raios X, quando devoram matéria. Um dia, durante uma discussão, Lindé me confessou ter-se dedicado
Depois que a astronomia se tornou astrofísica, isto é, depois que se
à ciência mais por amor pelo que ela não pode explicar do que o
descobriu que a física dos astros é a mesma que aquela que se Isso implica a coordenação de vários instrumentos: um telescópio no
contrário. São os fenômenos inexplicáveis que mais o interessam,
observa na Terra, graças à decomposição da luz branca em diferentes solo como o VLT, um outro telescópio no céu, a bordo de um satélite
mas a falta de referenciais nesse domínio o levou a tentar afastar os
cores, percebeu-se que se podia decodificar a mensagem da luz e e adaptado a raios-X para detectar a presença de buracos negros, ou
limites da ciência, de modo que ela acabasse encontrando esses
chegar a medir a distância que nos separa dos corpos celestes. Na adaptado à luz infra-vermelha para atravessar os casulos de poeira
fenômenos.
prática, mede-se o tempo que a luz levou para chegar até nós e não nos quais nascem as estrelas. O rigor experimental tem um preço.
se descansou enquanto se procuravam os objetos mais distantes, não Implica num lento caminhar na trilha do conhecimento e que pode Lindé desenvolveu a idéia de que um ponto e um universo são duas
para cobrir a maior região possível do céu, mas para recuar o mais parecer distante de nossas preocupações espirituais, mas a ciência
coisas que podem se encontrar. Se você imaginar um universo vazio
longe possível no tempo. Esses grandes telescópios são um tanto alimenta-se dessa capacidade do homem para imaginar muito além
e nele colocar apenas um elétron, portanto, uma carga negativa, a
paradoxais, pois equivalem a abrir o máximo possível os olhos para do que ele pode construir de forma sólida. Afinal, ela não faz senão presença do elétron se fará sentir em todo esse universo. Se for
ver um ponto que, afinal de contas, é muito, muito pequeno mesmo. consolidar, verificar experimentalmente uma idéia nascida no cérebro colocado um outro corpo, positivo desta vez, em qualquer ponto
Como se fosse mergulhado no céu um laser cuja extremidade fosse de alguém. E essa idéia está impregnada de nossa cultura, de nossos desse universo, ele sentirá a atração do elétron. Não coloquemos esse
tão profunda quanto é grande o tamanho do telescópio. Temos os mitos fundadores...
corpo positivo: compreende-se, então, que o elétron enche todo o
olhos maiores que a barriga, porque tentamos enxergar além mesmo universo com sua carga. Você coloca o menor ponto possível: ele
dos limites de nosso entendimento para ver se vamos compreender o Embora não tenha o mesmo poder de consolo para a alma humana preenche tudo. Ora, imaginemos que podemos ver esse universo de
que for visto. E, com cada uma das quatro lentes do VLT, chega-se a quanto uma concepção mística, a ciência é também fonte de fora – é contraditório, mas imaginemos isso – e que não temos o
encontrar pontos de luz que contêm, sozinhos, centenas de bilhões sabedoria porque nos ensina a arte de viver no cotidiano em relação sentido das grandezas; então, só veremos desse universo a carga do
de estrelas... Galáxias vistas numa etapa que corresponde à sua com um mundo misterioso. Impõe-nos ainda um outro amor que não
elétron. Donde a equação possível entre tal elétron e o universo. O
primeira infância, fetos de galáxias. E tudo leva a crer que esses fetos aquele do conhecimento, o amor da busca de conhecimento e dessa
princípio do ponto que se torna um universo abriu-lhe o caminho
de galáxias são equivalentes ao que devia ser nossa galáxia quando tensão, que nos faz viver, entre o que se sabe e o que se ignora. para sua teoria das flutuações quânticas, segundo a qual cada uma se
estava em fase de nascimento. Portanto, abrem-se os olhos o máximo tornou um universo. A idéia que consiste em fazer inchar o universo
possível para recuar à fase de infância, e tenta-se ver como nasceram O procedimento científico é uma ética da relação cotidiana com o a ponto de fazê-lo explodir e que de um ponto fechado sobre si
os grânulos de matéria que estão presentes no universo. Mas, nessa desconhecido. Vivido como tal, ele só pode ser fonte de tolerância em mesmo pode nascer um mundo não era neutra na mente de um ser
pesquisa, somos rapidamente limitados pelo fato de que as galáxias relação ao outro com suas diferenças, quaisquer que sejam suas que vivia no universo fechado da antiga União Soviética. De fato,
que estão situadas entre nós e as galáxias ainda mais distantes crenças. graças a suas pesquisas, sua reputação permitiu-lhe sair de seu país
formam uma parede que nos impede de ir além. A isso se acrescenta e ir para os Estados Unidos. Seu universo pessoal viveu sua própria
o fato de que recebemos apenas algumas partículas de luz das A idéia do filme L’astronome et l’indien1 era iniciar um diálogo com inflação quântica... Perguntei-me depois se essa teoria teria podido
galáxias mais distantes de nós. Essas duas razões fazem com que, os índios que vivem na região do deserto do Atacama, no norte do nascer num outro contexto. Da mesma maneira, pode-se perguntar-se
antes da existência dos telescópios com diâmetro de oito metros, Chile, fiadores de uma tradição e que vêem construir-se à sua frente se as teorias atuais refletem igualmente o contexto em que vivemos.
fosse impossível atingir tais distâncias. Estávamos limitados a ver o um instrumento tecnológico num local antigo e sagrado que se torna Que significação atribuir à mais recente descoberta de que o universo
universo tal como era quando o sol nasceu, há quase cinco bilhões hipermoderno. Com a ciência, são dois olhares que não podem ser
contém mais energia no vazio do que na matéria?
de anos. O VLT permite-nos estender nosso olhar até os primeiros traduzidos um no outro e que não deixam alternativa senão a
momentos que sucederam ao Big Bang, ou seja, 10 bilhões de anos aceitação mútua no respeito da coerência de cada um. Durante nosso As grandes tradições propõem uma concepção cíclica do tempo. A
antes do nascimento do sol, um momento muito próximo do primeiro encontro, esses índios indicaram-me que conheciam as noção de ciclo é associada à geometria do círculo, a forma perfeita
aparecimento da primeira luz, quando se saiu da noite do universo. razões de nossa presença em seu solo, onde a abóboda celeste é a por excelência, por ser simétrica e nenhum ponto possuir uma
mais acessível do mundo, mas queriam que eu respondesse a uma distância do centro diferente da distância dos outros. O quadrado é
O céu aparece-nos como uma superfície de duas dimensões, mesmo pergunta antes de aceitar o diálogo: em quê nosso procedimento insuportável. Como aceitar essa forma cujos lados correspondem ao
quando se aponta um telescópio para ele. É necessário desenvolver científico iria trazer algo para a humanidade. Respondi-lhes com a tamanho de uma unidade mas a diagonal tem um tamanho irracional,
todo um trabalho de imaginação e de teoria para estender os astros ajuda de uma imagem. O olhar da ciência e o de sua tradição porque, para escrever ÷2, o número de algarismos após a vírgula é
num universo de três dimensões, onde as estrelas e as galáxias representam duas visões bem distintas do mundo. O dos índios não infinito. Pitágoras quase se suicidou por causa disso!
assumem suas verdadeiras distâncias. Por outro lado, durante muito pode ser demonstrado cientificamente e o da ciência visa
tempo se pensou que o mundo era constituído por superfícies essencialmente a compreender, sem necessariamente trazer aplicação Os primeiros que falaram de uma história do mundo foram os que, ao
imbricadas umas nas outras, com todas as estrelas dispostas numa prática útil para os homens. Entretanto, é importante, a meu ver, mesmo tempo, disseram que essa história era ligada a um Deus, que
única esfera, chamada esfera das estrelas fixas. O trabalho do conservar cada uma em seu próprio contexto, o qual lhe dá sentido. havia uma criação. Até o fim da Idade Média, a idéia da existência de
astrofísico é paradoxal, porque se adota um olhar mecanizado sobre Do mesmo modo, cada um de nossos dois olhos vê o mundo com outros universos era algo inimaginável, mas, no entanto, germinou
o céu, sem ter necessidade, aliás, de reconhecer suas constelações, a uma perspectiva diferente, o que nos permite ter acesso à terceira na mente de pensadores como, de modo particular, Giordano Bruno.
fim de ver cada vez mais longe, até o ponto em que atingimos os dimensão através de sua combinação. Se tentássemos fazer os dois Na época, o universo era limitado ao sistema solar. Bruno havia
limites de nosso saber e em relação ao qual se deve, verdadeiramente, olhares se fundirem como se fossem um só, então nunca saberíamos imaginado que havia outros sóis, que o universo era infinito e que as
fazer um esforço para se convencer daquilo que se vê. Nosso olhar que o mundo possui essa terceira dimensão. Através desse diálogo e estrelas eram separadas pelo vazio, uma descrição muito próxima do
sobre o céu depende da teoria que nos permitiu desenvolvê-lo; ele é, dessa relação, é essa dimensão desconhecida que se oferece a nós. que se pensa hoje. Depois que Galileu apontou sua luneta para o céu,
pois, condicionado e, às vezes, serve apenas para validar ou não o Infelizmente, o problema que se coloca para a cultura indígena é o do nosso olhar sobre o mundo ficou completamente conturbado.
que havia sido previsto. desaparecimento de sua memória, o que parece inevitável. Durante mais de dois mil anos, a teoria alquimista de Aristóteles
Entretanto, resta aos homens a possibilidade de, pela via do diálogo, havia imperado no panteão das teorias do universo. Ora, essa teoria
Há alguns anos, graças aos grandes telescópios, é possível detectar se reconciliarem consigo mesmos, com essa parte de mistério que anunciava que só podia existir um centro – o da Terra – dado que os
estrelas que morrem a distâncias importantes. Em geral, são pares de reside no fundo de nós. objetos mais pesados eram atraídos para baixo, o que era definido
estrelas, porque mais da metade vive em pares. Quando estão por esse único centro. Quando Galileu descobriu outras luas em
demasiado próximas uma da outra, produz-se um estado de fusão: A simples luz de um astro, quando é decodificada sob a forma de órbita em torno de Júpiter, revelou-se a existência de pelo menos um
uma estrela começa a devorar a outra e, ao fazê-lo, torna-se de tal todas as suas cores que nos informam sobre a presença de carbono, segundo centro no universo, desmoronando toda a teoria aristotélica.
forma maciça que acaba por explodir sob a forma de uma supernova. de ferro ou de oxigênio, nos ensina que os átomos que nos Outras observações tomaram parte nesse desmoronamento, dentre as
Graças a essas mortes de estrelas, percebeu-se que a aceleração do constituem nasceram no coração de uma estrela. Foi preciso um quais a observação de uma supernova, feita pelo astrônomo
universo era cada vez mais rápida. Teve-se um choque ao se universo inteiro para que existíssemos. Dizia-se, antigamente, que a dinamarquês Tycho Brahé. A luz da supernova, equivalente à de uma
compreender que essa aceleração era provocada por algo que parece gente era apenas um grão de areia perdido no infinito; agora se sabe galáxia inteira irradiada por uma estrela no momento de sua explosão
uma energia do vazio e que a época do nascimento do sol é aquela que, para que esse grão de areia exista, são-lhe necessários silício, final, proveniente de uma distância superior àquela da lua,
em que o vazio começou a prevalecer sobre a matéria. Em alguns carbono, oxigênio, ferro, muitos elementos que nascem no coração demonstrava que o mundo supra-lunar não era o mundo perfeito,

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eterno e sem mudanças que havia sido proposto por Aristóteles. Um veremos que o potássio e o sódio fluem constantemente para dentro
mundo com múltiplos centros ou sem centro acabava de aparecer e, e para fora de uma membrana, conforme são disparados impulsos
com ele, a possibilidade do infinito. O que não deixou de acontecer C ECIL B ALMOND elétricos. Estes milhões de segundos de troca, todo o tempo, é a
com Newton. Não satisfeito com supor um espaço infinito, Newton marca registrada das estruturas naturais. Elas evoluem para
introduziu também o infinito em suas equações matemáticas ao CECIL BALMOND INTERESSA - SE PELA EXPLORAÇÃO DA FORMA , O QUE O LEVOU A VENCER
acomodar completa flexibilidade, que é uma conseqüência da menor
descrever o movimento dos astros e as forças que se exercem sobre GRANDES COMPETIÇÕES , COMO A DO VICTORIA & ALBERT MUSEUM E O IMPERIAL WAR das adjacências e dimensões. A arquitetura não pode ser assim tão
MUSEUM COM DANIEL LIBESKIND , O PRÉDIO DO YOKOHAMA FERRY TERMINAL COM FOREIGN
eles. Newton e Leibniz introduziram, juntos, uma noção que abriu a dinamicamente móvel. É impossível porque é uma forma macro
OFFICE ARCHITECTS E O PRÉDIO CCTV HEADQUARTERS EM BEIJING COM REM KOOLHAAS .
porta para o mundo moderno em que vivemos, um mundo que se CECIL DEU AULAS EM YALE E HARVARD , DESENVOLVENDO UM PROGRAMA RADICAL SOBRE A estática. O edifício tem que ter certeza estática. Para ser interessante,
basta a si mesmo. Ambos eram crentes e introduziram, sem ter GERAÇÃO DA FORMA . ATUALMENTE ELE É PROFESSOR DOCENTE DE ARQUITETURA NA PENN no entanto, uma peça arquitetônica tem que ter certa
DESIGN . PUBLICOU NUMBER 9 - THE SEARCH FOR THE SIGMA CODE E INFORMAL ( NÚMERO
consciência disso, um atributo divino em suas equações quando 9 - A BUSCA PELO CÓDIGO SIGMA ) - 2004 – UMA MONOGRAFIA SOBRE PROJETOS SEMINAIS . improbabilidade dinâmica que nos envolva, que nos deixe intrigados.
definiram o cálculo diferencial, isto é, os infinitamente pequenos. O ELE É DIRETOR ASSISTENTE DA ARUP - LONDRES - É como o filme Seven Minutes Before : se você passa sete telas, algo
infinitamente pequeno é, em matemática, um número que não pode mais acontece enquanto estrutura. Quando penetramos uma boa
ser escrito com a ajuda de algarismos, mas que é menor que qualquer TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS arquitetura, algo acontece que está além do próprio edifício.
número que se possa imaginar. Tão pequeno, que é infinitamente Por exemplo, a transferência do peso da cúpula sobre a praça, em
pequeno. No entanto, dividindo esse infinito, Newton definiu o Hagia Sophia de Istambul, é belamente realizada, a vastidão, cria
LONDON _ 16 DE AGOSTO DE 2004
movimento, a velocidade, uma distância infinitamente curta dividida mais que literalidade. O espaço voa. Na década de 1930 houve uma
por uma duração também infinitamente curta. Um século depois, moda de arquitetura que copiava a natureza diretamente - eu sempre
Laplace pronunciaria sua famosa frase em resposta a Napoleão: M inha teoria e abordagem emergiram de uma reação instintiva ao desconfiei disso. Eu procuro como a natureza forma variedade, e
“Deus é uma hipóteses de que não precisei”, porque o absoluto, conceito da industrialização mecânica e ao ethos da eficiência, um quais são seus princípios de organização em unidades, em múltiplos
representado pelo infinito, havia entrado nas equações e até havia subproduto do modernismo e do minimalismo. Eu rejeitei estes e como estes se propagam. Eu estou mais interessado nos conceitos
sido dividido nessas mesmas equações. conceitos categoricamente. Eu comecei a duvidar da sabedoria do estruturais inatos da natureza do que ela em sua literalidade. Meu
grande Plano, do grande P. Eu permiti que noções mais fluidas trabalho tem sido dirigido à idéia de que edifícios são construtos
Os limites do universo foram afastados em teoria. Para que a prática, fossem incorporadas, de simultaneidade e invenção. Gradualmente, artificiais de uma mente humana, e portanto devem ser
a observação, encontrasse a teoria, foi necessário esperar os tudo isso cristalizou, no começo dos anos 90, em um processo de completamente artificiais.
primeiros grandes telescópios. Em 1946, Edwin Hubble não só pensamento: o que aconteceria se tomássemos uma condição local
A mais antiga linguagem intelectual inventada são os números. Eu
descobriu que vivemos numa galáxia constituída de bilhões de como ponto de partida, uma narrativa local e um movimento local?
estrelas, mas também que havia no universo outras galáxias entendia os números como mônadas, como entidades, como as
Estas idéias, ao se propagarem, fazem emergir a complexidade,
mônadas de Leibniz. Eles são coisas, sem emoção, sem psicologia e
semelhantes à Via Láctea. Mais ainda, Hubble observou que todas as devido à superposição. Bem diferente de um pensamento hierárquico
galáxias mais se afastavam de nós quanto mais distantes de nós sem fisiologia. O que são? Símbolos, mas também um quantum.
linear. Eu permito que a simultaneidade adentre o discurso. O que é
Interesso-me pelas qualidades que advém de um quantum. Interesso-
estivessem. Mas então, no passado, as galáxias deviam estar mais local poderia ser um motivo geométrico ou uma idéia espacial - uma
próximas umas das outras, a tal ponto que, numa época que remonta me em como o universo começou e como a idéia de unidade cresceu
notação, uma pontuação, uma tradução.
a partir de processos que disparam processos semelhantes. Não é a
a vários bilhões de anos, deviam se tocar. Uma época em que o
universo era tão denso e tão quente que deve ter explodido sob o Poderia haver uma série de impulsos locais, que levam literalidade que me interessa, mas a maneira como a diversidade e
imediatamente a justaposições e hibridizações, devido à suas seqüências ocorrem, uma intriga real e o mistério a partir de
efeito dessa acumulação de energia. A detecção da marca residual
dessa época remota em que o universo tinha uma temperatura de superposição que ocorre ao longo de seu curso. Se estes não são simples impulsos. Ao encontrar uma forma, eu quero descobrir como
impulsos distintos, eles poderiam ser a mesma idéia replicada, usar pontos de partida artificiais para fazer com que algo aconteça,
mais de mil graus foi medida depois, confirmando que,
indiscutivelmente, o universo tinha uma história. invertida ou transformada, ou então algo acontece com eles, mas de tal modo que os espaços nos engajem de forma diferente, e que
cada uma deles se espalha, corre e colide, justapõem-se, formam sejam interessantes de percorrer. Eu entendo a estrutura como
O fato do universo ter uma história é uma descoberta bastante pontuação e ritmo, um condutor espacial e uma metáfora.
híbridos. O que se tornou híbrido ou justaposto, pode ser visto, numa
recente, embora todas as grandes tradições possuam um mito
escala maior, como uma nova condição local. Neste modo de O desafio para mim é encontrar respostas cartesianas para as formas
fundador que narra o nascimento do universo. Chegar à conclusão de
organização, a natureza começa estruturar-se a partir de um fluxo que crescem e são propagadas para fora destes processos. Ao invés
que o próprio universo possui uma história através de um
quântico. Não houve nenhum grande plano que tenha formado a de definir um limite e trabalhar “de fora para dentro”, eu estou
procedimento objetivo e racional é bem intrigante. O universo
molécula do DNA antes dos elétrons saltarem e procurarem conexões, interessado em um início para dentro, uma interiorização que se
também foi pequeno um dia. Depois viveu uma fase de adolescência,
as coisas aconteceram reativamente. Se voltarmos à estrutura do move para fora. Eu acho que Borromini realizou isso pela primeira
uma fase adulta e amanhã, quando for velho, talvez ele seja frio, suas
átomo, à estrutura da molécula, à estrutura do composto, à estrutura vez em arquitetura. Eu não desenho margens externas, não
estrelas apagadas e talvez o vazio prevaleça de tal forma sobre a
de um ser humano, estas regras informais, estas categorizações do estabeleço definições. Eu não tenho nada a mostrar, exceto que eu
matéria que o mundo será “cheio de vazio”... Ou, talvez, ao
local, do híbrido e do justaposto funcionam operam. comecei com uma força motiva, e uma série de improvisações que de
contrário, ele renasça das cinzas, visto que tudo começou um dia, há
14 bilhões de anos, a partir de uma bolha de vazio... algum modo trabalham juntas para produzir um resultado e um
Deixemos que aconteça uma surpresa que coagule e forme um tipo
significado.
de equilíbrio. Este equilíbrio permanece como transiente, até que
O astrônomo, ao alongar seu olhar com a ajuda do telescópio, afastou Daniel Libeskind convidou-me para trabalhar consigo no cenário para
uma desestabilização ocorra e outra ordem seja procurada. Assim,
para mais longe os limites do desconhecido no espaço até a época em São Francisco, a grande ópera de Messian. Olhamos a partitura. Eu a
meu modelo é fundamentalmente dependente do tempo. O que digo
que o universo inteiro estava concentrado sobre si mesmo. Ao fazer vi deslizando em blocos, muito incomum. Era difícil refletir isso em
conceitualmente como uma idéia para a organização, se aplica
isso, afastou o último limite atrás do qual os antigos colocavam o um tipo emocional de cenário. A música era abstrata, e decidimos
também à arquitetura, de certo modo. E é também relevante às
mundo divino até a época da origem do mundo. A dimensão desenhar um cenário que nada tivesse a ver com a ópera. Os cantores
estruturas das condições de campo como a economia, a epidemia,
temporal substituiu, assim, a do espaço. Por outro lado, o deus da serviriam como o meio conectivo, entre uma camada abstrata e outra.
modelos societários, estas coisas que são parte de um processo vivo.
religião é chamado de eterno e não de além-da-lua. Com a questão do Libeskind propôs 49 cubos que giravam e moviam-se. Eu propus que
Eu sempre me perguntei o porquê do fato das previsões da ONU em
tempo, chega-se o mais perto possível do complexo faustiano do ao invés de um movimento arbitrário, uma matriz de sete por sete
relação à sociedade, às pragas, à AIDS, seja lá o que for, sempre se
científico. Nos dois extremos da paleta dos objetos que compõem o números fornecesse uma estrutura para suas rotações e iluminação.
tornam obsoletas dentro de um ano ou dois.
mundo da física moderna, encontram-se dois seres físicos de Ocorreu-me que precisávamos de um motor completamente abstrato.
características paradoxais em sua relação com o tempo: a partícula A Segunda Lei da Termodinâmica é uma idéia fatalística, em que tudo Os números seriam usados para a escolha de seqüências, a
sem massa de luz – o fóton – e o objeto mais denso e maciço – o se acaba. Claro que é verdade, se a tomamos como a lei de uma iluminação e até os movimentos dos cantores poderiam ser
buraco negro. O fóton, por se deslocar na velocidade última, mais condição fechada. E se nada de novo acontece para desestabilizar o abstraídos da matriz de números. Para a audiência, tudo pareceria
precisamente, a velocidade da luz. O buraco negro, por ser muito status quo. Mas acidentes acontecem, as idéias criativas acabam acontecer uma só vez, mas a premissa era que, ao longo das cinco
denso. Segundo a teoria da relatividade restrita, o tempo se escoa adentrando o quadro de referência, e as conseqüências são realmente horas de duração da ópera, a compreensão aumentaria, de modo que
diferentemente para duas pessoas em movimento, uma em relação à imprevisíveis - elas seguem uma extrapolação não-linear, o que não é o espectador começasse a ser informado, através de um processo de
outra. Segundo a teoria da relatividade geral, o tempo se escoa uma situação confortável que se encaixe em nossas previsões evidência, de que existia uma outra lógica oculta em ação no que
diferentemente em função da massa de um objeto. Que se esteja lineares. Se eu vejo que uma forma provoca algo, então traço o Plano, parecia primeiramente como disfuncional ou caótico ou aleatório.
“sentado” sobre um fóton ou dentro de um buraco negro, duas o grande P. - com algumas condições -, defino um limite à sua volta,
posições nada confortáveis, quando se mede um tempo decorrido por e, dentro de um ano, o plano ainda estaria correto, se eu não deixasse Um exemplo deste processo em um trabalho meu mais recente foi o
menor que seja, tal duração corresponde a um tempo longo como a nada mais acontecer dentro da condição fechada. Mas se um único Serpentine Gallery Pavilion, em Londres. Ninguém entendeu
eternidade para aqueles que estão do lado de fora. Em outros termos, parâmetro fosse mudado, então as previsões não se realizariam. No exatamente como foi feito. Mas a forma foi concebida conectando
o fóton e o buraco negro vivem, cada um deles, um instante eterno... momento em que eu permito à condição real do mundo adentrar a uma metade de um lado de um quadrado a um terço do comprimento
O encontro dos extremos é também o universo que teria nascido de equação, a imprevisibilidade entra em jogo e nosso Plano está do lado adjacente e repetindo este algoritmo muitas vezes. Apenas
um ponto. arruinado. Precisamos ajustar-nos e mudar. Os economistas sabem duas frações 1/2 --> 1/3 guiavam toda a composição. Não se trata de
disso há muito tempo. Imagine prever o mercado de ações matemática. Trata-se de um sistema de proporcionamento. Se
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX E M . OHANIAN . corretamente por um ano. começamos com um quadrado, e formos de ponto mediano a ponto
mediano, e continuarmos este processo, obtém-se um quadrado
1 Documentário de Sylvie Blum e Carmen Castillo (França, 2002 - 52mn.). Escrito em Estas idéias são relacionadas à teoria do caos e à teoria da dentro do quadrado, um plano para um campanário. É arquitetura
colaboração com David Elbaz. Co-produção: ARTE França, Ex Nihilo. Apresentado no complexidade. Eu estou convencido de que o mundo não é simples, clássica, um sistema fechado, um Plano. Pode-se prever a cada vez o
canal ARTE, no programa “L’Aventure Humaine”, em 26/04/2003. que é fundamentalmente não-linear. Eu tenho uma posição diferente que vai acontecer. Mas a regra 1/2 --> 1/3 é imprevisível e tem
de certo vanguardismo na arquitetura, eu rejeito formas biomórficas. linhas que se cruzam no espaço. A questão era: como quebrar a
O que eu rejeito é uma cópia literal da natureza, mas não uma tirania do quadrado, da margem? Minha resposta foi: se você vai de
natureza que faz evoluir formas em que esteja envolvida uma metade a um terço, e repeti-lo, você é obrigado a sair da delimitação
atmosfera contínua, de perpétua mudança. O desenvolvimento de um inicial para produzir o quadrado seguinte. Se todas estas linhas do
ovo de sapo em um lago está sujeito a certas condições. A salinidade traçado inicial forem estendidas, um motivo arquitetônico acontece.
pode matar uma população, se a acidez for apenas fracionalmente Isso é materializado em uma chapa de aço e então dobrada em forma
diferente do que é necessário, e assim, a constante troca de de caixa. O padrão foi coberto alternadamente com vidro e alumínio
informações se dá continuamente. Dentro de nossos próprios corpos, para obter um efeito de tabuleiro de xadrez. É como um jogo de
a troca que se dá no momento em que falo, dentro das sinapses de criança, de realizar a forma, mas tudo começou com a premissa de
nosso cérebro, é fenomenal. Se estudarmos uma pequena sinapse, sair da margem inicial.

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Isso também aconteceu no projeto Villa Bordeaux. Rem Koolhaas é que não temos acesso àquilo de que temos uma imagem, e àquilo particular, cuja origem se encontra em Aristóteles (e que suscitou
quis que eu tentasse fazer com que “a caixa voasse”. A solução foi a que nossos sentidos nos dão acesso, esse mundo em que estamos muitas críticas ao longo dos séculos): o lugar é um puro receptáculo.
quebrar com a configuração tradicional da mesa - os quatro suportes fisicamente imersos, o mundo das substâncias, um mundo que não Quanto ao “teatro”, é um verdadeiro teatro, um semi-círculo, às
simétricos debaixo de uma carga suspensa. Eu prolonguei duas das pode ter representação global. Nesse mundo de contingência e de vezes um círculo inteiro. No centro, encontra-se seu utilizador. Este,
colunas além das margens das arestas da caixa. Esta condição acidente, de incerteza, preciso encontrar um instrumento universal o sujeito, o destinatário do teatro, o “eu”, é o compartimento vazio
extrema desprendeu a massa; e a caixa voa - ela não é diretamente que me permita orientar-me no pensamento, traçar caminhos para que faz a máquina girar - tal configuração é válida para todos os
apoiada por baixo de sua carga. meu uso, é uma questão de sobrevivência. É preciso fabricar-me um “instrumentos universais”: eles são destinados ao uso de um único,
“instrumento universal”. É uma construção que faz apelo a essa eles lhe permitem orientar-se na prática, ao sabor das circunstâncias.
Para mim isso é informal. Com informal eu faço um trocadilho em aptidão particular que é o ingenium: a capacidade para inventar e
inglês. Eu sou formal em meu método e informal na abordagem, que para pôr em relação sincrônica elementos heterogêneos. Essas Procura-se continuamente o instrumento universal, aquele de que a
é também uma provocação direta à teoria de Bataille, de L’informe. questões tornam-se extremamente agudas nos anos 1530 pelo retorno bússola (então uma invenção recente) é o paradigma: o
Eu sou contra a noção romântica de beleza como caos, entropia. Para maciço, na cultura do Renascimento, dos “tópicos”, dos sistemas de “cosmolábio”, o “timão”, a “bússola” são, aliás, títulos de repertórios
mim, o informal é a criação de um argumento sobre uma outra forma classificações universais que permitem organizar tudo a que se tem de invenções. Indicam a pretensão do engenheiro de fornecer esse
de buscar a síntese. Se estabelecermos delimitações rígidas, acesso e orientar-se. Como se orientar no pensamento? A que instrumento que vai permitir fazer tudo: orientar-se, traçar um plano,
trabalhamos dentro delas, mas se começarmos de uma posição “instrumento” útil em todos os casos de figuras vou me fiar para me estabelecer uma ordem de batalha, desenhar um retrato, arrumar um
interior e trabalharmos na direção do exterior, a resposta é mais um situar e para construir meu caminho? Esse instrumento universal por jardim... e cozinhar ovos. A técnica é a única forma de universalidade
experimento, menos redutora. É a inversão do processo de criação de excelência é um sistema tópico, um sistema de lugares, de à qual nós, mortais, podemos ter acesso. Nisso está a diferença em
forma que tem sido usada ao longo de mais de dois mil anos de classificações, de arrumações, de gavetas dispostas metodicamente e relação ao mundo medieval. É um mundo que não é dominado, que
arquitetura. O método ou abordagem é mais ampla que a arquitetura, espacializado. Muitos especialistas da tópica, filólogos, dialéticos, não tem uma ordem posta pelo divino (é paradoxal numa cultura
é claro; ela pode levar a soluções em música ou em termos de luz. tentaram, então, construir fisicamente esses tópicos, sob a forma, por essencialmente cristã, mas não nos esqueçamos de que o século é
Era interessante para mim quando as pessoas planejavam uma exemplo, de “móveis universais” ou de combinações de armários e de dilacerado pelas guerras de religião e de que a religião não é mais um
exposição de meu trabalho sobre o informal. A mulher que sacolas de couro onde se pudesse, como numa “memória” externa, fator de ordem), um mundo ao qual se renuncia a dar uma
trabalhava comigo disse que ela achava uma relevância na depositar o material de uma história natural, por exemplo, representação global: não se tem acesso à totalidade. Além do mais,
abordagem informal local versus a tradição formal como aquela entre combinando uma trama ordenadora de categorias lógicas. Quanto as grandes descobertas intercontinentais, as explorações
a medicina alternativa x medicina institucional. A idéia pessoal, o maior a capacidade do sistema tópico para integrar elementos, mais confirmariam o caráter inacessível do todo. A técnica, os dispositivos
local, é o indivíduo, é como você poderia levar seus próprios poderes fácil é sua utilização, mais ele é utilizável em configurações técnicos, que supõem um arranjo “horizontal”, “laico”, das
em conta e fazer com que algo aconteça. A mensagem é de diferentes, mais fácil é sua mobilização – portanto, é mais “portátil”. categorias, permitem então constituir um plano de imanência. O
potencialização, habilitação. Qualquer um pode fazê-lo. Por exemplo:
exercício do pensamento é concebido – na tradição do organon
no projeto na galeria Serpentine a regra simples 1/2 --> 1/3 permite A partir dos anos 1530, elaboram-se tópicos universais, isto é, aristotélico que contém a preocupação humanista do uso, da
a qualquer um entender a idéia e tentar outra relação, como 1/2 --> utilizáveis em múltiplas oportunidades (como um “canivete suíço” finalidade – como a aplicação “técnica”, diagramática, das categorias
1/8. Isso tira o mistério de um grande gênio que já viu tudo e diz para retomar, mais ou menos, uma metáfora da época) que se e dos conceitos. A qualidade de um raciocínio só pode ser julgada
como é que vai ser. Eu digo - o que pode ser? chamam “teatros universais”: são sistemas de classificação que
pelo resultado obtido. Há aí uma abordagem muito técnica do
podem “servir para tudo”. O monge florentino, que tenta classificar
trabalho da mente. Em compensação, nos outros textos que estudo, a
O universo, o cosmos, é mais um inspiração para mim do que a os milhares de sementes a partir da tabela dos lugares comuns da
palavra “cosmos” não é tão empregada assim. Neles, se está muito
natureza no sentido de plantas e animais. Desde que era menino eu Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, é um exemplo muito bom longe da preocupação com o todo que traz o neoplatonismo (cujo
sou fascinado pela cosmologia e li tudo sobre ela. Há algo especial disso, pois utiliza como fichário uma simples disposição tópica (o impacto sobre o Renascimento é preciso relativizar). O pensamento,
sobre o processo de evolução, as estratégias de evolução, o “índice”), extraída de um livro que nada tem a ver com seu projeto.
para os humanistas e para os filólogos do Renascimento, é sempre
hidrogênio formando-se em elementos como o carbono - a base da O que deve ser bem compreendido é a indiferença de todo dispositivo
orientado para a prática, para o usus. Aristóteles ainda fornece
vida e dos elementos mais elevados. Fascinam-me as soluções tópico em relação ao que ele organiza. O levar em conta a estrutura
amplamente o substrato filosófico dessa preocupação com o uso.
propostas por Kepler, Newton e Einstein, sobre os modelos para como estrutura de organização, de classificação, prevalece
nosso universo. Não se trata apenas das estruturas, mas da absolutamente sobre o conteúdo. Um sistema realmente universal Os conceitos e as categorias são o equivalente do andaime que nos
retroalimentação e da interação entre os diferentes elementos na deve, justamente, ser indiferente ao que é classificado. É o contrário possibilita construir os edifícios; portanto, têm realmente uma função
estrutura. Eu acho que a parte fundamental de uma nova do cosmograma medieval, pois este dava acesso à ordem do mundo, utilitária. Uma vez acabado o edifício, retira-se o andaime e a
interrogação acerca do espaço é usar o princípio da retroalimentação. revelava sua verdade, garantida pela presença divina. estrutura que permitiu construí-lo desaparece. O uso prevalece sobre
Isso faz com que respostas surpreendentes aflorem a partir de inícios a representação. A technê (de onde vem nosso termo “técnica”) é
desconexos. Por volta da metade do século XVI, renuncia-se a revelar uma traduzida em latim pela palavra ars: todas as artes - a de governar, a
imagem verdadeira da ordem do mundo, volta-se para o “provável”: de navegar, a de inventar máquinas, a de curar etc. – são
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
fabrica-se um “instrumento universal” como um sistema de medidas “habilidades dotadas de método”, são competências que pressupõem
técnicas. Entre a maioria de seus conceptualizadores (não todos; há, naquele que as pratica uma reflexão sobre os princípios de sua
por exemplo, uma forte corrente de cabalismo cristão), esses prática, são habilidades que enfrentam as forças contingentes do
instrumentos recusam qualquer dimensão metafísica. O modelo da mundo sublunar, isto é, o acidente, a possibilidade do fracasso. A
máquina como combinação autônoma de forças e de movimentos é, partir da metade do século XVI, há uma reflexão intensa sobre a
aqui, absolutamente fundamental. Um gênero literário aparece nos técnica e as técnicas. É nesse momento que os “homens da arte” –
anos 1570, os “teatros de máquinas”. A segunda metade do século engenheiros, escultores ou oleiros – “redigem em arte”, dotam sua
XVI assiste a um extraordinário investimento coletivo na técnica e na prática de uma reflexão sobre seus princípios, reivindicam um
idéia da técnica: é ela que permite resolver, de modo prático e “método”, ou seja, se põem a escrever livros. Não nos esqueçamos de
específico, cada problema num mundo do qual não se tem que é a esse movimento fundamental da cultura que se deve o
P ATRICIA F ALGUIÈRES representação completa. Em tal contexto, um bom exemplo de
“instrumento universal” é a tábua de logaritmos inventada por
aparecimento da literatura artística moderna, isto é, os livros
redigidos pelos artistas: Cellini, Palissy, Vasari... Isto é capital: a
Napier bem no fim do século XVI. A ambição de totalidade não está aptidão para formular seu método é que distingue uma arte de uma
PATRICIA FALGUIÈRES , HISTORIADORA E FILÓSOFA . E PROFESSORA DE HISTÓRIA DA CULTURA mais na imagem do mundo e, sim, na coerência da “máquina”, que
DO RENASCIMENTO NA ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES . PUBLICOU LES
simples prática “operária”.
CHAMBRES DES MERVEILLES , PARIS , BAYARD - 2003 - E NUMEROSOS ARTIGOS SOBRE A HIS -
não é necessariamente material mas pode ser um dispositivo
TÓRIA DA ARTE E DAS TÉCNICAS DO RENASCIMENTO , BEM COMO SOBRE A ARTE E OS ARTIS - conceitual. É esta virada que deve ser bem compreendida. JCR _ Seria possível considerar o nascimento dos jardins botânicos
TAS CONTEMPORÂNEOS .
dentro dos mesmos modelos ?
Um bom “instrumento universal” deve apresentar uma combinação
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI infalível de seqüências encadeadas. Quando Giulio Camillo, em 1530, PF _ Sim, absolutamente. Os jardins botânicos foram concebidos para
propõe seu “teatro da memória” na corte de Francisco I, o sistema é resolver, justamente, um problema de classificação que nasceu do
PARIS _ 30 DE AGOSTO DE 2004 extraordinariamente complicado. Ele fabrica uma máquina de confronto dos velhos corpus de plantas designadas por nomes do
madeira; uns dizem que se trata de um anfiteatro e outros, que era vernáculo com, de um lado, as novas plantas desconhecidas que os
uma espécie de tambor com várias faces que se fazia girar. A exploradores traziam das Índias e de outros lugares e, de outro lado,

J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ O que se chama theatrum mundi no reconstituição de Frances Yates é a mais provável: uma espécie de
fichário gigante sob a forma de anfiteatro (o “tesouro de textos” que
aquelas cuja descrição, geralmente enigmática, se lia em textos
latinos e gregos. É porque se tenta organizar a coexistência de todos
século XVI ? Será possível considerá-lo como cosmograma ?
ele propõe “memorizar” é distribuído nas subdivisões do teatro) e esses objetos, que pertenciam a registros diferentes do saber, que se
PATRICIA FALGUIÈRES _ Deve-se retomar o corpus aristotélico que que se ativa em vários eixos: vertical, horizontal, em diagonal. Giulio inventam os jardins botânicos. Tem-se aí um bom exemplo da
continua sendo a base e o substrato da cultura do século XVI. Na Camillo deu provas de ingenium ao conseguir encontrar princípios de utilidade dos sistemas tópicos. Para conceber a instituição do jardim
compreensão do mundo dada pelo corpus aristotélico, há a divisão encadeamentos perfeitamente justificados (foram emprestados da botânico, é preciso ser capaz da seguinte operação que é, ao mesmo
absolutamente fundamental entre o mundo “supraceleste” e o mundo mitologia e da simbologia) de alto a baixo, da direita à esquerda e em tempo, conceitual e prática: criar gêneros e espécies, pelo menos
“sublunar”. Não há ordem verdadeiramente inteligível senão além da diagonal. O sistema é delirante, evidentemente, é uma espécie de classes, para aí localizar objetos de que não se sabe muita coisa. É
lua. Aí se pode contemplar, isto é, imaginar a mecânica celeste, os jogos de palavras cruzadas ou de sistema de tarôs monstruosos. nisso que consiste a plasticidade dos sistemas tópicos: pode-se
movimentos dos planetas, perfeitamente geométricos, incorruptíveis atribuir um lugar provisório a uma coisa da qual se ignora quase
e eternos, dos quais se pode dar uma representação gráfica sob a Na arte da memória, que é uma forma particular de tópica, um objeto tudo. Trata-se de dar um lugar a algo que não tem lugar preciso,
forma de afrescos, de esferas armilares, porque, justamente, não se é um “lugar”. É necessário um certo número de objetos ou de identificável, justificável, na ordem do mundo. Ao contrário do que
pode vê-los, não se tem acesso a eles, não são acessíveis a nossos imagens de objetos para constituir os lugares nos quais vai ser dizem muitos historiadores, os primeiros jardins botânicos, em
sentidos. Em contrapartida, nós, pobres seres humanos, só temos guardado aquilo que se quer recordar. O importante é que o lugar Pádua, em Louvain, em Pisa, não são representações do universo,
acesso ao mundo sublunar, o mundo da geração e da corrupção, do supõe uma exterioridade inteiramente categorial entre o que ele é e o cosmogramas; eles são sistemas tópicos, isto é, instrumentos
acidente. No mundo “sob a lua”, tudo nasce, cresce e morre. Nele, a que ele classifica. É onde se encontra a relação técnica dos modernos universais que servem para orientar num universo incerto, do qual
matéria só conhece movimentos erráticos, é o lugar das catástrofes com o mundo. Contrariamente a uma abordagem metafísica que não se conhecem os limites nem as propriedades. Está-se muito longe
naturais, das erupções vulcânicas, dos terremotos, dos abortos, da suporia uma relação necessária entre o continente e o conteúdo - uma de Linné.
geração de animais monstruosos. É um mundo essencialmente identidade de substância, pelo menos um princípio de continuidade -
trágico do qual não se pode apresentar representação global. É o um “lugar”, topos, locus, é exterior ao que ele contém. É um puro JCR _ Então se deveria considerar que cada forma de taxinomia, de
mundo do acaso que supera nossa vontade de domínio. O paradoxo receptáculo. É necessário admitir essa forma de espacialidade

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classificação, é um cosmograma em si mesmo, que não é uma dos meteoritos e das flores prodigiosas, autômatos e modelos inícios de uma nova Era Dourada. O jardim botânico poderia ser o
representação do cosmos, mas um instrumento potencial de reduzidos de máquinas. E, simbolizando o todo, esses espaço para tal reconciliação do mundo.
construção do mundo como totalidade ? “instrumentos” que fornecem a chave de leitura do quarto de
O que temos em Leiden e Oxford são jardins botânicos que não
maravilhas: bússolas, quadrantes, setores, esquadros de todos os
apenas são divididos em quatro, como os continentes, mas cada
PF _ Absolutamente. Mas ele nunca é totalizante, nunca inclui tudo. tipos etc. Um móvel-cofre universal pode também, no cerne da
quarto é dividido em leitos chamados pulvilli (singular pulvillus), da
A palavra teatro tem uma acepção lógica: é a totalidade dos casos de coleção, representar, de forma sintética, o princípio de toda a
palavra latina para travesseiro - e cada um dos leitos deveria abrigar
uma série dada. O teatro pode ser especializado (é o caso do jardim coleção: nele se encontra, em miniatura, o que está guardado nos
uma família natural inteira de plantas. Mas, por que uma família de
botânico), mas também pode aspirar a uma certa universalidade – é armários, nos bufetes e em outros compartimentos desse “teatro
plantas? Aqui vemos o enrosco das imaginações grega e cristã acerca
o caso, por exemplo, dos móveis-cofres universais que eram universal” que é o quarto das maravilhas.
da natureza. A filosofia grega da natureza imaginava que, em sua
fabricados em Augsburgo, perto do fim do século XVI.
origem, o mundo era o eidos, a perfeita idéia da forma; mas como a
Trata-se de móveis de prestígio, muito luxuosos. São obras-primas de JCR _ Quando acaba tudo isso ?
forma entrou na Matéria, estas eram imperfeitamente expressas como
marcenaria, destinados a príncipes, e que funcionam um pouco como
PF _ Acaba no fim do século XVI e no início do século XVII, no as coisas reais do mundo. Mas todas as espécies de uma família de
tabernáculos, legíveis em todas as faces, ricos do maior número
contexto da reconquista religiosa, a contra-reforma católica que não plantas ou animais, se agrupadas, poderiam proporcionar um retorno
possível de compartimentos e de gavetas para se guardar o maior
se adapta muito a essa espécie de laicismo pragmático, a essa ao eidos. Isso significa que se o jardineiro e botanista iluminados
número possível de objetos. Não são representações (embora sejam
racionalidade técnica (os jesuítas vão recuperá-la em proveito de pudessem coletar em um leito uma família inteira de plantas, o que
ricos de imagens), mas tentativas de se dar forma à idéia de
finalidades muito restritas). Mas o fenômeno principal é a ruptura fariam seria coletar o completo pensamento de Deus. Ao olhar para
instrumento universal, são “máquinas universais” destinadas à
epistemológica instaurada por Galileu. O fato de que a “verdadeira cada leito, e em seguida para o jardim inteiro, poderia-se então viajar
educação dos príncipes. Trata-se de acumular, sob a forma mais
ciência” se distingue claramente da técnica. A “verdadeira ciência”, pela mente de Deus, e conhecer a Natureza em sua completude
sintética possível, todos os “instrumentos” que o engenho humano
para Galileu, está ligada aos números, a essas verdades incorruptíveis original.
pode imaginar. Esses objetos não eram senão puro prestígio...
e eternas que não são acessíveis aos sentidos. Com Galileu, dá-se a
Destinavam-se a lembrar ao príncipe tudo o que está “a seu alcance”, Este otimismo cristão estava estritamente ligado a uma agenda
expulsão do sujeito empírico, sensual, da experiência. A verdadeira
“sob sua mão”, aquilo com que pode contar para exercer sua arte médica prática. A tradição médica grega de Hipócrates sugeria que as
ciência se constrói contra os erros da percepção. O lugar da
própria, a arte de governar. Encontravam-se, pois, nessas espécies de doenças localizavam-se em lugares particulares, e que os remédios
matemática na nova configuração muda completamente: os técnicos
pirâmides de madeira preciosa – meio tabernáculos, meio armários necessários para curá-las seriam também encontrados lá. Na versão
do século XVI reivindicavam uma matemática do uso e da prática,
“Henri II” – os instrumentos da escrita, maquetes de arquitetura, de cristã da teoria de Hipócrates, Deus havia criado o homem no Jardim
uma matemática que eles classificavam de “mista” pelo fato de que
máquinas, de poços de mina, de tesouras e de serras em miniatura, original com todos os alimentos e remédios necessários para mantê-
se aplicava a corpos sensíveis e se reconhecia uma finalidade prática:
pequenos brinquedos etc. Tudo isso arrumado de modo a formar uma lo eternamente em boa saúde. Mas quando Adão e Eva foram
medir, mensurar, desenhar engrenagens... Com Galileu, isso é muito
tópica universal. É evidente que o príncipe só “utilizava”, de forma expulsos, estes remédios e doenças foram espalhados pelo mundo.
diferente. A matemática reintegra o campo da teoria pura. Não deixa
lúdica, uma ínfima parte disso, um pouco como, em nossos dias, a Médicos do século XVI e XVII tinham esperanças que, com a
mais lugar algum para o uso nem para a evidência sensorial. Enfim,
maior parte dentre nós utiliza apenas uma parte ínfima das descoberta da América, África e Ásia, todos estes remédios dispersos
last but not least, é a representação do espaço que muda
potencialidades de um computador. Porém, apesar disso, pudessem ser reunidos em um só lugar, as plantas curativas do Velho
completamente: a idéia do lugar como receptáculo... perde a solidez
reivindicamos uma idéia total da máquina, exigimos ter uma Mundo reconciliadas com aquelas do Novo Mundo. Assim, o jardim
na espacialidade homogênea e infinita da nova ciência.
representação completa de tudo o que ela pode fazer. No século XVI, seria não apenas um guia de contemplação espiritual, ou de êxtase
considera-se a máquina como um dispositivo do qual se deve religioso, mas poderia de fato servir de base para uma nova fundação
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
apresentar todas as configurações imagináveis. Daí o aparecimento da medicina. E, é claro, o século XVI conheceu muitas epidemias
de um gênero editorial novo, os “teatros de máquinas” – imensos terríveis, e assim havia um desejo real por novas drogas. Imaginava-
volumes ilustrados onde o “inventor” apresenta todos os usos se que a nova praga da sífilis, em particular, como uma doença do
possíveis de suas invenções, todas as variantes que sua imaginação Novo Mundo, necessitava de remédios americanos. Então, lado a
fértil pode declinar ao infinito, às vezes ao preço de efeitos lado com a filosofia e a religião temos este negócio prático de tentar
verdadeiramente burlescos, como os “abridores de latas” para criar um jardim completo farmacêutico.
fortalezas e os “pés-de-cabra” destinados aos militares e desenhados,
Uma terceira camada de influência tem a ver com o poder e o
com uma verve digna de Glenn Baxter, pelo engenheiro de Henri III,
Império. É interessante notar o estreito relacionamento entre o poder
Augustin Ramelli.
real e o patronato destes jardins cosmogramas. A teoria medieval da
JCR _ Os quartos das maravilhas seriam a continuação lógica desses R ICHARD DRAYTON monarquia sugeria que os reis haviam sido colocados no mundo por
teatros universais ou se trata de algo diferente? Nesses quartos, tem-se Deus para trazer paz, justiça, ordem e fartura a seu reino: é a idéia
a impressão de que o heterogêneo e o sem classificação são a regra. do Defensor Pacis. Os príncipes das cidades italianas e os reis da
RICHARD DRAYTON É PROFESSOR EM HISTÓRIA IMPERIAL E EXTRA - EUROPÉIA DESDE 1500 NA
Europa responderam com vigor à idéia do jardim botânico como
UNIVERSITY OF CAMBRIDGE . É AUTOR DE NATURE ’ S GOVERNMENT : SCIENCE , IMPERIAL
PF _ Um teatro universal não tem outra existência que não a gráfica microcosmo, já que suas soberanias eram fundadas em um reclamo
BRITAIN , AND THE IMPROVEMENT OF THE WORLD - 2000 -
ou conceitual. similar: o de ser representante de uma ordem que era essencialmente
TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
de origem divina. Pessoas como o imperador Hasburgo na Áustria, e
É uma combinação de séries. Ele funciona pela organização
os soberanos de todas as nações européias, eram patronos generosos
diagramática de conceitos e de categorias. Não é esse, absolutamente,
e importantes destas tentativas de criação de um mundo dentro de
o caso de um Wunderkammer. Reunir um quarto de maravilhas é um MONTPELLIER _ 24 DE AGOSTO DE 2004
um jardim, pois tais coleções poderiam fazer afirmações sobre as
exercício tão aleatório quanto as oportunidades de encontrar esse ou
origens e sentido da soberania humana. A fundação do primeiro
aquele objeto material, é um celeiro, um tesouro, uma coleção
submetida aos acasos da coleta empírica. Nada aí é previsível. Há
J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Como podemos pensar o jardim jardim botânico da França, em Montpellier em 1593, foi diretamente
botânico como cosmograma ? ligada à tentativa de apresentar Henrique IV como legítimo monarca
portanto, a priori, uma contradição lógica entre esse tipo de coleção
da França, como alguém com legitimidade proto-imperial. Era
e a construção de um sistema tópico, o qual supõe uma predisposição RICHARD DRAYTON _ Quando pensamos nas origens do jardim
literalmente um símbolo da encarnação de uma responsabilidade
de lugares onde se poderá recolher aquilo que chega. Mas ambos os botânico europeu, devemos sempre começar com seu arquétipo
Imperial, no sentido romano do termo.
fenômenos são contemporâneos. A metade do século XVI é obcecada judaico-cristão: a idéia de um paraíso original onde toda a criação foi
pela busca do instrumento universal e pela preocupação com o organizada por Deus. O Jardim do Éden significou não apenas um Podemos juntar este senso medieval de Império como reinado ou arte
método. O “método”, em sentido estrito, é a “via”, o “caminho” que lugar, mas uma idéia de três momentos da história cósmica - primeiro de governar ao nosso senso moderno de Império, como um arrojo
se deve seguir para se chegar a algum lugar. a Criação, depois a Dispersão, quando Adão e Eva foram expulsos do para fora da Europa em direção ao mundo. Uma interessante via de
Éden, e a Redenção, onde todos os afluentes dispersos da criação, acesso a isso é uma figura chamada Charles L’Écluse (conhecido por
Os Wunderkammer nasceram do encontro da vontade dos príncipes, junto com as tribos humanas, são reunificados e reconciliados em um seu nome latino Clusius), que é inicialmente apoiado pelo imperador
que queriam dar uma espécie de ancoragem simbólica à sua só centro. Os neoplatonistas cristãos, que inventaram o jardim Habsburgo. Foi Clusius que primeiro agrupou os novos mundos da
soberania, e da vontade dos especialistas da tópica, da classificação. botânico na Renascença européia, imaginavam-se participando deste Ásia e da América, e a enxergar as plantas do mundo como um todo.
Estas pessoas vão propor seus serviços aos príncipes para, último gesto. Foi Clusius que reuniu os pensamentos de Garcia d’Orta, o médico
efetivamente, classificar seu patrimônio simbólico; entretanto, português que publicara um livro em Goa em 1563 em que declarava
propõem algo mais que uma simples organização – aspiram à O primeiro jardim botânico emergiu em meados do século XVI em
que as plantas da Índia não podiam ser contidas dentro das
sistematização, ao método. E vão fabricar, com as relíquias dos Pádua e Pisa, na Itália, e então durante a década 1580 a 1590, surgiu
categorias de Dioscorides (sobre a qual baseava-se a botânica
tesouros principescos, uma forma inédita de instrumento universal, também em Leiden na Holanda, em Montpellier (distante apenas
européia), e combinou-os com as novidades que Joseph Acosta e
uma espécie de bússola da arte de governar, uma cartografia da alguns metros de onde falamos agora) na França, e em Oxford no
Nicolas Monardes haviam descoberto nas Américas. Clusius concorda
genealogia do príncipe, de suas afiliações, de seus poderes. Assim, os início do século seguinte. Nestes jardins podemos observar o impacto
que as plantas do Novo Mundo são fundamentalmente diferentes das
quartos das maravilhas aparecem nos anos de 1560 como uma versão convergente do simbolismo judaico-cristão, vários tipos de idéias
européias, e dá o passo seguinte ao argumentar que a maneira pela
particular do instrumento universal – um canivete suíço para uso da mágicas microcósmicas/macrocósmicas de correspondência, além da
qual os europeus pensam sobre suas plantas deveria portanto ser re-
realeza. Não é a mais satisfatória no plano conceitual: reunir uma necessidade prática dos médicos de aprender a extrair significado das
imaginada. Esta imaginação da natureza do mundo em sua
coleção é necessariamente um exercício empírico. A verdadeira plantas curativas. Em Leiden ou Oxford, o que se tem é literalmente
diversidade e unidade está acontecendo ao final do século XVI sob o
technè não pertence ao registro da empiria: a meio caminho entre a uma tentativa de se recriar o jardim do Éden dentro do espaço
patronato de pessoas como o Imperador Habsburgo e Henrique IV na
teoria e a empiria, ela é uma aptidão para refletir sobre os princípios fechado do jardim botânico: o hortus conclusis do jardim botânico
França. Os soberanos imperiais da Renascença procuraram
de sua habilidade, uma aptidão para formulá-los como método. É a sendo uma espécie de microcosmo de todo o mundo.
demonstrar sua legitimidade em parte através da reconciliação da
aptidão para inventar mecanismos e soluções universais, a qual A invenção do jardim botânico ocorreu no século após a descoberta diversidade do mundo em seus jardins.
indica o ingenium: o engenho está, pois, inteiramente do lado não do da América. E o que é interessante é que temos estes jardins
colecionador, que é o receptor empírico do dispositivo, mas do lado divididos em quatro partes, para representar os quatro continentes do Uma camada adicional de sentido rodeia o jardim - a idéia de um
do dialético, que imagina o ordenamento da coleção e a concebe mundo: a Europa, Ásia, África, e América. Eles surgem logo após a espaço estético onde o Homem pudesse vir a estar em comunhão com
como um instrumento (um “espelho”) a serviço do exercício do Reforma Protestante, um período carregado de entusiasmo religioso, esta dimensão da vontade divina -, que é o senso estético, é beleza,
poder. O Wunderkammer organiza, portanto, o confronto dos objetos tanto otimista quanto pessimista. Muitas pessoas acreditavam que o é superfície, é cor, perfume, textura. Vemos em Clusius, por exemplo,
naturais e artificiais, dos objetos encontrados na natureza e das mundo pudesse estar chegando ao fim, ou que esta época de religião uma tentativa de coletar plantas que são boas não apenas para a
máquinas inventadas pela arte humana. Ele confronta inventividade reformada, do conhecimento grego e latino redescoberto, a medicina, ou representativas de famílias, mas também aquelas que
natural e inventividade humana. Nele se encontrarão, então, além descoberta de novos mundos na América e na Ásia, poderiam ser os são estranhas e diferentes ao olhar -cactos com suas cores

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espinhosas, flores de pétalas brilhantes, frutas de gosto e cheiro Bolsa de Valores para o Império’ [‘a great Exchange House for the incluir a mais rica coleção de espécimes-tipo do mundo. O trágico
diferentes. Empire’]. A Exchange House em Londres, relembremos, era naquela paradoxo, não obstante, é que os mesmos processos imperiais que
época um mercado comercial onde mercadorias eram negociadas. geravam esta acumulação da variedade da Natureza em Kew, levou,
Estes quatro tipos de objetivos foram reconciliados por algum tempo.
Banks queria que Kew fizesse para o mundo natural o que a City [o ao compasso do corte das florestas e da introdução de plantações de
Mas eventualmente emergiram as tensões entre as diferentes idéias
distrito financeiro] de Londres fazia para a economia do mundo. Em valor econômico, à extinção de milhares de espécies por todo o
do jardim: o jardim como ornamento, o jardim como espaço médico,
particular, ele procurou o intercâmbio de cultivos de importância mundo. Kew, de certo modo, é um monumento à enorme onda de
o jardim como espaço científico e assim por diante. Mas a idéia de
econômica entre as Índias Ocidentais (Caribe) e Orientais. Assim, a destruição, algo como as coleções antropológicas que os europeus
um jardim botânico contendo todas as plantas do mundo era
fruta-pão e condimentos indonésios seriam trazidos às Índias formaram de culturas indígenas do globo.
rapidamente reconhecida como utópica. Havia simplesmente plantas
Ocidentais, e o jacarandá e o cacto Nopal com o inseto cochonilha
demais no mundo. JCR _ Qual é sua pesquisa corrente ?
seriam levadas do Novo Mundo e introduzidas na Índia Britânica. Ao
No início do século XVII, as pessoas ainda esperavam coletar toda a mesmo tempo tentou abrir uma rota Norte-Sul de troca de plantas RD _ No momento preparo uma história do Caribe, intitulada O
criação dentro do espaço fechado do jardim. Mas, em algumas ornamentais. África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Chile Caribe e a construção do Novo Mundo. Eu começo com a geografia e
décadas, mais e mais plantas chegavam à Europa a partir do resto do proveram as plantas que podiam ser cultivadas a céu aberto, fora das a geologia, levando a história desde os primeiros jatos vulcânicos
mundo em verdadeira torrente - das Índias Orientais, Java, África estufas. que, em algum lugar do Pacífico, fizeram surgir a Placa Caribenha.
Ocidental, do Caribe - as pessoas começaram a perceber que isso Esta placa move-se em direção ao Leste, gerando o arco das Grandes
seria um pouco mais difícil que haviam julgado. Havia plantas Banks lançou os fundamentos de um jardim mundial que foi levado Antilhas, e, mais tarde, em sua franja ocidental, a conexão das
demais, muitas das quais eram difíceis de manter vivas a bordo de ao seu ápice em meados do século XIX. Em 1840, Kew passou de Américas através do Panamá. Então volto-me à história humana, que
um navio ou já na Europa. Então, no lugar de plantas vivas (o hortus propriedade pessoal da Coroa a parte do Estado. Financiamentos é essencialmente uma questão da convergência de quatro diásporas
vivus), observamos uma guinada em direção à preservação de públicos de vulto foram mobilizados para a construção de museus e diferentes, quatro direções migratórias. A primeira delas é a Diáspora
plantas em um hortus siccus (‘jardim seco’) ou herbário, onde se das grandes estufas, como a Great Palm House of Kew. (Este é um dos Ameríndia, que não é simplesmente a história dos Arawak e dos
guardam exemplos de plantas coladas em folhas de papel ou livros, edifícios mais maravilhosos do mundo, um monumento à tecnologia Carib, à qual é normalmente reduzida. Trata-se de um drama
que podiam ser facilmente guardados e organizados. da Revolução Industrial. Se observarmos atentamente, é quase como complexo, de sete mil anos de duração, envolvendo migrações
um barco virado, com sua quilha e costelas feitas de aço - e o homem paralelas e competitivas de diferentes partes da região do Orinoco, no
A alternativa ao herbário como um espaço que pudesse conter o que a desenhou tinha de fato experimentado o uso de aço para tais norte da América do Sul, em direção ao arquipélago. Esta Diáspora
mundo, era o jardim da filosofia. No século XVII, a classificação propósitos). Ao mesmo tempo, em meados do século XIX, Ameríndia então colidiu com as Diásporas Européia e Africana dos
sistemática das plantas do mundo amadureceu em John Ray e observamos que, o que eram conexões informais e soltas entre Kew e séculos XVI, XVII e XVIII, e por último com a Asiática no século XIX.
Tournefort. As novas plantas que chegavam do resto do mundo, ao o Império Britânico na era de Banks, foram substituídas por uma O que vemos criado no espaço do Caribe são as primeiras sociedades
compasso da expansão comercial e colonial da Europa, não poderia integração direta e estreita de interesses científicos de botanistas no mundo em que estes diferentes afluentes da vida cultural humana
ser contida nos termos das categorias científicas européias. Ray britânicos e o império britânico em franca expansão. Conexões foram reconciliadas. O Caribe foi a primeira cultura realmente global,
escreve na Historia plantarum sobre as plantas da Índia e sua oficiais foram forjadas entre o Real Jardim Botânico em Kew e as o primeiro espaço em que todos os ancestrais reclamam
estranheza: ‘Quis crederit in una provincia malabara....’, ‘Quem instâncias administrativas do Império, tais como o Colonial Office, o envolvimento. O Caribe foi um cadinho onde muito da experiência
poderia crer que nesta província de Malabar, que não é um grande India Office e governos coloniais, o que levou a um fluxo contínuo de moderna emergiu pela primeira vez. Nele, as ideologias e instituições
lugar, podem ser encontrados 300 tipos distintos de plantas?’ Da novo material. Tanto assim que o Diretor de Kew, ao final do século do colonialismo europeu cristalizaram-se primeiro, e então foram
mesma forma que Copérnico argüiu que o cosmos não podia ser XIX, reclamou ao governo, que perguntava por quê este pedia tanto exportadas para outros lugares das Américas e do mundo em geral. O
entendido através das categorias ptolemaicas da astronomia helênica, mais espaço para os herbários. Ao que o diretor respondeu que não Caribe foi o cadinho onde a toxina do racismo se precipitou primeiro,
também os botanistas argumentaram que as famílias eurocêntricas de podia controlar a expansão de sua coleção de plantas porque ele não mas também foi o primeiro lugar a gerar seu antídoto, tanto que em
Dioscorides (que havia identificado apenas 500 tipos de plantas) não podia controlar a expansão do Império Britânico. seus espaços, as pessoas primeiro aprenderam a conviver com outros
poderia fazer sentido das plantas do mundo. Então vemos, ao início
de comunidades culturais radicalmente distantes e distintas.
do século XVIII, uma re-imaginação da flora do mundo, e é sobre isso O que temos então no espaço do Real Jardim Botânico de Kew é um
que se apóia o trabalho de Lineu, Adanson, e até Jussieu, e também microcosmo daquele momento de globalização que estava sendo A importante idéia da Transculturação emergiu primeiro como uma
nossa versão moderna do Reino Vegetal. construído ao redor do Império Britânico. O mundo de plantas que foi prática, e depois como teoria, com o espaço da região. A
coletado em Kew era realmente representativo das partes do mundo transculturação foi um conceito inventado pelo antropólogo Fernando
JCR _ E em relação aos jardins de Kew Gardens na Inglaterra ?
ao alcance da influência britânica. Como é o caso de todas as formas Ortiz, que procurou discordar da antropologia de Malinowsky, que
RD _ Kew surgiu após esta dramática história renascentista do jardim de universalismo e de todas as formas de ‘globalização’, se olharmos imaginava que a Europa poderia mudar o mundo sem que ela mesma
botânico. O jardim de Kew começou em fins do século XVII como um muito de perto, elas são habitadas por espécies de provincianismo. fosse transformada. Contra a aculturação de Malinowsky, Ortiz
jardim particular, de propriedade de um aristocrata chamado Capel, Podemos identificar versões americanas, francesas e britânicas da argumentou que, em um encontro cultural, todos os participantes são
que foi então içado à órbita da família real britânica, que vivia perto globalização, cada uma delas presumindo ser o mundo como um transformados. Assim, em vez de termos a cultura A (que podemos
de Richmond. Kew não foi um jardim importante até a geração todo, mas que na verdade fazem a inflexão da estranheza do mundo chamar de Europa) transformando a cultura B (talvez a África) na
seguinte. Sua ascensão está associada à ideologia política que ao redor de sua experiência particular e local. Poderíamos chamar cultura C, Ortiz sugere que quando A colide com B, o que surge é um
descendia do Imperialismo medieval: a idéia da monarquia isso da ilusão “Nós somos o Mundo” (‘We are the World’). sistema complexo de interações culturais entre A e B. B transforma A,
Esclarecida. No século XVIII, os monarcas, príncipes e aristocratas mas elementos dos dois sobrevivem inalterados como parte de uma
procuraram demonstrar sua virtude através do patronato das ciências Não obstante, neste momento do século XIX, a Grã-Bretanha era cultura comum. Eu não creio que tenhamos ainda, particularmente
em geral, e dos jardins botânicos em particular. George III ascende ao realmente a nação mais globalizada do mundo. Assim, podemos quando pensamos na Europa, aceitado o quanto que a expansão
trono em 1760, e tinha pretensões de apresentar-se como uma espécie argumentar que este jardim ‘Cosmograma’ chegava mais perto de imperial e a Globalização significou em termos de transculturação.
de monarca esclarecido ao público britânico. O ano de 1763, no representar o mundo do que qualquer coisa anterior. Em 1846, a Grã- Esta idéia de transculturação como tema central na história do
esteio da Guerra dos Sete Anos, marca também o começo da grande Bretanha foi a primeira nação no globo a essencialmente depender do mundo, é o coração do livro.
era da autoconfiança imperial britânica. Foi neste período que a Índia mundo para sua alimentação. É um momento muito interessante na
Ao colocar a ‘transculturação’ à frente, não se trata de trilhar um
e o Canadá tornaram-se parte do Império, e foi também quando o história da globalização, pois eles revogaram as leis que protegiam os
caminho fácil em direção a um frágil multiculturalismo. Isso envolve
navegador James Cook lança-se ao Pacífico, trazendo a bordo Joseph fazendeiros britânicos por meio de taxas de importação. O corolário
um repensar radical do modo como relatamos histórias como
Banks. Quando Banks retornou em 1771-2, George III trouxe-o para de revogação das Leis do Milho (Corn Laws) era a integração do
historiadores, e talvez repensar o que o mundo moderno realmente
seu círculo, e com o tempo fez dele gerente efetivo do jardim trabalho e mercadorias mundiais ao redor e através da Grã-Bretanha.
significa. Em termos de lógica matemática, o que temos no Caribe
botânico que o rei e sua mãe construíam em Kew. Foi Banks quem ‘As planícies da América do Norte e da Alemanha’, como escreveu o
não é apenas a história de uma intersecção, mas do que está fora
transformou Kew em um centro para as plantas do mundo. economista W.S. Jevens, ‘são nossos celeiros. O Canadá e a Rússia
dessa intersecção, e que preserva sua separação mesmo no espaço da
são nossas florestas madeireiras, Portugal nos supre de vinho, e a
Nas décadas de 1770 e 1780, Banks tornou-se o centro da vida intersecção. As coisas não se derretem em uma só mistura
China e Índia são nossos jardins de cultivo de chá’, e, é claro,
científica e política, e conseguiu transformar o Império Britânico em indeterminada; os personagens ancestrais ascendem e caem frente a
imaginava-se, todo mundo então compraria os manufaturados
uma fundação para a coleta de plantas para o jardim de Kew. Banks cada geração. Existe um processo incompleto de assimilação, de
britânicos. Nas décadas de 1840 e 1850 vemos a Marinha Real, junto
tornou-se presidente da Royal Society (que é a instituição científica catálise, de ruptura e de integração, e é isso que imprime dinamismo
com mercadores britânicos, forçando os sul-americanos e africanos e
chave britânica), e mantinha estreitos laços com a Marinha Real, a ao processo: o fato de que há sempre uma parte subordinada da
asiáticos a abrir suas economias. Assim, nesta grande era de Kew,
Companhia das Índias Orientais, a West India Planters, e com a interação que a cada novo momento pode encontrar seu caminho à
vemos não apenas mais e mais colônias adicionadas ao Império
Câmara do Comércio (Board of Trade, um ancestral do Colonial frente do palco. A presunção no pensamento judaico-cristão é que
Britânico, mas também temos vastas áreas do mundo como a
Office). Plantas começaram a chegar de todos os cantos do mundo existe algo chamado conversão, que demanda uma escolha do tipo
América Latina e a China, em que exercia-se uma dominação
para o jardim do rei. Em 1772, um homem chamado Masson foi um-ou-outro, que demanda uma jornada de mão única em direção ao
informal, e como resultado, uma penetração informal do
enviado para a África do Sul para coletar, no Cabo da Boa Esperança, bem, ou ao moderno. Pois então, no pensamento filosófico e histórico
conhecimento científico. As Guerras do Ópio, em que a Grã-Bretanha
plantas que pudessem ser cultivadas ao ar livre na Europa. ocidental, talvez seja difícil pensar sobre formas plurais de lealdade
forçou os chineses a comprar seu ópio, foram imediatamente
cultural, e sobre a possibilidade e sentido da reversão da ‘conversão’,
O que emergiu em Kew, um pouco antes do Jardin du Roi em Paris, seguidas da chegada de coletores de plantas, e foi neste momento que
de acordos temporários sendo renegociados, de tradições ancestrais
sob a direção de Buffon e Thouin, era o que poderíamos chamar de as grandes coleções de plantas chinesas em Kew e do Jardim Botânico
re-emergindo. A história do Caribe, em que todas as culturas do
um centro de coleta e comparação. Isso é essencialmente um centro de Edimburgo são iniciadas. Ao mesmo tempo, Kew ajudou a
mundo são levadas a uma crise e a momentos de integração, talvez
em que a acumulação de observações e de espécimes apóiam transformar as plantas do mundo em fontes de riqueza britânica.
nos ajude a pensar mais dinamicamente sobre transformação e
momentos instáveis de insight comparativo e classificatório. Há uma Houve uma deliberada apropriação de capital genético do império
agência históricas. O ponto não é substituir um eurocentrismo falido
instabilidade inerente às categorias históricas naturais ao ponto de informal britânico para o uso de plantadores nas colônias britânicas.
por um ‘caribocentrismo’, mas sim repensar as narrativas da
ser preciso depender de uma identificação altamente artificial de A cinchona (fonte de quinino) e a borracha foram arrancadas da
modernização, com suas histórias simplistas de como o passado
critérios particulares para a criação de categorias, e para o América do Sul e transferidas para a Índia e o sudoeste da Ásia.
necessariamente fez o presente.
mapeamento de padrões. O ‘cosmograma’ depende sempre de uma
O ‘jardim cosmograma’ em Kew foi portanto mais do que meramente Você havia perguntado antes sobre a ligação entre o trabalho sobre
perspectiva particular, e pode subitamente aparecer como apenas um
a mais completa coleção das plantas do mundo. Era a encarnação Kew e minha nova pesquisa. As duas refletem minha experiência
truque da luz.
botânica do universo de relações de poder que cercavam o Império pessoal. Eu nasci no Caribe, e meu interesse sobre imperialismo e
Banks, no entanto, queria mais que uma representação científica do Britânico. Seus espaços ornamentais - as Casas Tropical e Temperada, sobre aquelas formas de ciência que traficaram com o colonialismo e
mundo: ele pretendia usar seu ‘mundo em um jardim’ para mudar cachos de cedros indianos e pinhos norte-americanos - o imperialismo, foi desenhado precisamente pelos mesmos tipos de
este mundo. Ele expressou sua ambição em relação a Kew em proporcionaram um espetáculo do mundo reconciliado em um só interesses filosóficos e intelectuais que estão desenhando este projeto
linguagem econômica: ele desejava que Kew se tornasse ‘uma grande lugar para o público britânico. Seus herbários e museus vieram a sobre o Caribe.

18
JCR _ Isso era bem claro a respeito das plantas, mas o que aconteceu desgasta. Em termos gerais, a biomassa se conserva, mas não é
no processo cultural da transculturação ? ilimitada. Pode ser alterada em suas transformações e o homem é
responsável por essa questão.
RD _ Ocorre uma espécie de submersão das tradições subordinadas
no momento do encontro, de modo que somente uma ou outra Porque, a partir do momento em que se considera o planeta como um
tradição é visível. Quando as condições históricas mudam e as lugar fechado, um lugar cercado para sempre, designa-se o homem,
relações de poder são reequilibradas, outras tradições alcançam o enquanto único ser consciente, como único responsável pelo resto
topo. Eu suponho que uma das coisas para se ter em mente aqui é dos seres vivos. O resto dos seres vivos faz o que tem de fazer, mas
que hibridismo é interessante, pois ele representa uma maneira de
G ILLES C LÉMENT não sabe que o faz. Nós, porém, conhecemos os mecanismos do ser
entender uma dinâmica de poder e de criar espaços para vivo, sabemos que nossos gestos se fazem em detrimento de um
possibilidades culturais alternativas, que jazem sob a realidade GILLES CLÉMENT É PAISAGISTA , PROFESSOR NA ESCOLA NACIONAL SUPERIOR DE PAISAGEM DE
sistema qualitativo, que destroem uma porção de coisas – e que, no
cultural dominante. De certo modo, ela nos leva em direção a uma VERSALHES EM 1943 , FUNDADOR DA AGÊNCIA ACANTHE EM 1985 . É TAMBÉM O AUTOR DA final, nos destruímos a nós mesmos. Sabe-se com certeza, com um
CONCEPÇÃO DO PARQUE ANDRÉ CITROËN - PARIS XV E - E O CURADOR DA EXPOSIÇÃO JARDIN
forma quase política de prática onde podemos procurar - em termos PLANÉTAIRE , LA VILLETTE , PARIS - 1999-2000 - DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE
requinte de detalhes científicos tal, que isso só pode querer dizer que
de nossa própria função intelectual e em termos de nossa função JARDIN EN MOUVEMENT , SENS ET TONKA , PARIS , 1991 E MANIFESTE DU TIERS - PAYSAGE , se tomou a decisão de se suicidar, de condenar a espécie humana
SUJET - OBJET , PARIS - 2004 -
social - criar espaço para as tradições subordinadas que operam num sistema de predação extrema. É uma decisão interessante que
dentro da cidade global, e dentro de qualquer simulacro do não é formulada: ela é consciente para alguns, inconsciente para
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
cosmograma. outros, mas é partilhada: todos consentem em morrer.

Em qualquer tentativa de criar um modelo universal existe uma JCR _ Então esse jardim planetário é finito ?
PARIS _ 28 DE JUNHO DE 2004
variedade de modos de subordinação que estão em jogo. Atentar para
GC _ Pode-se pensar que sim. E as tentativas para escapar disso são
o hibridismo e a diversidade tem que significar algo mais que
O
interessantes: não se vai a Marte a troco de nada! Vai-se a Marte
simplesmente falar sobre um tipo de feira multicultural. Eu me JARDIM PLANETÁRIO
porque se trata de escalas e que, talvez, em um dado momento, será
interesso muito em realocar o significado do que eu penso serem as
necessário deixar a Terra, que não será mais suportável.
tradições subordinadas das Antilhas. Uma delas é a realidade Quando era jovem, interessava-me pela diversidade que existia no
geográfica, que recebe muito pouca atenção. Eu me interesso em lado de fora do espaço regulado do jardim tradicional, no lado de fora
Tudo está na demografia: é um problema fundamental de que nunca
trazer novamente à superfície este tipo de contexto físico estrutural da cerca. Funcionava sem os cuidados de ninguém, mas eu não tinha
se ouve falar de forma realmente séria. O Plano Mansholt, o plano
que está moldando este espaço como um espaço de encontro e um as chaves para compreender isso. Mais tarde, durante meus estudos,
crescimento zero, foi tratado com desprezo; antinômico demais em
espaço de diferença. tive a explicação científica do que havia pressentido: as coisas são
relação à vida, contrário demais à dinâmica biológica, porque todo
ligadas entre si, uma forma de complicação que o jardim tendia a
A privilegiada ‘narrativa-mestra’ da história caribenha teve duas ser tem por objetivo perpetuar-se tornando-se mais numeroso. Mas a
esconder. O jardim subtrai, elimina, oferece formas simples de leitura
versões. Há a versão anterior a 1960, que é essencialmente a história vida em sua globalidade não funciona exatamente assim; ela evolui
e geometrias cômodas. Na natureza, eu via complexidade. Um lagarto
do heróico descobridor e colonizador europeu que trouxe a transformando-se e tornando-se mais complexa, o que não quer dizer
que caça uma mosca cria um vínculo de predação, mas a própria
civilização para o novo mundo. E existe a história pós-colonial do aumentando quantitativamente. Porém, não sabemos fazer isso, o
mosca está ligada à planta, sua larva come vegetal e, depois, um
Caribe como um teatro em que a história de escravidão e do que faz com que evoluamos transformando-nos muito pouco e
pássaro vem comê-la – e, muito depressa, isso se torna extremamente
colonialismo é transformada simplesmente em um prelúdio para a multiplicando-nos muito. É um erro biológico absoluto. As plantas e
complicado.
política nacionalista contemporânea. Ambas as histórias podem ser os animais têm reguladores que os punem imediatamente e os
desestabilizadas se atentarmos mais ao significado da história recolocam num circuito muito mais viável. É muito raro haver
A ecologia científica esclareceu-me sobre o que era apenas um
Ameríndia e às maneiras como estas tradições de europeus e invasões. E nós somos o grande invasor.
pressentimento. Na época, quando nos falavam dos mecanismos do
africanos foram postas em contato uma com a outra, e incluídas ecossistema, falavam de nicho ecológico, de biótopo, não de jardim. A opção do jardim planetário é uma alternativa ao desaparecimento
dentro das formas de vida ameríndias. O fato de que não há Mais tarde, graças à minha própria experiência de jardineiro, comecei da vida humana na Terra. Porque o jardineiro não pode matar a vida
comunidades significativas de pessoas que hoje chamam a si próprias a refletir, num contexto mais amplo, sobre essa noção de jardim. Meu da qual depende e todos os seus gestos são orientados para a
de ameríndias não significa que esta presença pré-colombiana não jardim era, de um lado, um catálogo de elementos planetários conservação da vida. Ele é verdadeiramente o consumidor consciente
possua uma força civilizatória penetrante. longínquos, aqui reunidos pela mistura planetária; mas também, pela que organiza o espaço. Isto é, não vai utilizar produtos que destruam
Eu estou tentando sugerir que o que temos neste espaço alocado, própria presença do jardineiro, era algo diferente de um pedaço de a qualidade do solo, do ar e da água – os principais substratos; não
alienado e separado das Antilhas, é um lugar que não é mais especial natureza funcionando sozinho. vai utilizar os produtos que vão matar os animais, seus aliados, nem,
que nenhum outro no mundo, onde algo chamado de lar foi criado evidentemente, as plantas (eventualmente parasitas, bastante
Foi no meu terreno que compreendi isso. Ali, vi o que significava a
por pessoas que lá viviam. As várias novas tradições que entraram simbiônticos), seres com os quais é preciso viver. Ele vai fazer de
diversidade presente, considerada em si mesma, sem a destruir, e
neste espaço não apagavam simplesmente o que acontecera antes e modo que toda essa diversidade coexista. O jardineiro é o gestor do
comecei a orientar em seu proveito as fantásticas energias locais.
construíam sobre as ruínas, mas sim existiram dentro de uma jardim planetário. E eu, em minha utopia, imagino que o jardineiro é
Tomei a decisão de não fazer como então se fazia, isto é, ir
dinâmica comunhão com estas tradições ancestrais anteriores e a população humana em sua totalidade. É necessário propor esse
sistematicamente contra, mas de fazer o máximo possível com. Em
dentro deste espaço de encontro europeu, africano e asiático. Todas sonho para que o planeta dure – pois um jardim dura! Nele, as coisas
todos os jardins, incessantemente se é contra alguma coisa que está
as opções políticas férteis para as Antilhas repousam sobre o manter se reciclam, não se perdem, a energia é recuperada, as qualidades são
acontecendo: corta-se, poda-se, põe-se veneno, rega-se quando está
aberta esta visão de comunidade, de diversidade, de multiplicidade mantidas. Quando se faz um jardim biológico, como se diz hoje, faz-
seco, drena-se quando está muito úmido: não se aceita a situação.
compreendida não como uma caldeirão onde tudo é assimilado e se um jardim que mantém a vida – senão se faz um jardim letal, que
Gasta-se, então, uma energia contrária fabulosa, está-se na labuta, na
dissolvido, mas onde há uma complicada conversação orquestral em mata a vida. É isso que se vê com mais freqüência: jardineiros como
dor agradável. Eu não queria fazer um trabalho que pudesse tornar
curso. Temos razões contemporâneas e históricas para atentar para as militares armados – eles usam venenos violentos... Ataca-se a
detestável algo tão harmonioso e agradável. O jardim em movimento
vozes que têm ficado em segundo plano e em silêncio. natureza para conservar uma certa idéia da limpeza, uma estética
é a teorização de uma prática que consiste em seguir o deslocamento
gelada que nada tem a ver com a vida que corresponde a um
JCR _ Você acha que é possível encontrar idéias de práticas que sejam físico das espécies no terreno. Percebi que uma das maneiras de não
esquema cultural do que é necessário ter em seu meio ambiente a fim
úteis reter, para melhor compreensão de como as Cidades Globais ir contra era acompanhar a peregrinação. Isso induz um modo de
de, por assim dizer, estar bem. É dramático. Culturalmente, fomos
funcionam ou poderiam funcionar ? jardinagem absolutamente novo, revolucionário, poderiam dizer. O
atingidos, perdemos nossos referenciais. Se você compreende que o
desenho do jardim acima do terreno torna-se impossível, desenha-se
RD _ Para o bem e para o mal, o Caribe está plenamente implicado fato de jogar um copo de água sanitária na pia do banheiro tem uma
o jardim diretamente no terreno. É o jardineiro que se torna o
nas cidades globais. Estas comunidades eram proto-cidades globais incidência sobre o que se passa no esgoto, nos rios e nos oceanos,
conceptualizador conceitualizador do jardim, coisa a que não estava
em si. Estas eram as primeiras comunidades no mundo, a partir do então, evidentemente, você muda de atitude para participar da
acostumado.
fim do século XVII e início do XVIII, em que observamos manutenção da qualidade do “motor”, o que permite a vida.
características da cidade global. Lá temos populações, por volta de Quando chega a esse espaço uma coisinha de nada que vem de longe, Faço a apologia do jardim; portanto, do jardineiro; portanto, do
1680, que dependiam da importação para sua subsistência, que uma planta exótica, será que se deve lutar contra porque é a planta homem amigo da natureza. Eu gostaria que o homem compreendesse
dependiam de mercados de longa distância para seus produtos de exógena que vem destruir a situação inicial? Minha tendência foi que ele se ameaça sozinho. E que o jardim mais elementar traz o
exportação para sua sobrevivência, onde encontramos trabalhadores dizer: há aí uma boa intenção e vamos conservá-la! Evidentemente, indivíduo para mais perto das questões de bom senso, de
alienados de suas ferramentas, densidades populacionais de é necessário um princípio de gestão: quando há invasões, eu as simplicidade e de serenidade. Que ele ensina o que dizem algumas
duzentas, trezentas ou quatrocentas pessoas por quilometro regulo um pouquinho, e é isso que faz com que ele seja um jardim, filosofias, a saber, que o fim não tem importância. O que conta é o
quadrado, onde as populações eram extremamente diversificadas em embora seja um jardim que funciona bastante por sua própria conta. fato de estar nessa ação.
termos de sua origem geográfica, vivendo em convergência um com
o outro e funcionando através de dialetos e falas crioulas. É possível Outros parâmetros importantes levaram-me a propor a idéia de JCR _ Você faz a apologia da diversidade. Por que se deveria ser um

argumentar, de fato, que a sociedade industrial tem seus começos jardim planetário: o fato de que, quando viajo, encontro por toda admirador da diversidade ?
nestes espaços caribenhos, já que é na produção de açúcar que parte as marcas dessa mistura planetária; o fato de que – e o homem
acelera o fenômeno – há hoje plantas ou animais que se encontram e GC _ A diversidade não é a neurose da acumulação, é o
observamos primeiro a integração da produção fabril de capital
que não foram feitos para se encontrar. Isso coloca os problemas deslumbramento da novidade constante. A diversidade não está
intensivo com grandes unidades de produção. Estes espaços é que
ecológicos que são conhecidos, mas, enfim, possibilita a existência apenas nas diferenças morfológicas das espécies, está na
sempre foram modernos, antes que grande parte da Europa o fosse.
dos híbridos, de seres novos, de configurações novas, de paisagens multiplicidade dos arranjos e dos comportamentos. É um dos
Eram ilhas, mas elas sempre foram ligadas, nestes séculos XVII e
novas. Pois isso é o que já acontece no jardim, do lado de dentro da ensinamentos do jardim: há plantas e animais que não se comportam
XVIII em diante, a Amsterdã, Londres, Nantes, Bordeaux, e Bristol, e
cerca. da mesma maneira de um ano para o outro. Não só uma figura nova
através destas com Hamburgo, Lubeck e a Europa Central. Temos
e um ser novo participam da diversidade, mas também um novo
uma espécie de economia de comércio global, uma cidade global
O último ponto importante foi a consciência da “finitude ecológica”, comportamento, devido a uma configuração diferente, uma
sendo criada ao longo destas linhas, afluentes, e redes de troca. A
um aporte científico crucial do século XX. Os cientistas da ecologia justaposição de seres que se organizaram de outro modo no espaço.
cidade global, portanto, como um espaço específico parece-me ser
descobrem e lançam: estamos numa situação definida, há uma
sempre suplementada por, se não desestabilizada, por estas conexões JCR _ Mas será necessário recusar a diversidade que vem da
finitude, os seres, a biomassa constituem um sistema finito. O jardim
globais que são inerentemente deslocalizadas. intervenção humana ?
planetário – nova cerca – se desenha nos limites da biosfera. Porque,
é evidente, a vida não ultrapassa esses limites. Então, eis-nos em um GC _ Ao contrário, pode-se criar inteiramente uma diversidade: é o
novo jardim que conserva sua antiga definição de espaço cercado. jardim! O jardim é o único território de encontro entre o homem e a
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER Esse jardim se mantém por si mesmo e também se transforma, se natureza em que o sonho (a utopia) é permitido. Há as reservas

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20
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VIEW AT SAO PAULO BIENNAL - PHOTO /EDOUARD FRAIPONT

21
naturais onde não se pode fazer nada, há as cidades onde a natureza conservação de si mesmo: é uma prática de si. Fale-nos dessa ética reinventar uma outra natureza que esteja «acima», que possa conter,
não existe... Essa utopia só pode se realizar no jardim: há jardins com da jardinagem. ao mesmo tempo, a cultura e a natureza dessa cultura e assim por
árvores kitsch, nas quais loucos enxertaram três flores, cinco frutos – diante, ad infinitum. A esse respeito, sempre se está ameaçado pela
é genial! Que isso seja viável ou não tem pouca importância. É essa Isso é mais difícil, estou muito envolvido... O jardineiro é um filósofo regressão infinita, um pecado mortal aos olhos dos filósofos. Esse
espécie de amizade, de conivência com os seres de natureza que no sentido de que é um sábio pragmático obrigado à observação do tipo de impasses, esse tipo de aporias cria a fissura epistemológica
fazem com que o homem tenha um lugar nele. Ele é “na” natureza. ser vivo, mas seu modo de ação é de tal forma fino e complicado que mais tenaz entre os relativistas – isto é, os que pensam que cada
Porque o homem não seria um ser biológico! Seu espírito é, ele tem também algo do mágico, do xamã. O preceito essencial é cultura é um mundo em si – e os universalistas – isto é, os que
provavelmente, o produto de um sistema biológico. Aquilo que é fazer “o máximo possível com e o mínimo possível contra”. No fato pensam que cada cultura é apenas uma emanação de uma natureza
chamado de artifício poderia ser olhado como fato natural. de observar para compreender, há uma atitude de verdadeira humana universal que, ela própria, faz parte da natureza sem
sabedoria: atitude geral que consiste em fazer economias, economias adjetivos. Os relativistas pensam que cada cultura define sua
Por que persistir em colocar a natureza de um lado e o homem de de tempo através do aumento do conhecimento. Ir rumo ao não- natureza de uma forma incomensurável, umas em relação às outras;
outro? A expressão meio ambiente, que é recente, diz também isto: trabalho, aprender o não-fazer como se aprende o fazer seria uma os universalistas, por sua vez, pensam que as culturas são,
ao lado, nos arredores. Mas isso é perigoso porque significa, coisa importante, mas difícil de obter. Não estamos nesse justamente, aquilo que precisa ser comparado pelo viés dessa
obrigatoriamente, nos excluir, enquanto seres humanos, do conjunto mecanismo, pelo contrário: nós nos especializamos para ser o mais natureza comum. É um diálogo de surdos, porque essas pessoas (os
da natureza. performático. Estamos na acumulação e, por essa razão, na relativistas e os universalistas) não têm, a meu ver, o mesmo conceito
acumulação do dejeto. Sufocamos sob nossos dejetos. Seria de natureza nem o mesmo conceito de cultura.
JCR _ Então, a destruição da natureza é também algo que se insere no
necessário subvalorizar o trabalho, deslocar os valores. Cada cultura
fato biológico ? Minha idéia, enquanto etnólogo, é tentar responder a tal questão não
tem essa noção de limiar vazio, depurado, como a do nantai, no
Japão, ou a dos Marae sagrados. Se o paraíso é um jardim, é porque recorrendo a essa ou àquela corrente filosófica, a essa ou àquela
GC _ É claro que sim, mas isso aparece como uma aberração do fato
nele se passa essa questão de não trabalho laborioso. A questão da forma de definir a Antropologia [tanto a Antropologia quanto a
biológico, um câncer. Uma cidade pode ser olhada como uma
felicidade, bem como a da liberdade, também se passam no jardim. natureza e a cultura], mas perguntando aos indígenas -
alteração da pele da terra. Mas nem todas as cidades – não os ksours,
Uma verdadeira política em matéria de jardim deveria imaginar uma particularmente aos índios da Amazônia, que estudo - o que pensam
do sul do Marrocos, que são de terra, portanto solúveis e, portanto,
parte de território na qual não se decide nada. O que chamo de A a respeito do assunto. Ao invés de utilizá-los para responder às
menos perigosos para a pele da terra.
terceira paisagem. Pode ser um fragmento indeterminado do jardim questões que nos colocamos a respeito da oposição natureza/cultura,
JCR _ Haverá uma lógica do jardim planetário em ir se expatriar fora isto é, a questão (bem específica) do universal e do particular, trata-
planetário, o lugar de acolhida máxima da diversidade. Na gestão
da terra, colonizar os planetas ? territorial, torna-se urgente, para mim, haver decisões sobre o não- se, ao contrário, de ver como a colocariam se tivessem que se colocar
tal questão. Pode-se imaginar que essa oposição – que de modo
fazer. As terras não cultivadas, embora respondam a estratégias
GC _ O que é nefasto para mim é a alteração do motor; não é propagar
estritamente econômicas, têm, entretanto, muito boas conseqüências. algum é arbitrária quando se pensa, por exemplo, no fato de que
a vida, é suprimi-la. Portanto, se a vida é propagada de modo Lévi-Strauss construiu sua antropologia em torno da oposição
São praias de invenção em que a natureza funciona por si mesma e
artificial, se o OGM é feito – não para o comércio, mas visando a natureza/cultura, admitindo a possibilidade de encontrá-la na
para si mesma. No entanto, associar paisagem e patrimônio é a pior
diversificar ou a melhorar as condições da vida –, então não sou mitologia dos ameríndios – não é completamente estranha, senão
coisa. É nisso que os integrantes do Partido Verde não
filosoficamente contra. Eu, que sou meio parente de um mundo quanto à forma, pelo menos quanto ao conteúdo, ao pensamento
compreenderam o que era a ecologia. Uma visão conservadora em
ecologista, tenho algumas dificuldades para fazer passar essa idéia – daquelas pessoas. Lévi-Strauss teve uma intuição certa da
matéria ecológica é aberrante, é necessário evoluir. A estabilidade é
e, de modo algum, se está de acordo a respeito desses pontos. O que centralidade desse tipo de questões para o pensamento ameríndio.
terrivelmente exigente. É preciso lutar continuamente para
é perigoso é suprimir as possibilidades de funcionamento do motor Penso que ele estava no caminho correto, a não ser pelo fato de sua
permanecer estável, é a fabricação do inferno. A natureza ensina-nos
da vida que funciona graças à qualidade dos substratos. Se os resposta se parecer mais com a de um filósofo europeu do século
a idéia do fluxo. Se alguém quiser ter a certeza de se afogar, a única
substratos forem atingidos, então se atinge a própria vida: há XVIII do que com a resposta que um índio daria. Tudo o que faço é
coisa a fazer é nadar contra a corrente. A ecologia é um elogio do
desaparecimentos irreversíveis de espécies, há poluições tentar não responder por, nem no lugar de, mas, sim, diante dos
movimento; um movimento que evolui por si mesmo, que não tem
irreversíveis... índios, pensando nos índios. Evidentemente, é uma resposta
fim nem finalidade, no qual somos envolvidos e do qual somos partes
hipotética, uma experiência de pensamento, é uma «metafísica
À medida que ocorrem os movimentos do planeta, sua respiração, o interessadas.
experimental», como definiria Bruno Latour. E uma das
deslocamento dos continentes, os organismos (dos quais fazemos
Um jardim bem sucedido é uma visão do universo: um cosmograma. particularidades desse pensamento dos índios é, exatamente, a de
parte) se reajustam, encontram soluções. Em relação aos grandes
Os jardins são cosmogramas; a paisagem é um palimpsesto, a história que só existe um ponto de vista, aquele de todo ser consciente. Todo
incêndios ou aos ciclones, a natureza encontrou soluções. Na ilha
de uma superposição. O jardim é uma obra única, a expressão sujeito vê o mundo da mesma maneira: esta é a intuição que me
Maurício, uma árvore floresce somente após um ciclone: sua
acabada, numa determinada época, da posição do homem em relação guiou. Inversamente, a coisa mais difundida no mundo atual é pensar
perenidade no tempo está condicionada à existência dos ciclones,
à natureza. Se não fosse um cosmograma, então o jardim não que a natureza é apreendida, percebida, concebida de forma diferente
assim como outras estão condicionadas ao fogo. Isso é muito
passaria de um arranjo ornamental. a partir de diferentes pontos de vista, sejam os de indivíduos
perturbador, mostra que a vida tem ressaltos, maneiras de responder
enquanto focos de subjetividade, sejam os de culturas enquanto
às pressões do meio.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . coletivos de significação, ou sejam os da humanidade enquanto
O planeta teve fases de quase extinção da vida, momentos de grande ponto de vista zoológico específico sobre o mundo, diferente do
pobreza e sabe-se que, hoje, estamos num pico de diversidade porque ponto de vista dos crocodilos, dos micróbios etc.
há muitíssimo tempo não houve imensos cataclismos, porque o clima Há sempre a idéia de que se olha algo que é maior que o olhar, o qual
é bastante constante há vários milhares de anos e também porque a só chega a capturar uma pequena parte desse algo. É o modelo da
fragmentação planetária é muito acentuada. Não estamos numa cidade que é olhada sob diversos ângulos: cada ponto de vista
situação de pangéia, isto é, de continente único mas, antes, de permite-nos contemplar algumas ruas, algumas direções. Chama-se
multiplicidade que continua a derivar. Porém, um dia tudo isso esse Objeto, com «O» maiúsculo, exterior, «natureza» e chama-se
acabará mudando: já houve quatro ou cinco pangéias ( continentes «cultura» o sujeito, a alma etc., qualquer que seja a forma de defini-
únicos) na história do planeta. Então, por que não haver mais uma? lo. O lugar do universal encontra-se do lado externo. O real, em sua
Toda vez que a gente se encontra numa situação de pangéia, há uma E DOUARDO V IVEIROS DE
C ASTRO universalidade, é indiferente à representação, é totalmente neutro. Ao
diminuição do número de espécies, ao passo que há um aumento contrário, o ponto de vista é subjetivo, representativo, fragmentário,
toda vez que há uma fragmentação e criação de isolados. Atualmente, parcial, limitado. A partir dessa dicotomia, tudo o que a Antropologia
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO , ANTROPÓLOGO , PROFESSOR NO MUSEU NACIONAL DO RIO DE
o fato de que o homem remexa o planeta como numa grande lavadora JANEIRO DESDE 1978 . REALIZOU SUAS PESQUISAS DE CAMPO ENTRE OS YAWALAPÍTI , OS teria que fazer seria comparar para conciliar os pontos de vista e
e faça com que seres se encontrem como se estivessem no mesmo KULINA E OS ARAWETÉ , NA AMAZÔNIA BRASILEIRA . ENTRE SUAS PUBLICAÇÕES , DESTACAM -
encontrar o maior denominador comum. A ciência humana seria isto:
SE FROM THE ENEMY ’ S POINT OF VIEW : HUMANITY AND DIVINITY IN AN AMAZONIAN
continente, recria as condições virtuais da pangéia. As espécies a pesquisa do maior denominador comum – as estruturas
SOCIETY - CHICAGO , 1992 - E A INCONSTÂNCIA DA ALMA SELVAGEM - SÃO PAULO , 2002 .
entram, então, em concorrência: algumas desaparecem e outras elementares, a gramática universal, o simbólico, o Édipo. Para
resistem. O verdadeiro perigo é a redução de qualidade das condições continuar com essa alegoria aritmética, prefiro, antes, encontrar o
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
da vida, o fato de que a água, o ar, a terra não sejam mais vitais mínimo múltiplo comum – o que permite multiplicar as coisas ao
biologicamente e, sim, se transformem em venenos. invés de dividi-las para achar o que têm em comum e que é,
RIO DE JANEIRO _ 08 DE AGOSTO DE 2004
necessariamente, mais pobre que aquilo que se encontra em cada
JCR _ Será que ainda tem sentido falar de jardim quando ele se situa
cultura particular. Quando se comparam as culturas para descobrir o
na escala do planeta ?
que têm em comum, observa-se que o que têm em comum é
GC _ Claro que sim, pois o jardineiro é que faz o jardim. Um jardim
não é o que se pode ver nas exposições de jardins, onde só há objetos
A vantagem dos etnólogos em relação, por exemplo, aos filósofos, obrigatoriamente menos rico que aquilo que constitui sua
é que, quando se colocam uma questão, eles podem sempre especificidade, pois as zonas de superposição são necessariamente
inanimados e algumas plantas dispostas com arte. Não, o jardim perguntar às pessoas [que eles estudam] o que pensam a respeito. mais restritas. Isso corresponde à idéia de que a natureza humana
envolve cotidianamente o jardineiro. Para os filósofos de modo geral, é importante, ao contrário, que eles deve ser menor, em termos de extensão, de riqueza, que as culturas,
mesmos encontrem a resposta. Os etnólogos não podem colocar suas pois a natureza é apenas aquilo que temos em comum, o que supõe
É muito importante compreender que não há escala. Não há jardins
palavras na boca dos outros. E a Antropologia se coloca algumas uma concepção da Relação (com R maiúsculo) como o que é
pequenos: há jardinagem, há o ato de jardinar. Isso pode ser feito
questões que não são exclusivamente antropológicas mas, de fato, partilhado pelos termos em relação, o que eles têm “em comum”.
num vaso ou numa área de 5 milhões de hectares. Mas a questão do
metafísicas. Questões fundadoras de nosso modo de ser, de nossa Uma relação social seria constituída apenas por nossos pontos em
jardim planetário se coloca em diversos níveis, o da ação local bem
sensibilidade cultural ocidental, como a das relações entre o que é o comum: somos todos homens, somos todos democratas etc. É por
como o da decisão política. Para mim, Jaime Lerner – que fez sua
próprio homem e o que é, ao contrário, uma propriedade do existente meio dessa comunidade que nos comunicaríamos. No entanto, penso
cidade, Curitiba, no Brasil, passar de 300 mil habitantes a 3 milhões
em geral: a famosa questão da relação entre a natureza e a cultura. A que há outras formas de conceber as relações. Os índios da América
em alguns anos – é um jardineiro planetário, porque soube gerenciar
oposição natureza/cultura é uma maneira, para a Antropologia, de têm, por exemplo, uma metafísica da relação que é completamente
a questão política da inflação da cidade organizando-a
colocar a questão das diferenças entre os humanos e os não-humanos distinta da nossa. Não é porque se tem algo em comum que se
ecologicamente. Exatamente como aquele que, no outro lado da
e, a partir disso, ver todos os tipos de coisas. Diante dessa oposição, comunica, mas porque, sendo diferente, tem-se interesse em ter uma
questão, se encontra com o ancinho nas mãos. Este tem, aliás, a
a Antropologia sempre tropeça em paradoxos e impasses. A relação com outra coisa que não nós mesmos. Porém, estou me
chance de resolver algo que nenhuma outra ação pode resolver de
Antropologia sabe muito bem que a natureza faz parte da cultura, antecipando. A vulgata metafísica ocidental consiste na idéia de que
modo semelhante.
isto é, que cada cultura tem a natureza que merece, que soube não existe senão uma única natureza externa, e várias culturas,
Finalmente, a idéia do jardim planetário é uma valorização do ato de definir; mas, ao mesmo tempo, precisa pôr essa cultura, da qual a várias subjetividades que giram em torno dessa natureza. Esta
jardinar não só como conservação da natureza, mas também como natureza é apenas um aspecto, em algum lugar. Então, é obrigada a funciona, assim, como sobrenatureza, é um correlativo de Deus.

22
Deus se ausentou mas, em seu lugar, deixou-nos uma Natureza que modo verdadeiro de se ver, pois é o modo como todos os seres vivos No que diz respeito à existência dos outros, é preciso fazer uma
está aí para que as coisas possam se manter juntas. Senão, tudo seria se vêem. Não há, tampouco, garantias de que as outras espécies nos demonstração. A idéia da evidência do eu e da não evidência dos
apenas mundo diabólico e múltiplo, mundo das aparências e dos vêem como nós nos vemos. Pelo contrário, temos boas razões, prova- outros, que está às portas de nossa metafísica moderna, é exatamente
simulacros. Para que haja um fiador do sentido, é preciso uma só velmente, de acreditar que não nos vêem como nos vemos, dado que o oposto daquela dos índios na qual, justamente, é eu que está em
natureza que não é senão uma espécie de travesti de Deus, é o Deus nós também não as vemos como elas se vêem. De fato, vemos os por- dúvida. Nunca se tem certeza de quem se é, porque os outros podem
moderno. cos do mato como animais, como porcos, e não como pessoas. ter uma idéia muito diferente sobre isso e conseguir impô-la a nós: a
Pensamos que os porcos do mato pensam que são gente, quando não onça que encontrei na floresta tinha razão, era ela o humano, eu não
Ora, quando se interroga a mitologia ameríndia, precisamente aquela
o são. Sabemos que eles são porcos do mato. Mas os próprios porcos era senão sua presa animal. Eu era uma anta ou um veado, talvez um
que Lévi-Strauss utilizava para ilustrar a oposição natureza/cultura,
do mato pensam a mesma coisa de nós, pensam que realmente são porco... Então, para mim acabou. Os outros, em contrapartida, são
percebe-se, em primeiro lugar, que o que dizem todos os mitos é que,
pessoas. Isso produz, portanto, uma espécie de preocupação identitá- um dado evidente. O problema para os índios não é a ausência ou a
outrora, todos os animais eram humanos, todas as coisas eram seres
ria muito intensa; não basta «se ver» como humano, pois todo falta de comunicação. Ao contrário, há um excesso de comunicação.
humanos, ou, de modo mais exato, pessoas: os animais, as plantas,
mundo, literalmente, faz isso: a humanidade de conteúdo torna Se os animais são humanos, se as coisas podem abrigar formas
os artefatos, os fenômenos meteorológicos, os acidentes
muito problemática a humanidade de forma. Inversamente, imaginar internas humanóides, se o trovão é uma pessoa, então tudo
geográficos... O que narram os mitos é o processo pelo qual as coisas
o mundo sob o ângulo da teoria freudiana, por exemplo, em que o comunica. Portanto, quando se come alguma coisa – o que é que se
que eram humanas deixaram de o ser, perderam sua condição
homem primitivo projeta sua humanidade sobre as forças naturais e está comendo exatamente? É necessário fazer todo tipo de acrobacia
humana. Se as questões forem colocadas dessa maneira,
humaniza o cosmos, tornando-o menos ameaçador, produz uma teo- xamânica para des-subjetivar a carne que se come, para nos fazer
compreende-se que representam exatamente o oposto de nossa
ria muito segura de si mesma (o homem teórico) a respeito dos esquecer o fato de que o humano está em toda parte. Viver é matar
mitologia. Para nós, o fundo comum entre nós e o crocodilo ou a onça
outros (primitivos ou coisas) e, afinal, muito reconfortante. O princí- outros humanos necessariamente, ainda que seja uma plantinha. A
é a animalidade, não a humanidade. Os humanos são uma espécie
pio de realidade: há um certo prazer em se deixar guiar por ele, não questão central é como não deixar o outro nos comer.
animal entre outras, mas com alguma coisa mais: a alma, a cultura,
é? No que se refere aos índios, penso que o contrário é que é verda-
o espírito, a linguagem, a Regra, o simbólico, o ser-aí etc. Então, o JCR _ O que aconteceria se a gente comesse ser humano?
deiro: quando se humaniza tudo, tudo se torna muito perigoso por-
que dizem os mitos é o oposto. Em vez da teoria evolucionista que
que tudo é humano. E, afinal de contas, pode ser que a única coisa
pretende que «os humanos são animais que ganharam alguma coisa», EVDC _ Para os índios, a grande maioria das doenças que os afligem
não humana sejamos nós. O mundo “encantado” é um mundo arris-
para os ameríndios, os animais são humanos que perderam alguma são doenças provocadas por vingança dos animais comidos. Quando
cado, imprevisto, metafisicamente falando. Não existem só fadas
coisa. O ser humano é a forma geral do ser vivo, e até mais, a forma se come o corpo de um animal sem os cuidados necessários para não
boas nos contos de fadas.
geral do ser: pressuposto radical do humano. A humanidade é o ofender seu espírito, o espírito pode se vingar e nos devorar (por
fundo universal do Ser. Tudo é humano. Evidentemente, isso caminha Quando a humanidade se torna a base universal, então sua forma se dentro, numa espécie de «endocanibalismo» bastante aterrador). É
junto com uma idéia que os índios formulam quando tentam suaviza. Inversamente, nós ocidentais pensamos com um insolente à preciso, portanto, ser sempre muito cauteloso quando se trata de
expressá-la numa linguagem que possamos entender: todos os vontade que, enquanto espécie, os humanos se destacam dessa base. comer. É um ato metafísico muito delicado. A «abertura», a «clareira»
animais e todas as coisas têm almas, são pessoas. Uma onça, por Somos sempre a espécie, o povo, a raça, o indivíduo eleito de alguma humana começa pela boca – mas não falo da linguagem...
exemplo, é mais que uma simples onça; quando está sozinha na divindade ou transcendência, racial, pessoal, cultural, política,
A idéia de humanidade universal produz uma outra inversão. Se o
floresta, tira sua «roupa» animal e se mostra como humana. Todos os histórica.
espírito – ou, em outros termos, tudo o que é ou pode se tornar
animais têm uma alma que é antropomorfa: seu corpo, na realidade,
Para os índios, inversamente, tudo é humano, ainda que a espécie sujeito – se vê como sujeito e essa percepção constitui a base
é apenas uma espécie de roupa que esconde uma forma
humana seja privilegiada à medida que somos nós, os humanos, que universal das coisas, então quem se é de fato? Os índios não vêem as
fundamentalmente humana. Em contrapartida, nós ocidentais
estamos falando. Os índios não professam uma teoria irênica da onças como pessoas, eles não têm alucinações. O que eles dizem é
pensamos usar roupas que escondem uma forma essencialmente
conciliação de todos os seres vivos em que tudo seria bom, belo e que as onças têm alucinações, que elas se vêem como seres
animal. Sabemos que, quando estamos nus, somos todos animais.Os
verdadeiro porque humano. Ao contrário, se tudo é humano, então humanos; mas então, talvez nós também tenhamos alucinações. Eu
instintos, por trás das camadas desse verniz que é a cultura, nos dão
tudo é perigoso. Como sabemos, a única coisa verdadeiramente sou um ser humano, então vejo as coisas como elas são para mim.
um fundo animal, primata, mamífero etc. Os índios vêem as coisas de
perigosa no mundo são os homens – os objetos não fazem mal (não Como peixe assado porque, para mim, o peixe é o peixe. E sei que
modo oposto: por trás dos corpos animais, é um fundo
por maldade, em todo caso). Os índios pensam também que, se uma aquilo que vemos como vermes, os urubus vêem como peixe assado.
essencialmente humano que se acha escondido pelas “roupas”. A
coisa ou um animal é apenas isso, então eles não colocam problemas. Ora, não sou um urubu; então, se começo a ver os vermes na carniça
mitologia diz não só que o fundo comum é humano, mas também
Uma verdadeira onça não ataca os homens. Se ataca um homem, como peixe assado, isso quer que estou me tornando um urubu. Em
que a humanidade não é a exceção e, sim, a regra. Nós não somos
então não se trata de uma onça comum, mas de um homem outras palavras, o espírito do urubu capturou meu espírito e começa
uma espécie escolhida por Deus no final da criação mas, ao contrário,
disfarçado de onça, isto é, a onça em seu “momento” de homem. a me transformar em urubu. Evidentemente, isso quer dizer que
a condição de partida. Inversamente, para nós ocidentais, tudo é, em
Porque os homens matam os homens e assim por diante. Também estou muito doente, porque um homem deve continuar sendo um
princípio, não-humano, tudo é coisa, tudo é objeto até nova ordem,
não se pode dizer que os índios são relativistas simplesmente porque homem.
isto é, exceto se houver fortes razões para acreditar que estamos
lidando com uma pessoa. dizem que cada espécie vê as coisas de uma certa maneira. Os
urubus, por exemplo, vêem os vermes que pululam numa carniça na É muito importante ver as coisas como um urubu ou um humano
A segunda concepção muito interessante, que se encontra um pouco floresta como peixe assado porque comem esses bichinhos. Seria porque isso define de que gênero se trata. Eu sou um humano, devo
por toda parte na América indígena, é a idéia de que cada espécie não possível imaginar que a moral dessa história é a de que todos os ver as coisas como um humano as vê, não como as vê uma onça. Os
só é humana «no fundo» (em outros termos, cada espécie era, no modos de ver o mundo se equivalem, que tudo é relativo: os urubus xamãs têm o poder de ver como as diferentes espécies vêem, mas é
início, «humana»), como também se vê a si mesma como humana. vêem as coisas de uma certa maneira, nós, os verdadeiros humanos, necessário que voltem dessa viagem para contar a história. Se vêem
Cada espécie se vê como encarnando a autêntica humanidade tanto de outra... Não se teria que escolher uma boa descrição da as coisas como as onças as vêem e se ficam presos nessa visão, isso
em sua forma corporal, como também em seus hábitos. O que as «realidade». De fato, não é nada disso. Os índios não dizem que cada quer dizer que se tornaram onças e que não poderão voltar para
onças comem é visto por elas como alimento humano. Por exemplo, espécie vê as coisas de uma maneira diferente. Ao contrário, o que contar a história: em resumo, trata-se de um xamã inútil e perigoso,
quando lambe o sangue de uma presa abatida na floresta, a onça não dizem é que, se os urubus vêem apenas peixe assado, é exatamente um xamã «de mão única» que, evidentemente, deve ser eliminado. Os
vê esse líquido como sangue cru, mas como cerveja feita de porque eles são como nós que não comemos senão peixe assado. verdadeiros xamãs são espécies de andrógenos, são seres que, em vez
mandioca fermentada. Como os humanos não bebem sangue mas Portanto, se os urubus comem algo, isso deve ser para eles, de «terem» vários sexos, «são» várias espécies. Um xamã pode ver o
cerveja de mandioca, as onças, sendo humanas em seu próprio obrigatoriamente, peixe assado. Cada espécie vê as coisas da mesma mundo como uma onça, como um porco do mato e também, é claro,
departamento e de seu ponto de vista, vêem, percebem literalmente maneira. As coisas é que mudam. como ser humano. Um humano normal não pode fazer isso, exceto
esse líquido que lambem quando ele escorre do corpo de sua presa em sonho ou quando toma drogas. Se começa a ver as coisas como
como sendo uma boa cerveja de mandioca, servida numa cabaça Os espíritos animais possuem tudo o que caracteriza qualquer cultura as vê uma espécie animal qualquer, isso é um sinal evidente de que
muito limpa e decorada. Em outras palavras, cada espécie se vê sob indígena, o xamanismo e todas as instituições sociais. Os urubus, as está muito doente e deve ser tratado precisamente por um xamã que,
a espécie da cultura. Ela se vê como humana e vê o que faz, seu onças, todos os animais têm as mesmas instituições que os humanos. ele sim, pode passar de um lado para o outro sem perder sua alma;
comportamento, seu etograma, como sendo um etograma cultural. Moram no mesmo tipo de casas, comem o mesmo tipo de coisas, literalmente, sem perder sua humanidade. Então, se é no plano físico
casam-se com alguém da mesma espécie, têm o mesmo tipo de que nos comunicamos e no metafísico que nos separamos, para os
JCR _ Então o homem, por sua forma e pelo que faz, é 100 % doenças, e assim por diante. Não há, pois, várias maneiras de ver, há índios se dá o oposto – é no plano metafísico que eles comunicam
humano... somente uma. Todo mundo vê da mesma forma. O que varia é o porque tudo é espírito, tudo é alma, sujeito; é necessário, pois, que
próprio mundo, e não o modo de vê-lo. Para nós, são as “visões do seja no plano físico, no sentido de corporeidade, que as espécies se
E V D C _ É um problema, justamente. Se cada espécie se vê como
humana, isso não quer dizer que ela veja as outras espécies como mundo” que diferem, mas o mundo permanece igual a si mesmo. distingam. O corpo das espécies, típico, específico, as características
humanas. Vemos as onças como animais selvagens, como feras; as Para os índios, a maneira de ver é sempre a mesma, ainda que passe de cada espécie são apenas uma aparência. De fato, é sua maneira de
onças, em contrapartida, se vêem como humanas mas não nos vêem de uma espécie para outra: o que muda é o próprio mundo. Tem-se, ser no mundo, é o modo pelo qual o espírito universal se
então, esta dupla inversão. De um lado, tudo é humano, embora cada particulariza ou se «especifica». Se os urubus vêem os vermes como
como humanos. Vêem-nos como porcos do mato, pois nos comem.
espécie não o seja do mesmo modo (exatamente como nós ocidentais peixe assado, é porque os urubus habitam um corpo de urubu. O
Os porcos do mato, por sua vez, também não nos vêem como
humanos; vêem a eles como humanos e a nós como onças, ou como sabemos que, em sendo uma espécie animal, não somos animais corpo é um instrumento e não um disfarce, não é uma fantasia, uma
espíritos canibais, porque nós os comemos... Portanto, cada espécie idênticos aos crocodilos). A humanidade é universal, o espírito é aparência de que alguém se reveste. Evidentemente, essa aparência
universal, não o corpo. Para nós, é o corpo que é universal no sentido animal é uma capa, mas é como um disfarce, uma aparência falsa de
se vê a si mesma como humana e as outras espécies como não
em que somos todos feitos da mesma substância – os átomos, o uma essência verdadeira; ao contrário, é um instrumento que
humanas: seja como espécies de presas, seja como espécies de
carbono, o DNA etc. O espírito, ao contrário, é sempre o lugar da especifica o espírito universal que, em si, é indeterminado. Portanto,
predadores, isso depende da posição de cada entidade na cadeia
trófica. Portanto, tudo se passa se houvesse uma única grande cadeia diferença, da singularidade, da particularidade da cultura – o espírito a anatomia, o comportamento, a etologia de cada espécie é muito
trófica que vai dos espíritos canibais às presas mais ínfimas que não coletivo – ou o espírito individual – o sujeito. É sempre quanto ao importante para os índios. O que explica, por exemplo, porque os
espírito que nos distinguimos. Do ponto de vista físico, todos nos índios são obcecados por mudanças corporais exatamente como nós
são predadores de nada. Dado que cada espécie se encontra em
comunicamos; porém, do ponto de vista metafísico, estamos todos somos obcecados pelas mudanças espirituais.
algum lugar nesse continuum, porque sempre se come algo diferente
de si e se é comido por uma outra espécie, sempre se está entre duas separados. O grande problema para a ciência social espontânea do
posições – a de predador e a de presa. ocidente é como comunicar, pois não comunicamos ao nível do Para nós, a educação é um processo eminentemente espiritual.
espírito, mas ao nível do corpo. O espírito é sempre solepsista. Donde Educação, formação, conversão religiosa, são processos que se dão
Quando se aplica essa idéia a nós mesmos, surgem dois problemas. essa série de intervenções que são o contrato social, o simbólico, a no nível do espírito. As mudanças no plano do corpo não são
O primeiro é que, evidentemente, a gente se vê como humanos – pre- linguagem. É necessário deduzir um edifício conceitual gigantesco importantes; não têm, digamos assim, valor jurídico-metafísico
cisamente como fazem todas as espécies. Não há, pois, garantias de que explica como se pode comunicar, fazer coletivamente. Depois de discriminante, embora, hoje, tudo esteja mudando. Digamos que, no
que o modo como nos vemos (isto é, enquanto humanos) seja o Descartes, a única coisa de cuja existência se pode ter certeza é o eu. regime da modernidade clássica, o corpo não tem sentido. Não se tem

23
o direito de discriminar uma pessoa por causa de seu corpo, sua cor, chama «pão francês»…). Para os índios, é o contrário: «O que faz a mantivéssemos fixa a perna correspondente à natureza e fizéssemos
seu sexo. O corpo não conta justamente porque não permite função de pão para você?» Se você fosse um urubu, diria que são os a da cultura descrever o círculo dos pontos de vista sobre esse centro
estabelecer diferenças significativas. Distingue-se uma ação como vermes. Portanto, não são os sinônimos que devem ser encontrados, que está aí, imóvel, em torno do qual gira a visão infinitamente
passível de punição ou não passível de punição no plano da mas os homônimos é que devem ser separados. As «palavras» diversificada – como o círculo é composto de infinidade de pontos –
consciência, do espírito, da intenção. Entre um homem e um mudam, mas as coisas são as mesmas. Para os índios, é a natureza em torno da perna fixa da natureza. À primeira vista, os índios
chimpanzé, por exemplo, há menos de 2 % de diferenças «genéticas» que muda, como se a gente tivesse um mundo onde todos falassem a parecem fazer o contrário. É a cultura que é fixa, no sentido de que
em termos de cromossomos; portanto, praticamente não há distância mesma língua mas para se referir a coisas completamente diferentes, há apenas uma cultura e que o que varia são os corpos que
corporal. Em contrapartida, a diferença jurídico-moral entre um ao passo que, para nós, todos falam línguas diferentes mas, no fundo, incorporam essa cultura, que dão a essa cultura expressões
homem e um chimpanzé é incomparavelmente maior que entre esse para dizer as mesmas coisas. Somos todos humanos, temos todos os diferenciadas. Evidentemente, eu poderia acrescentar que não se
mesmo chimpanzé e, digamos, um lagarto. Não importa o que ele mesmos desejos, as mesmas esperanças – os mesmos “problemas”. A pode fazer as duas pernas avançarem ao mesmo tempo, senão o
faça, não se pode pôr um chimpanzé na cadeia exatamente porque questão é, pois, traduzir. Para nós, isso é fácil porque já sabemos compasso cai. Portanto, os índios não são relativistas. Porém, não se
não é no plano das semelhanças corporais mas, sim, no das qual é a referência. Sabemos que um índio deve pensar como nós, deve esquecer que, de fato, essa perna fixa, seja a da natureza ou a
diferenças espirituais, pensamos nós, que essas coisas acontecem. O basta simplesmente encontrar a palavra adequada. Para os índios, da cultura, se move sobre si mesma. Afinal, não é fixa. No ponto em
chimpanzé, do mesmo modo que o lagarto, «não sabe» o que faz. Nós nunca se pode ter certeza de que se está falando da mesma coisa. Se que as duas pernas se encontram, se situaria a separação entre
sabemos e nós podemos ser incriminados. Um louco não o pode. um urubu lhe oferece algo para comer, é necessário, talvez, que você natureza e cultura. É o momento “imediativo” da natureza e da
Toda a metafísica, toda a responsabilidade (é a mesma coisa) passa se diga que aquele peixe não é o seu, que é talvez outra coisa, que é cultura, é o ponto de origem e o distanciamento entre o que é
pelo espírito. As mudanças culturais também, para nós, são sempre preciso, sobretudo, prestar atenção. Os problemas que essa corporal e o que é espiritual. Nesse nível, tudo se encontra, não se
uma questão do espírito. A conversão, mudar de modo de ver, mudar metafísica se coloca são muito diferentes dos nossos, não são pode dizer que um é móvel e o outro é imóvel, que um é fixo e o
o conteúdo do espírito – é o modelo da cultura para nós. Um índio problemas de falta de relação ou de ausência de comunicação. O outro varia. Na realidade e ao mesmo tempo, aqui tudo é fixo e
não deixa de ser um índio quando se põe a “pensar como um problema não é o de uma humanidade isolada no mundo, «espaço móvel. Natureza e cultura, universalidade e relatividade, são sempre
branco”. Para o índio, é no nível do corpo que as mudanças contam. infinito que nos assusta». O mundo, ao contrário, é povoado demais resultados, nunca condições. É sempre depois do ponto considerado,
É por causa disso que os índios concentram-se nos sinais de por outras espécies de humanos, sempre houve muita gente no nas extremidades das pontas do compasso que os pólos se opõem e
mudanças corporais – as mudanças de regime alimentar, as relações mundo. Não é um deserto antropológico como é para nós. Estender a nunca antes, onde não há esse distanciamento. O que procuro fazer
sexuais com não índios etc. – como signos e como indutores de categoria da humanidade foi uma conquista para nós, é necessário é colocar-me no nível em que o distanciamento começa a se
“aculturação”. Quando se vai a uma sociedade tradicional ameríndia, fazer passar o outro por um exame muito detalhado para que ele estabelecer para ver o que dele resulta.
melanésia, uma coisa que acontece com todo antropólogo é ter possa ser admitido. «Será que os negros são humanos, os índios, as
Para ser relativista, é preciso ter sempre um universalista ao lado
problemas para aprender a língua. Passados seis meses, a gente vai mulheres?» É preciso convencer os homens brancos de que as
para marcar o contraste - e vice-versa, é claro -, a fim de que questão
se queixar junto aos amigos indígenas dizendo: «escuta, sua língua é mulheres, os negros são também humanos. Enquanto que para os
do relativismo possa ter sentido. Os índios se colocam de uma
terrivelmente difícil, não consigo compreendê-la, esforço-me, mas é índios isso é evidente, é um dado, porque tudo é humano, isso não é
maneira perfeitamente transversal em relação a essa alternativa. Não
um trabalho muito lento, não avança». Então as pessoas respondem: um problema. Há aquela história famosa contada por Lévi-Strauss e
são relativistas, pois dizem que só existe uma forma de se ver o
«é preciso que você coma nossa comida para aprender nossa língua». que, aliás, é suposta provar o etnocentrismo de todas as culturas e
mundo. Os índios dizem que as onças são humanas, que eles pró-
No fim de duas semanas, o etnólogo diz: «não faço outra coisa a não que considero um condensador meta-reflexivo do Equívoco. Os
prios são humanos, mas que eles e as onças não podem ser humanos
ser comer da sua cozinha e as coisas continuam iguais.» A resposta espanhóis, no século XVI, quando se encontraram diante dos índios
ao mesmo tempo. Se sou humano, então, neste momento, a onça é
é: «Então é preciso dormir com nossas mulheres.» O tipo (admitamos das Antilhas, enviavam comissões de inquéritos, padres, para saber
somente uma onça. Se uma onça é um humano, neste caso, então, eu
que ele seguiu o conselho) volta depois de alguns meses: «Continua se os índios tinham uma alma, se eram realmente humanos ou
não seria mais humano. Não se trata absolutamente de derramar essa
tudo igual.» Desanimadas, as pessoas dizem então: «nesse caso, você animais com aparência humana. Eram eles pessoas que poderiam ser
qualidade de humanidade de modo indiferente sobre a totalidade da
precisa tomar um de nossos alucinógenos, isso vai funcionar.» A essa cristianizadas ou não? Seria possível mudar seus espíritos (convertê-
criação mas, sim, de dizer que essa posição é universal; porém, de
altura, é preciso realmente ser idiota para que isso não funcione... los), se é que tinham um espírito? Ao mesmo tempo, diz Lévi-Strauss
uma universalidade sempre relativa. Um universalismo relativo à
relatando as palavras de um cronista da época, os índios tomavam os
Isso quer dizer que, para nós, a linguagem é uma faculdade espécie.
corpos dos espanhóis que conseguiam matar nas batalhas e os
eminentemente cerebral; portanto, espiritual. Para os índios, ao
imergiam para observar se esses cadáveres apodreciam ou não. JCR _ Relativo, portanto, no sentido em que não se sabe o que,
contrário, é algo que se passa no nível dos hábitos corporais. Ocorre
Porque a questão dos índios era: «Será que essas pessoas são pessoas finalmente, é o humano. Não se pode qualificá-lo. Desse ponto de
como o sexo, como as substâncias corporais, como a alimentação –
ou fantasmas?». Lévi-Strauss toma essa dupla dúvida, essa dupla vista, é uma qualidade nominal.
são coisas que se passam no nível do corpo. O corpo funciona, pois,
suspeita em relação ao outro, como um sinal de igualdade dizendo:
como elemento de diferenciação; é no âmbito do processo corporal EVDC _ Exatamente. Mas, por outro lado, isso impõe aos humanos, a
«Vocês vêem, todo mundo pensa que o outro não é humano.» De fato,
que as coisas ocorrem. O xamanismo indígena é organizado em torno nós, uma tarefa pesada, no sentido de que é necessário se fazer
os espanhóis se perguntavam se os índios eram humanos ou animais,
da idéia de metamorfose corporal e não, absolutamente, no plano da humano. Todo o aparelho social, todo o trabalho das sociedades
ao passo que os índios se perguntavam se os espanhóis eram
noção de possessão espiritual. Para nós no mundo antigo, domina a ameríndias amazonenses é produzir humanos, corpos
humanos ou espíritos. Os espanhóis se interrogavam no nível da
idéia da conversão, da possessão como modelo de mudança. Guarda- verdadeiramente humanos. Vêem-se, pois, paradoxos absolutamente
alma; os índios colocavam a questão no nível do corpo. É um
se a mesma forma corporal, mas algo mudou porque se tem um outro característicos desse tipo de metafísica e que são diferentes de nossos
equívoco clássico, no sentido em que a definição de humanidade era
espírito dentro, uma divindade, o demônio, o diabo. Alguma paradoxos. Os índios se fazem corpos humanos com pedaços de
a mesma embora a exigência de humanidade fosse a mesma: na
subjetividade poderosa capturou nossa aparência e se serve dela corpos de animais. Eles se colocam penas, marcas, desenhos de
verdade, os dois lados queriam saber se o outro era humano. Mas os
como seu instrumento. Somos marionetes dessa outra subjetividade formas, manchas de sucuris etc., para se fazerem um verdadeiro
critérios de humanidade não eram os mesmos. Para os espanhóis, ser
que nos capturou. O xamanismo ameríndio é, ao contrário, corpo humano! Todas essas marcas, todas essas decorações
humano era ter uma alma como nós; para os índios, era ter um corpo
maciçamente organizado em torno da noção da metamorfose teriomórficas que são colocadas sobre o corpo são uma maneira de
como eles. É um equívoco do mesmo tipo que o do mito do herói
corporal. Isso quer dizer “vestir” o hábito da onça e poder comportar- humanizá-lo. Você não é um verdadeiro humano, ou você é menos
esfomeado que chega à aldeia.
se como uma onça – por exemplo, caminhar sem fazer barulho, subir que um humano, se seu corpo não é diferenciado. Porque, afinal, o
nas árvores, comer carne humana. A possibilidade de trocá-lo está JCR _ Que conclusões tira você dessa reviravolta em relação à nossa corpo humano enquanto tal é demasiado genérico, os animais
sempre presente no mundo ameríndio. É sempre um perigo. Para nós, metafísica ? também se tomam por humanos. Os animais também têm um corpo,
muito evidentemente, é impossível. As espécies são fechadas no nível no sentido de que têm braços, pernas, um nariz, uma boca, um
EVDC _ Caso se parta de nossa metafísica, uma das maneiras
ontológico. Mas mudar de opinião, de mentalidade, é o centro em fígado, pulmões, exatamente como nós. Ter um corpo humano não é
possíveis – talvez a mais cômoda embora não a mais sofisticada (é
torno do qual se organizam nossas relações – a mudança de opinião. um grande trunfo; o que é necessário é marcar, definir esse corpo
uma lítotes) – de discernir o que dizem os índios é começar por
Evidentemente, a pedagogia ocidental tem um forte investimento no genérico. E é nesse sentido que, numa sociedade indígena, a
inverter nossa metafísica, como dizia Marx a respeito da de Hegel
corpo, mas seu objetivo é sempre «elevar» (em todos os sentidos do educação em seu sentido genérico é sempre uma disciplina corporal.
(embora, de modo algum, no mesmo sentido – a inversão, quero
termo) o espírito. O corpo é um instrumento para chegar ao espírito. É pelo corpo que as coisas passam. A iniciação, a educação, são
dizer). Essa inversão é uma perspectiva, não é uma inversão
É algo que se submete, que se treina para que o espírito possa se processos de intervenção sobre o corpo e não uma intervenção direta
absoluta. Ela tem antes de tudo, para mim, uma finalidade
desabrochar. Não é o corpo pelo corpo. Entre os índios, a linguagem, sobre o espírito.
terapêutica; lembrando Montesquieu, digamos que ela me permite
que para nós é uma faculdade do espírito, é uma faculdade do corpo,
imaginar como se pode não ser europeu. JCR _ Seria importante que você explicasse melhor em quê o fato de se
é algo que se tem enquanto materialidade encarnada. «Pensar
diferentemente», isto não existe. Os urubus pensam como nós. É revestir de atributos animais faz com que, enquanto corpo humano
Há o ponto de vista ocidental e há o dos índios, talvez só haja esses genérico, a pessoa se torne mais humana.
precisamente porque eles pensam como nós, que se tem todos os
dois. Ou talvez haja três, quatro, ou mil – mas são sempre pontos de
tipos de equívocos terríveis. Há mitos muito divertidos (ou muito EVDC _ O corpo humano enquanto tal não tem instrumentos de
vista que estão aí e que, finalmente, como você diz, se equivalem.
inquietantes, depende) que são encontrados em toda parte na autoparticularização. É demasiado genérico no sentido de que é, de
Não se tem que escolher. É exatamente o que estou em via de não
América indígena, onde o herói está perdido na floresta e morrendo fato, a forma de todas as almas. As almas das onças vêem outras
dizer, no sentido de que é a noção de ponto de vista que depende de
de fome. Vai dar numa aldeia desconhecida, muito bonita, cheia de onças como corpos humanos. O corpo humano é, pois, uma espécie
nosso ponto de vista. Minha questão é: qual é o ponto de vista dos
belas mulheres e de belos homens que o acolhem de modo de corpo da alma. Para se fazer um verdadeiro corpo, é necessário
índios sobre o ponto de vista? Não é saber qual é o ponto de vista dos
absolutamente hospitaleiro dizendo-lhe: “você deve estar esgotado, tomar emprestado onde há onde há verdadeiros corpos. Ora, onde
índios sobre o mundo, porque isso já seria dirigir a resposta. Porque
sente-se aqui, eu vou lhe trazer um prato de batatas doces bem existe isso? Entre os animais. Portanto, tomam-se partes dos animais,
isso já supõe que o ponto de vista é uma coisa, o mundo uma outra,
assadas”. O herói agradece, mas trazem-lhe, de fato, um prato cheio próteses animais, e se cobre com elas para se tornar um humano –
que o mundo é exterior ao ponto de vista e que é necessário que se
de cérebros humanos ou algo nojento. O homem diz então: «Mas isso este é o paradoxo característico. Nós temos outros paradoxos. Por
deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos cientistas duros) para
não são batatas doces, imaginem!». E o herói passa a concluir que, se exemplo, escravizamos pessoas com a intenção de libertá-las. Eles
fazer variar o ponto de vista (questão para os cientistas moles). É
seus anfitriões tomam os cérebros por batatas doces, então não são têm outros paradoxos.
necessário dar ênfase ao mundo e deixar o ponto de vista variar; de
seres humanos; são pessoas perigosas.
qualquer modo, isso não tem importância, o mundo é mais
JCR _ Por que, então, é importante se distinguir enquanto corpo
O mito é apenas isto: o périplo de um homem que vai de aldeia a importante que todos os nossos «pontos de vista». Porém,
humano genérico ?
aldeia e, a cada vez, cai num equívoco em que coisas diferentes são evidentemente, as coisas não são bem assim. Em vez de fazer isso,
chamadas pelo mesmo nome. As pessoas não o enganam, você vamos perguntar aos índios qual é seu ponto de vista sobre o ponto EVDC _ Porque, não o fazendo, seria possível ser transformado, ser

tampouco se engana, são as pessoas que se enganam entre si. É o de vista, isto é, como se colocaria a questão do ponto de vista tomado por um outro. Quando nasce uma criança, a primeira coisa
equívoco como modelo. Se cada cultura vê as coisas de modo segundo o ponto de vista (no sentido ingênuo do termo) dos índios? que se faz é ver se é humana ou não. É preciso olhar o bebê e ver se,
diferente, o problema é encontrar sinônimos para as mesmas coisas. Minha metáfora é a das pernas de um compasso. Para que uma perna realmente, é um filho de humano, ou se é um espírito, ou talvez o
«Como se chama nosso pão em português?» (no Rio, exatamente, se possa se deslocar, é preciso que a outra esteja fixa. É como se filhote de um animal que teria deitado com uma mulher, mesmo em

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sonho, e que teria feito um monstro. Portanto, a primeira coisa é sociedade industrial o tempo era dinheiro, e tudo era otimizado,
decidir se o bebê é um humano em potencial ou se já é um animal. agora está ainda mais otimizado. Isso pode ser visto nos mercados
Caso tenha um defeito físico, é jogado fora porque é, de fato, um P EKKA HIMANEN financeiros, onde o PIB (Produto Interno Bruto) do Reino Unido ou
animal. Se tem a aparência de um ser humano, é conservado mas, em da França se movem em direção a metas mais otimizada todos os
seguida, é necessário tomar todos os tipos de medidas para que ele dias, a todo segundo, a toda fração de segundo. Temos uma
PEKKA HIMANEN , DIRETOR DO BERKELEY CENTER FOR INFORMATION SOCIETY , É UM DOS MAIS
não seja capturado, seqüestrado por outros sujeitos (isto é, sujeitos CONHECIDOS PESQUISADORES DA ERA DA INFORMAÇÃO . SEU LIVRO MAIS CONHECIDO É THE sociedade onde a economia é extremamente veloz, que também se
HACKER ETHIC , RANDOM HOUSE - 2001 - HIMANEN FOI TAMBÉM CO - AUTOR , COM MANUEL
diferentes). Porque, em princípio, toda vez que nasce um humano, os reflete na vida de trabalho das pessoas. O tipo de experiência que têm
CASTELLS , DO LIVRO THE INFORMATION SOCIETY AND THE WELFARE STATE , OXFORD UNI -
animais e os espíritos em geral ficam muito enciumados. Querem a VERSITY PRESS - 2002 - WWW . PEKKAHIMANEN . ORG em suas vidas-trabalho é mais e mais uma luta de sobrevivência,
criança para eles, querem capturá-la. É necessário, pois, proteger a apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e econômico.
criança. Ela é frágil porque sua humanidade é frágil, não é TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS Tentamos sobreviver, agitados, todos os compromissos e projetos do
simplesmente seu corpo que é frágil, mas seu estatuto ontológico é dia. Este é o dia de trabalho moderno, e ele se espalha para nosso
muito frágil. É um corpo, digamos assim, com um pé na humanidade tempo de lazer. Nosso tempo de lazer é otimizado: não mais jogamos
HELSINKI _ 28 DE AGOSTO DE 2004
e o outro no além. Deve-se, pois, tomar todas as providências para despreocupadamente uma partida de tênis, mas praticamos nosso
que ela seja, de forma clara, definida como um humano. Para isso, é backhand ou temos algum tipo de tabela de horário tanto para comer
preciso raspar-lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se A sociedade de redes está em uma fase de desenvolvimento, após quanto para trabalhar. A otimização é a tendência dominante, e é
torne humana como nós. Tudo comunica; portanto, é preciso a sociedade industrial. A sociedade de redes é global por natureza. O acelerada na sociedade de redes. Mas esta nova tecnologia também
diferenciar. É preciso distinguir. que chamamos de mundo global está baseado na infraestrutura apresenta um desafio ao conceito de tempo, porque não apenas
tecnológica da sociedade de redes, que começou a emergir na década permite que se façam coisas mais rapidamente, mas também está
JCR _ Essa diferenciação passa pelo se revestir de atributos animais
de 1970. A infraestrutura tecnológica desta sociedade diferente não tornando possível fazer coisas em tempo não sincrônico, de modo
porque eles são, por excelência, as marcas do corpo. Os animais são,
foi desenvolvida por corporações ou por governos, mas sim por um que não precisamos trabalhar todos no mesmo ritmo. Em princípio,
de certa forma, desviados de sua identidade. Assim, dos seres
grupo de indivíduos que juntaram suas forças e batizaram a si ela dá mais liberdade às pessoas na escolha de seus estilos de vida,
constituídos de pedaços, literalmente se fazem monstros.
próprios de hackers. Eles criaram a Internet, a World Wide Web e para combinar as vidas de trabalho e de lazer, juntas. Então temos
EVDC _ Realmente. Pega-se um pedaço de onça, um pedaço de sucuri, muitos dos softwares usados para manter a sociedade de redes projetos de despertar como The Clock of the Long Now [O Relógio do
e se faz uma criança que tem vários corpos; ela é, portanto, funcionando, como o sistema operacional Linux. Quando chamaram Longo Agora], onde temos a idéia de construir um relógio que desafia
humanizada por excesso e não por falta. a si mesmos de hackers, eles não queriam dizer criminosos da a maneira como ele nos domina.
computação, que é o que a palavra significa hoje para as pessoas.
JCR _ É uma maneira de desafiar o tempo presente e ampliá-lo -
JCR _ Será isso que você chama de multinaturalismo ? Naquele tempo, ser um hacker significava ser um entusiasta, gostar
expandir o tempo, até certo ponto, se estende em direção a um futuro
do que fazia e querer compartilhar isso com os outros. Havia um
EVDC _ A palavra multinaturalismo é uma provocação – embora seja muito amplo e um antes muito amplo. Então talvez seja possível dizer
desejo de pertencer a uma comunidade maior que compartilhasse da
totalmente séria. Era uma brincadeira com meus colegas norte- que é uma visão aberta do tempo, que faz do tempo ser mais como um
mesma paixão. É uma comunidade enriquecedora onde o dinheiro
americanos que gostavam do «multiculturalismo». Isso supõe, de espaço ?
não é o motor – mas, sim a paixão criativa e o fazer juntos. Os
fato, um «mononaturalismo» que possa servir de pivô em torno do
hackers vêm principalmente do mundo universitário e da PH _ The Clock of the Long Now dá um toque a cada ano. Dá uma
qual se movem as culturas. E se fosse o contrário? Se houvesse um
comunidade científica, da ciência da computação. Eles dividem suas badalada a cada século, e o cuco sai a cada milênio. A ligação com
multinaturalismo e não um monoculturalismo? Pensei que era
criações abertamente com os outros. Abertura quer dizer que os hackers é que ele transcende a perspectiva de tempo rotineira,
exatamente isso que os índios pareciam fazer quando dizem que os
qualquer um está livre para criticar ou desenvolver qualquer coisa. É mais imediata. Começamos a pensar em uma perspectiva muito mais
urubus bebem cerveja, comem peixe assado, como nós e os porcos
uma comunidade auto-selecionada no mesmo sentido que são as longa. A razão para construí-lo foi criar uma imagem simbólica para
do mato. Exceto que o que o urubu chama de cerveja não é o que
comunidades científicas ou artísticas, na sua maioria. Não há promover uma nova perspectiva de tempo em nossas vidas.
chamamos cerveja, e não é o que os porcos do mato chamam de
estrutura formal.
cerveja. Se todo mundo bebe cerveja, ela não é a mesma para todo Na década de 1960, a idéia de que poderíamos criar uma rede global
mundo. O vínculo entre a ética hacker e a sociedade de redes advém do fato que aproximasse o mundo era uma destas idéias que não fazia
de que a ética hacker é uma ética de trabalho criativo. É uma ética de sentido, pois não podíamos visualizar nenhum resultado no trimestre
JCR _ Na realidade, então, se trata de uma espécie de nominalismo
trabalho-inovação. Isso poderia ser uma expressão alternativa para a corrente da economia, nem mesmo depois de alguns anos. O mundo
generalizado...
ética-hacker, de modo que, o que acabo de descrever sobre a paixão da computação hacker baseia-se neste tipo de idéias tecnológicas de
EVDC _ De certa forma sim, mas é mais que isso, pois não se trata de criativa e a comunidade de pesquisa no mundo hacker, também se longo prazo. Em outras esferas hacker, como a medicina, temos
uma questão de convenção, de designação, de flatus voci. Trata-se aplica a outros tipos de trabalhos. Temos toda sorte de trabalhos razões de longo prazo que estão realmente a produzir ações
principalmente de um relacionismo generalizado, no sentido de que criativos, de pesquisa à arte, mídia, medicina, todas elas baseadas em concretas. Por exemplo, a tentativa de entender o DNA para
«humano» não é o nome de uma substância no sentido aristotélico do inovações de pessoas com este tipo de ética de trabalho. A ética reprogramá-lo e erradicar o câncer em 25 anos, ou coisas assim. É um
termo, mas é o nome de uma relação, de uma certa posição em hacker original era bem diferente do rígido espírito capitalista. Ela tipo de perspectiva de longo prazo e de um estilo de vida mais
relação a outras posições possíveis. “Humano” é sempre a posição do tinha um núcleo de valores diferentes. Atualmente, estamos relaxado que muda nossa perspectiva do tempo. A ética de trabalho
sujeito, no sentido lingüístico da palavra, é ele que diz «eu». testemunhando uma batalha entre duas culturas diferentes da industrial trouxe um estilo de vida mecanizante sem espontaneidade
Portanto, se se imagina uma onça dizendo “eu”, essa onça é sociedade de redes, uma delas sendo a continuação do velho espírito na vida, nenhum aspecto lúdico. Trabalhamos 50 semanas por ano;
imaginada como humana, imediatamente. A humanidade não é uma capitalista, e a outra sendo a ética hacker original. Para mim, é temos duas semanas de feriado e um par de horas de lazer quando
propriedade de algumas coisas em contraste com outras, mas uma importante não enfatizar como a comunidade hacker é diferente de vamos ao Shopping Center. Este não pode ser o nível mais alto de
diferença de posição, não de substância. Nós fazemos uma espécie de outras comunidades. A razão pela qual eu escolhi descrever esta ética desenvolvimento humano, ou a razão pela qual o mundo global se
inspeção metafísica; olhamos, por exemplo, quatro objetos e de trabalho é que eles foram os primeiros a se dar conta deste novo desenvolve. Em certo sentido, esta nova visão de tempo torna
concluímos que alguns têm a propriedade de ser humano e os outros tipo de trabalho. Outra razão é que eles construíram a infraestrutura possível manter horas livres, pois o que fazemos é baseado na meta
não, segundo certos critérios fáceis de se enumerar. Essa propriedade material para a sociedade de redes e foram eles a ponta de lança para do projeto e menos no tempo usado para sua realização. Temos novos
é fixa. O que imagino que os índios diriam é o contrário. O humano o surgimento da sociedade de redes. Eu acho que é apropriado usá- interesses na sociedade hacker. Um dos mais importantes é o meio-
não é uma questão de ser ou não ser; é estar ou não estar em posição los como exemplo, e sua expressão, para capturar algo que é ainda ambiente, e é isso também que faz com que o conceito de tempo seja
de humano. A humanidade é muito mais um pronome do que um mais verdadeiro em termos mais gerais. Em muitas economias tão crítico. Pois, se começamos com o conceito capitalista de tempo,
nome. A humanidade somos «nós». avançadas, a classe criativa já perfaz um terço da força de trabalho, já estamos na pista errada em termos da compreensão de questões
pessoas cujo trabalho é a inovação ou a criação de algo novo em ambientais, que são sempre questões de longo prazo.
A possibilidade de se colocar a si mesmo enquanto enunciador é
todos os campos da vida. As economias estão cada vez mais baseadas
universal. Não é, pois, uma qualidade mas, sim, um dado. É um O movimento ambientalista é um movimento hacker. Trata-se de
no trabalho-inovação. A chamada ética protestante do trabalho,
princípio. Em termos de economia cognitiva, isso é muito importante indivíduos juntando seus recursos, compartilhando abertamente em
descrita por Max Weber, não limitou-se aos países protestantes, era a
– não se trata de afirmar que os índios dizem que todos os animais um nível global, como o movimento hacker. Há um vínculo muito
ética do trabalho Industrial. Segundo esta ética, você encara o seu
são humanos como um naturalista europeu poderia dizer. Não é uma forte entre os dois movimentos.
trabalho como um dever, em que cada um deve realizar a parte que
definição podendo ser compreendida como uma extensão. Porque
lhe cabe e onde o sofrimento é até nobre. Isso fazia muito sentido JCR _ É possível dizer que os hackers, como uma classe criativa de
todas as espécies podem ser consideradas como humanas num
quando muito do trabalho era rotineiro. Fazia sentido indivíduos altamente bem formados, compõem uma nova classe
momento ou noutro. Nada impede que um xamã tenha um sonho em
economicamente ensinar este novo tipo de ética de trabalho. Na social ?
que formigas lhe falem. Aí ele dirá que as formigas são humanos, e
sociedade de redes, até mesmo as companhias estão mudando, pois
isso se torna perfeitamente aceitável porque não há objeções, em PH _ Classe está errado pelas seguintes razões. Primeiramente, estas
este tipo de cultura do trabalho não é inovador o suficiente para que
princípio, em termos de ontologia fundamental, que digam que as pessoas, engenheiros de computação, artistas, cientistas, pessoas
as companhias permaneçam à frente na competição global.
formigas não podem ser seres humanos, porque “humano” quer dizer trabalhando na mídia, na medicina e em muitas outras áreas, não
isso ou aquilo. Tudo é humanizável. Nem tudo é humano, mas tudo JCR _ Então, o que você chama de uma ética hacker é uma maneira sentem que formam uma comunidade com interesses similares para
tem a possibilidade de se tornar humano, porque tudo pode ser de radicalizar o capitalismo em vez de desafiá-lo ? defenderem. Os hackers estão em toda a parte, desde o mais baixo até
pensado em termos de auto-reflexão. É isto o animismo indígena. É mesmo no topo. Portanto, eles não formam uma classe. Mais
PH _ Eu quero estabelecer uma diferença entre a ética de trabalho e
estender a tudo a possibilidade de reflexão. Se tudo é humano, é importante, eu não acho que eles sejam a elite de nossa sociedade.
o que eu chamo de ética do dinheiro. No nível da ética de trabalho,
perigoso, porque as coisas não são aquilo que aparentam. As Muitos destes hackers estão de fato desafiando a estrutura de poder
eu creio que a sociedade capitalista de redes está mudando em
aparências podem esconder profundezas desconhecidas. Portanto, em nosso tempo. Se observarmos o mundo da computação, e vermos
direção à ética hacker, que também é baseada na criatividade, em
tudo é perigoso e fascinante nesse mundo. o movimento de software de código aberto (open source), ele desafia
compartilhar a paixão e assim por diante, mas no nível do dinheiro,
toda a indústria da tecnologia da informação, como quando Linus
há um conflito. A visão de mundo da ética de trabalho hacker possui
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . Torvalds trabalha com o sistema operacional Linux. A indústria da
valores muito diferentes.
informática do momento, construída por Bill Gates e pela Microsoft,
Por exemplo, o conceito de tempo é bem diferente na sociedade está baseada na idéia de fechar informação e dominar todo o
industrial onde tivemos o Taylorismo, e todos os outros tipos de desenvolvimento, de modo que todo tipo de informação pode ter
maneiras de otimizar nosso tempo. Mas a velocidade das coisas era dono. Eles tentaram estender todos os tipo de patentes e copyrights,
ainda relativamente limitada, do nosso ponto de vista. Na sociedade cada vez mais. Esta é a idéia dominante da indústria da tecnologia da
de redes, com a nova infraestrutura tecnológica, temos praticamente informação. O sistema operacional Linux é um sistema de software
um mundo de ação em tempo real, de modo que a tecnologia não de código aberto, o que significa que todos estão livres para usá-lo e
mais apenas flui, ela aumenta nossa velocidade ainda mais. Se na desenvolvê-lo. A informação não é mais propriedade de alguém ou

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fechada para outros. Isso causou muita tensão no mundo da global. Isto é parte do argumento de Manuel Castells a respeito do se move numa superfície plana, ou numa oblíqua, ou numa outra
informática. Na medicina e na biotecnologia, hoje também temos um por que a União Soviética ruiu. Uma sociedade fechada era incapaz com arestas?”
movimento de fonte aberta. de transformar-se em uma sociedade de redes. Até a década de 1960,
Atualmente, a abordagem do movimento já é mais reconhecida. Não
ela tinha o mesmo nível dos Estados Unidos na ciência da
Quando o mapa de genoma humano foi criado, houve uma grande há nada de surpreendente em ver pessoas comuns dançando. Robert
computação, sem mencionar a Física, Matemática e assim por diante,
competição. A competição se deu entre uma companhia comercial, Wilson usa qualquer pessoa; adora usar pessoas surdas, cegas,
nas tecnologias chave, nas áreas científicas chave da mesma forma
que queria fechar toda a informação, e um projeto público. O projeto gordas, baixas, altas... Isso não tem nada de novo. É o que chamam
que nos Estados Unidos, mas a informação era um segredo fechado
público estava atrás do comercial. Mas havia um hacker que começou somático. Na época em que fundaram o Judson Theatre em Nova
dentro de seus LABS militares secretos, e não se espalhou à sociedade
a organizar o projeto público para alcançar o projeto comercial, e no York e seguiram suas pesquisas, eu estava começando a me perguntar
como um todo, e então começou a ficar para trás dos Estados Unidos.
fim eles terminaram antes do projeto comercial. como vincular o movimento aos sentimentos e de onde vem a
O papel da inovação, e do fato que ela requer um fluxo aberto de
expressividade ou o impulso da arte. Onde você dança, por que você
Eu acho que assistiremos ao surgimento do bio-hacker, que aprenderá informação, que encoraja novas maneiras de pensar, está em conflito
dança e para quem? Ficaria a platéia simplesmente sentada,
o DNA como se aprende as linguagens de programação. Isso desafiará com as sociedades fechadas de nosso mundo.
esperando ser entretida, ou avaliaria o espetáculo, daria opiniões, ou
a idéia de tentar ser dono de toda a informação genética dos seres Quando meu livro foi publicado em 2001, o debate sobre a sociedade o intelectualizaria, ou apenas iria embora, tomava um café e esquecia
vivos. Mas eu acho também que o movimento de ética hacker inclui
de redes focava na tecnologia e na economia. Não havia muito tudo? Ou teria a natureza da performance a ver com o que afeta
artistas - digamos, por exemplo, o que acontece com a música. interesse na dimensão social do desenvolvimento. A economia minha vida? Como vou trabalhar estas coisas, que sentimentos me
Existem cinco companhias que hoje dominam a indústria musical, e ‘pontocom’ era uma visão simplista do mundo. Questões sociais transmitem?
eles estão processando todo mundo todo o tempo por compartilhar globais que tem a ver com questões de sistemas de informação
música com os outros, então há uma grande tentativa das grandes Descobri que, do ponto de vista filosófico, os trajes da dança
abertos ou fechados em relação a países desenvolvidos e em
companhias de tentar fechar o conteúdo musical e possuí-lo de forma moderna não são diferentes daqueles do balé. Em vez da malha com
desenvolvimento, além de questões como o comércio livre e o hiato
cada vez mais fechada, mas existem muitos artistas que formam um saiote curto, usa-se um vestido longo e fica-se descalço. Ao invés de
do conhecimento, são agora tópicos centrais em andamento.
tipo de novo movimento de software de código aberto, que querem utilizar modelos de tradição clássica, usam-se modelos de movimento
compartilhar suas coisas mais livremente com os outros. Eu creio que duas coisas mudaram nosso entendimento da sociedade de outra pessoa. Nesse processo de começar do zero, surgiu um novo
global de redes, não tanto no nível teórico, mas no nível prático. Uma leque de perguntas: por que, nos tempos mais antigos, as pessoas
A idéia de software de código aberto não é que não possamos cobrar delas foram as demonstrações anti-globalização muito visíveis, nos dançavam? Quais são as origens da dança? Durante muitos anos, fui
pelo compartilhamento, mas o ponto é mantê-lo aberto, de modo que EUA e em outros lugares; a outra foram os ataques ao World Trade a todos os festivais indígenas norte-americanos que pude e também
algumas outras companhias também possam fazer dinheiro com ele.
Center. Estes eventos tornaram claro que o desenvolvimento global fui a Bali. Vaguei pelo mundo vendo como as pessoas dançavam,
Eles estão fazendo dinheiro mas não estão fechando o processo de
não pode ser apenas econômico e tecnológico, mas precisa também buscando algo que me levasse às raízes da dança. Concluí que, de
desenvolvimento a outros. Já existe uma atitude que diz estarmos ser social. Eu penso que a percepção de que isso é o caso é muito início, a dança era parte da vida das pessoas. Quando você observa
prontos para viver em um nível bem baixo de riqueza material, maior do que o que foi antes. os indígenas e seus rituais, todo mundo sabe exatamente o que está
contanto que possamos devotar nossas vidas a fazer o que sentimos acontecendo e por que está fazendo. Fiquei impressionada com uma
ser importante, então neste período temos ao fundo o espírito da Eu diria que o hacker de computadores e os grupos anti-globalização
dança do milho em que uma mãe dançava com seu filho. A mãe tinha
ética hacker. não estão trabalhando mais juntos hoje do que antes, mas ficou mais
o bebê nos braços e o bebê estava recebendo um código: sabia, por
claro a todos em toda esta ação que existe uma dimensão social
A ética hacker se aplica também, em meu ponto de vista, ao experiência, o que aquela dança significava; naquela tribo, crianças
crítica, então as conseqüências sociais globais de uma ação de cada
movimento anti-globalização. Se observarmos os tipos de grupos, de quatro anos dançavam com pessoas de noventa. A natureza de
um são mais fortes. Não é coincidência que o movimento começou
eles são indivíduos que realmente se preocupam e se apaixonam por uma performance é unir o público e os performers numa criação
ou foi especialmente forte na Califórnia e na baía de São Francisco,
uma questão. Eles querem juntar forças com outros que mútua que terá um impacto em suas vidas e lhes trará uma
pois lá é também o centro da informática capitalista, Silicon Valley, e
compartilhem todas as idéias abertamente uns com os com outros. experiência.
também era o lugar do “anti-” nos Estados Unidos. Todos os tipos de
Eles se organizam como o mundo hacker.
movimentos de contestação começaram ou tornaram-se significantes À medida que comecei a investigar como o movimento está
É importante notarmos que há uma série de desenvolvimentos na Califórnia, desde os hippies até o movimento gay e de liberdade conectado aos sentimentos, percebi que sem expressividade ou
acontecendo nos chamados países em desenvolvimento. Se de expressão. Culturalmente, é o tipo de ambiente em que se pode impulso artístico, você definha. Comecei a questionar o que traria à
observarmos quem está desenvolvendo o sistema Linux, verificamos esperar que algo desta natureza aconteça. tona os sentimentos dos seres humanos. Quando você se move e esse
que há muitas pessoas que o desenvolvem fora dos países ocidentais. movimento gera um sentimento específico, você diz “Me sinto triste
Os lugares aos quais está se espalhando mais rapidamente são BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER porque...”, “Me sinto irritado porque...”, “Me sinto romântico
claramente os países não ocidentais. A razão é que os países em porque...”, “Me sinto carinhoso porque...” O “porque” o vincula a
desenvolvimento permanecem estruturalmente subordinados sua história pessoal, que é seu mito pessoal. Quando se usa a palavra
enquanto o conhecimento de ponta for fechado a eles pela autoridade “porque”, lida-se com um mito, com uma história pessoal.
principal do mundo. Comprar o Microsoft Windows não os ajuda. Foi assim que começamos a desenvolver importantes rituais de
Eles não aprendem nada sobre a criação de tecnologia desta maneira, transformação. Combinei movimento com desenho, com trabalho
e tornam-se subordinados a essa companhia norte-americana. Muitos vocal, com palavras: uma abordagem completa. A dança é um ritual
países, portanto, estão pensando que o que eles precisam é adaptar
e nisto, sua intenção é a de transformar o medo da morte em
soluções de de software de código aberto, onde eles também aceitação da morte como parte da natureza.
aprendem como construir esse tipo de sistema.
ANNA H ALPRIN Meu genro, um norte-americano de origem indígena, costumava
Em Berkeley, realizamos muitas análises de diferentes países e como dizer: “Nunca pensei que a dança fosse considerada bonita. Achava
eles se encontram na sociedade de redes. Um destes países, Gana, que fazia parte da vida cotidiana.” As pessoas dançam porque
ANNA HALPRIN É PIONEIRA DE LONGA DATA E INOVADORA DO “ NOVO TEATRO ”. LIDEROU A
tem a apenas algumas dúzias de pessoas que tem um alto nível de através da dança alcançam um poder superior, um espírito para além
EVOLUÇÃO DA PERFORMANCE COMBINANDO A IMPROVISAÇÃO , A PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO ,
habilidades de programação. Não existem departamentos de ciência TEATRO AMBIENTAL E DE RUA , E A CRIATIVIDADE COLETIVA . ELA FOI INDICADA PELA DANCE
das palavras, para além da informação que a mente passa ao corpo.
da computação em nenhum lugar do país. A educação de ciência da HERITAGE COALITION COMO TESOURO INSUBSTITUÍVEL DA DANÇA NA AMÉRICA DO NORTE .
Na dança, o corpo informa a mente. Os indígenas norte-americanos
computação nas universidades é de nível muito baixo. A única usavam a dança para lidar com coisas concretas – nascimento, morte,
maneira de expandir o conhecimento em um país como esse, é TRADUÇÃO DE JÔ AMADO iniciação da juventude, cura de doenças. Todos os momentos
conectar-se a uma grande comunidade hacker na Internet. O que importantes na vida das pessoas se transformavam por meio da
aconteceu, em parte, foi que eles estão aprendendo ao tomar parte dança. Eu me perguntava se a dança, ao invés de uma imitação,
SÃO FRANCISCO _ 28 DE JULHO DE 2004
nas abordagens de de software de código aberto. Esta é uma maneira
poderia novamente ter esse poder de transformação. Conseguiria a
de reduzir o hiato de conhecimento e expandir o grupo de pessoas dança resolver e curar conflitos em nossa própria cultura, em termos
que têm acesso à tecnologia.
A primeira parte de meu trabalho, o período vanguardista, tratava de nossos próprios pontos de vista científicos e filosóficos?
A ética hacker tornou possível um “movimento global anti-global”. de apagar fronteiras. Do jeito que eu o via, minha primeira tarefa Investigando e estudando os ingredientes dos rituais – de qualquer
Mas a ética hacker não é um movimento político. Existem os hackers consistia em redefinir a dança: começar do zero e eliminar os trajes ritual – me levou a compreender que o ritual é inerente ao processo
políticos, mas nem todos os hackers são políticos. Não há uma da dança moderna enraizados em nossa cultura. Estudei movimento da dança.
agenda política ou uma visão que todos os hackers compartilhem, porque estava interessada na natureza da performance, em identificar
O espetáculo Parade and Changes é do período de meu trabalho em
mas a ética hacker original da década de 1960, quando todo o sua essência. Utilizei o movimento como base, tentando redefini-lo e,
que eu estava tentando romper com todos os tabus que me
desenvolvimento começou, era uma visão de um mundo mais aberto. ao longo do processo, o dançarino e quem tenha vocação para
ocorressem. Por isso, o uso da nudez é uma maneira de dizer:
Era a visão de um mundo em que a ganância econômica não vem à dançar. Para me libertar da couraça, tive que voltar aos primórdios do
“Fazemos parte da natureza e nossos corpos são lindos.” Por que
frente de valores sociais, um mundo onde a abertura tem um valor movimento, começando pelo interior mais profundo: o corpo interior,
temos que os cobrir? Parade and Changes tinha uma trilha sonora
maior do que fazer dinheiro. Isso leva a uma visão global, pois se a estrutura óssea e o sistema nervoso, os órgãos e os músculos. No
fascinante. Tínhamos um músico que tinha partituras distintas para
observarmos o que realmente aconteceu, veremos que os países em processo de estudar como o corpo se movimenta, encontrei uma
espetáculos diferentes. Os dançarinos, o escultor, o rapaz da
desenvolvimento continuam a ser marginalizados, e continuam a maneira científica de objetificá-lo. Devia me perguntar: “Como você
iluminação, cada um tinha sua função, sua ação específica. Você
sofrer muito. Um bilhão de pessoas vivem com um dólar ou menos; se move? O que você faz quando se move? Quais são as tarefas do
podia misturar as partituras como quisesse. Às vezes, o escultor subia
um bilhão de pessoas sofre de desnutrição e assim por diante; 30,000 movimento?” Então, comecei a observar o movimento do cotidiano,
no andaime de onde estavam penduradas as luzes e quando estava lá
pessoas morrem todos os dias de doenças facilmente preveníveis, de começando pelo mais simples. Isto é, perceber como surgem os
em cima tornava-se um dançarino. Acabamos nos tornando
doenças para as quais há remédios. Isso também evoca o fechamento movimentos que visam a uma tarefa. Quando você se movimenta,
multidisciplinares, o que é um nível da holística, ou o que é
da informação. Aqui temos um exemplo concreto do que significa você carrega coisas, empurra ou levanta coisas. Meu vocabulário de
conhecido por teatro holístico. Um aspecto da holística estava na
fechar a informação à maioria do mundo. Isso significa movimento consiste no que chamo posições de ouro: estar deitado,
parte objetiva, na estrutura do teatro. Outro era o interno: integrar a
conseqüências na vida real. sentado, em pé ou se movendo pelo espaço. Não tomava por base
vida pessoal de alguém com suas emoções e sua capacidade de se
apenas meu movimento, e sim, o de todo mundo. Ao fazê-lo, você se
mover como uma pessoa por inteiro. A dança se tornou um ritual ao
A tendência da ética hacker é ser comunicativa. A Internet criou um movimenta no tempo, no espaço e com uma certa força. O espaço, o
integrar todos esses aspectos. Não separamos os artistas: todo mundo
fórum global de comunicação entre culturas. A ética hacker baseia-se tempo e a força eram os elementos com que eu trabalhava, os
colaborava e nos interligávamos todos, constituindo um único corpo
na idéia de liberdade - liberdade da pessoa, liberdade de informação. instrumentos que davam forma ao movimento e que me levaram a
e usando todos os processos artísticos.
Ela não é compatível com a idéia de uma sociedade fechada. Eu acho criar movimentos que se inspiravam em ambientes determinados.
que as sociedades fechadas vão entrar em colapso com a tendência Numa dessas experiências, perguntei: “O que acontece quando você Durante a crise de Aids, aqui em São Francisco, as pessoas

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começaram a praticar rituais. Não se davam conta, mas dançavam qualquer direção. Você pode passar dos recursos à música sem a exercer sua criatividade. Depende de sua habilidade em construir sua
sobre suas vidas pessoais. Foi nessa época que criei o espetáculo partitura e a isso eu chamo improvisação. Uma partitura tem uma experiência de modo a criar uma empatia com os outros, de maneira
Carry Me Home, em 1989. Tinha trabalhado com um grupo de atividade definida: o que você vai fazer e onde vai fazer. Acontece a atingir uma qualidade universal. Depende de seu talento, como
rapazes e seus parceiros, que tinham Aids. Um dia, um desses jovens num espaço, envolve tempo e pessoas. Se você tiver esses quatro profissional e como artista, de ser capaz de dar forma à sua
chegou para mim e disse: “Estou indo para casa.” Já estava ficando elementos, já criou alguma coisa. Uma partitura é uma atividade no experiência de maneira a ter impacto sobre os outros.
debilitado e muito magro. Estava escrito em seu rosto que ia para espaço, com visão. Quanto tempo e quantas pessoas você tem?
Nos Estados Unidos, temos uma situação única. Temos uma cultura
casa para morrer. Conversamos, choramos e nos despedimos. Então, Algumas partituras são muito abertas; outras, fechadas.
muito diversificada. Temos todas as nacionalidades em que você
quando ele saiu, ficamos ali sentados, atordoados, pensando “Quem
Em Ten Myths, havia 10 partituras distintas e os artistas não possa pensar, todas as religiões. Somos tão diversificados em nossa
será o próximo?”. Foi um ritual. Transformou a capacidade de todos
ensaiavam. Eu queria saber quais eram os padrões de grupos de cultura que temos uma necessidade irresistível de encontrar traços
de encarar a morte e encontrar uma espécie de paz. Com Carry Me
pessoas quando se juntavam. Toda vez que eu montava uma comuns, mantendo na íntegra nossa diversidade. Tenho minhas
Home, todo mundo pôde sentir, identificar-se, interagir porque
estrutura, o grupo a desfazia e criava outra, diferente. As pessoas próprias conexões ancestrais e é importante que elas façam parte de
nascera de um fato tão concreto.
encontram um ritmo comum. Espalham-se e rompem com a partitura quem eu sou. São minhas origens. Todos nós temos conexões
Quando eu era pequena, senti um anti-semitismo muito forte, o que num belíssimo e excitante caos porque muitas coisas acontecem ancestrais de países e culturas diferentes. Também na música há uma
me provocou muita raiva e tristeza, e uma empatia para com as simultaneamente. Depois o refazem através de passagens, consciência planetária, trazendo novos sons para que não fiquemos
pessoas que não tinham privilégios. Ser aberto e interagir com uma serpenteando, em linhas retas ou em círculos. Comecei a juntar todos escutando para sempre música clássica européia. Yoyo Ma apresentou
pessoa, ou com sua experiência, sugere uma história pessoal. Os esses recursos, fazendo-os refletir em meus próprios trabalhos. Ao uma série de programas sobre música étnica. Uma pessoa como Yoyo
povos indígenas não se interessam muito por isso. Se interessam mais fazê-lo, o espectador pode identificar e enfatizar, pois esses são Ma tem enorme influência e, com certeza, lidera esse movimento.
pelas curas, pela comunidade. Foi por isso que em seguida fui para padrões que nos codificaram enquanto grupos. Quando os pioneiros São coisas que começam a chegar a nossos ouvidos, sons a que não
Planetary Dance e para Circle the Earth. Qual é a natureza do ser eram atacados pelos índios norte-americanos faziam um círculo. As estamos acostumados: sons turcos, afegãos, iranianos, africanos.
humano? Você começa por ser um bebê que só pensa no leite e na aves migratórias voam em V porque dessa forma o impacto com o Acho que estão ganhando valor, criando mais consciência e mais
mamãe, num completo auto-envolvimento, para depois ter vento torna o vôo mais fácil. Quando o líder se cansa, vai para trás e aceitação das diferenças. Para sobreviver, temos que encontrar nossa
consciência da existência de mãe e pai. Gradativamente, vai-se outro toma a dianteira. Estudei esses padrões com seres humanos e humanidade comum, temos que ser capazes de aceitar as diferenças
tomando consciência da existência de outras pessoas e aprendendo a comecei a utilizá-los em meu trabalho. Percebi que o público pelo que temos em comum. Essa é a atual pedra de toque em tudo o
se relacionar com a família. Em seguida, se relaciona com outras realmente gostava de fazer aquelas coisas e então tentei apresentar o que faço.
famílias, depois com uma cidadezinha, ou uma comunidade. No mesmo trabalho de maneiras distintas. Quando há a possibilidade de
Em dança, o “agora” é particularmente crucial porque tudo voa. Você
mundo atual, a comunicação criou a oportunidade para que você se incorporar o espectador ao artista, por que não fazê-lo? Esse é outro
faz um movimento e, quando se dá conta, já se foi. Não deixa uma
relacione com outras famílias, em outras comunidades. Embora eu recurso que amplia as possibilidades. Quando eu tinha que estar num
imagem no espaço, como um desenho, ou uma pintura. Uso imagens
não tivesse consciência disso, eu participava do movimento hippie. teatro, procurava encontrar os momentos em que o público se
para que você possa criar um vínculo visual condensado que possa
Foi um período de experimentação inspirador, embora não tenha sido somava aos artistas. Mas foi de uma maneira quase acidental que
exteriorizar uma experiência muito íntima. Para apresentar alguma
o tipo de clima que me seduzisse. Criava uma energia forte e todo comecei a utilizar a participação dos espectadores. Meu trabalho
coisa, você tem que re-criar o “agora”. Você não pode ilustrar
mundo gostava. Costumávamos praticar o que chamavam straight provocava tanta agitação no público que as pessoas berravam,
movimento de um modo meramente mental. Há o aspecto físico, o
theatre. Também trabalhei com grupos de rock, tentando estimular as gritavam, atiravam objetos! Quando apresentávamos Exposizione, em
aspecto emocional, o aspecto associativo, ou de imagem, e a conexão
pessoas a dançarem porque, como não havia cadeiras, dançavam Roma (1967), um homem veio pelo corredor, ficou de frente para
espiritual. Isso é estar no “agora” e é a essência da apresentação de
sozinhas. Elas não se relacionavam umas com as outras. Janis Joplin todo mundo e disse: “Foi para isto que Colombo descobriu a
uma performance.
queria fazer uma experiência para ver o que aconteceria se América?” Foi maravilhoso. Eu era tão ingênua, em meu mundinho
incentivássemos as pessoas a se relacionarem entre si. particular, fazendo minhas coisinhas! Não tinha a menor noção do Como estou com 84 anos, seria difícil para mim, nos dias de hoje,
que fazia o público ficar tão excitado. Mas decidi que era uma imensa opinar sobre o que é vanguarda – e por vanguarda refiro-me a algo
Eu faço um círculo quando quero simbolizar a unidade. Quando
fonte de energia livre e comecei a preparar partituras só para o de novo, que nunca tenha visto. Acho que atualmente, o problema
fizemos Circle the Earth, trabalhávamos a questão do câncer de
público. reside em como torná-la – a palavra preferida na Califórnia – útil.
mama e a violência nas escolas; era necessário que houvesse uma
Lembro-me de uma história sobre Isaac Stern. Durante a primeira
maneira de juntar todas as partes, para criar uma mensagem positiva, Em Intensive Care, ao invés de unir espectadores e artistas, tentei
guerra com o Iraque, os mísseis estavam apontados para Jerusalém e
de esperança, pois havia muito desespero. Na época, eu dava aulas fundi-los entre si, trabalhando como se fossem um só corpo. Imaginei
todo mundo carregava máscaras anti-gás. Stern estava tocando com a
de dança comunitária e vinham dançar semanalmente de 60 a 100 que se fizéssemos essa dança numa cadeira com rodinhas, isso
Sinfônica de Jerusalém e todo mundo tinha as máscaras debaixo das
pessoas. Ficava olhando a maneira como se movimentavam, sugeriria uma sensação de armadilha. Queria fazê-lo com mais de
cadeiras. Então ouviu-se uma sirene de alarme – era só um teste – e
enquanto grupo grande. Fazia parte de nossa tradição fazer uma pessoa, pois seria mais envolvente, do ponto de vista visual.
todo mundo pegou as máscaras e as colocou. Lentamente, os músicos
experiências com grupos grandes. Fazíamos muitas manifestações. Queria fazê-lo com quatro pessoas. As cadeiras determinaram o
da orquestra deixaram o palco para colocarem suas máscaras, mas
Para sugerir um sentido de esperança, cheguei à idéia do círculo, espaço. O tempo estava em aberto até que o explorássemos e
Isaac Stern ficou. Não pôs a máscara; continuou tocando seu violino.
onde a voz de cada pessoa emitia uma mensagem sobre o que ela acabamos fazendo uma estrutura de 45 minutos. Eu queria que as
Foi um momento emocionante – vê-lo sozinho, no palco, tocando sua
pensava que seria o melhor mundo possível para viver. Agora, com pessoas usassem partes diferentes do corpo. Uma delas usaria
música. Esqueci se era Brahms ou Bach, mas mais tarde ele foi
estas guerras horríveis, a gente começa a pensar sobre o que está somente a cabeça, outra, somente os braços, outra, as pernas e a
entrevistado e lhe perguntaram o que havia achado daquela
acontecendo à terra, ao ar e à água. Todos nós respiramos o mesmo quarta usaria o tronco; queria que fossem um único corpo, mas com
experiência. “Foi a primeira vez em minha vida que achei minha
ar e bebemos da mesma água. No ar, não existem fronteiras. O que quatro respostas pessoais distintas. Foi trabalhada uma partitura, mas
música útil e isso foi sensacional”, disse ele. É isso que procuro, mais
está em risco, agora, é a vida no planeta. eu nunca disse a qualquer uma dessas pessoas o que deveriam fazer
do que definir o que é vanguarda.
com as pernas, a cabeça, o tronco ou os braços. Fizemos uma
Durante a Guerra Fria, havia um medo disseminado de que os russos
pesquisa antes de começar, coletando respostas à pergunta: “Qual é
nos bombardeassem. As pessoas se juntavam, em grupos, e assistiam BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
sua experiência pessoal com a morte? Escreva o que você sente a
a uns vídeos horríveis sobre o que aconteceria se fôssemos
respeito da morte.”
bombardeados. Não dava para ver esses vídeos sozinho. Em
conseqüência desse tipo de medo, nasceu um desejo intenso de Certo dia, eu estava no estúdio e ia ensinar a diferença entre uma
trabalhar com grupos grandes. Em Planetary Dance, juntávamos, em partitura aberta e uma fechada. As pessoas acham, em geral, que
média, umas 300 pessoas, de todas as idades e com as mais diversas uma partitura fechada não é muito boa, enquanto as abertas são
aptidões físicas. Uma consciência planetária significa pensar de consideradas melhores. Mas isso não é verdade; uma partitura
maneira holística. Muitas das pessoas que participavam da dança fechada pode ser muito importante. Estava pensando em como iria
vinham de diferentes lugares do mundo. Levei esse processo da fazer a apresentação quando vi uns urubus voando, naquele vôo
dança planetária à Suíça, Alemanha e Austrália – e também foi concêntrico. Deveria haver algum animal morto por ali. “Essa seria
apresentado em Israel, no Egito e no Japão. Os participantes uma boa partitura fechada”, pensei. Para mostrar o que queria dizer S ASKIA S ASSEN
devolviam informações sobre como se passara com suas com uma partitura fechada, disse a todo mundo que se movimentasse
comunidades e quais eram as questões em suas comunidades e de maneira uniforme, como os urubus, para ficarem todos no mesmo
SASKIA SASSEN É PROFESSORA TITULAR DE SOCIOLOGIA NA UNIVERSITY OF CHICAGO , E
começávamos a sentir que aquele espetáculo de dança não era só ritmo. Percebi que ficavam cansados de correr numa única direção PROFESSORA VISITANTE DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS . SEU LIVRO THE GLOBAL CITY
nosso, não era só daqui. Estava acontecendo em 36 países e cada porque uma perna agüentava mais peso do que a outra; então, disse- FOI RELANÇADO EM NOVA EDIÇÃO ATUALIZADA EM 2001 . SEUS LIVRO MAIS RECENTES SÃO O
GLOBAL NETWORKS , LINKED CITIES , ROUTLEDGE - 2002 - E CO - EDITOU SOCIO - DIGITAL
grupo levantava um tema diferente, no contexto do qual inseria a lhes para tomarem a direção oposta. Começou pouco a pouco. Você FORMATIONS : NEW ARCHITECTURES FOR GLOBAL ORDER , PRINCETON UNIVERSITY PRESS -
dança. não pode correr sem motivação. Então pensei que se estivessem 2004 - CITIES IN A WORLD ECONOMY - CIDADES EM UMA ECONOMIA MUNDIAL - FOI
PUBLICADO EM PORTUGUÊS PELA EDITORA STUDIO NOBEL - SÃO PAULO -
correndo para alguém, além de si próprios – e eles sentiam que
A música é sempre importante, mas em Planetary Dance é
alguma coisa, externa, dependia de sua capacidade de correr de
fundamental. Planetary Dance tem uma partitura fechada porque seu
maneira adequada – aumentaria a motivação. No final, diriam uns TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
roteiro é muito preciso quanto ao que deve ser feito, mas não
aos outros para quem tinham dançado. Houve um ano em que um
exatamente quanto à forma de fazê-lo. Uma vez, nos apresentamos
homem disse que iria dançar para seu irmão John. Notei que dançou LONDON _ 18 DE AGOSTO DE 2004
na praia e não tínhamos músicos; então, apanhamos alguns gravetos
com muito sentimento. Era africano. Percebi que ficava repetindo um
e uns pedaços de pau, um grupo se ofereceu para fazer o papel de
mesmo gesto. No final, veio falar comigo e contou que tivera um
bateristas e foi tocando. Não imaginávamos que seria possível fazer
aquilo sem o estímulo exterior da batida, que mantém todo mundo
irmão gêmeo chamado John. “John”, disse, “foi assassinado e eu não A globalização econômica corporativa é um sistema de poder que
consigo pronunciar o nome dele. Hoje foi a primeira vez em dez anos usa algumas das velhas capacidades derivadas do estado nacional,
junto. O batuque mantém a batida e cada batida é uma oração feita mas mobiliza-as de forma nova. Nesta nova mobilização, o que
que disse o nome dele em voz alta.” As pessoas sempre dançam em
a Terra. Tínhamos bateristas excelentes, os melhores do ramo. Muitas poderia ter sido dirigido às economias nacionais e interesses
nome de coisas ou pessoas que são muito importantes para elas e é
vezes traziam alunos seus – uma vez tivemos 100 bateristas. Era uma nacionais muda sua orientação em direção aos interesses globais
isso que mantém aceso o espírito da corrida.
energia muito forte. mais estreitos de atores particulares. Não há uma ruptura total com o
A partitura é um processo de comunicação. Se você considerar um O fator determinante em tudo aquilo em que eu quis progredir foi o estado nacional, de jeito nenhum. Mas de fato sinaliza a formação de
círculo como o nosso e chamá-lo RSVP, é uma partitura. Mas a de ser capaz de ter um processo de trabalho criativo, junto com a um tipo de espaço institucionalizado que desfaz os limites do sistema
partitura surge da coleta de vários recursos. Recursos são idéias. Você experiência da arte – e da vida. Minha intenção sempre foi libertar a inter-estatal.
junta tudo numa melodia, toca e, em seguida, avalia o resultado criatividade. Se você conseguir objetivar algo e oferecê-lo para que o Um dos aspectos que observo são os ativistas contestatórios. Existem
obtido. Deu certo ou não deu? Esse processo pode ocorrer em participante o possa sentir subjetivamente, então a comunidade pode formas de ativismo global que capacitam pessoas dentro de um

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âmbito local e talvez imobilizadas a experimentar a si próprias como sistema, uma democracia imperfeita é fundadora. Começando na amalgamada de trabalho em posição de desvantagem (aquela mistura
parte da rede global, ou de um domínio público que existe em outra França no século XIX, instrumentos legais tornaram-se poderosas de cidadãos reduzidos à minoria, imigrantes e refugiados). Esta força
escala, diferente daquela da localidade em que trabalham. Como ferramentas no esforço de assegurar um campo de ação seguro para de trabalho tem como um dos seus locais de trabalho os setores
parte de uma rede maior, ativistas de direitos humanos ou o poder - tanto do Estado como de atores privados. Mas na França globalizados; no sentido de que está estruturalmente conectada ao
ambientalistas, que podem estar obcecados pelo torturador em sua testemunhamos lutas que freqüentemente restabelecem o equilíbrio. capital global, ainda que os trabalhadores pareçam não ter a ver
cadeia local, ou com a floresta perto de sua cidade, ou com o A Grã-Bretanha, muito “civilizada”, foi na verdade muito brutal no ainda com o que pensamos ser a economia global. Ambos são
suprimento de água em sua região, podem começar experimentar a si século XIX : através de uma intervenção legal atrás da outra, ela internacionais, mas há muito de nacional nisto também.
próprios como parte de um esforço global maior sem abrir mão de construiu um trabalhador como um sujeito de poucos direitos ou
suas características locais. É esta combinação que é crítica para totalmente destituído deles. O abuso foi tão extremo que o Trabalho A cidade global permite à força amalgamada de trabalho em posição
minha discussão sobre cosmopolitanismo, ou melhor, contra a se revoltou. Ironicamente, através das reformas que conseguiu, este de desvantagem, capacita-a, a emergir como uma força social.
difundida presunção que se é global decorre que seja também permitiu ao capitalismo sobreviver através de pequena humanização. Podemos ter muitos imigrantes trabalhando em uma grande fazenda
cosmopolita. Assim, falo sobre formas não-cosmopolitas de Nos Estados Unidos, como na Grã-Bretanha, o indivíduo sem coorporativa, mas em tal situação que eles não podem emergir como
globalidade. As novas tecnologias da informação, desenhadas para propriedade foi construído como uma persona desprovida direitos. força social. A mesma coisa acontece com o local de trabalho
eliminar distâncias, para produzir a compressão espaço-temporal, Em contraste, a propriedade traz direitos. A esfera do mercado, que é suburbano. Estes locais de trabalho reduzem-nos à condição de
podem ter na realidade também o efeito de revalorizar a localidade e supostamente neutra, é, desde o início, uma esfera política. trabalho, eles desestruturam tudo que os imigrantes possam ser,
atores locais. Eu contesto esta confluência do global com o reduzindo-os a trabalhadores. A cidade global é um espaço produtivo,
cosmopolita. Financistas são globalistas não-cosmopolitas, e eu Uma das razões pelas quais puderam ocorrer vitórias daqueles em tanto em termos da produção das capacidades especializadas de que
argumento que a maioria dos ativistas ambientalistas ou de direitos posição de desvantagem, no final do século XIX, é que o nacional o capital global precisa, quanto em termos de sua produtividade
humanos, aqueles que estão de fato a se envolver na ação, também estava se tornando cada vez mais estreito, e, desta forma, a luta dos política: em transformar tanto o capital em uma força social quanto
são globalistas não-cosmopolitas. Eu quero chegar a uma trabalhadores pôde atingir o poder nacional. Hoje, tanto o capital capacitando a força amalgamada de trabalho em posição de
multivalência, tanto da globalização quanto do que significa ser um quanto aqueles em posição de desvantagem tomaram proporções desvantagem emergir como força social.
globalista não-cosmopolita - reinventar o local como alter- globais, ainda que, em relação ao trabalho organizado, este processo
tenha apenas começado. Quero elaborar neste particular usando Henri Lefebvre e Max Weber,
globalização. Em um domínio muito diferente, eu diria que haverá
para colocar a questão em contexto histórico. Lefebvre demonstra
um um verdadeiro empuxo em direção à relocalização de diferentes
Hoje, aqueles em posição de desvantagem podem deixar o âmbito do que há produtividade do espaço, do próprio ambiente. Weber verifica
mercados, tirando-os do mercado supranacional e tornando-os locais,
nacional. Mesmo que não deixem o país. Novas tecnologias, o que as cidades medievais capacitaram os burgueses a emergir como
mas inseridos no horizonte global, ou, pelo menos, redes
imaginário acerca da globalização, todos permitem novas formas de força social, como atores políticos. Na década de 1950, Lefebvre
transnacionais. Não precisamos da produção padronizada das
geografia para o trabalho político. Muitos atores localizados, que investiga as cidades industriais de seu tempo, e argumenta que o
multinacionais, que podem vender-lhe a mesma produção não
nunca viajam, que não são parte das novas mobilidades, começam a burguês não mais precisa da cidade. Estas não são mais cidades para
importa onde você esteja.
experimentar-se a si mesmos pertencendo, participando de redes os burgueses, mas sim as cidades das classes trabalhadoras
globais. As novas tecnologias permitem conectividade horizontal, organizadas, onde a classe trabalhadora pode emergir como ator,
Não há nenhuma agenda política compartilhada ou conspiração na
descentralizada, simultânea - uma conectividade internacional onde como sujeito político, como uma força social - a cidade onde os
atual globalização econômica corporativa. Não há necessidade delas.
não há hierarquia. Isso é bem diferente da forma de conectividade da trabalhadores podem reinvindicar os aparatos de consumo coletivo,
A questão é, melhor dizendo, a sistematicidade do modelo neoliberal,
o quão profundamente ela se tornou parte da estrutura básica e da Internacional Socialista, com sua estrutura central de organização. E de transporte público a saúde e habitação. As cidades não
também não é internacional no sentido da Internacional Socialista. desempenharam sempre este papel. No ápice do capitalismo
ideologia - “o Mercado sabe mais”, o que quer que isso signifique. A
Atores políticos informais, o movimento alter-globalização, os vários industrial, os lugares cruciais de luta eram as minas, as grandes
extensão da idéia de mercado a um âmbito crescente de domínios é
tipos de ativismo acerca dos direitos humanos, o meio ambiente, a fábricas; áreas que não eram cidades - como o norte da França.
uma forma de autoridade. Isso faz do mercado um componente de
justiça social, todos estes produzem de facto, ainda que por vezes
cada vez mais presente nas esferas da vida social. Isto é
sem querer, uma presença face-a-face os outros - não apenas face-a- Eu lanço o olhar sobre a cidade global, e verifico que elas não são
sistematicidade. Mas será a idéia do global o suficiente para tudo
face o poder ou a mídia global, mas face-a-face entre si. Este mais as cidades da classe trabalhadora organizada ou da velha noção
alcançar? A autoridade dos mercados certamente se espalhou para
reconhecimento é crítico; ela dá estruturação à multidão. É por isso da burguesia que encontra na cidade o lugar de sua auto-
mais partes do mundo. Mas o poder nunca é absoluto, nunca é
que os fóruns de Porto Alegre e Mumbai são esforços enormemente representação e projeção de seu poder (incluindo o poder
completamente aceito.
importantes. civilizatório). Eu vejo nas cidades globais o espaço que capacita dois
Vemos a emergência de vários tipos de questões contestando vários outros tipos de atores sociais. As cidades globais são o espaço onde
Você me pergunta sobre imigração e globalização. A maioria das aterrisa esta categoria progressivamente elusiva, privatizada e
aspectos do poder, do sistema - pessoas trabalhando contra o
grandes migrações (e não de movimentos idiossincráticos como o digitalizada a que chamamos capital global, e, por um momento em
mercado como concebido pela Organização Mundial do Comércio e o
meu...eu sou nômade) estão incrustadas em sistemas transnacionais: sua complexa trajetória, se torna homens e mulheres. Estes são
FMI, contra as minas terrestres, contra o tráfico humano, contra a
impérios coloniais no caso da Europa (por exemplo, os argelinos à homens e mulheres que desejam tudo e tudo conseguem. Desta
destruição ambiental. Estas centenas de atores contestadores em
França), impérios neocoloniais no caso dos Estados Unidos, forma, eles projetam seus trabalhos diários e estilos de vida na
diferentes localidades acabaram por produzir um tipo de efeito
constituídos através de investimento em agrobusiness (México) e em cidade. Isso toma muito espaço, e desta forma invadem o espaço
sintético - elas constituem a multidão. Uma questão crítica é então
manufaturas no estrangeiro, no Haiti, ou de operações militares residencial de outras pessoas (o processo de gentrification), invadem
entender as muitas arquiteturas políticas informais através das quais
(Vietnã, Filipinas, Coréia do Sul), e assim por diante. Uma vez que o a área do trabalho de outras pessoas (novos e glamorosos edifícios de
a multidão se constitui. Existe o fazer, poesis, nestas arquiteturas
fluxo de uma migração é iniciado, uma nova fase adentra o processo: escritórios tomando o lugar de economias urbanas mais antigas). É
políticas informais. Existem várias maneiras diferentes de fazer sendo
ela se torna uma cadeia de imigração, ela se auto-alimenta. através desta projeção e invasão que a concretude da vida cotidiana
construídas de baixo para cima, e existem diferentes terrenos em que
novos tipos de sujeitos políticos e lutas estão emergindo. Uma cidade de lares de alto salário e firmas de altos lucros revela-se uma força
A questão, portanto, é se e como a proliferação de sistemas globais
pode conter centenas de terrenos para ação política. Tudo isso social. Nestes termos ela pode ser confrontada diretamente. A outra
ao longo dos últimos 20 anos afetou as características da migração.
começa a introduzir uma textura, uma estruturação para a noção de força social que emerge do fato da força amalgamada de trabalho (e
Na minha leitura das evidências, três características se destacam -
multidão. O que me interessa é o uso destas arquiteturas políticas assim “desorganizada” em oposição, por exemplo, ao “trabalho
mesmo que cada fluxo migratório seja distinto em seus detalhes
específicas, diversas, dentro da multidão. Este é um tipo de política organizado”) é parte de setores econômicos da cidade globalizada, e,
empíricos. Uma destas é que a multiplicação de sistemas globais de
global em fase de construção que tem, como componente crítico, não importa o quão contingente e transitório, também projeta seu
toda sorte também multiplica as pontes que conectam o potencial
multidões que podem ser globais mesmo que não sejam móveis. trabalho e estratégias de sobrevivência no espaço urbano:
particular das “áreas de envio” com as áreas potenciais de
comunidades imigrantes, o “banlieue” em Paris, áreas comerciais de
recebimento: temos uma multiplicação dos fluxos migratórios.
Hoje observamos uma negociação informal de múltiplas escalas: não baixo custo, restaurantes baratos, camelôs e assim por diante. Isso,
Segundo, o enorme aumento do tráfico ilegal que se tornou um
mais se trata do global e do local, ou do nacional versus o global. eu argumentaria, é também um tipo de estruturação da multidão. Eu
negócio global, usando a infraestrutura da globalização. Isso significa
Estas escalas mutuamente exclusivas, que nós herdamos, pertencem uso o termo força social para captar ambos os atores emergentes, pois
a criação de fluxos migratórios que podem não estar incrustados em
ao nacional. As escalas do nacional - que ainda prevalecem - são eles não são classes, ainda não. O que temos é um processo muito
sistemas mais antigos , mais arbitrários (ainda que não
constituídas hierarquicamente e formalmente, tanto em termo mais desorganizado, localizado e concreto que os significados mais
completamente desligados das geografias imperiais mais antigas). A
institucionais quanto em termos geográficos. Embora este complexos que Marx atribuiu à classe social. Também não há
terceira é a formação de mercados de trabalho globais e cadeias de
escalonamento ainda prevaleça, ele está sendo desestabilizado. O programa comum. Esta são forças sociais emergentes. Mas um efeito
amparo - globalizando toda uma rede de trabalhadores de serviços
estado-nação não irá desaparecer, mas este sistema hierárquico de é o fazer do capital global concreto, não uma categoria global
pessoais, tais como enfermeiros, babás, faxineiros, trabalhadores do
escalas está instável. espectral. E isso dá à força amalgamada de trabalho em posição de
sexo. Todas estas três características, mas especialmente a terceira,
desvantagem um contorno político, além do sujeito trabalhador. Isso,
encontram sua mais aguda expressão nas cidades globais.
O tipo de poder que os Estados Unidos construiu para si e que por sua vez, capacita vários tipos de prática política - da teatralização
mobiliza globalmente, e que mostra-se insustentável. Os Estados do político como nos desfiles de imigrantes, ou na organização de
Buenos Aires ou Manila, por exemplo, na verdade não têm
Unidos têm exercido o pleno potencial do presente da pior maneira faxineiros através do movimento de sucesso Justice for Janitors
imigrantes; elas recebem profissionais, trabalhadores da construção
possível. Hoje o Iraque nos mostra seus limites, o começo do fim do (Justiça para os Faxineiros).
provenientes da Bolívia e Paraguai. Em Nova Iorque, Paris, Frankfurt,
presente. A guerra norteamericana no Iraque e a guerra contra os
Londres, Amsterdã, Toronto, e Sydney, temos uma enorme mistura de
direitos civis em seu próprio território, ambas estão tornando Se eles são estrangeiros ou nativos do lugar é uma questão quase
forças de trabalho basicamente constituídas através de imigrantes,
evidente o caráter degradado do poder americano (US); neste secundária na formação desta força amalgamada de trabalho. Muitos
refugiados, os que procuram asilo e cidadãos reduzidos à minoria
processo, mesmo quando os Estados Unidos exercitam seu poder ao imigrantes de terceira geração e cidadãos reduzidos à minoria são
(como porto-riquenhos e os negros de Nova Iorque, os cidadãos do
máximo - contra civis iraquianos, contra os cidadãos reduzidos à parte desta força social emergente. Cidadãos reduzidos à minoria,
Maghreb em Paris etc.). Em muitas outras cidades do Norte global,
minoria nos próprios EUA - neste exato gesto está a perder neste contexto, têm a opção de experimentar a si próprios dentro de
incluindo Tóquio, a migração marca presença significativa, e
autoridade. algo próximo da diaspóra, já que podem deixar o pertencimento
desestabiliza, altera, transforma: trata-se de uma dinâmica de
subjetivo da entidade coletiva do estado nacional. Aqui eu não quero
trabalho dentro destas cidades.
Muito foi dito do crescente déficit de democracia causado pela dizer somente os economicamente em desvantagem: eles podem ser
globalização ou pelo sistema supranacioanal da União Européia. Mas A cidade global é uma espécie de zona de fronteira, no sentido de cidadãos de renda média reduzidos à minoria, ou podem ser
as origens deste déficit vão muito além estas representações comuns. uma cidade do “Velho Oeste” - para usar uma imagem histórica. É um anarquistas, ou gay, lésbicas e homossexuais que se sentem
Nos Estados Unidos, a coisa começa com a lei em si. O poder como lugar onde dois tipos diferentes de sujeitos, atores, encontram-se sem alienados, ou ainda qualquer tipo de pessoa ou identidade que não se
uma condição legal, é, sem dúvida, mais brutal nos Estados Unidos regras estabelecidas de engajamento. Numa cidade do Velho Oeste, os sente parte do “nós” nacional. O que começa acontecer é que toda a
que na Europa. A maneira como o privado e o público foram colonizadores com os indígenas. Na Cidade Global, o encontro entre noção relacionada à diáspora emerge como um instrumento, uma
construídos, tudo isso é parte da formação do capitalismo. Neste o capital corporativo global como força social, e a vasta força instrumentalidade, uma maneira de identificar um novo tipo de

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sujeito político. A Cidade Global conecta todos estas lutas e A cidade global é um dos lugares críticos onde o capital corporativo composto, pois eles e nós também estamos nos movendo, a partir de
identidades subalternas, uma mistura de pessoas que global se faz presente na vida cotidiana das pessoas. O capital global um senso de política negra que foi definido através da oposição entre
majoritariamente não trocam nada entre si, que na maioria das vezes também se faz presente nos centro bancários no estrangeiro e nas o Leste e o Oeste, para um novo senso que flui, que gera uma nova
nem se fala, mas que emergem como uma força social amalgamada. zonas de processamento de exportações, e em outros tais lugares, geometria do poder, que é definida pelo eixo de conflitos geopolíticos
A mesma mistura em um tipo diferente de lugar - a universidade, o mas não da maneira complexa e multifacetada com que o faz em uma que corre não do Leste para o Oeste, como ocorrera na dispersão
hotel, o hospital, o subúrbio - não estaria necessariamente capacitada cidade global. A cidade global é um ambiente extremo, um lugar original, mas do Norte para o Sul e então de volta.
a emergir como força social, pois sua posição sistêmica econômica brutal, não importa quão glamorosa seja a arquitetura. É por isso que
não residiria lá. ela é o lugar da política, da emergência de novas forças sociais Neste cenário, os afro-americanos podem não mais querer continuar
estratégias. a se identificar com a África. As pessoas de cor no mundo super-
Existem muitas globalizações. Cada uma tem uma geografia e desenvolvido, aqueles de nós que estamos dentro de cidadelas, das
arquitetura particularizadas. Quando o assunto é a globalização fortalezas do super-desenvolvimento, podem não querer identificar-
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
econômica corporativa, eu argumento que o lado organizacional é se com a violência, sofrimento e caos que se diz representar a África.
bem diferente do lado do consumo. A maior parte da atenção recai E eu acho que o problema não é exclusivo da experiência afro-
sobre as multinacionais do consumo: McDonald’s, Nike e assim por americana, mas se manifesta com especial intensidade para eles.
diante. O projeto das firmas de consumo se resume a quanto mais
consumidores pelo mundo venham a usar ou comer seus produtos, Nós, que seríamos os europeus negros do século XXI, também nos
melhor. Em contraste, o lado organizacional não precisa chegar a deparamos com escolhas históricas. Precisamos pensar muito, como
todos os lugares e alcançar tantos consumidores quanto possível. O Du Bois pensara, se este precioso presente que foi legado ao futuro -
lado organizacional é estratégico: ele provê os serviços de operação as lutas afro-americanas pela liberdade - seja algo que possamos ou
global das firmas e mercados, tanto aquelas que vendem para que queiramos usar. Para colocar de maneira mais cuidadosa, será
consumidores quanto aquelas que vendem para outras firmas. O lado P AUL
G ILROY &
E DOUARD
G LISSANT que este é útil, e, como deveria ser usado? Devemos nós, por
organizacional vende para outras firmas. Ele se faz visível apenas exemplo, em nome do progresso, abraçar a exportação de sistemas
quando realmente precisa, não faz propaganda nos mercados raciais americanos, seja como políticas tecnológicas para a resolução
consumidores, só faz propaganda para outras firmas. A rede de PAUL GILROY É O ATUAL CHEFE DO DEPARTAMENTO DE ESTUDOS AFRO - AMERICANOS DA YALE de problemas raciais pela via governamental, seja como receita para
UNIVERSITY . PROJETOS AUTORIAS CORRENTES INCLUEM CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MELAN -
cidades globais é uma geografia estratégica para o lado que os movimentos social e cultural possam derrotar o racismo?
COLIA DA GRÃ - BRETANHA PÓS - COLONIAL E UM LEVANTAMENTO DAS MÚSICAS NEGRAS DO
organizacional do capital global. As cidades globais possuem uma NOVO MUNDO NO SÉCULO XX . ÉAUTOR DO INFLUENTE TÍTULO BLACK ATLANTIC . MODERNITY Parece-me que fazer esta escolha implica em custos que precisamos
mistura de recursos úteis na produção de capacidades especializadas AND DOUBLE CONSCIOUSNESS , VERSO - 1993 - . SEU ÚLTIMO LIVRO INTITULA - SE AGAINST reconhecer, e minha resposta a estas questões é, eu acho agora, Não.
RACE : IMAGINING POLITICAL CULTURE BEYOND THE COLOR LINE , HARVARD UNIVERSITY
para o capital global. Eu quero enfatizar que o capital global precisa PRESS - 2000 - Eu creio que é importante reconhecer que a história dos Estados
ser feito, produzido, exige serviços, exige serviços legais e de Unidos no campo da política racial não precisa representar nosso
contabilidade etc. A cidade global representa este momento único de futuro.
EDOUARD GLISSANT , NASCIDO EM SAINTE - MARIE - MARTINICA - É “ UM DOS MAIORES
alta legibilidade onde as capacidades das firmas globais e mercados ESCRITORES CONTEMPORÂNEOS SOBRE O UNIVERSAL ”. DESEMPENHA UM PAPEL DA MAIOR
globais precisam ser globais, serem produzidas, inventadas, feitas. IMPORTÂNCIA NO RENASCIMENTO CULTURAL NEGRO-AFRICANO - CONGRESSOS DOS Quando eu era criança, no final da década de 1960, quando chegou o
ESCRITORES E DOS ARTISTAS NEGROS DE PARIS , EM 1956 , E DE ROMA , EM 1959 . DESDE terror de grande violência e ressentimento contra os imigrantes e seus
A função econômica chave da cidade global é que ela serve como 1995 , É “ DISTINGUISHED PROFESSOR OF FRENCH ” NA CITY UNIVERSITY OF NEW YORK - CUNY
- DE SUA VASTA PRODUÇÃO POÉTICA E LITERÁRIA , DEVEM SER DESTACADOS TRÊS ENSAIOS filhos, me diziam todo o tempo que os Estados Unidos significavam o
uma espécie de Vale do Silício para a invenção e produção de MAIORES - LE DISCOURS ANTILLAIS - 1981 - POÉTIQUE DE LA RELATION - POÉTIQUE III - futuro, um futuro que era nosso.Isso era plausível apenas porque três
capacidades para operações globais, operações que em larga medida 1990 E TRAITÉ DU TOUT - MONDE - POÉTIQUE IV - 1997 - PUBLICADOS PELA EDITORA
GALLIMARD . SEU ÚLTIMO ENSAIO , LA COHÉ DU LAMANTIN - POÉTIQUE V - DEVE SER
semanas depois do político inglês ter profetizado uma guerra de raças
são eletrônicas. Eu gosto desta justaposição de redes eletrônicas
PUBLICADO NO INÍCIO DE 2005 . no Reino Unido, Martin Luther King foi executado, assassinado.
globais com as enormes concentrações de materialidades (edifícios,
Então esta profecia de guerra racial, sua imagem dos Estados Unidos
infraestrutura, o fato de profissionais e executivos precisarem de
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI - GAVIN ADAMS
como nosso futuro recebeu um choque, esta energia extra, como um
casa, comida... a materialidade de tudo isso).
resultado daquele assassinato. Não precisamos agora, creio, da
Em um nível bastante geral podemos enxergar todas estas cidades história dos negros americanos, não importa quão triunfante, para
BERLIN _ 17 DE SETEMBRO DE 2004
como similares em suas funções de cidades globais. Mas existem especificar o mundo da negritude, com o qual somos comprometidos.
também histórias profundas que só alcançamos se escavarmos à E eu sei que negros europeus, como muitos europeus, têm uma
procura de aspectos específicos da história econômica de cada uma
delas. A primeira coisa que fiz em Chicago foi olhar para esta cidade
A TLÂNTICO NEGRO / BLACK ATLANTIC ambivalência sintomática e profunda em relação aos Estados Unidos.
Eles podem não gostar da liderança política do momento, e, no
global através destas lentes. Eu tomei a geografia global das filiais de PAUL GILROY _ Parece apropriado começar com uma consideração entanto, há algo de fascinante e excitante sobre seus estilos, seu
firmas de finanças, propaganda, jurídicas e de contabilidade com acerca do valor e da utilidade da dupla-consciência. Isto, é claro, era ritmo, seus hábitos culturais, que acabam por anexar-se como índices
sede em Chicago. Eu então comparei essa geografia global de filiais a problemática de W. E. B. Du Bois, extraída de Hegel e refinada de liberdade, especialmente na cultura do consumo, que gera
àquela geografia das firmas com sede em Nova Iorque e Londres, durante sua estada aqui na Alemanha. Foi moldada, eu creio, pelas imagens poderosas, algumas poderosas seduções em liberdade e
nestas mesmas áreas da indústria de serviços. Elas são geografias suas leituras de escritos filosóficos e por sua visão da questão de autonomia.
diferentes, e nestas geografias podemos ver como ao longo do tempo assimilação como esta emergira durante o século XIX, quando
Mas talvez agora possamos pensar no deslocamento dos Estados
Chicago desenvolveu tipos especializados de contabilidade e de estudou em Berlim. Mas sua visão era adaptada para as condições
Unidos da posição em que Hegel os colocou há tempos como a terra
serviços jurídicos, finanças e propaganda relacionados à grande americanas, nas quais os afro-americanos pela primeira vez buscaram
do futuro. Será que eles representam, deveriam representar o futuro
história agro-industrial. Mesmo se hoje parte disso se foi, os serviços e tomaram posse de sua cidadania dentro de uma revolução
de todo mundo na Terra quando se trata de raça? O futuro racial, essa
imateriais ainda refletem este ângulo, pois assim é que foram inacabada. Sua visão profundamente hegeliana apresentava a
assimilação, essa segregação, e esta libertação não precisa ser nossa.
inventados, foi assim que nasceram. consciência negra americana da liberdade como uma força histórica
Eu acho que podemos ser, eu creio que devemos ser, compelidos a ser
mundial. Era um presente dos descendentes de escravos para o
Estes setores especializados e seus profissionais podem representar mais imaginativos do que isso. E eu acho que a meditação sobre o
mundo, um complexo cultural tão profundo e perturbador que os
apenas 30% da cidade, mas eles são a “vanguarda” da economia Atlântico Negro pode assistir-nos. Primeiramente, pode ajudar a
qualificava como uma das grandes forças civilizadoras da história
global quando esta aterrisa. Pode ser que elas envolvam apenas uma separar a história nacional do movimento afro-americano de
humana.
minoria de lugares na cidade, uma minoria de pessoas, uma minoria libertação da escravidão de outras narrativas que precisamos contar.
de firmas, mas sabemos que as vanguardas não precisam ser Muito do que Du Bois previu um século atrás, é claro, provou ser Histórias de libertação da supremacia branca em outros lugares,
maiorias. exato. A América Negra presenteou o mundo com uma nova especialmente do poder colonial, histórias de pan-pensamento, de
concepção de liberdade. Esta e outras concepções de liberdade foram diferenças dentro de nosso coletivo, medidas, avaliadas, pesadas
Em minha pesquisa tentei entender de forma detalhada o porquê das
exportadas e alteraram a paisagem moral de nosso planeta de contra a diferença entre nosso coletivo e outras formações similares
firmas financeiras globais precisarem de centros, já que elas operam
maneiras significativas. Mas tenho pensado recentemente se devemos no mundo; histórias de transcultura, narrativas de movimentos anti-
em larga medida eletronicamente. Por que estas vastas concentrações
considerar a possibilidade de deixar o conceito de dupla-consciência escravagistas de anti-colonialistas que não foram centradas nos
de recursos precisam de um tipo de materialidade? É uma ironia que
onde a encontramos - no século XIX. Por várias razões, não me parece aforismos raciais norte-americanos. Por exemplo, uma leitura do
esta economia digital global necessite de tais concentrações. Em
muito útil transplantarmos esta idéia para os dias de hoje. Outra movimento abolicionista mundial pode servir para isso. E, ao
nenhum lugar isto é tão evidente quanto em finanças globais, a mais
maneira de colocar este problema histórico e conceitual é perguntar desenvolvermos nosso senso Norte-Sul do que está em jogo na
eletrônica e a mais global das indústrias. Existe uma tensão real, uma
o quê Du Bois diria de Condoleeza Rice e Colin Powell. Estes não política de raça, precisamos começar a engajar a história da África do
tensão estrutural, entre a materialidade profunda e as capacidades
parecem dotados de uma segunda visão, ou então lamentavelmente Sul, do Brasil, de outros lugares que podem nos ser úteis no
abstratas que normalmente são chamadas de sem-lugar. As novas
incapacitados pelas suas duplicidades internas das maneiras que ele reconhecimento de nossas esperanças e aspirações futuras. Como
tecnologias fizeram muita diferença na constituição das finanças.
previra. De fato, Condaleeza Rice é apresentada como a encarnação poderíamos começar a construir uma rede de comunicação que
Mas elas neutralizaram apenas parcialmente a importância dos
do sucesso do Movimento dos Direitos Civis, talvez também o ponto facilite uma variedade diferente de conversação mundialmente sobre
centros financeiros. Operar em diferentes países adiciona à incerteza
terminal da dupla-consciência de Dubois. Mirando-a sob esta luz estes assuntos, e que contribuição poderia a própria Europa fazer às
dos mercados, adiciona risco. A velocidade aumentada das redes
contemporânea, então, é tentador responder, “Então, não há tarefas políticas envolvidas na construção de uma democracia que
eletrônicas acentuam esta incerteza e risco ainda mais. Os principais
garantias nos mecanismos de dupla-consciência”. É claro, hoje, os não seja uma amena codificação de cores? O Atlântico Negro quebra
centros financeiros funcionam como comunidades abrigadas em um
afro-americanos deparam-se com uma escolha histórica diferente o padrão, como eu disse, em que as contingências dos Estados Unidos
ninho, onde sistemas tácitos de confiança funcionam como uma
sobre a que lugar pertencem e sobre o que eles pretendem ser. Muitos tornam-se amplamente entendidas como intrínsecas ao
espécie de lubrificante, facilitando o comércio instantâneo de vastas
deles consideram a chamada guerra contra o terror como uma funcionamento geral da divisão racial. E aqui encontramos mais um
quantidades de capital. A variedade de peritos que se juntam em tais
maneira de finalmente adquirir ou “operacionalizar” o tão adiado problema substantivo: devem os Estados Unidos ser o centro global
centros fazem com estes se tornem lugares estratégicos onde
ingresso na comunidade nacional. O próprio Du Bois considerava a da política racial da mesma forma como é o centro de tantas outras
seqüências múltiplas de informação global interagem em conjunto.
Grande Guerra de 1914-18, a entrada dos Estados Unidos nessa coisas? Uma fonte singular de códigos e significado que dá vida à raça
O centro financeiro capacita uma espécie de produção coletivizada do guerra, precisamente da mesma maneira. em todo lugar, ou, como prefiro, devemos ver isso como nada mais
conhecimento, crucial frente à incerteza e ao risco. Em Global City eu que um outro lugar pós-colonial, um lugar a mais, onde a lei racial,
desenvolvo todos estas questões. O ponto principal aqui é que a É claro, hoje a decisão histórica e o compromisso dos afro-americanos onde o absolutismo étnico e a segregação governam a operação de
híper-mobilidade do capital realmente mobiliza comunidades de produzirá efeitos muito além de suas fronteiras. E eu tenho um uma economia fraturada e uma comunidade política cindida? Como
prática específicas a um lugar (mesmo que momentaneamente) e problema com isso, no sentindo de que sua ligação com sua nação pesaremos estas histórias norte-americanas de raça e relações contra
também mobiliza a fixação de capital. E é aí que a cidade global arrisca a reduzir o debate sobre a política de raças no mundo às suas exemplos tirados de outros lugares, onde o racismo e a hierarquia
entra. brigas familiares e ao romance de suas famílias. O problema é racial trabalham de maneira diversa? Será que esta versão de política

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racializada representa o futuro do resto das pessoas na Terra? É claro, lado sem se interpenetrarem. Apesar da onda dos termos crioulização seja trivializada dentro da linguagem multicultural que
o povo norte-americano tende muito mais do que os Europeus a ter “multiculturalismo” ou “melting-pot”, trata-se de um país onde as se apropria indevidamente dela, que permite que ela escape por entre
aceitado que a raça é parte do funcionamento de sua cultura política. comunidades se encontram às cegas, uma ignorando a outra. Há ali nossos dedos. E eu vejo também um grande valor e uma grande
Eu até concordo que os europeus têm muito a aprender desta – para nós, comunidades de descendência africana nas Américas – energia envolvida no trabalho de construir geopolíticas diferentes. Ao
aceitação de raça, contanto que, é claro, isso envolva um algo de particular a fazer. Não acredito em missões nem em modelos. mesmo tempo, eu venho de um arquipélago - a Inglaterra - que
reconhecimento do estrago infligido pelo racismo e não se torne uma Estamos num universo em que ninguém tem o direito de se colocar brutalmente e sem piedade colocou-se como o meridiano, o lugar
resignação sem mais dos efeitos da hierarquia racial. Mas meu ponto como modelo para outras pessoas, mas creio que os sofrimentos onde os hemisférios se dividem, e, sem querer soar como os
essencial permanece que, aceitando a saliência dos processos incríveis pelos quais passaram os descendentes africanos nas anarquistas do romance de Conrad, The Secret Agent, que tentam
políticos e sociais que os Estados Unidos conhecem e aceitam como Américas dão-lhes o direito de afirmar sua experiência de sem sucesso, em má fé, detonar o meridiano, a ruptura daquela
um fenômeno natural chamado “raça”, não faz absolutamente nada crioulização, particularmente na América do Sul e no Caribe, uma oposição está em jogo para mim. Eu não posso aceitar a oposição
para confrontar as múltiplas mistificações infligidas pelo racismo, experiência que não foi a mesma que a dos africanos nos Estados arquipélago/continental como um modelo explicativo desta re-
seja na política norte-americana, seja em outro lugar. A fluidez do Unidos. O que é interessante é que, no momento em que os navios territorialização da crioulidade (creolité). A reescrita da pluralidade
Atlântico Negro, a resistência contra o poder disciplinador de todos negreiros chegam ao Caribe e seu carregamento é despachado para o como crioulização é a questão, mas não está claro ainda para mim
os estados nacionais, promovem noções alternativas de cultura que Brasil e para a América do Norte, o sul dos Estados Unidos quais são as maneiras em que a desprovincialização da Europa fará
quebram os laços da geo-piedade e soberania territorial de maneiras escravagista é também arquipelágico. Quando digo a cidadãos da uso da história do Caribe, do Caribe expandido, que se estende desde
que são consistentes com nossa história conturbada. E isso, como Luisiana: “Vocês partilham a mesma história que os antilhanos, o a Nova Escócia até a Bahia.
começara a dizer ontem, importa muito no contexto da guerra ao sistema de plantations, a escravidão, as línguas crioulas, a
terror e o conflito de civilizações, que a promoveu; estas arquitetura colonial, os linchamentos de negros etc.”, isso os deixa EDOUARD GLISSANT _ De modo geral, estou de acordo. No lugar de
circunstâncias requererão um compromisso sincero das minorias muito irritados, mas é, no entanto, a realidade da qual se deve partir. uma geopolítica, eu me empenharia em construir uma “geopoética”.
raciais nos Estados Unidos com o esquema de dominação imperial Mas, se há choques, por exemplo, entre porto-riquenhos ou Porque uma geopoética pode abranger o mundo. Uma geopolítica
consciente de seu país. Não obstante, a tradição de pensamento caribenhos e negros norte-americanos, eles decorrem do fato de que, pode destruir o mundo. Mas a Inglaterra é um continente, é a Irlanda
dissidente sobre o qual o Atlântico Negro repousa, agora pede algo a apesar de suas histórias semelhantes, há essa ausência de e tudo quanto são ilhas, arquipélagos. E a Irlanda é uma vítima da
mais de todos os negros que se estabeleceram nas cidadelas do super- crioulização. O pensamento arquipelágico é um pensamento Inglaterra. A Inglaterra é um continente. Um continente não é apenas
desenvolvimento do que o continuar a espiar ansiosamente um disperso, ágil, prudente e em harmonia com a fragilidade e as uma realidade física; é também uma vocação. Acho que aquilo que
mundo dividido através das rachaduras de nossos estados nacionais ameaças do mundo atual. Ao contrário, o pensamento continental é eu disse sobre a fragilidade é real. O pensamento arquipélico é
recentemente fortificados. Pode ser que venhamos a ser solicitados a um pensamento da potência, do poder e dos sistemas. A Europa adequado porque se aplica ao inextricável atual do mundo e porque
entender a raça e sua lógica política distinta de maneira diferente, regeu o mundo com sistemas de pensamento. E o pensamento dos não é todo-poderoso, pois os arquipélagos nunca são todo-poderosos.
como resultado das demandas de uma perspectiva planetária, Estados Unidos é, claramente, um pensamento continental. Já o Os continentes que aparecem nos arquipélagos é que são todo-
reconfigurada pelo desejo de segurança, se não de invulnerabilidade, pensamento do resto dos continentes americanos é um pensamento poderosos: a Austrália, na Oceania, o Japão... tornam-se continentes,
assim como daquela “unipolaridade” e poder militar de amplo arquipelágico, um pensamento do tremor que eclode em todos os mas o que está em volta deles são arquipélagos pobres e ameaçados.
alcance. horizontes e que nos afasta das imposições dos pensamentos de O pensamento continental é poderoso e magnífico, suntuoso, dá-nos
sistemas. O tremor é a qualidade mesma daquilo que se opõe ao coisas maravilhosas, mas é também mortal. E também mata ao seu
Du Bois viveu uma vida longa e complexa. Ele mudou seus brutal pensamento unívoco do eu contra o outro, ou do eu fora do redor. Os fundamentalistas, tanto de um lado ou como do outro,
compromissos políticos, ele repetidamente mudou suas táticas outro, ou do eu acima do outro. O mundo se criouliza – isso quer fundamentalistas religiosos ou fundamentalistas intelectuais, são
políticas. Ao final de seus dias, seus compromissos com a paz e com dizer que ele se torna complexo e se interpenetra a ponto de se tornar instrumentos de assassinatos, de um lado e do outro. São sistemas de
o internacionalismo o levaram a um profundo e extenso conflito com inextricável, fazendo o intercâmbio de seus costumes e de suas pensamento que são emanações do que chamo de pensamento
seu próprio governo, sobre a guerra da Coréia, sobre o Plano culturas, o que ainda ontem se chamava de suas identidades, em continental. O pensamento arquipelágico nunca é imperial. Quando
Marshall, sobre a formação da OTAN, e muitos outras questões grande parte massacradas. O pensamento arquipelágico caminha se torna imperial, é porque se continentalizou. Não foi para mostrar
domésticas, no esteio das lutas civis e políticas afro-americanas que segundo redes que se atraem e que não abandonam longe do mundo erudição que citei o mar Egeu, Esparta e Atenas. O mar Egeu significa
tornavam a emergir. Talvez devêssemos ler estas partes de sua vida nenhum dado do mundo. A crioulização no Caribe, como no Brasil, os filósofos pré-socráticos, o mundo cheio de tramas que se tenta
como um argumento final sobre a dupla-consciência ou talvez mesmo foi acelerada pela deportação dos povos africanos que, compreender, enquanto Esparta e Atenas já são o sistema platônico
um repúdio a esta idéia. Devemos nos lembrar que ele viveu grande fundamentalmente, contribuíram para radicalizar as oposições e as ou o sistema lacedemônio militar. E devemos estar atentos em relação
parte da última década de sua vida sem passaporte, que ele acabou simbioses, as tentativas de alinhamento. Os povos deportados, depois a isso. E o que digo é que os Estados Unidos têm esse aspecto de
por tornar-se membro do Partido Comunista aos 93 anos de idade, semeados por uma área enorme entre o norte e o sul dos dois pensamento continental e não apenas imperialista. Tudo o que os
que ele renunciou à sua cidadania americana, e que ele embarcou em continentes americanos, descobrem de forma dolorosa as marcas de dirigentes, ou os subdirigentes, ou os sub-subdirigentes podem dizer
uma vida de exílio como um cidadão de Gana. Ele encontrou nestas suas culturas abandonadas, ao mesmo tempo em que têm uma é: “Os Estados Unidos, the greatest nation of the world.” Mas não, as
escolhas traiçoeiras um meio de ativar seus compromissos disponibilidade natural para as outras culturas, criando o inesperado. maiores nações do mundo são as nações que consentem em sua
germânicos de longa data e laços com a cidadania mundial, de um O jazz é um tremor. Foi primeiro, nos Estados Unidos, uma música própria diversidade. Não são as nações militares, pois as nações
lado, e a história mundial, no outro. Quais são, somos obrigados a arquipelágica antes de se continentalizar. Para mim, o Caribe é, militares passam. Elas não duram. É como se, há dez anos, se
perguntar, os relatos não nacionais destes desenvolvimentos, o que primeiro, o ciclone que nos devasta, um redemoinho, uma dissesse que a União Soviética era a maior potência do mundo. Isso
seriam os gestos contemporâneos analógicos àqueles gestos de Du embriaguez do pensamento ou do juízo, a necessidade do encontro e passa, desmorona. Não dura. Mas a grandeza da diversidade
Bois, e como nossa exposição a uma cultura política da diáspora nos da afinação das vozes. O Caribe foi modelado com o sofrimento consentida é algo que permanece.
ajuda a preencher algo como esta agenda desconfortável. negro, mas também com o sofrimento indígena – a metade da
população de Trinidad é indígena, a outra metade é negra –, o MULHER _ Eu penso até que ponto o título desta conferência e do livro
EDOUARD GLISSANT _ Para mim, o termo importante na expressão sofrimento foi repartido. Nessa região do mundo, nós não temos o de Paul Gilroy, Black Atlantic [Atlântico Negro], constitui um modelo
“Atlântico Negro” não é “negro” mas, sim, “Atlântico”. Se a palavra direito de ignorar essa interpenetração. A compaixão só é eficaz e americano específico de pensamento sobre a raça, um modelo onde
“Atlântico” é forte, é porque designa o caminho do tráfico dos negros. justa quando se inspira, sem limites, no pensamento do Todo, no uma gota de sangue negro que te faz negro, à negritude - se você é
É o oceano que os navios negreiros atravessavam, marcando sua pensamento do mundo todo. Ouvimos essa música, essa tempestade branco ou negro, pensado não como uma categoria estável, mas
viagem com cadáveres de escravos que jogavam no mar. Para mim, o contínua que trama para nós a Relação. A deportação dos africanos como uma que se transforma e que seja múltipla. Eu me pergunto por
oceano Atlântico é uma obsessão e, talvez, também uma neurose. A desde o início do século XVI, a dos hindus a partir do século XIX, a que esta conferência não usa um conceito como “Atlântico híbrido”
República Dominicana, a Martinica, Guadalupe eram os lugares onde vinda incessante de colonos europeus e de comerciantes da Ásia e do ou “Atlântico Crioulo”, por que se mantém este termo negritude
os navios aportavam, onde separavam as mães de seus filhos e os Oriente Médio, a violenta oposição das condições sociais regidas pelo mesmo sem as aspas?
irmãos de seus irmãos. O mar do Caribe foi o principal ponto de escravagismo desde o início de suas colônias, introduziram
PAUL GILROY _ Para mim esta palavra está lá como um significante
chegada do tráfico de negros, o lugar a partir de onde os escravagistas elementos de complexidade, de vertigem social e cultural que
vazio, porque o racismo a produz. E enquanto viger a transcendência
distribuíam pelas Américas seu gado humano. Havia carregamentos constituem a particularidade daquilo que nas Américas foi chamado
das ordens raciais, ela precisa estar lá desta forma. Não porque eu
que saíam para a Luisiana, para a Virgínia ou para as Carolinas. Eu de a “neo-América”. É a América do Caribe e do Brasil, que se pode
quero fazer da negritude uma categoria ontológica, mas era fácil para
caracterizaria o Caribe através de duas palavras: a de “arquipélago” apor à “mesoamérica” - a América dos ameríndios, dos astecas, dos
as pessoas como nós imaginar que, ao colocar nossas aspas ao redor,
e a de “crioulização”. Creio que a forma mais humana, mais densa e incas ou dos sioux. A “neo ou a euro-América”, do Mayflower, do
realizamos algum trabalho no mundo, especialmente aqueles de nós
mais intensa da metamorfose – e a metamorfose é uma das grandes Canadá e dos Estados Unidos – e mesmo um pouco do Chile e da
que aspiram a uma “ontologia histórica”. Esta negritude é parte do
ambições da humanidade – é a crioulização. E o trunfo privilegiado Argentina, que se vangloriam de ser muito europeus – é feita da
nominalismo, mas é uma dinâmica nominalista, nós a
da crioulização é o arquipélago. Durante muito tempo, o arquipélago interpenetração dessas diferentes dimensões. No México, como nos
compreendemos a sua vida. Então enquanto houver a supremacia
foi ignorado ou destruído pela corrente conquistadora dos Estados Unidos, a mesoamérica sofre a opressão da neo-América, da
branca no mundo, esta palavra precisa estar lá (para mim). Quando
pensamentos do Uno. No entanto, os arquipélagos quase sempre América Crioula. Essa perturbação deve ser planejada com cuidado.
a supremacia branca se for, quando pudermos imaginar o fim da
precederam os continentes. Na história antiga, os arquipélagos do Nós, caribenhos, habitamos cada vez menos os topos das ilhas e
supremacia branca, e quando nós cultivarmos o hábito de imaginar o
mar Egeu anunciavam as vitoriosas continentais que são Esparta e vamos cada vez mais para o interior. Nós, “arquipelágicos”, entramos
seu fim, então poderemos descartar aquela negritude. Esta negritude
Atenas. O arquipélago do Caribe, que é como um prefácio das nos continentes. O Caribe é como um círculo, que se expande até o
descartará a si própria.
Américas, recebeu primeiro o eco desses continentes vencidos que continente, e como um eco, vindo do continente até as ilhas. O
são as Américas. Vencidos pela conquista de Cortez, pela conquista pensamento global do Caribe veio das ilhas menores e mais frágeis, HOMEM _ Eu sou português, e eu aprecio muito os dois discursos, as
de Pizarro e vencidos pelos emigrantes do Mayflower. Os arauaques mais ameaçadas, pois elas tinham necessidade de conceber o duas idéias de crioulização e da dupla-consciência. Mas a noção de
e os caraíbas viviam como nômades nas ilhas, deslocavam-se de ilha conjunto para poderem se conceber a si mesmas. Em seu isolamento, hibridismo tem sido usada como uma arma pelo regime colonial, pelo
em ilha, por três ou quatro anos, quando o Ocidente vindo do Leste o sistema das plantations possibilitou uma mistura, uma crioulização regime fascista, para legitimar a colonização portuguesa depois do
caiu sobre eles. A crioulização nasceu dessa derrota. Não são as em que se encontraram e se combateram brancos e negros, princípio fim de todos os “colonialismos”; então eu não me sinto sempre
vitórias que suscitam o grande pensamento épico, são as derrotas, geral de emergência da vida social em toda a região Sul da América. confortável com esta “bondade” per se, eu tenho sentimentos
ou, pelo menos, as vitórias duvidosas. As grandes derrotas sempre Daí, o pensamento da crioulização escapa para alcançar o Mundo. desencontrados em relação a isto, as coisas podem ser mais
deram origem a grandes livros épicos. E a crioulização não só é o complexas.
bem mais precioso do Caribe, como também é o único futuro PAUL GILROY _ Eu me comovi muito com a maneira pela qual Edouard

duradouro do continente americano que não deverá sua vida futura à Glissant mobilizou o que penso, dentro de meus conceitos, como uma EDOUARD GLISSANT _ Em minha exposição, eu disse que o mundo é
sua massa nem a seu poder, mas à sua diversidade consentida. Os ecologia do pertencimento que se torna uma força crítica. Eu inextricável. Não se pode obter uma foto nítida do que se passa no
Estados Unidos constituem um grande país-cadinho mas não ainda concordo inteiramente com ele,quando diz que crioulização do mundo. Creio, entretanto, que se tem, hoje, duas concepções
um país crioulizado. As comunidades e as etnias nele vivem lado a planeta é a questão para nós, e de quão importante é impedir que a principais da identidade – e é o que desenvolvo em meus textos. Tem-

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se a concepção da identidade de raiz única, para retomar uma das idéias através das religiões – e sua maciça reorientação nas Estados Unidos da seguinte forma: “Nós preferimos não ter o acordo
imagem de Deleuze e Guattari, a qual mata todas as outras raízes ao cabeças dos povos – constitui o primeiro grande exemplo de comercial mundial que vocês nos oferecem.” Isto é muito
seu redor. É aquela em que o Ocidente se formou e impôs ao mundo. globalização. significativo.
Quando falo do Ocidente, falo tanto da cristandade, da judaicidade
A maioria das relações comerciais não existiria, dos tempos da Rota JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ O que você acha daquilo que pessoas como
como do islã que, para mim, faz parte dele. E há uma segunda
da Seda até hoje, sem a globalização das trocas comerciais. A Toni Negri descrevem como processos globais e denominam o novo
concepção da identidade: a identidade de raiz múltipla. É o que se
ascensão do poder econômico na China, na Índia e no Brasil se dá Império ?
chama um rizoma. É uma raiz que vai ao encontro de outras raízes e
porque essas nações se tornaram comercialmente bem-sucedidas e,
não as mata. Ao contrário, elas se fortalecem mutuamente. É possível DH _ Não tenho muita paciência com isso. Os impérios foram
em conseqüência disso, milhões de pessoas saem do limiar da
ter, hoje, o sentimento de que podemos começar a abandonar nossas fenômenos históricos muito específicos, dos romanos até os ingleses.
pobreza. Este fenômeno é hoje bastante amplificado devido à
idéias de identidades de “raiz única” para tentar entrar na realidade O poder atua em planos distintos, é multidimensional. Tome o
revolução das comunicações, que redefine e cria um novo sentido de
das raízes múltiplas do mundo. Todas as catástrofes que se vêem no argumento de que os Estados Unidos são um império e o analise de
espaço global – e, por isso, qualquer tipo de grupo, religioso ou não,
mundo atual correspondem à recusa histérica a abandonar a três maneiras: o poder militar, o poder econômico e o poder de
pode ter sua diáspora organizada.
identidade de raiz única, enquanto todos os povos – cuja identidade comunicação de massa e cultural. No plano militar, é inquestionável
hoje está ameaçada, como os ciganos da Iugoslávia – admitem que é Em suas raízes, a história da globalização é a história das que o mundo é unipolar. Os Estados Unidos detêm um comando
possível mudar estabelecendo trocas com o outro sem se perder nem comunicações globais. A explosão das comunicações está vinculada avassalador do mundo, assim como recursos para um poder
se desnaturar. Bem sei que o mundo é imprevisível. Mas a à revolução da Internet. A interconexão das comunicações globais destrutivo, mas até no plano militar já não podem usar essa força
crioulização é nossa única chance. Se mudarmos nosso imaginário, com a Internet e com os satélites cria uma extraordinária força de para garantir a vitória da forma que um Estado-nação poderia fazer
teremos uma chance de mudar o mundo. energia. Reorganizou tudo. A explosão dos mercados financeiros, há 50 ou 60 anos, como na I e II Guerras Mundiais. O sistema entre-
especialmente nas décadas de 70 e de 80, não poderia ter ocorrido guerras permitiu um novo conceito de vitória e de inimigo. Hoje,
BASEADO EM UMA CONFERENCIA “ PERSPEKTIVEN AUF DEN BLACK ATLANTIC ”, HAUS DER
KULTUREN DER WELT , BERLIN , 17 DE SETEMBRO DE 2004 . sem aquelas luzinhas piscando que se vêem no noticiário apesar de seu domínio militar, os Estados Unidos podem ser
diariamente. Toda a explosão dos fluxos globais, tanto comerciais encurralados, e vulneráveis, no Afeganistão e no Iraque. Não basta a
quanto financeiros, a que assistimos nos últimos vinte, trinta anos, potência militar para conseguir o controle sequer do campo de
foi, em grande parte, fruto dessa explosão. batalha. Em segundo lugar, no plano econômico, os Estados Unidos
não são um império. Até 40 ou 50 anos atrás, tinham uma economia
As principais tendências da globalização abrangem também a relativamente autárquica, mas atualmente ela é bastante fluida e
expansão dos mercados globais de mercadorias e serviços, a criação aberta. É verdade que os Estados Unidos exercem uma influência
de governos multiestratificados com o fim da guerra fria, a difusão de predominante sobre a economia mundial, mas esta é cada vez mais
valores democráticos, a internacionalização da segurança e a multipolar. Note-se a ascensão da União Européia, da China etc. No
emergência de novas epidemias. plano da economia, o mundo é multirregional e multipolar. No plano
D AVID H ELD Os impérios dos séculos XVIII e XIX – principalmente o império da cultura e das comunicações, o fenômeno é mais difuso e mais
britânico, que foi o maior de todos – desmoronaram, lentamente, ao caótico. Parece um tabuleiro de xadrez multidimensional. Com os
longo do século XX. Em parte, foram derrotados; mas também em impérios clássicos não era assim; tinham que controlar uma
DAVID HELD É PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS .
conseqüência da I Guerra Mundial, que deixou a Europa muito capacidade hierárquica porque controlavam tudo isso através dos
SEUS INTERESSES DE PESQUISA MAIS IMPORTANTES INCLUEM AS RECONFIGURAÇÕES DA
DEMOCRACIA NOS NÍVEIS TRANSNACIONAL E INTERNACIONAL , ALÉM DO ESTUDO DA abalada e sem condições de cuidar de seu império decadente. A territórios, o que já não ocorre.
GLOBALIZAÇÃO E DA GOVERNANÇA GLOBAL . É FUNDADOR DO WWW . OPENDEMOCRACY . NET
independência da Índia ganhou força com a I Guerra Mundial, pois Não estou romantizando o período do Estado-nação. Foi a Europa, no
os ingleses já não conseguiam se concentrar no governo da colônia. século XX – a Europa, e não o mundo islâmico –, que levou o mundo
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
Mas o que também ocorreu no século XX, principalmente a partir de ao abismo por quase duas vezes, nas duas guerras mundiais, a
1945, foi a ascensão dos movimentos de libertação nacional. Era o Europa, esse sustentáculo do Iluminismo. Nada há o que comemorar
LONDON _ 17 DE AGOSTO DE 2004
período pós-colonial. A ideologia do império morrera. A ela sucedia, no Estado-nação, ou no Estado-nação europeu. A economia mundial
absoluta, a ideologia da autodeterminação e da democracia. vem criando maciçamente novas oportunidades para as pessoas. Não
A cho que a globalização é, antes de tudo, sobre relações de É impossível fazer ressurgir um império territorial na era pós- é apenas negativo, não é apenas perda de empregos. Num mercado
aberto, também são criadas possibilidades para as pessoas do mundo
espaço. Não há nada de muito misterioso nisso. Podemos império. Nunca um império conseguiu se expandir exclusivamente
compreendê-la em várias dimensões. Envolve processos que pela força militar. Todos necessitaram de uma mistura de poder inteiro, para que estas utilizem os recursos e capacidades de que
aproximam as relações humanas, um número crescente de conexões militar, econômico, social e cultural, assim como da integração das dispõem. Chama-se a isso vantagem comparativa, para seus próprios
e redes através do espaço e, na realidade eu também diria, do tempo. elites nacionais. Os romanos já sabiam disso. Praticamente não fins. E se as regras fossem justas, o que não são, poderia ser ainda
Em sua forma mais estereotipada – os mercados financeiros existia uma integração horizontal no império romano, exceto entre as melhor.
comerciais, as transações comerciais e as corporações globais –, a elites de todos os territórios conquistados e que eram integrados ao Então, o que fez a globalização nos últimos 20 ou 30 anos? Expandiu
globalização conquistou o espaço e tornou o tempo insignificante. império romano. Os ingleses o fizeram levando para a Índia os maciçamente o comércio global, quadruplicou as transações
sistemas de ensino público, nas escolas e nas universidades, e comerciais do mundo em desenvolvimento para o mundo
Vivemos no início da era global. Foram necessários 300 anos para que
preparando as jovens elites indianas na tradição humanista britânica. desenvolvido, redefiniu a divisão de trabalho e permitiu que centenas
o Estado-nação se tornasse a forma dominante da política e da
Hoje, no entanto, os norte-americanos chegam a Bagdá e não de milhões de pessoas, na Índia e na China, saíssem do limiar de
unidade política não só na Europa, mas também pelo mundo afora.
compreendem por que estão ali, ou o que estão fazendo ali – e não pobreza. Criou oportunidades, mas, mas...se não passa de apenas
Vivemos, agora, num novo domínio, o global, mas ainda temos o
conseguem controlar o país. mais uma faceta do mercado manipulado pela agenda política do
mecanismo conceitual de Estado em nossas cabeças. Portanto,
pensamos em termos locais e nacionais, mas os recursos que consenso de Washington – a liberalização do comércio, a
O impressionante sobre a globalização é que, atualmente, é possível
controlam a maioria de nossas principais necessidades, enquanto liberalização dos mercados de capital, privatizações etc., vinculadas,
exercer o poder sem controle territorial. O poder dos grandes
raça humana – a saúde, o bem-estar, o meio ambiente, o comércio, agora, por meio das novas doutrinas de segurança de Washington –,
impérios dos séculos XIX e XX era exercido mediante o controle do
enfim, tudo que nos afeta –, são globais. se assume essa forma e lhe é dada essa força, então também se torna
território. O grande erro que os norte-americanos cometem
um projeto potencialmente hegemônico e destrutivo, tanto para o
atualmente é o de tentar reinventar a questão do império a partir do
Em Global Transformation, um livro que escrevi com alguns colegas, meio ambiente, quanto para a maneira pela qual vivem as pessoas.
território. Isto é impossível nos dias de hoje e é por essa razão que
abordamos a história da Globalização e seu impacto sobre diversas Criou a primeira catástrofe sistêmica: o aquecimento global.
eles vêm fracassando. Embora muitas redes globais de comunicação
dimensões: a econômica, a comercial, a financeira, a empresarial, a Havíamos conhecido anteriormente catástrofes ecológicas, como a
e muitos processos operem, cada vez mais, de forma extra-territorial,
da cultura e das comunicações, a da guerra e da política, a do direito, peste bubônica, os flagelos da peste, a dizimação da população
isto não significa que a questão territorial tenha deixado de ser
a ambiental etc. Cada uma delas discute diferentes áreas dentro do indígena da América do Norte e do Sul, e não porque a tecnologia dos
importante. Uma das conseqüências da superposição dos limites
espaço da globalização; seria um erro ler a história do meio ambiente ocidentais fosse superior, o que era, mas porque eles traziam os vírus
entre a política e a cultura em Estados-nação é a difusão, em
a partir da história das finanças, ou a das finanças a partir de uma do banal resfriado, da gripe e da sífilis, com os quais impregnavam
diferentes domínios e em diferentes níveis, de movimentos sub-
perspectiva global. Têm lógicas e narrativas diversas e histórias as populações locais, as quais não tinham sistemas imunológicos
nacionais, como os que existem no Canadá, na Espanha e até na Grã-
espacialmente distintas, assim como momentos e dinâmicas capazes de lhes resistirem. Mas, agora, trata-se de uma forma de
Bretanha. Também ocorre a reintegração de relações espaciais em
diferentes, mas o que torna original a atual fase de nossas vidas é a degradação ecológica supra-regional.
âmbitos maiores, como a União Européia, o Tratado de Câmbio Livre
confluência da mudança através de todas essas dimensões.
da América do Norte e o Mercosul. A recombinação de relações Penso que o maior desafio do mundo moderno é o de educar a região
A atual mobilidade das pessoas pelo mundo inteiro, e mesmo nos espaciais se dá em planos distintos, assim como a subversão do central dos Estados Unidos! Sem uma mudança na política norte-
Estados Unidos, é um sinal de que elas querem conhecer lugares espaço nas diversas redes de comunicação e nas formas. americana, seria muito difícil deter o aquecimento global. Vivemos
atraentes e diferentes. De inúmeras maneiras, o estreitamento das numa era muito estranha: um momento de atividade global crescente
O poder é a capacidade de fazer com que algo aconteça, ou não. No
relações humanas através do espaço nos liberta da opressão e e, ao mesmo tempo, com um sistema político territorialmente
atual contexto global e nos mercados da economia e das finanças
limitação tradicionais do referencial local, criando a possibilidade de orientado. A maior democracia do mundo – não em termos de
globais, são as regras que determinam o resultado da distribuição. O
intermediar, de trocar. Isto não é novo. Já vem acontecendo há muito população, mas em termos de poder – vota em candidatos que só são
poder toma a forma de todos os acordos de governança que criam as
tempo. A maioria das culturas é cosmopolita e não apenas étnica, ou responsáveis perante seus próprios cidadãos e, entretanto, somos
regras para o intercâmbio da distribuição. Alguns deles são
nacional. todos depositários e dependentes do resultado das eleições norte-
maciçamente impostos pelos Estados Unidos e pelo mundo ocidental,
americanas. De certa maneira, deveria tratar-se de uma eleição
A propagação da humanidade, desde as primeiras migrações, foi que ainda detêm uma influência desproporcional em todas as
mundial. Mas é uma eleição local, nacional. Temos, portanto, um
complexa na forma, na cor e no etnicismo. Tal como Paul Gilroy organizações governamentais internacionais, como o Fundo
sistema de responsabilidades que é nacionalmente vinculado e um
descreve em seu livro Black Atlantic, o período colonial sugere o Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial
sistema de atividades globais crescentes que transcendem esses
fenômeno das diásporas e a história multidimensional da do Comércio. No âmbito comercial, são os Estados Unidos e o mundo
limites, o que cria uma crise de responsabilidade. Os líderes políticos
globalização. Basta pensar nas invasões mongóis através da Europa, ocidental que determinam a natureza desses acordos. Daqui a 30 ou
dos Estados Unidos só são responsáveis perante seus cidadãos, e não
na extraordinária incursão dos mongóis através de um imenso 50 anos, entretanto, o mundo não será o de agora. A ascensão da
para o resto do mundo, e não há meios pelos quais o presidente
espaço. Na realidade, entretanto, algumas das primeiras grandes China, da Índia, do Brasil e da África do Sul representa um desafio
norte-americano venha a tomar as medidas cabíveis para deter o
formas de globalização estão relacionadas com o advento das crescente ao antigo regime mundial. Atualmente, os excluídos têm
aquecimento global.
religiões mundiais, que tornam bastante insignificantes os fenômenos condições de desafiar aquelas estruturas através de sua visibilidade.
da cultura popular. Imagine-se a propagação do judaísmo, do Essas potências emergentes fizeram recentemente em Cancún algo É evidente que os meios de comunicação norte-americanos estão
cristianismo e do islamismo pelo mundo inteiro... Esta propagação que nunca haviam feito antes. Dirigiram-se à União Européia e aos concentrados em poucas e poderosas corporações, mas as tecnologias

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atualmente existentes permitem que seja ignorada essa mídia nossa era global, a única que pode lidar adequadamente com a PARIS _ 12 DE OUTUBRO DE 2004
dominante, utilizando-as de uma forma independente. Este fenômeno interconexão de nossos destinos e riquezas através de todas essas
é universal e particular e cria, simultaneamente, perspectivas abertas dimensões. Teríamos instituições políticas à altura de fazê-lo no curto
que permitem uma redefinição do particular. Hollywood é um prazo? Seus adversários dizem que esta é uma outra forma de
excelente exemplo. Los Angeles é o centro da indústria universalismo, outra igreja. O mundo não precisa de mais igrejas. N AO HA GLOBO TERRESTRE

cinematográfica norte-americana, mas também é a cidade da mais


E eu respondo: a filosofia política cosmopolita, por meio de seu
vibrante atividade de rádio e imprensa, com jornais em todas as JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Seria possível você resumir o que está em
reconhecimento de igual valor para cada ser humano, com sua
línguas do mundo. Precisamente as mesmas tecnologias são jogo no debate em que esteve envolvido recentemente e que opõe os
prioridade de valores por consentimento, é a única filosofia política
utilizadas para editar jornais, produzir programas de televisão ou defensores do cosmopolitanismo a essa outra concepção cosmopolítica
que tenta criar uma maneira não-coercitiva para que as pessoas
rodar filmes em espanhol, italiano etc. O problema crucial, no que insiste na multiplicação das naturezas e, portanto, dos mundos ?
possam tocar suas vidas, porém dentro dos limites da interligação. A
entanto, é: como criar uma responsabilidade sistêmica, uma
democracia é a única via para nos tornarmos cosmopolitas. Aceito BRUNO LATOUR _ Há dois pontos de partida importantes. O primeiro é,
responsabilidade global?
que seja uma igreja, outra forma de uma filosofia universal, mas, certamente, o fato de que se passou, se é que se pode falar assim, do
A globalização trata fundamentalmente, como todas as experiências pelo menos, uma igreja democrática. Não é manipulada pelo tempo do tempo ao tempo do espaço. É evidente que, caso se
humanas de intercâmbio, de oportunidades e riscos, de mercado, nem pelo G1. Está vinculada a uma aspiração fundamental, continue sendo modernista, nada disso tem importância: a história
possibilidades e perdas. que não é trans-histórica, que emergiu num determinado momento continua. Porém, a meu ver, durante todo o período em que
na Europa, e mais além, mas que agora está interligando cada ser pensávamos que éramos modernos, vivíamos no tempo do tempo, o
A questão fundamental do século XX não envolve apenas a expansão
humano que aspira a viver uma vida com opções. tempo da sucessão, dos estágios que se superam e se subsumem uns
da economia global. Envolve a capacidade dos seres humanos
aprenderem com o Holocausto. A criação de novas regras nos outros, como diria o velho Hegel. A partir do momento em que a
JCR _ Mas deve se admitir que essa filosofia é originária do Ocidente.
internacionais – sistemas legais, direitos humanos ou, por exemplo, ecologia se tornou essencial, nós nos encontramos no tempo das
o Tribunal Penal Internacional – gerou constrangimentos e impôs DH _ O que significa “ocidental”? Do ponto de vista filosófico, é um simultaneidades e não mais no das sucessões; em outros termos, no
limites aos sistemas de soberania dos Estados. A soberania deixou de erro considerável associar a origem de alguma coisa com sua tempo do espaço. A questão da coabitação tornou-se, então, a
ser um poder concreto. Os direitos são, de certa forma, determinados validade, pois em nada a desqualifica o fato de ser chinesa, indiana questão fundamental. Mas o segundo elemento a se levar em conta é
por um punhado de valores que são cosmopolitas e globais, ou ocidental. Devemos separar as origens das idéias. É claro que em que não há mais lugares onde absorver a coabitação como havia um
implantados, agora, no regime de direitos humanos. Esses valores, grande parte é verdade que a origem da democracia, tal como a tempo (revolucionário ou decadente, mas sempre aí) para absorver a
como infelizmente sabemos, têm uma eficiência restrita. São conhecemos, assim como dos direitos humanos, está nos países sucessão. A coabitação tinha, desde o século XVII, um lugar natural:
limitados em muitos lugares do mundo, mas constituem nosso único ocidentais. Assim mesmo, devemos tomar cuidado, pois tudo isso o «grande Globo» do modernismo, para falar como Peter Sloterdijk.
grande tema. São o grande tema que sobrou para a espécie humana vem lá de trás, do Mediterrâneo, através da efervescência das Qualquer coisa de extraordinário que acontecesse aos modernos,
e, de certa forma, nos vinculam como povos com algo em comum. culturas árabes e Platão e Aristóteles chegam ao Renascimento tudo se situava no grande Globo, já presente, da Natureza. Era
Penso que a globalização dos padrões legais no que se refere aos através do idioma árabe. Há muitas democracias. Se Amartya Sen possível situar, de modo enciclopédico e umas em relação às outras,
direitos humanos, assim como as restrições ao poder político, aqui estivesse – um dos grandes pensadores do desenvolvimento e todas as diferenças. As diferenças de subjetividade, as diferenças
representam temas imensamente progressistas que surgiram a partir um dos grandes economistas da atualidade – diria que não. “No políticas, as diferenças de religiões, as diferenças de ideologias já
das estruturas que alteraram o direito internacional na segunda Ocidente, vocês pensam que essas idéias são ocidentais, mas eu coabitavam na natureza. Todas eram, pois, superficiais em relação à
metade do século XX. O verdadeiro desafio reside em criar sistemas poderia mostrar tradições indianas em que elas estão, sob outras grande unidade, a essa grande universalização «da» Natureza. Ora,
mais amplos de responsabilidade no mundo inteiro. Se Bush se formas”, diria ele. É complexo, portanto, e as culturas mais tolerantes no decorrer da década de 70, no momento em que se produziu a
reeleger, isso será extremamente prejudicial para o sistema do mundo são as islâmicas. O sul da Espanha foi uma região islâmica parada do tempo da sucessão – com a multiplicidade das crises
multilateral do mundo. Muitos dos prejuízos que ele causou ainda por muito tempo e, ali, judeus e cristãos viviam em paz, lado a lado. ecológicas, com a proliferação das ciências, com a emergência das
podem ter conserto, mas depois de oito anos será muito mais sério. controvérsias internas às ciências – ocorreu, simultaneamente, o
Não podemos dizer a um islamita fundamentalista que coloca uma
A grande pergunta é: como podemos nós, enquanto humanidade, momento da incerteza quanto à unidade dessa natureza.
bomba em algum lugar que aquela é uma expressão de legitimar a
reinventar conceitos de responsabilidade, de transparência e de diferença! O islã está repleto de pessoas que lutam para que sua À primeira fila dos porta-vozes da natureza chegaram representantes
democracia que correspondam à nossa era global? Seria necessário religião seja compatível com a decência humana, com igual valor que eram portadores de discórdias em seu próprio terreno – tanto os
um sistema de governança cosmopolita para abranger o local, o moral para todos, mais aberta a uma cultura democrática, com ecologistas quanto os políticos. Quando se começa a ter disputas
nacional, o regional e o global. liberdade de expressão, com mais autonomia para as mulheres – não sobre os vírus, as células-tronco, os OGM, as reservas petrolíferas, o
Afastamo-nos cada vez mais de um mundo de comunidades é uma cultura de bombas. Essas são lutas do islamismo, e não aquecimento global, os cânceres, a poluição etc., e quando esses
nacionais, no qual as nações decidem seu próprio destino, e somente do cristianismo ocidental. Há algo que deve ser dito ao novos representantes da natureza são, eles mesmos, submetidos a
caminhamos para o que chamo comunidades sobrepostas do destino, ativista da bomba, aos jovens revoltados, sejam eles judeus, em pressões econômicas ou políticas, a desordem é completa. A
nas quais o destino e a riqueza dos povos estão cada vez mais Israel, ou combatentes islâmicos, ou fundamentalistas cristãos nos unificação da natureza não é mais suficiente para obter uma versão
interligados – não apenas pelos eventuais grandes dramas, como o 11 Estados Unidos: não quero seu fundamentalismo tradicional porque estável do que é um cérebro, um fígado, um carro, uma doença. No
de setembro e suas conseqüências em termos de segurança. O ato de ele não permite reconhecer as diferenças, ou os valores que fundo, não há mais Globo, no sentido de Sloterdijk, onde todas essas
ir à loja da esquina comprar uma mercadoria está vinculado a um necessariamente diferenciam os direitos que todo mundo tem a uma diferenças poderiam ser situadas. Estamos diante de construções de
sistema de distribuição espalhado pelos quatro cantos do mundo. vida digna e existe uma única filosofia que permite, de modo não- mundos mais ou menos incompatíveis. Cada uma pode visar à
Significaria essa interligação de destino e riqueza, em suas várias coercitivo, a mediação dessas diferenças, que é a cultura democrática unidade, mas elas não a atingiram na primeira tentativa. Não se pode
dimensões da atividade humana, que ficaremos todos cosmopolitas? cosmopolita. simplificar a questão da unidade considerando que o problema já está
Seremos capazes de reconhecer nossa interconexão e partilhar mais resolvido. A partir disso, os cosmopolitanos retomam a grande
A filosofia política cosmopolita consiste num diálogo, e não num
valores em comum? As respostas estão em aberto. Pode ocorrer que tradição estóica, depois kantiana, que consiste em dizer: «nós,
monólogo; fundamentalmente, preocupa-se em assumir valores que
essa ordem global crescente venha a ser determinada em sua forma e habitantes das grandes cidades, os cosmopolitas em sentido próprio,
reconheçam a autonomia de cada ser humano. Não é uma filosofia
regras, em última instância, pelas forças do mercado global. A nós sabemos que as diferenças que nos separam são menos
imperialista. Não tem ambições territoriais. O cosmopolitismo aspira
ascensão do G1 poderá torná-lo um novo tipo de império. Vejo com importantes do que aquilo que nos une». Reivindicam um mundo
a encontrar meios de interconectar comunidades sobrepostas pelo
ceticismo ambas as hipóteses, embora possam vir a ocorrer. O mundo cujo equivalente, de certa forma, seria a UNESCO e que consiste em
destino. Não compreendemos a natureza do poder político através do
se tornou mais complexo, com um maior número de níveis, e o dizer: «todos os representantes dos diferentes saberes, das religiões,
Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX. No princípio, pensávamos que
controle não pode ser exercido como era nos tempos da Índia das nacionalidades, podem sentar-se em torno de uma mesa comum,
o poder político era forjado e formado por Deus, depois pensamos
colonial. sob o mesmo teto». É uma maneira aparentemente educada, mas, de
que seria pelo proletariado, em seguida as pessoas procuraram temas
fato, extremamente grosseira de conceber as diferenças.
Defendo a velha tradição cosmopolita do Iluminismo, que obedece a individuais. Não existem temas singulares e nunca existirão;
alguns princípios: igual compromisso entre custo e valor; igual valor existimos nós, com opiniões distintas, em combinações e Quando Isabelle Stengers reatualiza o termo «cosmopolítico», trata-
moral para todos os seres humanos; o conceito de que todo ser comunidades distintas, milhares de ativistas de direitos humanos e se, para ela, de tomar distância em relação a essa versão humanista
humano é capaz de ações empreendedoras, de escolher seu modo de organizações, na África do Sul, na América Latina, na China, lutando da política. É, aliás, uma versão que os próprios antropólogos
vida e, ao fazê-lo, agir de forma responsável enquanto seu agente; e diariamente para que suas vidas tenham direitos e para propagar empregam facilmente quando falam de «cosmologias diferentes», em
que deveríamos viver em sistemas políticos interligados por essas noções de responsabilidade a outros domínios da vida. que a palavra cosmologia perdeu, de certa forma, o caráter perigoso
consentimento, e não por coação. Os pontos em questão são: a de seu plural. Em geral, a visão modernista consiste em dizer que há
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
justiça social, o desenvolvimento sustentável e o meio ambiente. A um Cosmos interpretado por cosmologias que representam variações
ignorância desses temas fundamentais abre espaço para a ação de culturais diversas da natureza única. A variação é, então, novamente
outros; estes valores são interdependentes. superficial, pois decorre da representação humana e não do próprio
Cosmos.
Acredito que a globalização implantou alguns desses valores em
nossos atuais temas. Em certos aspectos, a globalização é aberta e A cosmopolítica hard, se ouso falar assim, em contraste com o
progressista. Com as lições tiradas do holocausto, o direito cosmopolitanismo soft, consiste em dizer o contrário: não há
internacional implantou valores cosmopolitas no centro de nossos unidade; no entanto, é necessário coabitar sem poder se decidir pelas
sistemas legais internacionais. Não partimos de zero, como nômades antigas facilidades da sucessão. Se nunca se foi moderno, a questão
cosmopolitas. Começamos como cidadãos cosmopolitas vinculados a da coabitação volta a se tornar crucial. Não há um fundo já
um sistema de leis e acordos que, formalmente, já são cosmopolitas. B RUNO LATOUR estabelecido que seria a natureza. Portanto, a questão é saber o que
O problema está em saber se tal sistema se pode tornar cosmopolita se faz com todos os elementos que podiam ser rejeitados no tempo
num sentido mais profundo e levar essas novas formas de poder da sucessão, em particular os deuses. Os primeiros pensam que os
BRUNO LATOUR É PROFESSOR NA ESCOLA DE MINAS , CENTRO DE SOCIOLOGIA DA INOVAÇÃO .
global a assumirem a responsabilidade... SEU PRIMEIRO LIVRO , LA VIE DE LABORATOIRE - 1979 - DESCREVE O FUNCIONAMENTO COTI - deuses são representações; os outros, como Tobbie Nathan,
DIANO DE UM LABORATÓRIO CALIFORNIANO UTILIZANDO MÉTODOS ETNOGRÁFICOS . DENTRE perguntam-se: o que fazer com os deuses quando eles estão em
Recuemos ao tempo das guerras religiosas na Europa, no final da SEUS INÚMEROS LIVROS , DESTACAM - SE : NOUS N ’ AVONS JAMAIS ÉTÉ MODERNES - ESSAI
D ’ ANTHROPOLOGIE SYMÉTRIQUE - 1991 - E POLITIQUES DE LA NATURE - COMMENT FAIRE
guerra? O que é a política, se é preciso fazê-la com seres que
Idade Média. Os grandes paladinos do poder político secular,
ENTRER LES SCIENCES EN DÉMOCRATIE . FOI CURADOR DA EXPOSIÇÃO I CONOCLASH , JUNTA - chegaram a um conflito tal e que têm vontades de unidade tão
Maquiavel, Hobbes, Locke etc., eram grandes personalidades MENTE COM PETER WEIBLE , NO ZKM DE KARLSRUHE . PREPARA , NO MESMO LOCAL , UMA
contraditórias?
românticas e utópicas em seu tempo e adotaram o conceito da OUTRA EXPOSIÇÃO COM O TÍTULO DE RENDRE LES CHOSES PUBLIQUES .

política separada da igreja, idéia que se tornara dominante por muito JCR _ O que o leva a dizer que se está no tempo do espaço, da
tempo. Atualmente, o cosmopolitismo é a filosofia política e moral de TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI coabitação e não mais no tempo do tempo ?

32
BL _ Foi a ecologia que nos ensinou isso. Vê-se, aliás, que os últimos tinha dele nos séculos XVII – XVIII. Nossa tarefa, agora, é reconstituir medidas mensurantes e experiências de coabitação. Nada no início é
modernistas consideram que a ecologia não é muito importante. O um habitat que esteja à altura do número de elementos diversos a comensurável nem incomensurável. É o que chamo de princípio de
retorno da ecologia significa incluir novamente o que havia sido reunir exatamente quando não há mais Globo. Os modernistas irreduções.
terceirizado. É o momento em que volta o que havia sido considerado nostálgicos vão dizer, é claro, que é necessário voltar ao Globo, sem
JCR _ Então o exercício político por excelência seria uma invenção
atividade secundária. Eu fui muito influenciado pelos parques do perceberem que é precisamente a partir do momento em que as
desses «cuidados» ?
Quênia que pertencem, tipicamente, a uma cosmopolítica: é preciso fotografias retrabalhadas da NASA nos permitem ver o mundo como
levar em conta, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da população unificado que se perdeu o olhar de Deus que era inteiramente BL _ É o que diz Sloterdijk em sua grande metáfora dos envelopes, da
queniana, dos leões, dos vegetais, dos pássaros, dos turistas partilhado ainda por Descartes, Newton, Rousseau, Marx e os estufa, do parque, mas há muitos meios de dizer isso. Eu o diria de
japoneses, dos credores do Banco Mundial, dos doadores das ONG, cibernéticos, e que nós temos que lidar somente com pontos de vista preferência nos termos de John Dewey e dos pragmáticos norte-
sem poder retirar nenhum desses «sujeitos». Estamos tratando de situados. americanos, mas isso dá no mesmo. Trata-se, de uma certa forma, de
diferenças de mundos. materializar novamente o discurso político.
Não há globo terrestre. Ele constituiu uma idéia geográfica muito
Penso que as crises ecológicas e as outras, digamos, o que foi poderosa no momento em que foi calculado. Porque isso é antes de A comissão de inquérito que se instala em torno de um gigantesco
chamado de fim da História (que foi um diagnóstico bastante correto tudo um espaço de cálculo. Segundo as relações de latitude e de quebra-cabeça reunido num hall para compreender o que aconteceu
quanto ao fato de que o tempo da sucessão era substituído por ou longitude, qualquer diferença é presumida como tendo seu lugar. à nave Columbia é um ser jurídico-político absolutamente estranho.
convertido em um outro tempo, o tempo do espaço); essas crises, Mas, agora, a questão é: «em que lugar colocam vocês as Essa reunião em volta de uma coisa não é realmente um Parlamento,
portanto, nos fizeram entrar sem dificuldades na segunda controvérsias científicas a respeito dos próprios fatos, por exemplo? mas tem todas as suas características. Se você pensar nas associações
globalização sem global e sem globo. Isso não quer dizer que a Em que lugar colocam vocês as controvérsias religiosas, as paixões que se criaram em torno da questão da AIDS, terá um outro exemplo
história parava. Mas uma quantidade impressionante de coisas não políticas?» Não há lugar predeterminado para tais diferenças. É essa de inventividade política a partir de um vírus, ele mesmo disputado,
podiam mais ser eliminadas. Não era mais possível se livrar do que a grande distância que se instaurou definitivamente com o Globo traçado, testado por biólogos. Trata-se de objetos cheios de risco. Não
se considerava atividades secundárias. metafísico que, do século XVII até o pós-II Guerra Mundial, foi o faltam exemplos dessas combinações, dessas assembléias esquisitas
horizonte comum dos modernistas. em torno de objetos híbridos.
JCR _ Fica claro que o termo pós-moderno não lhe parece adequado
para designar esse tempo do espaço. É evidente que a própria bola, o objeto geográfico, o globo terrestre JCR _ Será que isso quer dizer que há uma dificuldade, ou até uma

BL _O pós-modernismo é uma noção muito fluida que revelou, como flutua em algum lugar na atmosfera. Mas não unifica mais nada. Sua impossibilidade, para se imaginar algo que seria o elo comum entre

sintoma, a suspensão do tempo da sucessão. O que era muito útil. unidade não permite nada a ninguém. Ela não torna compatíveis os todos esses «cuidados»? O que você descreve consiste, a cada vez, em

Mas ele não aceitou, absolutamente, a dimensão realista de tal fanáticos que se fazem explodir nas ruas de Bagdá, as zebras que representações mentais precisas, localizadas, contextualizadas. Passa-

suspensão: a volta da objetividade que a acompanha, isto é, a correm no Quênia, ou os pedólogos que trabalham sobre as se de uma representação mental a outra sem ter verdadeiramente a

amplitude das tarefas políticas, científicas, artísticas, intelectuais que minhocas. A idéia dos modernistas é esta: há objetos de um lado e possibilidade de fazer a ligação entre elas.

acompanham a reconstrução de um mundo que não é mais unificado representações do outro, e as diferenças de representações, afinal,
BL _ O que você chama «fazer a ligação» pode ser, talvez, o cuidado.
de imediato e que, é claro, não é mais simplesmente diverso. não contam muito, pois o próprio objeto sempre acabará unificando-
os, num momento ou noutro, sem que se saiba aliás, com muita A noção de caso separado e incomensurável por ele mesmo vem de
JCR _ A querela sobre o universal estaria no centro dessa oposição exatidão, através de que operação o objeto unificador virá a fazer alguma forma da própria idéia de universal desenvolvida pelo
entre cosmopolitanismo e cosmopolítica? A disputa de interesses seria calarem as representações. Essa idéia poderosa dos modernistas, que modernismo. Mas não é absolutamente evidente que a modernização
uma redefinição do universal ? tem uma eficácia política extraordinária, pois unifica tudo por seja a única forma de fazer política. Há muitas outras tradições, como
antecipação, não existe. Se ainda se vivesse sob a abóbada do Globo, a chinesa, da qual fala François Jullien. Penso também em todas as
BL _ Não. Penso que o universal, enquanto horizonte comum, é
evidentemente não haveria grandes problemas. O tempo da sucessão grandes noções desenvolvidas por Dewey e que, precisamente,
partilhado pelos dois lados. Nós herdamos o universal, é claro. implicam a noção de ad hoc. Há, com certeza, muitas outras
continuaria a fazer sua obra: em algum momento, as diferenças de
Porém, a questão fundamental é saber se ele já está realizado ou não. casuísticas. É uma evidência empírica: não temos a mesma ligação
interpretação iriam atenuando-se ou fariam emergir, por trás de suas
O que é irritante naquilo que Isabelle Stengers chama de «caráter com os objetos conforme se fale do Iraque, da AIDS ou da poluição –
interpretações, o objeto indiscutível que não se submete a nenhuma
intolerante do universal» é, precisamente, que ele é considerado as reações, as atitudes, os modos de indignação e as eventualidades
interpretação, que nos livra de todas elas. É a idéia política (insisto,
como um dado. O trabalhado já está realizado. A questão que divide de solução são completamente diferentes. Mas essas diferenças não
é uma idéia política e não científica), partilhada tanto à esquerda
os cosmopolitas não é a recusa do universal como horizonte mas, são levadas em conta por uma definição generalista da paixão
quanto à direita, segundo a qual a verdade científica acaba se
sim, a questão de saber como se pode levar a sério qualquer política.
impondo por si mesma.
mensuração das tarefas vindouras para atingir o universal.
Nada disso é novo mas, para ser mais preciso, é: de novo presente. O
Existe, é claro, o inverso dessa posição sob a forma de um elogio das
Trata-se de chegar a criar o espaço onde todos os cosmos partilham afresco de Lorenzetti em Siena sobre o bom e o mau governo é um
multiplicidades, das diferenças, dos pontos de vista: é o pós-
uma mesma sociedade sem ter os mesmos corpos, a mesma perfeito cosmograma. Por um lado, há emblemas magníficos, mas há
modernismo mais simplista. Mas é apenas o inverso da mesma
concepção de natureza – sendo, portanto, multinaturalista no sentido também, o que se esquece com muita freqüência, paisagens, cidades,
posição. Ora, se hoje o Globo desapareceu, é porque, entre
técnico conferido a essa palavra por Viveiros de Castro. O espaço comércios, danças, assassinatos. De certo modo, é uma pesquisa
muitíssimas outras razões, as ciências da terra, há trinta anos,
político-artístico-intelectual, que permite fazer essas diferenças experimental cautelosa sobre os acordos e os desacordos possíveis
renovaram inteiramente esse objeto que se encontra engajado numa
coabitarem, ainda precisa ser inventado. Tomemos os chineses, não entre os seres que têm exigências contraditórias mas que não sabem
quantidade enorme de disciplinas diferentes. Atualmente, é preciso
os verdadeiros chineses mas aqueles que os franceses aprendem a a que grau de contradição devem chegar.
fazer manter-se junto o que nos dizem os cartógrafos, os geógrafos,
respeitar graças a François Jullien. Segundo ele, os chineses não são
a física do solo, os astrônomos e seus modelos; ora, cada um já tinha, É isso que se chama diplomacia. O diplomata não sabe o que é
diferentes e, sim, são indiferentes às nossas diferenças. Trata-se de
em sua própria disciplina, muita dificuldade para ser unificado. É incomensurável, sem isso não haveria diplomacia pensável. Ele
um bom exemplo de cosmopolítica! Se é preciso coabitar com
preciso não se enganar a respeito dessa questão de pontos de vista explora tipos de decalagens entre o incomensurável e o mensurável,
pessoas que são indiferentes às nossas diferenças, isso não é a
múltiplos. O objeto «globo terrestre», como o corpo humano, tem de modo que é absolutamente possível mudar durante o processo o
mesma coisa que dever considerá-los como humanos que têm, como
muitas interpretações diferentes porque é um objeto muito complexo que é incomensurável, inaceitável, insuportável. A política é o
todos os outros, assento na UNESCO simplesmente sob um ângulo
que não que não é absolutamente unificado. A multiplicidade dos domínio da compossibilidade. Isso é evidente desde que se passou do
um pouco em decalagem em relação aos demais. O trabalho da
pontos de vista não decorre de uma fragilidade de nossas mundo do tempo ao mundo do espaço. Mas não se sabe o que é
política seria conter no mesmo envelope artificial, na mesma Biosfera
interpretações sucessivas, mas da riqueza do próprio objeto. É por coabitar. Somos muito mal preparados para essa questão pela cultura
2, espécies tão diferentes como chineses, índios da Amazônia,
ser muito complexo que ele gera tantos pontos de vista sobre si. Essa política que adquirimos durante o tempo da sucessão quando, por
católicos romanos etc. Isso vai muito além do simples relativismo. A
complexidade é um elogio ao objeto e não um elogio às exemplo, se presumia que a luta de classes faria desaparecer a
política é a arte de fazer coabitarem juntas, nessa imensa estufa que
subjetividades que o olham de fora. O fim da controvérsia, o religião, a ideologia etc. Antes, a política era fácil pois, de direita
é o «parque humano», para retomar a expressão de Sloterdijk,
momento da reunificação não pode mais vir da emergência repentina como de esquerda, era sempre, no fundo, revolucionária. Ela
espécies que têm exigências de sobrevivência muito diferentes, que
do objeto, ao lado das interpretações, a qual faria calarem as declarava obsoleto tudo o que não podia absorver. Mas, quando você
requerem um regime muito particular de cuidados e de técnicas. É
interpretações. não pode mais se livrar de nada, nem de uma única espécie animal,
fazer com que as questões de solo e de sangue, que desempenharam
um papel tão nefasto na história política, voltem não mais enquanto nem de uma cultura estrangeira, nem de nenhuma religião e quando
O grande Globo metafísico, ao contrário, correspondia à idéia de que
obsessão reacionária, mas enquanto questão ecológica de base para tudo voltou a tornar contemporâneo, é necessário pensar as
alguém, um Soberano, iria vir a qualquer momento fazer calar a mul-
realizar «a atmosfera do bom governo», a ecologia do bom governo. condições da coabitação. A acusação de reacionário ou de
tiplicidade de vozes. Donde a importância, em todas as arquiteturas
progressista cai muito freqüentemente no vazio por causa disso. Os
dos palácios, da figura do domo. A natureza é um modelo de silêncio
Como mostrou o antropólogo Philippe Descola, a própria natureza modernos nunca foram contemporâneos deles mesmos. Tornar-se
e de consentimento político organizado a partir de uma arquitetura
deu uma virada. Os naturalistas que acreditavam que a natureza nos contemporâneo de um mundo onde tudo é contemporâneo não é a
muito particular, como mostra o famoso projeto do túmulo de
unificava através da parte «material» de nosso ser, ao passo que a mesma coisa que estar na vanguarda de um mundo modernizador em
Newton por Boullée. Essa assembléia desapareceu. Então, em que
parte «espiritual» seria variável, confirmaram não ser senão uma das que uma parte é considerada hipercontemporânea e a outra,
assembléia estamos nós agora? É o que precisamos descobrir.
quatro maneiras possíveis de representar a relação do homem com a arcaica...
natureza na história da Humanidade. A questão não é a incomensurabilidade dos pontos de vista, o que só
Um cosmograma é uma seleção transversal de diferenças
levaria, no fundo, a um relativismo ingênuo. Esquece-se disso com
JCR _ Exatamente no momento em que se fala mais do que nunca de representadas ou retomadas pela idéia de um mundo «bom». Em
freqüência, mas na palavra ‘incomensurável’ existe a palavra
mundialização e de globalização é que aparece a constatação do minha opinião, só se pode falar de cosmograma a partir do momento
‘medida’; ora, antes da instalação dos instrumentos e das cadeias de
deslocamento do cosmo como unidade natural. Isso não é paradoxal ? em que se trata de fazer um mundo bom comum. É uma exigência
medida, tudo, por definição, é incomensurável, mas não depois. A
que se herda quando se foi moderno em algum momento. A idéia da
BL _ É estranho mas não é um paradoxo: antes, tinha-se o globo e não comensurabilidade é o objeto da metrologia que é a ciência daquilo
coabitação supõe que é importante fazer um mundo, ir rumo a um
a globalização, agora se tem a globalização mas não se tem mais que permite justamente tornar comuns as medidas, a capacidade de
horizonte futuro. Minha maneira de herdar do Iluminismo é
senão blogs! O globo existia, com a geometria de Mercator, quando a partilhar as medidas. Para retomar a metáfora de Sloterdijk, um
considerar que a questão do mundo bom comum é ainda muito
globalização mal começava. Quando se começou a ver imagens da coqueiro nas estufas do Jardin des Plantes não é, no início, nem
importante em oposição à simples aceitação das diferenças puras, a
terra, tomadas por satélite a partir da estratosfera, perdeu-se o Globo comensurável nem incomensurável com Paris. Isso requer,
qual consiste numa forma de simplificar a coabitação.
– é o tema do livro Sphère 2 de Sloterdijk – que tinha a vantagem de simplesmente, um cuidado especial que torna explícita uma
unificar tudo, como as grandes arquiteturas de Boullée no século multiplicidade de experiências sobre o que são coabitações aceitáveis Em outros termos, formar o mundo bom comum é colocar a questão
XVIII. O satélite deu-nos um ponto de vista situado, um ponto de ou não. Não se trata, pois, justamente, de se comprazer nos pontos prática do cosmograma, é interessar-se pelas diferenças que buscam
vista particular. Em outros termos, o global tornou-se, hoje, um de vista incomensuráveis, mas de pagar o preço da definição de uma o que elas têm em comum. Os cosmogramas equivalem a questões
objeto de disputa entre pontos de vista. Perdeu a evidência que se medida comum. Eu diria que sou mais relacionista que relativista. Há práticas de arquitetos, de engenheiros, questões de cuidados. É a

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questão de saber qual é o mundo que é compossível, tendo presente Inicialmente não se tratava, para mim, de elaborar uma teoria da uma filosofia do espaço. Que sentido você dá a esse privilégio
que não se pode calcular, que se vai reunir. O cosmograma só tem globalização político-econômica ou um resumo da função concedido ao espaço? De que forma é ele uma característica essencial
sentido quando a questão do mundo que deve ser feito, quando o cosmológica do pensamento. Eu queria descrever o que chamava aos nossos tempos de hoje ?
preço da composição não é simplificada. Para mim, o cosmograma relações fortes entre as pessoas e a construção do espaço de
PS _ Para Kant, o espaço é definido como a condição de possibilidade
não designa uma bolha: é um conceito político que retoma a questão ressonância em que vivem os enamorados e os criadores. O ponto de
do ser – o conjunto dos corpos –, o que também implica sempre a
da composição. É um elemento que habita a metalinguagem daqueles partida de minha análise era a suposição da existência de uma
faculdade de separá-los. A principal virtude do espaço é seu poder de
que descrevem o que é se reunir quando a natureza desapareceu. natureza psicanalítica relativamente próxima a algumas das idéias
criar uma distância entre os corpos. Ora, os modernos meios de
propostas por Jacques Lacan. Para se poder falar do que realmente
Para voltar ao início, a definição mesma do espaço é a série de transporte têm por principal virtude eliminar as distâncias, inclusive
são os seres humanos, é preciso penetrar naquela camada ilusória do
simultaneidades. Caso você faça com que alguns seres explicitem a os oceanos que Deus, em sua sabedoria, criou entre as tribos da raça
individualismo metafísico e psicológico do pensamento cotidiano.
lista dos outros seres com quem eles podem ou não podem viver, humana. Os meios de comunicação de massa são ainda mais
Para compreender a dinâmica do espaço de um casal, é necessário
você define um cosmograma, uma série de simultaneidades e, eficientes que os meios de transporte rápidos, pois têm o poder de
compreender que os seres humanos estão sempre, por assim dizer,
portanto, um espaço. O problema é que, agora que o tempo do tempo reunir os sistemas nervosos dos habitantes num espaço coerente.
imbricados uns nos outros. A hipótese de que partia em meu trabalho
acabou, não se sabe mais em que espaço a gente se encontra. Sabe- Têm a capacidade de sincronizar as consciências numa semi-esfera
era a de que as almas são entidades possuídas e possuidoras. A esfera
se que não se está mais no tempo do tempo, mas isso não esclarece muito grande, uma coisa prodigiosa, quando se pensa que desde a
existencial primordial se cria a cada momento em que o espaço
muito sobre o tipo de espaço que se habita. O desaparecimento do Antiguidade essa capacidade se limitava ao alcance da voz humana.
interpsíquico se concretiza. Ser possuído significa ter a capacidade de
Globo metafísico suprimiu também a noção de escala. Também a Com o advento da imprensa escrita, observa-se o fenômeno de uma
receber visitantes sutis. A psique tem esse estranho dom de ouvir o
escala deve ser inventada. Pode-se classificar os seres por ordem de sincronização concreta das consciências distribuídas no espaço. Com
que dizem os outros e a audição é a porta de acesso à possessão pelo
importância. O grande erro dos ecologistas foi ter acreditado que, as telecomunicações, já nem é preciso viajar pessoalmente para se
outro. Para Lacan, seria mais a visão no espelho de sua própria
fazendo apelo à Natureza, com um N maiúsculo, se iria classificar os estar em contato com alguém da outra margem. Praticamente todas
silhueta que está na origem da ilusão que a criança faz de si mesma.
seres por ordem de importância. Isso foi um desastre porque, o Globo as margens se tornaram disponíveis e acessíveis de modo
Em conseqüência disto, viveríamos permanentemente um duplo
não existindo mais, a Natureza é o ser político mais contestado que instantâneo. A telecomunicação é a faculdade racional de freqüentar
encantamento: o dos que nos falam – pois ouvir é abrir-se ao encanto
existe, ou seja, tudo, tudo exceto um princípio de classificação qualquer lugar do mundo. Tudo isso contribui para uma
pela voz do outro – e o da confusão constitutiva do eu, que ocorre no
indiscutível dos seres. neutralização do espaço.
momento em que, para meu próprio bem, me confundo com essa
Sei que isso choca muita gente, políticos e cientistas, porque eles bela e coerente entidade que reflete minha imagem no espelho; essa JCR _ Vivemos hoje, como nunca antes, a hora do espaço –
permanecem no tempo do tempo do tempo e não vêem como se maravilhosa ilusão ortopédica que cria a possibilidade de me principalmente graças aos fenômenos que você descreve, como a
adequar ao tempo do espaço. Em termos gerais, a querela gira em transformar de ser dividido em imagem completa. Se consultasse telepresença e as telecomunicações. E, no entanto, você fala do
torno da noção de progresso. Contrariamente ao que os minha intuição primária no que se refere à minha condição de ser desaparecimento do espaço. Não seria isso um paradoxo ?
pesquisadores cientistas continuam acreditando, as ciências vivo projetado num mundo incerto, a informação talvez fosse a de
dispensarão muito bem a noção de progresso que só apareceu em que sou algo inteiramente dividido e fragmentado – e a única questão PS _ Acho que não. O espaço de que hoje tanto se fala já é o espaço

alguns momentos do século XIX e no século XX, durante o pós- que sobraria seria a de saber em quantos fragmentos. Aliás, a idéia neutralizado e homogeneizado. Dominar o espaço significa eliminar
guerra.. Há muitas outras maneiras de satisfazer a capacidade de de Lacan do nascimento da coerência individual a partir da ilusão sua função separadora e utilizar exclusivamente sua condutividade.
invenção e de exploração dos cientistas e dos engenheiros. Pode-se, icônica que projeta minha imagem no espelho é insustentável, do Mudar o curso do mundo significa, na realidade, mudar
por exemplo, reutilizar a noção numa perspectiva não moderna para ponto de vista da evolução psíquica, pois cada indivíduo recebe principalmente o funcionamento de seus elementos separadores. Para
falar da capacidade de coabitar com seres cada vez mais numerosos informações sobre sua unidade e sua coerência, enquanto ser vivo, a os Antigos, viver no mundo físico significava esbarrar nas coisas que
e cujas capacidades de preocupação e o cuidado que é necessário partir de outras fontes anteriores à da imagem no espelho. nos separam. Um corpo é sempre um objeto situado a meio-caminho
tomar para fazê-los coabitar aumentam. Isso também é progredir - na de outro corpo e nos tempos antigos isso significava, principalmente,
A microesferologia começa como teoria do espaço animado submeter-se à predominância de corpos-obstáculos. Ora, as
pesquisa, na atenção, no cuidado. É necessário colocar na questão da
partilhado; fala da possessão recíproca que cria um espaço bipolar ou modernas telecomunicações possuem essa faculdade mágica de
coabitação a mesma energia que foi colocada na noção de progresso,
pluripolar que, diariamente, chamamos o casal (ou o grupo eliminar os obstáculos ou, mais precisamente, superar ou contornar
tal como fora compreendida no tempo da sucessão. Embora as duas
primário). O primeiro volume de Sphères (Esferas), intitulado Bulles os corpos separadores que existem entre você e eu.
noções pareçam ser muito diferentes – uma ‘progressista’ e a outra
(Bolhas), é, portanto, uma teoria geral das estruturas que permitem
‘reacionária’ – eu creio que fazer manterem-se juntos seres
acasalamentos. Esse livro deveria ter sido escrito numa espécie de Quem sabe contornar os obstáculos entra para o tempo histórico.
contraditórios continua sendo um horizonte que pode permitir definir
língua estrangeira, pois estou convencido de que nenhuma das Poderia dizer-se que a História consiste na totalidade de operações
uma flecha do tempo. Uma flecha do tempo que vai rumo ao espaço
chamadas línguas maternas permite um discurso suficientemente que tinham que ser feitas para vencer o efeito separador dos corpos.
da coabitação e não mais rumo ao tempo da sucessão.
radical sobre a relação profunda de que nascemos. A voz pela qual É o que Marx e Engels notaram no Manifesto Comunista, ao dizerem
posso contar minha arqui-história, aquela que precedeu a aquisição que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Conseqüentemente, a
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
da linguagem, não é exatamente a língua materna. Por quê? Porque a História deveria parar a partir do momento em que não existissem
língua que sua mãe lhe ensina é aquela que torna impossível sua mais obstáculos cruciais a transpor. Esse é um dos motivos pelos
relação com ela. A língua materna é a língua mutilada que separa o quais alguns pensadores sérios do século XIX propuseram interpretar
vocabulário trágico da relação profunda. Em minha opinião, também a era atual como um tempo pós-histórico, um tempo em que o projeto
seria necessário insistir intensamente nesse domínio oculto porque as da História terminou, na medida em que todos os obstáculos que
raízes da ilusão individualista se escondem nas lacunas da língua impediam que o mundo fosse conectado em rede foram, por
materna. A esferologia, enquanto crítica radical do individualismo, princípio, eliminados.
constitui um esforço para construir uma linguagem que possa
É importante que fique bem claro o sentido da palavra “História”. Se
preencher as lacunas das chamadas línguas naturais.
qualquer coisa que acontece em qualquer lugar, em qualquer época,

P ETER S LOTERDJIK A “atmosfera” que envolve a bola em que vivemos é a única das
esferas cósmicas de que falavam os Antigos que guardou algum
deve ser chamada um acontecimento “histórico”, então, com certeza,
jamais saímos do reino da História, pois o homem sempre vive no
significado para os modernos. Essa palavra (literalmente, “bola de ritmo dos acontecimentos, sejam eles seriais ou catastróficos. Mas se
PETER SLOTERDIJK , FILÓSOFO , NASCIDO EM 1947 , É REITOR DA HOCHSCHULE FÜR vapor”) designa a camada gasosa que envolve a Terra sólida e faz tomarmos uma definição mais restrita do termo “História”, será
GESTALTUNG DE KARLSRUHE . PUBLICOU MUITAS OBRAS , ENTRE AS QUAIS A IMPORTANTE
com que sejamos todos “alunos do ar”, para retomar a bela expressão inevitavelmente necessário falar de um fim da História.
TRILOGIA BULLES , SPHÈRES I , GLOBES , SPHÈRES II , ÉCUMES , SPHÈRES III , ORIGINALMENTE
PELA EDITORA SURHKAMPF , FRANKFURT , MAIN , NO FINAL DA DÉCADA DE 90 . de Johann Gottfried Herder. Segundo esse pensador, partilhamos com Considerando-se – como eu proponho – que a História real é o
todos os outros seres vivos o destino de sermos criados pelo ar. O ar processo no qual foi criado o sistema mundial, então não há senão
é o senhor absoluto que nos dá um ensinamento constitutivo e um único episódio realmente histórico: é o trajeto que tem início em
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
infinitamente discreto. Nunca fala, mas tudo concede e torna meados do século XV, com a conquista do oceano pelos navegadores
possíveis as coisas. Aliás, os povos antigos possuíam teologias do portugueses e a primeira viagem de Cristóvão Colombo, para ter seu
WIEN _ 16 DE OUTUBRO DE 2004 vento que, às vezes, se revelaram mais inteligentes do que a ponto culminante em meados do século XX, com a criação de um
meteorologia moderna. Era um tesouro que permitia aos seres sistema mundial pós-colonial tendo como referência, de um lado, a
humanos se conscientizarem de que sempre estão imersos em alguma emergência de um sistema monetário global – pense nos famosos

J coisa quase imperceptível e, no entanto, absolutamente real, e que acordos de Bretton Woods, redigidos em 1944 – e, de outro, o
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX_ Existe algum vínculo entre a evidência
esse espaço de imersão domina as mudanças de nossos estados de processo de descolonização da década de 50. O último capítulo dessa
contemporânea da globalização e sua teoria das esferas? A questão do
espírito – até as alterações mais íntimas. A aeração é o segredo série de acontecimentos concretizou-se em 1974, com a saída dos
globo e do global corresponderia afinal, em nosso contexto atual, ao
profundo da existência. portugueses de suas possessões ultramarinas após a famosa
momento político dessa ciência que você chama esferologia ?
Revolução dos Cravos. Portanto, a História, no sentido exato do
Seria necessário voltar a contar toda a história de nossa relação,
PETER SLOTERDJIK _ O vínculo existe, mas é, antes de tudo, de termo, vai de 1492 a 1974. Uma questão, na verdade, bastante
fundamentalmente modificada, com esse invólucro atmosférico. Para
natureza mais indireta. Em minha opinião, a atual globalização – ibérica, pois os portugueses foram os primeiros a tornar os oceanos
começar, escolhi a mais insuportável das histórias: a da guerra do
eletrônica e telemática – já representa a terceira onda da verdadeira navegáveis e os últimos a deixar suas colônias.
gás, iniciada em abril de 1915 durante a I Guerra Mundial. Sabe-se
globalização; é a última etapa de um processo que começou na época
que, no front de Ypres, as tropas alemãs empregaram pela primeira JCR _ Em outras palavras, você diz que a perfeição da globalização
da cosmologia filosófica, dos gregos, e seus atuais vetores são a
vez uma artilharia de gás clorado contra as posições francesas. Foi moderna, no século XX, equivale ao fim da História.
velocidade da circulação e a telecomunicação ultra-rápida.
uma ruptura histórica, pois abriu caminho para a manipulação
Paralelamente, ela representa o produto de uma decepção radical, PS _ Pode se definir o fim da História por dois critérios: o primeiro
destrutiva do meio ambiente. A verdadeira descoberta do meio
através da qual os seres humanos tiveram que abandonar o privilégio diz respeito ao conteúdo e duração do processo, enquanto o segundo
ambiente ocorreu nas trincheiras da I Guerra Mundial, com a guerra
de viver num autêntico cosmos – ou seja, um mundo fechado e analisa seu estilo de ação. O conteúdo da História, portanto, como
do gás. Esse tipo de guerra não mata por meio de tiros diretos, mas
acolhedor. O cosmos, tal como os gregos o concebiam, era a acabamos de dizer, é a criação do sistema mundial – e seu fim
destruindo o meio ambiente de que o inimigo necessita para
totalidade do que existia imaginada sob a forma de uma grande bola substancial seria atingido, conseqüentemente, no momento em que
sobreviver. A arte de matar a partir do meio ambiente é uma das
perfeitamente simétrica. Aristóteles e seus sucessores foram os esse sistema tivesse sido estabelecido. Quem poderia negar que isso
idéias brilhantes da civilização moderna. Contém o núcleo do terror
responsáveis por essa idéia do cosmos composto por esferas celestes é um fato consumado? Por outro lado, do ponto de vista da teoria da
contemporâneo: não mais atacar o corpo do adversário isolado, mas
concêntricas, de diâmetros cada vez maiores e que, em sua maioria, ação, a História seria a fase bem-sucedida do unilateralismo. O estilo
o corpo em seu Umwelt (no invólucro do mundo).
seriam constituídas por uma matéria hipotética que era chamada éter. de ação unilateral é o modus operandi adotado pelos europeus do
É evidente que, para nós, esse modelo passou a ser irrelevante. JCR _ Então, sua trilogia das esferas deve ser lida, antes de tudo, como período crítico: digamos, de Cristóvão Colombo a Adolf Hitler. Os

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aventureiros da globalização terrestre foram testemunhas, entre 1492 JCR _ Na tradição fenomenológica, especialmente com Husserl, aquilo tranqüilizar-se imaginando um invólucro divino em sua volta. Por
e 1945, dessa inquietante capacidade que possuíam os europeus de que você chama co-pertencimento, ou reciprocidade de pertencimento outro lado, alguns pensadores, entre os quais e principalmente Kant,
produzir idéias e homens impregnados com as tintas do entre o ser vivo e seu ambiente, chama-se “mundo”. Seria esse acharam aquilo tão desanimador que quiseram eliminar a idéia de
unilateralismo. Atualmente, fomos expulsos desse paraíso dos “mundo” da tradição fenomenológica o que você chama “esfera”? um Deus espacializado que teria a capacidade de nos envolver. Para
conquistadores em que era prometida a salvação a quem agisse Seriam esses termos equivalentes um ao outro ? Kant, essa perda do invólucro divino transformou-se numa condição
primeiro. O que chamamos História corresponde exatamente a esse que possibilitava nossa autonomia. Kant, que evitava o conceito de
período em que o êxito se obtinha sem que fossem questionados os PS_ Entre os estudiosos atuais dos meios de comunicação circula maternidade, recusou veementemente a idéia de um ventre divino
meios ou a reação das vítimas. Se a História terminou, é porque uma frase que resume a sabedoria dessa nova disciplina: “O formato dentro do qual nos encontraríamos durante toda nossa existência – e
entramos numa época dominada pela descoberta dos efeitos é a mensagem.” Não é, portanto, o meio que é a mensagem, como essa rejeição foi o gesto primordial da modernidade. É precisamente
secundários e retroativos. O futuro pertence à preocupação com pensava McLuhan, e sim o formato. Na terminologia dos radialistas, essa a vontade de negar qualquer relação entre conteúdo e recipiente.
relações mútuas e reciprocidades. Um mundo em rede é um formato é um tipo de programa. Num plano mais geral, um Infelizmente, esse gesto salutar implica a necessidade de não
necessariamente estruturado pela lógica da multipolaridade e por um formato é um padrão, uma dimensão, uma escala. O principal erro da aprender essa infra-linguagem que tornaria expressiva a continuidade
feed-back mais ou menos imediato para cada iniciativa tomada. A fenomenologia foi mergulhar o indivíduo de uma maneira demasiado de nosso saber existencial. Se fôssemos dotados de uma língua
principal prova para validar a tese segundo a qual a História, em sua direta numa piscina universal chamada “mundo”. Ora, o mundo é um suficientemente radical, teríamos condições de contar nossa própria
definição exata, já deu o que tinha que dar, consiste no fato de que, formato impossível. Se o homem é um peixinho, ter o mundo como história ab ovo. Seria possível articular a presença perdida de alguma
desde o fim da II Guerra Mundial, só se julga o passado. piscina é simplesmente superdimensionado. “Ser no mundo”, como coisa que não era uma pessoa, nem simplesmente um órgão – esse
dizia Heidegger, é, com certeza, uma fórmula estimulante quando se gêmeo que nos acompanhou até o momento do nascimento e nos
JCR _ E o que vem depois da História ? trata de exprimir o caráter extático de nosso ser em relação às coisas. deixou por motivos ignorados. O moderno autonomismo, essa atitude
É uma fórmula preciosa para expressar que o fato de estar num quase kantiana que se tornou a atitude de todo mundo, estimula a
PS _ Ao encerramento da História, segue-se o que existia antes da
movimento de extraversão em relação às coisas precede sempre nossa vontade de não aprender essa infra-linguagem. Às vezes, as pessoas
História, o reino das séries e das rotinas interrompido por micro e
reflexividade – é esse o pathos filosófico da fórmula “ser no mundo”. fingem praticar a psicanálise justamente para não falar “disso”. Seria
macrocatástrofes. Entra-se para o domínio daquilo que os
Mas eu queria mostrar que o mesmo êxtase se reproduz numa escala possível dizer que colocam a terapia a serviço da doença – como se
historiadores de longo curso sempre consideraram seu verdadeiro
menor a partir do momento em que um recém-nascido entre em coloca, às vezes, a pesquisa a serviço da recusa de encontrar. Esse é,
objetivo. Portanto, não há uma única História que conta o advento do
contato com um brinquedo que alguém pendura em frente de seus aliás, o cerne da polêmica que Lacan lançou contra a americanização
sistema mundial e a etapa bem-sucedida do unilateralismo.
olhos, no berço. O brinquedo já possui essa capacidade de envolver da psicanálise. Para ele, o americanismo psicológico remete à vontade
Paralelamente a essa grande narrativa, temos, evidentemente, a outra
num êxtase existencial o recém-nascido. E basta isso para garantir de nunca aprender a linguagem da pré-subjetividade – essa
maneira de administrar as questões temporais estudando as irmãs
uma primeira abertura em direção ao mundo. A abertura também é, imbricação primordial entre o psiquismo do outro e o meu – erigindo
gêmeas que são as séries e as catástrofes. Num momento em que o
simultaneamente, uma concentração e essa concentração possui, o eu como um bloco indivisível em seu próprio espaço. “I need my
historicismo forçado do século XX deu o que tinha a dar, há a
necessariamente, as qualidades de um relativo fechamento – own space.”
liberdade de redescobrir que a existência humana, assim como a
fechamento que prevê uma reabertura. O “ser-numa-esfera” é
maioria dos processos que nos dizem respeito, está enraizada numa JCR _ De certa maneira, você diz que as esferas cósmicas se
exatamente esse movimento. É o eks-tase formatado graças ao qual é
espacialidade insuperável. Era minha ambição elaborar os elementos evaporaram. Conseqüentemente, seria necessário reconstituir uma
possível estar fora de seu eu, mas nunca, imediatamente, no Todo. Na
de um vocabulário do espaço suficientemente complexo para relação entre conteúdo e recipiente – o que leva a pensar que, afinal,
verdade, os seres humanos não são existências nuas num êxtase
descrever o espaço sistêmico e o espaço existencial. O espaço deveríamos reconstituir a segurança existencial de nossa vida pré-
global. Em torno de nós, dispomos sempre de vários objetos,
sistêmico é aquele criado pelas operações dos grandes sistemas natal por outros meios. Por que, então, a moderna conquista da
referências que se divisam num horizonte, mas a abertura do
políticos, administrativos, econômicos etc. Os espaços existenciais, autonomia se tornou atualmente um peso, uma humilhação ?
horizonte também não deveria nunca esconder a possibilidade de um
por seu lado, são as esferas que só existem na medida em que são
fechamento relativo. O horizonte é um círculo aberto que me garante
ativadas por seus habitantes. O espaço interpessoal é criado pelas PS _ No livro Sphères III (Esferas III), descrevo uma espécie de
que vivo numa espécie de interior extático. É um baú semi-aberto. E
ressonâncias de que eu falava inicialmente, em termos de possessões curriculum vitae do homem solteiro moderno, o qual demonstra uma
essa meia abertura pode se exprimir de maneira mais convincente,
recíprocas. vontade de morar sozinho em seu apartamento. Com bastante
em minha opinião, num discurso esferológico do que numa
freqüência não se trata de uma situação involuntária, e sim de uma
JCR _ Poderia dizer, então, que essa esferologia que você vem tentando linguagem fenomenológica – na qual se fala de forma demasiado
solidão desejada. Tento mostrar como a forma dominante da maneira
criar equivale a uma revisão do conceito de espaço capaz de abrir a rápida dessa coisa superdimensionada que seria o “mundo”.
moderna de residir corresponde a uma forma de subjetividade em
possibilidade de uma relação mais satisfatória com a totalidade aos JCR _ Em outras palavras, uma esfera é um mundo relativo e jamais que o indivíduo aprendeu a criar um casal consigo mesmo. Deixa de
seres humanos ? se vive no mundo absoluto. ser necessário um Outro real para formar o casal. A estrutura do casal
é tão ampla e flexível que não existem normas capazes de definir
PS _ Se o século XIX e a primeira metade do século XX foram, PS _ Uma esfera é um mundo formatado por seus habitantes. É por
quantas pessoas reais são necessárias para formá-lo. Pode ser
principalmente, uma época de narrativas sobre a consciência infeliz esse motivo que, em meu livro, falo extensivamente das ilhas. As
formado por duas, naturalmente, mas também pode ser formado por
em busca de sua libertação, atualmente vivemos numa época em que ilhas são autênticos modelos de mundos no mundo. São atalhos do
várias. Às vezes, é formado por relações paradoxais com parceiros
uma consciência mais ou menos satisfeita e luxuosa está em vias de mundo, como dizia Bernardin de Saint-Pierre, o ensaísta francês do
ausentes, como provam as relações dos místicos com Deus ou casais
aprender a arte de organizar seu espaço. O homem moderno é uma século XIX. Para mim, os seres humanos são, antes de tudo e
de enamorados que estão separados. Até existe a relação diádica
espécie de “curador” – um termo que, na verdade, não existe em necessariamente, habitantes de ilhas.
entre a alma do nacionalista e sua nação, parceira impossível e
francês –, ou seja, uma pessoa responsável pela exposição do espaço
JCR _ Aquilo que você descreve como advento do espaço, após o fim da pseudo-concreta na medida em que o nacionalista ferrenho pode
em que ela própria vive. Cada pessoa se tornou um curador de
História, caracteriza-se por um espaço impossível de ser concebido imaginar ser o filho predileto de uma mãe que pede e aceita o
museu. Criar sua própria instalação consiste, por assim dizer, numa
como uma esfera global comum. O espaço da globalização já não sacrifício de seus filhos. A estrutura diádica é tão forte e rica em suas
metaprofissão que todo mundo é obrigado a exercer. A inocência do
funciona como um cosmos. Parece-me que a tese central de sua idéia variações que tolera todo tipo de relações simétricas e assimétricas.
habitat tradicional perdeu-se de uma vez por todas. Após a destruição
é a de dizer que o cosmos, enquanto monosfera – ou seja, enquanto Entretanto, o que parece ainda mais absurdo, a relação de casal pode
concreta de tantas coisas e a prova da destrutibilidade de qualquer
espaço passível de criar uma moradia para o gênero humano em sua ser criada pelo indivíduo solitário, numa relação consigo mesmo. É
coisa, cada pessoa, de qualquer apartamento, de qualquer cidade, de
globalidade –, desapareceu ou se transformou de tal maneira que já preciso constatar que a individualidade moderna, apoiada num
qualquer país, tornou-se – ou foi forçada a se tornar – uma espécie
não pode preencher a função de inclusão total. complexo ambiente de mídia que permite auto-referências múltiplas
de comissário, responsável por seu lugar. A Declaração dos Direitos
e permanentes, já foi elaborada de forma a que o indivíduo encarne
Humanos deveria ser reformulada, em termos topológicos, para
PS _ Se assim não fosse, Heidegger não teria tido condições de propor uma relação do sujeito manifesto – que eu sou – e do sujeito latente
expressar a idéia de que todos os homens não só nasceram livres e
sua famosa fórmula do “ser no mundo”. “Ser no mundo” significa – que eu também sou. Esse indivíduo revelado que é o resumo de
iguais, mas também são condenados a cuidar do espaço em que
precisamente ter perdido a última garantia de um enraizamento, é o meu passado pode construir uma relação viva, e até apaixonante,
vivem e garantir a capacidade de respirar e de conviver em seu meio
estado de um apátrida ontológico. Para Heidegger, os habitantes do com o individum absconditum, o indivíduo por vir, que contém o
ambiente. É uma definição que não só diz respeito ao chamado
mundo moderno perderam, com certeza, a pátria cósmica. somatório de minhas possibilidades existenciais futuras. Por esse
espaço privado, como ao espaço público. Existem, atualmente,
Simultaneamente, é um diagnóstico sobre o destino do monoteísmo. motivo, o indivíduo-casal encarna o egoísta prudente que sempre
relações de envenenamento mútuo entre as pessoas, embora uma
Em sentido estrito, o monoteísmo é um monosferismo. É impossível prossegue sua busca pelo tempo que ainda não perdeu.
toxicologia política deva, em certa medida, tomar o lugar da política
ser monoteísta sem postular, de alguma maneira, que existe um
clássica: os toxipolíticos de amanhã terão reconhecido a necessidade Com a celebração do mundo moderno, esse modo de vida se tornará
ponto central a partir do qual se produz a emanação de todo o espaço
de deixar o espaço comum ficar no estado em que se gostaria de uma tentação para praticamente todo mundo – e isso porque
divino. Um monoteísmo forte não só dispõe do reino moral, mas
encontrá-lo – como consta dessa mensagem profética que se encontra desapareceu a grande megasfera do monoteísmo, que oferecia a todos
também do mundo físico – quer englobar o natural e o espiritual.
nos banheiros de trem da “Eurocity”. Provavelmente foi algum genial um pretexto ideal para se consagrar ao Outro. Assim como também
Exige um Deus suficientemente forte para ser onipresente e
ferroviário alemão que inventou o texto dessa alocução. Será praticamente se dissolveram os sucedâneos do Outro da monosfera
onipenetrante, na natureza e nas consciências. Esse Deus poderoso
necessário transferi-la para a Declaração dos Direitos Humanos. A divina, que eram os totalitarismos, nacionalistas ou
seria construído, necessariamente, como uma esfera envolvente no
sabedoria dos banheiros públicos alcança, finalmente, seu espaço internacionalistas. Para descrever a atual situação, proponho a
centro da qual impera um direito de ingerência universal.
político. metáfora da espuma, palavra que por sua própria natureza
A metafísica européia tinha a pretensão louca e inevitável de impor a
polivalente traduz muito bem essa composição multicelular das
JCR _ Trata-se, em resumo, de um postulado ecológico. Então você
coincidência e a co-extensão da teologia e da cosmologia. Um único
grandes estruturas que, embora bastante amorfas, correspondem às
considera a ecologia o pensamento fundamental do século XXI ? gesto pretendia criar as duas esferas máximas de maneira
paisagens povoadas de nossa época e, principalmente, às
concêntrica, Deus e o mundo. Nunca compreenderam que esse
PS _ Em primeiro lugar, é preciso chegar a um acordo sobre a noção aglomerações urbanas, que parecem ser autênticas espumas
ambicioso projeto era fadado ao fracasso por motivos internos:
de oikos, que significa a casa, em grego. A beleza do conceito de casa compostas por células individualistas, assim como composições
retrospectivamente, percebe-se que a teologia era simplesmente
reside no fato de que ele pode articular a idéia de um pertencimento formadas por residências para várias pessoas. Gostaria de salientar
demasiado fraca para integrar a teoria do mundo na teoria de Deus.
recíproco entre o local e o morador. Essa “casa” é precursora do que, para mim, a residência enquanto tal é o átomo da espuma social.
Atualmente, o que sobrou foi um monoteísmo frágil, que poderia ser
conceito de meio ambiente dos biólogos modernos que elaboraram o Tudo isto é dito na perspectiva de uma crítica intransigente do
comparado a um satélite de televisão que abrange a Terra inteira, com
teorema criado por Jakob von Uexküll no início do século XX – e individualismo.
um único programa moral e pretensamente válido para todos os seres
segundo o qual os organismos e seu meio ambiente se pertencem
humanos – mas, definitivamente, não aceito por todos. JCR _ Existe alguma relação entre o que você acaba de dizer e aquela
mutuamente, por assim dizer. A ecologia moderna seria,
outra idéia sua, de que a estação espacial seria o modelo do futuro
conseqüentemente, uma ciência de domesticação geral. Mas como Os motivos para tal situação nos remetem à demolição da imagem
recipiente, da futura residência ?
essa maneira de pensar contém um grande potencial de naturalismo das esferas celestes envolventes. Essa representação tinha,
redutor, é preciso utilizá-lo sempre com muita prudência. evidentemente, um valor edificante para todos os que procuravam PS _ Atualmente, ninguém pode dizer se a estação espacial será o

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futuro do gênero humano. Mas ela representa um modelo do “ser no queriam tornar o cosmos habitável criando uma equação entre a casa tinha objetivos. As pessoas se juntavam e ficavam por ali fazendo
mundo” condenado à artificialidade. Enquanto continuarmos a e o universo. Se a casa é o cosmos e o cosmos é a casa do homem, coisas que não as levavam a lugar algum. Não tinham uma liderança,
pressupor uma natureza externa, jamais conseguiremos assumir então a noção de habitat venceu todas as forças do caos que haviam não existia o conceito de líder nas comunas hippies. Era uma coisa
plena responsabilidade pelo meio ambiente. Até hoje, ainda não subvertido a antiga ordem das coisas. O universo pré-filosófico era anárquica. E havia problemas sérios com drogas. As pessoas ficavam
compreenderam que o meio ambiente não é a natureza. uma coisa muito mais ameaçada por forças caóticas do que o cosmos doidonas, sem fazer nada. No entanto, este grupo específico queria
Normalmente, não existe motivo para tratar dessa confusão. No bem organizado dos filósofos pós-Platão. Após a época de Platão e fazer algo. Romperam com a comuna e partiram para o Novo México.
passado, tratava-se de qui pro quo mais ou menos inocente. Natureza Aristóteles, o mundo tornou-se um jardim bem-cuidado na frente de Desenvolveram vários projetos ecológicos pelo mundo afora.
e meio ambiente são falsos sinônimos, mas no mundo pré- uma mansão de um aristocrata que, jovialmente, olha de cima de seu
Uma das coisas que os interessava era o que chamavam ecotécnicas,
tecnológico esse equívoco não incomodava ninguém. Ora, nesse terraço para a totalidade das coisas.
um processo que negava a onda da volta à natureza. Para descobrir
contexto, a estação espacial significa a inocência perdida. Representa
JCR _ Como você representaria o momento de implosão, ou de como a tecnologia pode contribuir para a ecologia, e não agir contra
o caso crítico da gestão total do meio ambiente por seus habitantes.
explosão, desse cosmos que antigamente formava o habitat comum ela, desenvolveram todo tipo de pesquisas. Tinham um barco de
Aqui, não é mais possível contar com uma determinada natureza; é
dos homens? Como se dá a passagem do cosmos à espuma global ? pesquisa que fez a volta ao mundo realizando coisas úteis – e outras
preciso reconstruí-la nos mínimos detalhes e qualquer erro pode ser
fatal. No vazio cósmico, não dá para enganar com um meio ambiente não tão úteis.
PS _ Não se trata de uma explosão nem de uma implosão, e sim de
artificial, enquanto a velha natureza terrestre perdoava praticamente uma compressão. De novo, o formato é a mensagem. Se um pequeno Visitei a estação de gado na Austrália. O gado era o alimento básico
tudo e apenas ela guardava o segredo de seu equilíbrio. Os seres mundo – um apartamento, por exemplo – pode ser suficiente para – tanto para os aborígines, quanto para grande parte da população
humanos eram dispensados de tratar disso pela maior parte do sustentar a hipótese de que vivo num mundo, é tão mais necessário branca, mas o pasto estava tão ruim que era difícil garantir a
tempo. Com a estação espacial, a permissividade é inaceitável: ela que eu me inche de maneira metafísica para viver no todo. A subsistência. No século passado, a criação de ovelhas devastou as
encarna a intolerância em relação aos erros das gestões climáticas, passagem torna-se possível porque, para o homem moderno, o regiões mais remotas e os campos de pasto. Não tinham condições de
atmosféricas, metabólicas etc. Num elemento absolutamente simbolismo cósmico perdeu sua qualidade imunológica. A antiga se retirar o gado da terra enquanto se tentava melhorá-la. O que o
artificial, os mínimos erros deixam de ser perdoáveis. cosmologia era a parte central de um sistema imunológico simbólico. grupo tentou fazer, de uma forma muito prática, foi melhorar a
Com a elaboração dos novos sistemas jurídicos e sociais, qualidade do pasto e a ecologia local e, ao mesmo tempo, criar uma
JCR _ Em seu livro, há inúmeras alusões ao trabalho do arquiteto
principalmente sob a forma de seguros sociais e com a construção do estação de gado. Também tinham um projeto paralelo de plantar
Buckminster Fuller. Você se interessa por essas transposições da Terra,
Estado de bem-estar social, as pessoas realmente se exoneraram do sementes para a melhoria do pasto, utilizando sementes nativas ao
no âmbito da construção, sob a forma das famosas abóbadas
mundo superior. Este já não é necessário enquanto sistema invés das importadas. Acreditavam que a arte e a ciência trabalham
geodésicas? Mais genericamente, que interesse você tem pela volta
imunológico coletivo e as pessoas renunciam à imunidade imaginária juntas. Eu os conheci num centro de arte e espetáculos, em Londres.
dessa tendência, atualmente muito acentuada, do biomorfismo na
em troca de um sistema de segurança extremamente eficaz, do ponto Ali também funcionava a sede do Instituto de Ecotécnicas, o ramo de
arquitetura ?
de vista operacional. Se o modernismo clássico ainda visava à ecologia com que trabalhavam.
PS _ O que me apaixona em Buckminster Fuller é seu conceito de imunização pelo coletivo – Estado-nação, proletariado solidário e
uma estática radicalmente nova, e não tanto a forma concreta pela combativo, a comunidade dos sábios – a ênfase dos pós-modernos Também participei de um projeto deles chamado A Caravana dos
qual foram construídas suas obras. Suas abóbadas, no entanto, são também passou para o lado dos indivíduos, se comparada à Sonhos. Partia da idéia de que as cidades norte-americanas perderam
contribuições formidáveis e partilham, com as cúpulas tradicionais, construção dos sistemas imunológicos. seus corações. Quando os bancos fecham, às 5 horas da tarde, todo
do fascínio pelo espaço curvo. Desde a Antiguidade, a construção de mundo vai para suas casas, nos subúrbios, e a cidade morre.
uma cúpula sempre representou a disciplina de coroação da O único coletivismo que ainda nos diz respeito de maneira Trabalhei nesse projeto de regeneração com Ed Bass, que acabou
arquitetura. Com ela, começa a odisséia do inverossímil transformado substancial nos dias de hoje são os grupos que trabalham os sendo um dos fundadores da Biosfera 2. Fort Worth, a cidade natal de
em construção. A prova de uma cúpula é que ela se apóia nela problemas ambientais em grande escala – o clima, em sua dinâmica Ed Bass, no Estado do Texas, era um exemplo clássico dessas cidades
mesma. A abóbada geodésica, enquanto tal, representa por sua forma caótica, os recursos de água, as fontes de energia. Mas isso já não sem vida. Então, Ed disse: “Vamos colocar um centro de artes com
mais uma concessão ao antigo monosferismo – e isso não tem grande gera uma comunidade substancial e, sim, apenas uma comunidade de espetáculos de todo o mundo n a área central da cidade e criar
interesse para uma teoria da época atual. Confesso, aliás, que sou um pessoas preocupadas. motivos para que as pessoas voltem à cidade. Quando tivermos
grande admirador das cúpulas, ainda que essa forma já não traduza montado o centro de artes, começarei a fazer apartamentos para
as intenções mais avançadas da arquitetura contemporânea. A cúpula BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . realmente reconstruir, a zona central da cidade.” A Caravana dos
clássica representava o principal símbolo de vontade da arquitetura Sonhos estreou em Fort Worth em 1984. Era um lugar maravilhoso,
se apropriar do círculo, assim como da altura. Forçava o céu a entrar com uma casa noturna onde se tocava jazz e blues e que integrou por
na casa. Era precisamente essa a função da cúpula tradicional: completo as populações negra e branca da cidade. Havia um
pretendia-se interiorizar o céu, transformá-lo em guarda-chuva para teatrinho fabuloso onde Melissa Finley – que, na época, era uma
passear sob sua proteção. Tal como suaves dosséis, essas cúpulas dançarina muito famosa no mundo inteiro – abriu o centro de artes e
improvisadas – se assim podemos dizer – eram, com certeza, as espetáculos.
construções mais sutis que o espírito humano soube conceber em
No topo, havia uma Abóbada Geodésica, projetada por Buckminster
termos de arquitetura temporal. E Fuller, em sua abordagem dos
Fuller, com 350 espécies distintas de cacto. Estavam ali representados
temas da arquitetura, nunca se afastou muito desse símbolo da
suavidade controlada que representa o dossel. No entanto, sua maior J ANE P OYNTER quatro desertos diferentes. O lugar transmitia uma sensação de
desespero, com a evolução divergente e convergente daquela coleção
contribuição para com a gramática das formas arquitetônicas não
de plantas. Você via plantas que evoluíam em lugares completamente
são, em minha opinião, as abóbadas e suas cúpulas, e sim aquelas
JANE POYNTER É UMA DAS FUNDADORAS DO PARAGON SPACE DEVELOPMENT CORPORATION . diferentes da Terra, mas evoluíam mutuamente, para ter exatamente
estruturas ultra-sofisticadas que ele chama tension integrity
ELA VIVEU POR DOIS ANOS NA BIOSPHERE 2 . as mesmas estratégias e parecerem semelhantes. Ao mesmo tempo,
structures ou tensegrities – estruturas que substituíram a pressão
você via plantas daquele mesmo deserto que originariamente eram da
estática pela tensão entre os elementos do corpo construído. Com
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO mesma espécie e depois haviam evoluído para se tornarem
essas formas, entramos na quarta dimensão da construção.
completamente diferentes. Era fantástico. Por algum tempo, fui o
É claro que o biomorfismo em arquitetura é uma coisa notável. curador daquela abóbada. Havia uma conferência, anualmente, para
TUCSON _ 26 DE JULHO DE 2004
Porém, traduz principalmente o fato de que os matemáticos a qual traziam pessoas dos meios mais variados: artistas, músicos,
modernos reencontraram as formas orgânicas. Portanto, é bom evitar pintores e cientistas incrivelmente avançados. Minha lembrança
conclusões equivocadas em relação a esse fenômeno. Trata-se mais
de um triunfo da matemática sobre a forma natural e é preciso se
B IOSPHERE 2 : THE EXPERIENCE OF “BEING”
preferida desses tempos é a de Buckminister Fuller sentado, tendo
um debate acalorado com Ornette Coleman.
prevenir contra as conotações reacionárias dessa tendência O projeto Biosfera 2 não pretendia ser apenas um instrumento
arquitetônica. Não se trata, de forma alguma, de uma volta à Em 1982, foi realizada a Conferência Galáctica. Quando terminou a
científico, ou um empreendimento de engenharia, mas também um
natureza; trata-se, sim, de uma brincadeira insolente que apresentação, estava lançada a noção de biosfera no grupo, mas
depoimento artístico: um símbolo, um ícone artístico para a ciência.
matemáticos, com a ajuda do computador, se permitem fazer às àquela altura a idéia era muito mais maluca do que a Biosfera 2.
Seu principal arquiteto foi aluno de Frank Lloyd Wright. Nele, a
custas da forma orgânica. Na perspectiva de uma futura política da Queriam construir um Castelo Espacial Gerard O’Neal, no qual havia
forma segue a função e a função segue a forma.
natureza, o biomorfismo arquitetônico deve ser interpretado como a biosfera dentro de uma nave espacial, o que, em termos financeiros,
um símbolo, já que a técnica adquiriu os conhecimentos necessários Basicamente, Biosfera 2 é uma estufa com cerca de 12,5 m2. O que a era totalmente fora de questão. Foi daí que nasceu o projeto de
para se declarar responsável para com as formas orgânicas. torna diferente é que foi construída hermeticamente fechada por cima construir uma biosfera num recinto fechado. Desde o início, havia a
e por baixo. Nesse recinto encontravam-se sete biomas, ou idéia da relevância do espaço.
JCR _ Então a natureza acabou, assim como a História ? comunidades ecológicas: uma mini-floresta tropical, uma mini-
Os objetivos de uso do espaço eram os de projetar, construir e operar
savana, um pequeno deserto, um brejo e um mini-oceano – na
PS _ A antiga natureza servia de teatro para a História. Para montar uma biosfera que poderia ser utilizada para viver por um longo
verdade, um imenso aquário. Também a compunha o que
uma peça de história, era necessário pressupor que os bastidores período no espaço. Marte ainda estava distante cerca de 20 anos, mas
chamávamos biomas antropogênicos: a agricultura, o “terreno” e a
naturais eram estáveis. Agora, a peça e o âmago da cena são uma era uma meta tangível em termos espaciais. A experiência de viver no
cidade. Eram esses os sete biomas. Havia duas principais linhas de
única coisa. A irresponsabilidade para com a natureza-bastidor nos espaço tornou-se um objetivo concreto da biosfera. Naquela época, a
trabalho: uma relacionada com o espaço exterior, com a vida nesse
foi subtraída. A natureza já não é o âmago nem um pretexto. Nasa usava o termo biorregenerável para se referir a substâncias de
espaço, projetando um sistema de apoio vital para o espaço; a outra
base biológica e recicláveis, mas a maior parte de seu trabalho era
JCR _ Resumindo, aquilo a que você está tentando dar nome seria, de relacionada com ecologia e o planeta Terra: fazer uma mini-réplica –
com sistemas físico-químicos, decompondo a matéria viva em suas
certa maneira, a passagem de uma cosmografia do globo terrestre para um tubo de ensaio vedado, uma ferramenta para os ecologistas – que
partículas mais ínfimas e utilizando soluções físico-químicas para
os cosmogramas de pequenos mundos? E, para finalizar, a conquista permitisse estudar os ciclos da vida.
cada uma dessas minúsculas estruturas vitais vitais. O que
do mundo como cosmos global leva à sua explosão numa imensidão
Os fundadores eram pessoas interessantes. Começaram sua trajetória pretendíamos, na Biosfera 2, era ter um sistema reciclável de base
de células cosmogramáticas ?
rumo à Biosfera 2 na década de 60. Algumas das pessoas centrais do inteiramente biológica. A razão para isso era que, se você estivesse
PS _ Sim, admitindo-se a profunda ironia que consiste em utilizar a grupo vinham de Haight Ashbury, do movimento hippie, onde tinham apenas visitando Marte, então não seria necessário um sistema
palavra cosmos – primeiramente, no plural, e em seguida, em escala uma comuna que fazia Teatro de Guerrilha. John Allen, uma das biorregenerável, mas se ficasse vivendo por muito tempo num
individualizada... Um cosmos é sempre uma construção figuras principais, era formado pela Faculdade de Minas do Estado do planeta distante da Terra, seria extremamente dispendioso ficar
simplificadora a serviço de uma coletividade política; traduz sempre Colorado e pela Faculdade de Administração de Harvard. Era trazendo bens consumíveis. Por que, então, não fazer logo um
a necessidade de simplificação dos espíritos que nele vivem. Essa brilhante, tinha uma memória de elefante. Um dos problemas com o sistema biológico? Dessa forma, tudo seria reciclado – a
grande manobra de simplificação teve início com os gregos, que movimento hippie era o fato de que não tinha uma finalidade, não compostagem, o ar e a água produzida pelas plantas –, pois seria

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auto-sustentável. Era essa a idéia. Naquela época, a ecologia já As noites de quinta-feira eram dedicadas à filosofia. Às vezes Somos treinados para pensar especificamente, num raciocínio
manipulava bem os sistemas. estudávamos coisas de ecologia, outras vezes, de arte. Havia teatro simplista. Existe uma certa verdade no fato de que se você é um
aos sábados e domingos de manhã. O teatro não consistia em montar cientista simplista, pensa de maneira cada vez mais profunda sobre
Ao se observar um ecossistema, notam-se fluxos constantes. Há
uma peça; era apenas uma maneira de explorar a psicologia e era um número de coisas cada vez menor. John Allen tinha um enorme
sempre um rio atravessando o sistema. Existe o ar da biosfera 1, essa
muito eficaz. desprezo pela ciência simplista, mas ignorava o fato de que foi a
enorme atmosfera que interage continuamente com o ecossistema.
ciência simplista que nos deu a Biosfera 2. Era necessário pensar em
Precisávamos de um sistema ecológico restrito, onde fosse Quando saímos, havia cinco meses de pesquisas e relatórios
termos holísticos, mas também simplistas.
efetivamente possível acompanhar cada molécula – o que teríamos atualizados sobre animais, plantas e bactérias naquele espaço. Em
que fazer quando tivéssemos problemas com o oxigênio. Provamos seguida, uma outra missão de sete pessoas ficou lá dentro por oito Um dos grandes problemas do mundo de hoje é que ele é muito
que era possível fazê-lo; conseguíamos, de fato, ver onde estava o meses. Depois, a Universidade de Columbia assumiu o projeto e fez compartimentado. E nós queríamos juntar todos aqueles
oxigênio e o carbono naquele ecossistema. Havia um meio de se um intercâmbio global de pesquisa durante vários anos. Pesquisaram compartimentos e fazer um mundo.
compreender o que ocorria dentro daqueles ecossistemas. Era biomas, examinaram o que ocorre com vários níveis de dióxido de
O recinto fechado chamado Biosfera 2, em especial os biomas
possível acompanhar não só a energia – numa base massa-fluxo –, carbono etc. Atualmente, o local está abandonado porque a
antropogênicos da agricultura e do habitat, seria um treinamento
como também todas as moléculas por esse sistema. Universidade de Columbia saiu e ainda estão pensando o que fazer
excelente para aspirantes a astronauta num ambiente de base
com esse incrível recinto.
O local escolhido para a construção foi o Arizona, onde não ocorrem espacial. Você não pode coletar dados da Biosfera 2 e concluir que se
terremotos e há bastante sol. De 1984 a 1991, desenhamos e Em termos conceituais, se você pensa em biosfera, pode defini-la de tal coisa surgiu neste ecossistema da maneira x, y ou z, então irá
construímos simultaneamente. Em 1991, fomos os oito para dentro: várias maneiras. No dicionário, a definição de biosfera é a esfera de necessariamente ocorrer na floresta tropical da Terra. Não
começava nossa primeira missão de dois anos. Vivíamos encerrados vida em torno da Terra. Vamos ver o próximo passo: o que constitui necessariamente, pois são muito diferentes. Porém, o que você pode
lá dentro, quatro homens e quatro mulheres; reciclávamos todo nosso a biosfera 1? Bem, é um sistema materialmente fechado; muito pouca é desenvolver ferramentas holísticas para compreender como
ar e nossa água, cultivávamos o que comíamos e, basicamente, matéria sai ou entra, mas, do ponto de vista energético, é aberto. funciona a totalidade do sistema em seu nível superior.
tínhamos uma mini-biosfera. A grande pergunta era: “Será que vai Recebe sua energia principalmente do sol. Podemos acrescentar que
dar certo?” Seria possível criar uma biosfera – com proporções de também é aberto do ponto de vista informacional. Alguém pode BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
massa-terra e massa-planta completamente diferentes – e mantê-la dizer: “Quer dizer que se você encerrar uma réplica de uma floresta
por longos períodos de tempo com seres humanos morando lá tropical num recinto, isso é uma biosfera? Se você pegar uma jarra de
dentro? E, mais importante, continuará existindo sem desmoronar água de um lago e a encerrar num recinto, isso é uma biosfera?”
por algum motivo que não compreendemos ou não conseguimos Essas são questões a debater. John Allen, o auto-nomeado líder do
evitar? Foi isso que tentamos fazer. grupo, definia da seguinte maneira: “O que define uma biosfera é a
O principal objetivo dessa primeira experiência de dois anos era unidade biônica; tem que ter vários biomas, ou seja, zonas
responder à pergunta: “Será possível? Poderá ser construída uma ecológicas.” Quando você olha para o planeta Terra, percebe que é
biosfera artificial? Ou se transformará num limo verde por razões que diferente de um lago porque tem uma porção de unidades ecológicas
desconhecemos?” Algumas pessoas diziam: “Vocês vão morrer todos dessemelhantes, muito distintas. Na Biosfera 2, dizíamos: que
com alguma infecção horrível.” Especificamente, queríamos saber se biomas devemos incluir? Todos? Já existia uma biosfera artificial;
portanto, dizíamos que não seria prático incluir cada bioma existente
alguma coisa não funcionava, por quê e, nesse caso, como superar a
dificuldade. Após dois anos, tivemos alguns problemas sérios, mas no planeta. O importante é incluirmos aqueles que têm um maior T ACITA D EAN
conhecíamos os problemas e, o que era o incentivo maior, sabíamos grau de diversidade. Segundo o pensamento ecológico daquela época,
como superá-los. diversidade significava equilíbrio. Concluímos que deveríamos ter
TACITA DEAN NASCEU EM CANTERBURY EM 1965 E VIVE EM BERLIM . ELA ESTUDOU PINTURA
uma quantidade considerável de diversidade. Optamos pelos sistemas E HOJE TRABALHA COM VÁRIOS MEIOS . ELA É MAIS CONHECIDA POR SEUS INSTIGANTES

Nos primeiros dois anos, faltaram-nos alimentos, mas na segunda mais diversos e mais produtivos que existem na Terra. A maioria FILMES DE 16 MM , EM QUE QUALIDADES ESPECÍFICAS ASSOCIADAS À ATIVIDADE DO CINEASTA
SÃO DE IMPORTÂNCIA CENTRAL . ELA É REPRESENTADA PELA MARIAN GOODMAN GALLERY ,
missão humana tivemos o suficiente. Os alimentos eram suficientes, deles está situada na região tropical e subtropical. Por isso, acabaram PARIS - NOVA IORQUE E FRITH STREET GALLERY , LONDRES . DEAN FOI INDICADA PARA O
mas a quantidade de calorias era baixa. Nossos níveis de oxigênio sendo biomas subtropicais: a floresta e os desertos, os biomas mais TURNER PRIZE DE 1998 . ENTRE 2000 E 2002 RECEBEU A BOLSA DAAD - DEUTSCHER
AKADEMISCHER AUSTAUSCHDIENST - EM BERLIM . O PROJETO DISCUTIDO NESTE LIVRO FOI O
também ficaram baixos e, por uma série de motivos, não nos diversos que existem em termos de espécies.
MILLENIUM SCULPTURE PROJECT , NO MILLENIUM DOME , LONDRES , REINO UNIDO , 1999 .
estávamos adaptando bem. Tudo isso afeta nossa estrutura
É difícil contar toda a história da Biosfera 2 em uma única frase.
psicológica, mas, por outro lado, tínhamos todos um bom astral,
Quando as coisas começaram a dar errado, não foi por causa da TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
éramos todos anglo-saxões. O fato de que o nível do oxigênio tivesse
ciência, ou da tecnologia; foram as relações humanas que se
sido insuficiente nos primeiros dois anos significava um problema
abalaram. Há aí um paradoxo inexplicável. De um lado, a concepção LONDON _ 19 DE AGOSTO DE 2004
sério. Tinha que se saber, com precisão, quanto oxigênio existia na
da Biosfera 2; aquele núcleo de pessoas era extremamente aberto.
biosfera e para onde fora. Por meio de uma análise isotópica,
Tínhamos orgulho de não pensarmos em termos lineares, em
descobrimos a resposta: tinha sido colocado no solo um excesso de
carbono orgânico, na forma da compostagem. Quando os micróbios
pensarmos do lado de fora. O projeto da biosfera uniu pessoas muito J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Você pode descrever a origem de projeto

diversas, mas aquele núcleo era incrivelmente independente. Sexta-feira/Sábado ?


decompunham a compostagem, aspiravam oxigênio da atmosfera e,
ao mesmo tempo, devolviam à atmosfera dióxido de carbono. Se você A construção da Biosfera 2 foi um empreendimento de engenharia. TACITA DEAN _ Esta obra foi comissionada para o que se chamou o
encerra vida em ecossistemas relativamente complexos, isto pode Engenharia ecológica. Era preciso ciência para fazê-lo, mas a North Meadow Project, que era um pedaço de terra ao lado da
ocorrer, caso haja uma limitação de certos nutrientes – construção da Biosfera 2 não foi ciência; foi um esforço de Millennium Dome [Cúpula do Milênio], perto do rio Tâmisa, para
especificamente, carbono e nitrogênio – tal como a Terra tem seus engenharia. Uma vez terminada, a pergunta era: como vamos fazer onde alguns artistas foram convidados a realizar trabalhos site-
recursos limitados. Também como na Terra, é necessário um ciência com isto? Um dos maiores problemas é que, do ponto de vista specific. Naquele terreno existia um velho duto de ventilação
suprimento constante de energia. científico, não havia muito dinheiro. vitoriano que era usado para alimentar de ar o túnel de Blackwell,
que corre por baixo do Tâmisa. Este duto de ventilação tem oito lados
Aconteceu uma porção de coisas interessantes, curiosas, psicológicas. No início, os ecologistas – principalmente, os ecologistas de sistemas
e encontra-se exatamente na linha do Meridiano, que é a Longitude
Tínhamos imagens vivas do passado; comigo, chegaram a acontecer – iam todos à Biosfera 2. Alguns dos fundadores da ecologia de
Zero. É claro que a sua localização é arbitrária até certo ponto, mas
devaneios sobre minha infância. Sente-se o sabor daquela sistemas, como os Odums, eram muito amigos da Biosfera 2.
o mundo tem sido dividido assim por muitos anos com a Longitude
experiência, é quase uma alucinação. É sabido que as pessoas Achavam que a Biosfera 2 era o máximo porque transmitia o modo
Zero em Greenwich, que nos dá Hora Meridiana de Greenwich.
passam por esse tipo de experiência na Antártida, no inverno. de pensar de sistemas holísticos. Um equipamento para ecologia de
sistemas. De outro lado, os cientistas simplistas diziam que, do ponto KATE GLAZER _ É algo bem imperialista dizer que a Inglaterra
Uma das grandes dificuldades que tive – e penso que a maioria dos
de vista da ciência, a Biosfera 2 era uma completa perda de tempo. determina o tempo de todo o mundo.
outros também – foi a de que, de repente, a vida era ser. Até o
Tinham um argumento válido. Não é possível fazer uma comparação
momento de entrarmos e vedar a porta, vivíamos indo para algum TACITA DEAN _ É verdade, mas também por que que temos que discar
direta entre os dados que se obtém da Biosfera 2 com dados obtidos
lugar. Quando construíamos a Biosfera 2, tínhamos sempre esse 1 para falar com os Estados Unidos? É a mesma coisa, eu tenho que
da Biosfera 1, pois, enquanto sistemas, são muito distintos. Os
objetivo na cabeça, mas agora a vida era ser. Fico me perguntando se concordar com você. Mas se tomamos a coisa desta forma,
resultados foram superficiais porque não lhes dedicamos o tempo
seria esse o motivo que provocou, naquela época, o desmoronamento descartamos todo um sistema. A Longitude Zero tem que estar em
necessário. Quando se faz uma experiência de observação científica,
que ocorreu na Biosfera 2. Além do problema do oxigênio, de repente algum lugar. Remover a Longitude Zero de Greenwich seria uma coisa
deve sempre ser coletada mais de uma espécie do que se está
estávamos todos ávidos por opiniões. profundamente radical de fazer a toda a estrutura de como
testando; de outra forma, os resultados são insignificantes em termos
descrevemos o mundo. Em todo o mundo, as pessoas usam a Hora
Ficamos na Biosfera 2 por dois anos. De repente, com sete outras estatísticos.
Meridiana de Greenwich para estabelecer seu zero, e assim saber
pessoas, você fazia de 12 metros quadrados o seu mundo. Todos
O pensamento relacional e o holístico são distintos. Entretanto, para onde estão. O intervalo entre a Hora Meridiana de Greenwich e a hora
sentimos grande dificuldade em nos adaptar. Foi a coisa mais difícil
pensar de um modo holístico, você tem que raciocinar em termos local a bordo de um navio permite às pessoas estabelecerem sua
de toda a missão. No mundo ocidental, sempre que sentimos algum
relacionais. Ser um pensador relacional não significa, longitude e assim localizar-se no mar. Temos que codificar o tempo
desconforto, fazemos alguma coisa. Na Biosfera 2, isso não era
necessariamente, ver o quadro por inteiro; mas quando se observa de alguma forma, pois do contrário ficaríamos loucos. Eu não creio
possível.
uma biosfera, é necessário pensar em como interagem as partes. Um que as pessoas percebem como nosso mundo está assim arranjado,
Encaramos a situação de uma maneira interessante. No início da dos grandes debates que surgiram enquanto construíamos a Biosfera de forma a permitir saber a hora.
década de 90, a Internet estava nascendo, mas já tinha feito 2 foi o seguinte: “Dividimos os ecossistemas para que fiquem
Eu decidi situar meu trabalho neste duto de ar. Eu dividi o mundo em
progressos, e conseguíamos enviar mensagens eletrônicas e telefonar. arquitetonicamente separados?” Acho que teria sido inteligente
oito partes, como os oito lados do duto e transformei o espaço em
Participei de uma apresentação musical com uns músicos alemães. projetar a Biosfera 2 com a possibilidade de que as biosferas
uma espécie de relógio de tempo. Usando os 360 graus da
Três vezes por ano, tínhamos um festival de arte inter-biosférico. Uns pudessem existir como biomas separados, ou como uma única grande
circunferência do globo, eu dividi o mundo em oito partes, o que
pintavam, outros tocavam piano ou escreviam poesia. Fizemos uma biosfera.
significa segmentos de 45 graus. Como conseqüência, obtive oito
adaptação por via eletrônica.
Quando se observa uma biosfera, ou até um ecossistema, pensa-se linhas de longitude ao redor do mundo a intervalos de 45 graus, e por
Também éramos uma comunidade. Na verdade, uma comunidade em ciclos. Na Biosfera 2, você tinha o ciclo da água. Lá dentro, causa da localização deste duto particular, que estava na transição
intencional. Havia um certo vínculo com o movimento hippie e as bebíamos as mesmas moléculas da água e usávamos as mesmas entre a terra e o rio Tâmisa, muito perto do mar, eu decidi escolher
comunidades da década de 60. A certa altura, até nos acusaram de moléculas de oxigênio e de carbono repetidamente. Tudo fazia parte lugares onde a linha de 45 graus atravessava no globo terrestre tanto
sermos uma seita. Adotamos nomes diferentes; quando morávamos de um ciclo. Fazia com que você pensasse tanto em termos holísticos na terra quanto no mar, isto é portos, cais etc. Então se pensamos
lá, meu nome era Arlequim. Tínhamos algo que chamávamos darma. quanto relacionais. Greenwich como o Zero, a 45 graus para o Oeste corre uma linha que

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perpassa uma pequena cidade no Brasil chamada Ubatuba, e a 90 relacionamento entre terra e mar. Ouvimos gaivotas em Greenwich, e JCR _ A partir de Sexta-feira/Sábado você produziu um jukebox
graus uma linha corta a cidade de Nova Orleans; a 135 graus oeste, a percebemos o mar no Alaska e em Bangladesh, assim como em [vitrola automática onde se pode escolher o disco a ser tocado] Como
linha atravessa a minúscula aldeia chamada Hoonah no Alaska, e a Akashi, por causa do mercado de peixes. era dividido ? Você tinha oito lugares ?
180, Fiji. Akashi no Japão fica 135 graus a Leste; já 90 graus a leste
Eu me sinto muito atraída por filmes, e o filme é sempre sobre o TD _ Bem, na verdade era muito difícil naquele tempo de fazer um
temos Dakar em Bangladesh; 45 graus a leste temos Aden no Iêmen,
tempo, a transcrição física do tempo - é uma coisa física. Eu acho que jukebox. Eu não queria apenas uma máquina digital. Eu queria fazer
que é uma longitude interessante, por que até onde me recordo
temos conexões aqui. Se eu estivesse trabalhando com mídia digital um grande objeto que tivesse uma qualidade analógica. Eu acabei
existem muitos lugares instáveis, ao longo de toda a linha. Alguns
eu usaria satélites; é a mesma coisa. Ser capaz de navegar, ser capaz usando CDs, que não são analógicos, mas foi o mais próximo do
lugares eram bem óbvios, como aquela que corta Nova Orleans
de calcular a sua posição em relação ao sol, vai se tornar uma arte analógico que consegui chegar. Eu tinha 192 horas de som, de
exatamente a 90 graus. Já Hoonah não tinha habitantes - mas não
morta, mas o sistema analógico ainda nos acompanha. É como maneira que eu tive que eu mesma inventar a máquina, usando 3
havia nenhuma categoria imposta como essa.
precisar de papel e caneta quando o computador trava. Hoje, o código unidades de CD já existentes. Parece uma máquina do tempo bizarra.
Este projeto envolvia uma visita a todos esses lugares e a gravação do Morse não está mais em funcionamento, assim como o filme também Era um console com botões grandes, um dizendo “Tempo” e o outro
som local nestes locais, do meio-dia de sexta-feira a meio-dia de passará. Não é ensinado a ninguém. Eu fico triste por causa de coisas “Lugar”, além de um botão para começar e outro para parar. Era
sábado, na transição da sexta para sábado de 1999 a 2000. Eu não como esta. Muito do que eu faço é relacionado a estes rasgos de realmente importante que fosse uma coisa física, que pudéssemos
podia dar conta de todas as viagens sozinha. Eu fui a apenas cinco memórias. A maior parte do tempo, eu faço trabalhos que poderiam realmente ver a seleção da hora que você havia escolhido tocar.
dos oito lugares, e eu envolvi outras pessoas para a gravação nos ser vistos simplesmente como nostálgicos - no sentido de buscarem Todos os CDs eram numerados e tinham nomes, por exemplo, “Iêmen
lugares onde eu não poderia estar. Em cada uma destas locações, aprisionar as coisas antes que desapareçam. 9 horas a 10 horas.” Cada CD durava uma hora, e havia 192 deles: 24
encontramos o lugar certo que seria bom para o som. O som é horas x 8 lugares. Você então podia ir a qualquer hora das 24 em
No momento, estou filmando homens idosos antes que morram. Isso
incrivelmente informativo quando é descolado de sua imagem. De qualquer uma dos oito lugares.
é o que parece estar em curso no momento. Isso é o novo filme, é
certo modo, é um retorno à minha obra mais antiga, Foley Artist::
sobre o que os dois últimos filmes eram. O que me interessa muito JCR _ Em Sexta-feira/Sábado o tempo estava totalmente em sincronia
som sem imagem. É uma coisa incrivelmente radical. Eu acredito
são os anacronismos e a obsolescência. Coisas que não mais se todo o tempo. A jukebox desorganiza o tempo.
muito no rádio. O rádio funciona desta forma. A imaginação do
situam confortavelmente em seu próprio tempo. O Teignmouth
ouvinte participa da criação. Cada ouvinte cria imagens diferentes, TD _ Aqui, as pessoas controlavam o tempo. Elas se tornam Deus.
Electron não pode mais velejar, e os espelhos de som perderam sua
pois não existe um lugar genérico. As pessoas não percebem o poder
função, e assim por diante. Eles foram visões do futuro, mas
do som. Quando gravamos, um dia encoberto gera um som diferente
tornaram-se obsoletos muito rapidamente.
de um dia ensolarado. Podemos realmente ler as diferenças através BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
do som. JCR _ A conexão entre o tempo e o mundo como forma, como um
Uma das linhas cortava esta minúscula ilha de Hoonah. O problema círculo ou esfera, está sempre presente em seu trabalho: a idéia de
era que a ilha abrigava uma população de ursos, e não tínhamos ciclos ou de ciclo. A Torre de Berlim é sobre a esfera em rotação no
qualquer treinamento para lidar com eles. Era muito perigoso, e no espaço.
fim tivemos que encontrar um novo lugar para gravar. Escolhemos o
TD _ Sim, a Fernsehturm: é aquela esfera no espaço que foi
Dixie D’s Snack Bar. O som era meio baixo, mas tínhamos que achar
construída quando havia Berlim Oriental. A torre é a mais incrível
algum lugar longe desta fábrica de enlatados que emitia ruídos sem
cápsula do tempo. Ela aprisionava o tempo histórico, aprisionava a
parar.
República Democrática Alemã (RDA): podemos senti-lo lá em cima.
No Iêmen escolhemos este mercado, que era cercado por montanhas. Breve não mais sentiremos nem o cheiro da RDA lá em cima. Quando
Era realmente belo. Você ouve os cachorros, os bodes e galinhas. fui até lá, era ainda bem forte. NA RDA, era permitido permanecer
Gravamos do telhado. Ouvimos o chamado matutino para as preces e somente uma hora lá em cima. Uma só rotação e aí o visitante tinha
então os cachorros e os corvos todos reverberando. Minha hora que sair. Uma rotação inteira de 360o durava uma hora. Uma das
favorita de gravação é quatro da manhã no Iêmen, um país para onde primeiras coisas que fizeram quando o Muro veio abaixo foi dar mais
as pessoas não podem mais viajar com facilidade, então é ainda mais velocidade à rotação. Agora, a rotação é duas vezes mais veloz - dura
inacessível. meia hora - e você pode ficar lá o tempo que quiser. É por isso que
eu intitulei meu texto sobre o filme de Backwards into the Future,
Sexta-feira/Sábado tem a ver com a qualidade do som de cada um
porque é muito como o que Berlim está passando, de certo modo.
destes lugares naquele período de tempo. Às vezes ouvimos coisas
que significam o tempo, como sinos. As gravações foram etiquetadas JC R _ Sexta-feira/Sábado é um cosmograma. É circular, não
à mão com os horários, como 12-2, ou 2-4 etc. Na exposição do progressivo. Não há hierarquia entre os lugares. Os lugares são
projeto para a Millennium Dome , a idéia era arranjá-las de tal arbitrários e não cidades poderosas. Elas são apenas pequenos lugares
maneira que o som de cada locação tocasse em correta relação com no mundo, pouco conhecidas. Há um senso de um mundo com o qual
os outros lugares. Por exemplo, meio-dia em Greenwich correspondia não estamos acostumados a ter contato, em uma escala expandida.
à meia-noite em Fiji. Você poderia passear por Sexta-feira/Sábado e Talvez o mais expandido que pôde ser realizado. O que poderia ser
obter o tempo mundial através do som. Enquanto Fiji ficava maior do que isso ?
silenciosa durante a noite, em Greenwich era pleno dia, e era muito
TD _ O universo... eu sei que a própria fisicalidade do globo está na
barulhento. Alto-falantes estavam posicionados em cada um dos
construção do Fernsehturm. De alguma forma parece que retorna ao
lados do duto, onde escrevi o nome do lugar onde foi gravado o som
otimismo da década de 1960. O otimismo que imaginou a corrida de
em cada uma das locações - por exemplo, lemos Meeting Hut para Fiji
iates ao redor do mundo em 1968, ou que construiu o Fernsehturm,
ou Dixie D’s Snack Bar para o Alaska. Um relógio atômico
aquele período de ingenuidade quando ainda se acreditava que
sincronizava a coisa toda, de modo a durar 365 dias totalmente em
haveria cidades no espaço, como toda a fantasia de Kubrick no filme
sincronia. Então meio-dia no som correspondia sempre ao meio-dia
2001.
real em Greenwich, e meia-noite era sempre meia-noite. É um relógio
que registra através do som, um relógio amorfo, de certo modo. JCR _ Você fala de progresso, mas a idéia do ciclo, da esfera, é uma
Coloquei pequenos bancos em cada um dos oito lados do duto. As forma anti-progresso: algo que retorna com o tempo. Talvez seja falar
pessoas podiam sentar-se e olhar e ouvir. da mudança em uma certa crença no progresso em direção a algo que
Longitude á a única maneira de indicar precisamente onde você está. não é mais atingível.
Longitude é somente descritível através do tempo. Lugar e tempo TD _ Que coisa engraçada, acabei de rememorar um coisa, de
estão completamente interconectados. A única maneira de localizar- repente. Quando eu era bem pequena, tivemos que fazer um desenho
se no mar antes do satélite e do GPS era através da Hora Meridiana sobre o ano 2000. Eu devia ter uns nove anos, e eu me lembro agora
de Greenwich contada a bordo. Originalmente, ninguém conseguia que eu fiz um mundo regressivo: cavalos, carroças etc.; como se o
contar o tempo corretamente a bordo, por causa do movimento do futuro fosse ser igual ao passado.
mar e das flutuações da pressão barométrica. Harrison inventou o
primeiro relógio a fazer isso, que mais tarde se tornou o cronômetro. JCR _ Sexta-feira/Sábado também é um deslocamento de um meio
O cronômetro foi o mais importante instrumento para um marinheiro para outro, de um século para outro, o deslocamento entre o século
a bordo. Se ocorresse um erro, este erro tinha que ser mantido o anterior e este.
tempo todo; de outra forma nunca se saberia onde estava. O TD _ É isso que é tão bonito. Foi de sexta-feira para sábado. E é
cronômetro conta a Hora Meridiana de Greenwich a bordo de um aproximadamente o tanto de significado que a obra contém, na
navio. Os marinheiros conseguiam estabelecer sua posição exata verdade. É claro, ela é bem simbólica. Você lembra todas aquelas
através do intervalo obtido na comparação entre a hora local e a Hora pessoas que diziam que o século não começaria antes do fim do ano
Meridiana de Greenwich. Antes do cronômetro, os marinheiros 2000, de 2000 a 2001... mas não há nada mais simbólico que assistir
costumavam sofrer da “loucura do tempo”. Eu me interessei muito aos números mudarem, assistir o 99 virar 00... dois zeros. É tudo
pela loucura do tempo através de meu trabalho com Donald numerológico... é só números... números grandes.
Crowhurst. A loucura do tempo ocorre quando não podemos
localizar-nos no tempo ou quando perdemos a noção de tempo, e JCR _ Você fez algo específico a respeito disso...
portanto perdemos a noção de lugar. Eu acho que é uma coisa
TD _ Sim, eu e adoro tudo isso. Tinha o 20 de fevereiro de 2002,
terrivelmente profunda.
20.02.2002. Eu só anotei o fato, e consegui que quatro jornais
É claro que isso era uma maneira analógica de enxergar o mundo, publicassem a data em cima de seus logotipos, de modo a assinalar
que hoje é digitalizado e controlado por satélite. É extremamente o dia. Eu me inspirei em Marcel Broodthaers, pois tinha visitado seu
importante, então, pois alguns segundos de erro em seu cronômetro estúdio em Dusseldorf, e ele havia escrito estes números estranhos,
no Equador pode significar várias milhas fora da rota. Então os que eram 21 12 02. Eu na verdade sou um tipo de romântica.
navegantes sempre se perdiam, pois não podiam localizar-se bem. A 20.02.2002 é uma data palíndromo. Eu amo a idéia destas coisas que
longitude tem a ver com o mar. Todo o projeto foi a respeito do aparecem um dia e depois não aparecem mais por cem anos.

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MELIK OHANIAN

A G R A D E C E E S P E C I A L M E N T E A O S A U T O R E S P O R S U A S PA R T I C I PA Ç Õ E S ,

AO CRITICO JEAN -CHRISTOPHE ROYOUX POR SUA COLABORAÇÃO E A TODOS QUE CONTRIBUÍRAM

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