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ARTIGO

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Métodos de Ensino na Capoeira: a técnica de desenhos como forma de


auxiliar a aprendizagem de crianças e adolescentes no ensino não
formal.

Cristiano Rosa Faria


Graduado em Educação Física; Professor Soldado, graduado pelo Centro Cultural Senzala de Capoeira

Larissa Rafaela Galatti


Mestre em Educação Física pela FEF-UNICAMP. Docente da UNIPINHAL, IASP (Instituto Adventista São
Paulo) e FAJ.

Resumo

O presente estudo busca dar um tratamento pedagógico ao ensino da


Capoeira, tendo por base o estudo científico dos métodos de ensino em
Educação Física e suas possibilidades de aplicação na Capoeira – manifestação
cultural afro-brasileira que envolve luta, jogo e dança. Para tal, utilizou-se da
“pesquisa-ação” enquanto método de pesquisa, procurando conhecer a
realidade do ensino da Capoeira, estudando-a a partir de autores de
referência da Educação Física (XAVIER, 1986; PIAGET, 1990; GALAHLUE &
OZMUN, 2003) e posterior aplicação dos avanços da revisão bibliográfica em
aulas de Capoeira. As aulas foram realizadas em projetos sociais da cidade de
Campinas, sendo eles o Projeto Quero-Quero, Projeto Anhumas, União Cristã
e projeto Capoeira do Bairro Três Marias, locais onde foi desenvolvida e
aplicada a técnica de desenhos, que a partir da opção pelo método misto de
ensino, mostrou-se adequada para o processo de ensino e aprendizagem da
capoeira para crianças e adolescentes.

Palavras-Chave: Educação Física; Métodos; Capoeira.

Abstract

The present study searchs to give to a pedagogical treatment to the education


of the Capoeira, having for base the scientific study of the methods of
education in Physical Education and its possibilities of application in the
Capoeira – Afro-Brazilian cultural manifestation who involves fight, game and
dance. For such, research method was used of the “research-action” while,
having looked for to know the reality of the education of the Capoeira,
studying it from authors of reference of the Physical Education (XAVIER,
1986; PIAGET, 1990; GALAHLUE & OZMUN, 2003) and posterior application of
the advances of the bibliographical revision in lessons of Capoeira. The
lessons had been carried through in social projects of the city of Campinas,
being they it Quero-Quero Project, Anhumas Project, Christian Union and
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Capoeira project of the Quarter Três Marias, places where it was developed
and applied the technique of drawings, that from the option for the mixing
method of education, it revealed adequate for the process of education and
learning of the capoeira for children and adolescents.

Key Words: Physical education; Methods; Capoeira

Introdução

Apesar de ser uma manifestação da cultura popular brasileira, espontânea e,


portanto, não fazer parte, necessariamente, de uma cultura acadêmica de educação
formal, a Capoeira vista do ponto de vista esportivo, ou seja, como uma atividade
física, é passível a uma análise cientifica sobre seus benefícios e diferentes métodos
de ensino. Tais métodos e teorias classificados pela ciência foram muito utilizados por
antigos mestres e ainda o são por novos professores, mas de forma intuitiva. O
conhecimento científico destes diferentes métodos por parte do professor possibilita a
escolha do melhor deles ou de estratégias provenientes de diferentes princípios
metodológicos a serem aplicados em um determinado grupo, num determinado
espaço para o desenvolvimento de determinada atividade.

Com o objetivo de realizar uma abordagem cientifica da capoeira e


entendendo-a como uma atividade física completa, o presente trabalho se propõe, em
um primeiro momento, a analisar os métodos de ensino utilizados por mestres e
aprendizes de Capoeira, apresentando as vantagens e desvantagens de cada um.

A partir da experiência de quinze anos como praticante da Capoeira e sete anos


como professor do autor, será apresentada, em um segundo momento, uma nova
forma de ensino da Capoeira para crianças e adolescentes desenvolvida após
dificuldades surgidas no ensino para meninos e meninas de projetos sociais de
Campinas. Tal técnica, que envolve a aplicação de desenhos fixados no chão pelos
quais os alunos se guiam para executar os movimentos da Capoeira, se mostrou útil
na fase de explicação da atividade motora e também deu evidências de contribuir
para auxiliar no desenvolvimento motor-perceptivo dos alunos.

Para fundamentar o trabalho, buscou-se as definições de métodos de ensino em


Educação Física em Telmo Xavier (1986), que analisa os métodos Global, Parcial e
Misto. Por meio dessas classificações, pode-se avaliar a forma de ensino tradicional na
Capoeira como Global, sendo esta utilizada pela maioria dos antigos mestres. De
acordo com as Teorias Associacionistas e Globais, que envolvem a aplicação dos
métodos de ensino mencionados anteriormente, foi possível situar cientificamente o
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trabalho enquanto professor de capoeira do autor Cristiano Rosa Faria, levando-o à
utilização do método da pesquisa-ação, que para André (1995, p.33) “(...) envolve
sempre um plano de ação, plano esse que baseia em objetivos, em um processo de
acompanhamento e controle da ação planejada e no relato concomitante desse
processo”. Assim sendo, foi estudado e desenvolvido o método de ensino da capoeira
a partir de desenhos, sendo o mesmo aplicado nas aulas com crianças de projetos
sociais de Campinas (como Projeto Quero-Quero, Projeto Anhumas, União Cristã e
projeto Capoeira do Bairro Três Marias), em escolas de Educação Infantil da rede
municipal e escolas particulares. Fez-se necessário, ainda, um estudo sobre o
desenvolvimento motor-perceptivo a partir de Gallahue & Ozmun (2003) para
comprovar a eficácia da Capoeira no desenvolvimento das percepções motoras de
seus praticantes (percepção espacial, temporal, corporal, direcional etc) e
especialmente do ensino da Capoeira por meio dos desenhos no desenvolvimento da
percepção visual do aluno.

Ainda buscando alicerçar cientificamente o estudo, foi pesquisado em Piaget


(1990) a relação entre desenvolvimento motor-perceptivo e desenvolvimento
cognitivo, como base para a teoria de que a técnica de desenhos, além de facilitar o
aprendizado do exercício motor, auxilia no desenvolvimento cognitivo da criança pois
envolve a presença de símbolos (os desenhos), que fazem uma ponte para a aquisição
de novos conceitos de lateralidade, como noções de direita, esquerda etc.

Métodos de Ensino em Capoeira: a Tradição e o Global

A escolha do método de ensino é uma das atribuições mais importantes do


professor antes de iniciar uma aula. Segundo Xavier (1986), para se escolher um tipo
adequado, deve-se levar em conta não apenas a atividade que será praticada na aula,
mas também o tipo de destreza dos alunos, o número de alunos, o local, a infra-
estrutura que o professor dispõe para sua aula (equipamentos) e a experiência
anterior dos estudantes. Cada professor deve organizar seu próprio método de ensino
analisando todas as variáveis que podem influenciar no aprendizado da atividade
motora.

No ensino da Capoeira não é diferente. No trabalho realizado com crianças do


projeto social Quero-Quero, um dos ambientes de aula no qual se baseia este artigo,
a descoberta do método ideal foi indispensável para o aproveitamento das aulas e

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desenvolvimento dos alunos. Trata-se de uma Organização Não Governamental que
atende crianças e adolescentes do Jardim São Fernando e Paranapanema, periferia de
Campinas, oferecendo, além da capoeira, oficinas de artes, dança, música e reforço
escolar, sempre no período oposto ao das aulas.

Retomando as idéias de Xavier (1986) , há basicamente três métodos que


podem ser utilizados pelo professor para o ensino de uma destreza corporal: (1)
Global, que consiste em ensinar uma destreza motora apresentando todo o seu
conjunto; (2) Parcial, que consiste em ensinar uma destreza motora por partes para
depois uni-las entre si; e (3) Misto, que consiste em ensinar uma destreza motora
pelo método global, apresentando todo o seu conjunto e retomar para alguma parte
da destreza que o aluno tenha dificuldade de realizar utilizando o método parcial e
voltar novamente ao global (global- parcial - global ).

Esses métodos se enquadram em dois grupos de Teorias de Aprendizagem:


Associacionistas ou Parciais e Globais. Na primeira, a aprendizagem resulta da
associação de uma resposta com um estímulo particular. As trocas feitas pelo próprio
aluno aprendiz são essenciais, ele aprende por partes. Há um princípio de ação e
reação (ação do professor e reação do aluno). Nas Globais, há uma apreensão do
campo geral de percepção de uma ação. O meio e o indivíduo formam um conjunto
que modifica a aprendizagem.

Todo método se fundamenta em princípios, que podem ser educativos, ativos,


de motivação, integral, prático, psicológico, socializador, etc que visam estabelecer os
objetivos e de terminar caminhos para cumpri-los. O método é efetivo quando cumpre
certos princípios que garantem a ação educativa, ou seja, além de instruir, educa o
aluno, enriquecendo e vitalizando sua personalidade. Daí a responsabilidade do
professor em assumir o papel não só de mero transmissor de conteúdo mas também
de educador, ampliando as possibilidades de conhecimento do seu aluno.

No início dos trabalhos com a Capoeira com crianças e adolescentes, no projeto


Quero-Quero, em Campinas, em 1999, era utilizado basicamente o método Global.
Neste método, de acordo com Xavier(1986), há uma apreensão do campo geral de
percepção de uma ação, ou seja, o aprendizado se dá quando o aluno tem um insight
( luz) na solução dos problemas. Para o autor, na Teoria de Aprendizagem Global
há a aquisição de estruturas cognitivas por parte do aluno e aciona-se o sistema
nervoso central. O total precede as partes. O aluno reproduz os movimentos e a
aprendizagem se dá por meio da simples observação dos mesmos. Por isso a

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importância da experiência anterior dos alunos e facilidade dos mesmos em realizar
uma organização do conjunto observado, que é o movimento pronto.

O método Global é indicado para esportes coletivos. Capoeira é uma atividade


que implica coletividade. Apesar de ser possível o treino individual ou em dupla, na
Roda de Capoeira, que é o objetivo maior da prática, é necessário um grupo de pelo
menos cinco pessoas: além dos dois jogadores, que travam conhecimentos no centro
da roda, há as pessoas que tocam os instrumentos (berimbau, pandeiro, atabaque ...)
e as que formam a roda e contribuem no coro, batendo palma, revezando com os
jogadores. O aprendizado ocorre nos treinos, mas também durante as rodas. Neste
caso, se dá exclusivamente pelo método Global, por meio da observação do conjunto.

No caso dos treinos de Capoeira realizados por meio do método Global, assim
como na Roda, o professor ou alunos mais adiantados apresentam os movimentos por
inteiro e o aluno iniciante os observa e tenta reproduzi-los. Essa é a forma tradicional
e mais antiga do ensino de Capoeira: no passado, os alunos mais novos aprendiam os
golpes apenas observando a prática de capoeiristas mais experientes no treino ou na
Roda de Capoeira. Até então eu só havia tomado conhecimento deste método para o
ensino da Capoeira, que havia aprendido com meu professor e, por isso, acabei
reproduzindo com meus alunos. No entanto percebi que, se o método era suficiente
quando utilizado em academias de ginástica para um público jovem-adulto, por outro
lado, o mesmo não ocorria em um ambiente como o de um projeto social que atende
crianças e adolescentes de 5 a 15 anos, algumas sem nenhum contato anterior com a
Capoeira.

Falta de experiência anterior dos alunos, influências do ambiente, tensões de


natureza psicológica, entre outros itens, influenciavam negativamente no
aprendizado. A dificuldade de concentração dos alunos, bem como o diferente nível de
percepção dos mesmos, eram entraves para o ensino da Capoeira por meio do
método tradicional-global.

No trabalho com a capoeira aqui relatado, além da idade, problemas de origem


psicológica favoreciam a falta de concentração: o projeto Quero-Quero atende alunos
do Jardim Paranapanema, região extremamente carente da cidade de Campinas. São
crianças e adolescentes que enfrentam não só problemas de origem econômica, mas
também de origem social: vindas de famílias desagregadas ou desajustadas (algumas
com pais alcoólatras ou envolvidos com o crime).

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O local das aulas e a falta de equipamentos disponíveis também prejudicavam
o aprendizado: o ensino ao ar livre propiciava maior dispersão do aluno, ao contrário
do que nas aulas praticadas no ambiente fechado de uma academia, rodeado de
espelhos e equipamentos que auxiliavam a atividade.

Novamente nos remetendo a Xavier(1986), o método Global traz vantagens


para o aluno mais adiantado como participação do corpo, oportunidade de expressão,
continuidade entre os exercícios, melhora do ritmo e maior motivação. Entre as
desvantagens está a limitada progressão técnica dos exercícios. Para os alunos
iniciantes, no caso as crianças e adolescentes do projeto, o método se mostrava
ineficaz. A complexidade de alguns movimentos motores da Capoeira também exigiam
um método de ensino mais direcionado do que o Global, que é indicado para
movimentos de fácil execução como correr, arremessar etc .

Todos esses fatores tornavam o aprendizado monótono e demorado – os alunos


não se interessavam e levavam até quatro meses, com aulas semanais, para
apreender os movimentos básicos. Apesar de meu esforço em passar meus
conhecimentos, sentia-me extremamente frustrado com os resultados adquiridos.

A Descoberta dos Métodos Parciais na Capoeira

Em 2001, dois anos após a minha experiência com as crianças do projeto


Quero-Quero, comecei a trabalhar em outros projetos sociais como sociais como
União Cristã, no Jardim São Marcos e para a comunidade do bairro Três Marias só que
agora com uma nova visão do ensino da Capoeira para crianças e adolescentes.
Durante viagens para a Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais onde participei de
workshops e cursos de Capoeira e pude ter contato com o trabalho de mestres
respeitados no meio capoeirístico do País, constatei a existência de métodos
alternativos para o ensino da Capoeira para esse público específico, como a
valorização do lado lúdico da atividade.

Essa forma lúdica com que os mestres trabalhavam os movimentos da Capoeira


era essencial para obter a atenção e concentração da criança, despertando sua
curiosidade. Fazendo associações com animais, elementos da natureza ou resgatando
histórias do folclore infantil, os mestre “brincavam” de Capoeira com seus alunos. Por
exemplo: dizia que a perninha de uma criança era um galho que tinha que passar por
debaixo dos pés do seu amigo, que era o sapo. Enquanto o galho passava, o sapo
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pulava. Assim, sem perceber, a criança trabalhava um dos movimentos de capoeira
mais tradicionais que é a rasteira (o movimento da perna, que era um galho) e
também os tempos de reação (o pulo do sapo para fugir da rasteira).

A partir daí, comecei a “brincar mais” durante as aulas, tentando adaptar


brincadeiras do dia-a-dia das crianças aos movimentos de Capoeira, descobrindo
outras formas de ensino. De fato, constatei maior atenção e participação dos meus
pequenos alunos durante as aulas, que já não eram mais monótonas e, sim,
divertidas. Assim, em 2005, de volta ao Projeto Quero-Quero, comecei a utilizar essa
forma de ensino que estava praticando com alunos de outros projetos.

No entanto, as “brincadeiras” resolviam apenas uma parte do problema no


ensino da Capoeira: conseguia a atenção das crianças , que realmente aprendiam
alguns movimentos, como a rasteira, descrita acima, e outros mais simples durante as
aulas, mas não conseguiam apreender os movimentos mais complexos. O problema é
que eu continuava utilizando somente o método Global – por meio da brincadeira,
apresentava o movimento por inteiro aos alunos, que tentavam reproduzi-lo – e este
se mostrava insufiente. Foi aí que comecei a passar os movimentos por meio do
método Parcial.

Para Xavier (1986), este método, que se enquadra na Teoria Associacionista ou


Parcial, consiste em ensinar uma destreza motora por partes para depois uni-las entre
si. Há uma fragmentação do movimento e aquisição progressiva de costumes. Ao
contrário do método Global, que aciona o sistema nervoso central, o método parcial
aciona partes do sistema nervoso periférico do aluno. A aprendizagem se dá por
esquemas de estímulo (por parte do professor) e resposta (por parte do aluno), por
tentativas (ensaios e erros). De acordo com Xavier, o método parcial traz vantagens
para o aluno que tem capacidade de atenção pequena e dificuldade em reter idéias,
características recorrentes em crianças e adolescentes.

Desta forma, para ensinar alguns movimentos complexos de Capoeira, optei por
utilizar o método Parcial: fragmentava o movimento em várias partes e ia passando-
as uma por uma. Por exemplo, ao mostrar como se faz uma meia-lua-de-compasso,
primeiro pedia para que o aluno virasse de costas para seu colega, depois colocasse
as mãos no chão, olhando o amigo por debaixo das pernas, após isso levantasse a
perna esquerda, e assim por diante.

Percebi também que os alunos aprendiam após ensaios e erros, segundo a


Teoria Conexionista. Após a explicação e demonstração do professor (estímulo), os

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alunos ensaiavam diferentes tipos de respostas (repetindo o exercício), eliminavam as
inadequadas e fixavam as adequadas.

Métodos de Ensino em Educação Física: a Construção do Método Misto no


Ensino da Capoeira.

Assim como o método Global, o método Parcial, de “tentativa e erro”, foi e


ainda é utilizado intuitivamente por aprendizes e professores de Capoeira como eu
que, na época, ainda não havia freqüentado os bancos acadêmicos e, portanto, não
possuía conhecimento dos estudos científicos sobre o tema.

O capoeirista e pesquisador Nestor Capoeira cita a observação do mestre em


Educação Física e também capoeirista Ricardo Pena Machado sobre a relação entre a
arte da Capoeira e a ciência:

O aprendiz que quer dominar a arte da Capoeira utiliza também este ‘método’
de forma intuitiva; ele vai tentando dar (por exemplo) um aú, e, através das
tentativas e erros cometidos, o cérebro do aprendiz vai separando aquilo que foi
‘acerto’ do que foi ‘erro’, e o aú vai aos poucos sendo feito mais corretamente
(CAPOEIRA, Nestor, 2001, p 179)

Apesar de útil na aprendizagem de movimentos corporais mais complexos, o


método Parcial também mostrou desvantagens: o aluno, ao realizar exercícios
fragmentados, não tomava conhecimento do objetivo do movimento, o que causava
uma desmotivação. Apesar de aprender os golpes, eles não sabiam sua finalidade
nem como usá-los numa Roda de Capoeira.

Foi aí que optei pelo método Misto que, como foi explicado no início deste
trabalho, consiste em ensinar uma destreza motora utilizando os dois métodos: o
Parcial e o Global. Nesta época (2004), já estava de volta ao projeto Quero- Quero e
trabalhando para a Prefeitura de Campinas no Projeto Capoeira Na Escola, promovido
pela Secretaria Municipal. Assim, no início da aprendizagem, por meio de
“brincadeiras” e jogos infantis eu adotava o método Parcial, passando movimentos
fragmentados, num aprendizado gradual. Depois de algum tempo, quando as crianças
já tinham adquirido um conhecimento básico dos movimentos da Capoeira, eu
adotava o Método Global: mostrava o movimento como um todo e nomeava-o para
que os alunos entrassem em contato com o vocabulário da Capoeira.

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Desta forma, as crianças iam aos poucos executando e compreendendo a
finalidade de movimentos como “martelo”, “meia-lua-de-frente”, “meia-lua-de-
compasso”, “rasteira” e “cabeçada” (que são golpes de ataque); “aú”, “volta ao
mundo”, “giro de mão” (movimentos de floreio) e as esquivas, “cocorinha” etc
(movimentos de defesa). Neste estágio, os alunos podiam participar da Roda de
Capoeira, interagindo com o colega de “jogo” por meio do reflexo e destreza corporal.

Após essas duas fases, algumas vezes ainda voltava novamente ao método
Parcial para que o aluno pudesse aperfeiçoar a técnica do movimento ou quando ele
não havia compreendido alguma parte do mesmo.

Percebi bastante progresso por parte dos alunos adotando essa forma diferente
de ensino da que eu estava habituado. No entanto, ainda sentia dificuldades com as
crianças principalmente em relação ao entendimento das instruções e explicações que
dava sobre os golpes da capoeira.

Métodos de Ensino em Educação Física e Capoeira: Ampliando Possibilidades


a Partir da Técnica de Desenhos.

Segundo Gallahue e Ozmun (2003, p. 367), “os indivíduos que trabalham com
crianças devem reconhecer que o desenvolvimento perceptivo é crucial para o
desempenho motor bem sucedido”. O autor define o termo percepção como a
habilidade de interpretar informações. Ainda a partir dos estudos dos autores, pode-se
inferir que a prática da Capoeira, seja por meio do método Global, Parcial ou Misto,
proporciona os seguintes benefícios ao seu praticante:

1) Percepção corporal ou imagem corporal ou esquema corporal:

Habilidade de diferenciar as parte do corpo e obter maior entendimento da


natureza dele. De fato, os movimentos da capoeira contribuem para uma maior
conscientização corporal, promovem um conhecimento do que as partes do corpo
podem fazer e de como fazer as partes do corpo se movimentarem eficientemente, ou
seja, desempenhar uma tarefa motora como um salto, uma esquiva ou golpe de
ataque.

2) Percepção espacial: conhecimento de quanto espaço o corpo ocupa:

Habilidade de projetar o corpo no espaço. Essa habilidade é muito exigida na


Capoeira principalmente porque o jogo ocorre numa roda, um espaço circular
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delimitado pelo grupo de pessoas que formam o coro e pelos que tocam os
instrumentos. O jogador tem que se deslocar dentro daquele espaço, executando seus
golpes e esquivando-se dos golpes do outro jogador, sem atingir os outros
participantes de fora da roda e evitando ser atingido pelo adversário.

3) Percepção Direcional: capacidade de dar dimensão a objetos que estão no


espaço externo:

Os conceitos de direita e esquerda, pra cima e para baixo, topo, fundo, dentro,
fora, em frente, atrás aperfeiçoam -se por meio de atividades motoras que enfatizam
a direção. A direção é dividida em habilidades de direcionalidade e lateralidade. A
lateralidade e a direcionalidade também são constantemente trabalhadas na Capoeira,
pois os golpes têm uma direção, um objetivo, um fim (vão da direita para a esquerda
ou vice versa) . No caso do método de ensino por meio de desenhos, essas
capacidades são trabalhadas mais eficazmente, pois o aluno utiliza as figuras para
distinguir direita de esquerda etc.

4) Percepção temporal: coordenação

Tudo que fazemos possui um elemento de tempo, parte do inicial para o final . O
ritmo é o aspecto básico mais importante para o desenvolvimento de um mundo
temporal estável. Na Capoeira, o ritmo dos exercícios é marcado pela música, pela
batida do atabaque, pelo som do berimbau, do pandeiro e do agogô. É o ritmo do
berimbau que comanda a roda de Capoeira. Ele indica ao jogador a hora certa de
entrar e sair da roda e o tipo de jogo a ser praticado, se de Angola (mais lento, com
movimentos de chão) ou Regional (mais rápido, pedindo golpes de ataque e defesa
velozes), entre outros. Numa época em que a Capoeira era marginalizada, os toques
de berimbau também tinham a função de “avisar” os participantes da roda sobre a
chegada da polícia ou de elementos de grupos adversários.

5) Percepção visual

Além de aguçar inúmeras percepções dos praticantes, citadas anteriormente, o


ensino da Capoeira, por meio do método de desenhos, enfatiza principalmente o
desenvolvimento da percepção visual do aluno. Além das instruções orais dadas pelo
professor (informação apresentada auditivamente) e da execução do movimento por
parte do professor (informação cinética e visual), o método que desenvolvo reforça a
apresentação da informação pelo método visual, pois alia as instruções orais de como
efetuar os movimentos aos desenhos.

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Numa aula de capoeira dada a adultos, por exemplo, explica-se que, para se
fazer uma meia-lua-de frente, posiciona-se a perna direita paralelamente à esquerda
e levanta-se a esquerda fazendo um movimento da esquerda para a direita (ou vice-
versa). Com crianças de cinco, seis, sete anos, essas explicações eram complexas e
muitas vezes inúteis. Palavras como paralelo, flexionado, semi-flexionado, direita e
esquerda etc não tinham nenhum significado para elas.

As explicações numa aula de Educação Física, segundo Xavier (1986), devem


ser pequenas, claras e exatas e progressivas. Mas o que é claro para um público
adulto não o é para um público infantil. Senti então que precisava criar uma nova
“linguagem”, uma nova forma de explicar os exercícios que pudesse ser compreendida
facilmente pelas crianças e, portanto, não pedisse termos técnicos da Educação Física
ou tivesse um vocabulário formal e culto.

Foi então que, em 2005, comecei a utilizar nas aulas desenhos com figuras de
diferentes formas e cores, para a aprendizagem dos movimentos iniciais da Capoeira.
Na ocasião, além do projeto Quero-Quero, comecei a trabalhar com crianças do
projeto Anhumas e do colégio Objetivo de Campinas, onde permaneço até hoje.

Com esta técnica senti uma melhora e rapidez significativa na apreensão dos
golpes da Capoeira. O que levava de quatro a seis meses para ser absorvido pelos
alunos agora havia passado há dois meses apenas.

A técnica de desenhos no aprendizado de movimentos de Capoeira consiste na


utilização de imagens de símbolos como lua, estrela, sol; ou figuras geométricas; ou
formas com cores variadas riscadas no chão que servem de guia para os alunos
aprenderem as bases de movimentações como ginga, aú ou golpes de Capoeira. No
comando do professor, o aluno posiciona o corpo em cima das figuras que estão
dispostas de modo a induzir o exercício proposto. Por exemplo, para fazer o golpe
chamado meia-lua-de frente, o professor pede ao aluno que coloque a perna que está
atrás (a perna direita, por exemplo) na estrela (e assim ele se posicionava com as
pernas paralelas) e que levante a que está na lua (a esquerda) e a movimente em
direção à mesma estrela (ou seja, da esquerda para a direita), configurando o
movimento. Com o tempo e progresso dos alunos, vai-se “nomeando” os golpes da
capoeira (com frases como “Isso mesmo, você está fazendo um martelo”) e
gradativamente retira-se os desenhos até que o movimento se torne automático.

Neste estágio, os exercícios passam a ser realizados sem o auxílio dos desenhos
e com o acompanhamento musical do berimbau: o aluno ginga (movimento básico da

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Capoeira de onde partem todos os outros) e, ao repique do instrumento, tenta
executar os golpes assimilados por meio da técnica de desenhos. A partir do momento
que o aluno adquire familiaridade com os movimentos, o professor começa a explicar
seus objetivos e funções dentro do contexto da Capoeira e ele passa a executá-los no
jogo com um colega, na Roda.

Além de auxiliar na explicação da atividade a ser realizada pelas crianças na


aula, facilitando o entendimento dos movimentos propostos pelo professor, a técnica
de desenhos possibilita um maior desenvolvimento motor-perceptivo do aluno, já que
alia o movimento corporal à percepção visual.

Este artigo sinaliza para intensificação das possibilidades de desenvolvimento


da capoeira e pela capoeira de crianças e adolescentes com a inclusão da técnica de
desenhos no processo de ensino e aprendizagem. Piaget (1990) relacionou o
desenvolvimento da percepção a partir de sensações rudimentares e sem significação
para impressões de um mundo espacial estável. Seus estágios de desenvolvimento
(sensório- motor, pré-operatório, operações concretas e operações formais) baseiam-
se principalmente em informações motoras. À medida que o mundo perceptivo
desdobra-se, as crianças buscam estabilidade (adaptação) e reduzem a variabilidade.

Ainda segundo Galahhue (2003), o movimento desempenha papel importante


no processo de desenvolvimento da aptidão perceptiva de tarefas cognitivas, ou seja,
a ação é a forma-motora do desenvolvimento das estruturas cognitivas. Nos quatro
estágios de desenvolvimento propostos por Piaget fica clara a importância das ações
do indivíduo no processo de aprendizagem. No primeiro estágio (sensório-motor), as
ações concretas sobre objetos concretos resultam na formação de esquemas mentais;
e no último estágio, as ações abstratas (operações) sobre objetos abstratos
respondem pela constituição dos conceitos.

Mas é no estágio pré-operatório (ou Inteligência Simbólica), quando se dá a


aquisição da linguagem, que ocorre um salto no desenvolvimento motor-perceptivo do
indivíduo. É nesta fase que surge, na criança, a capacidade de substituir um objeto
por uma representação, graças à função simbólica . Em seguida, a criança passa para
o estágio operatório- concreto, no qual conseguirá abstrair dados da realidade,
desenvolvendo noções de espaço, tempo, velocidade, ordem, causalidade etc. Mas
ainda depende do mundo concreto para abstrair. É nesta fase também que ocorre o
desenvolvimento da reversibilidade, isto é, a capacidade de representação de uma
ação no sentido inverso de uma anterior, anulando a transformação observada. No

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estágio operatório-formal a criança não depende mais da observação da realidade
para abstrair, aplicando o raciocínio lógico na solução de problemas.

A pesquisa-ação aqui apresentada envolve crianças e adolescentes de cinco a


15 anos, portanto, compreende principalmente os estágios pré- operatório,
operatório- concreto e operatório-formal. No primeiro caso, a utilização de desenhos
representando diferentes símbolos no chão como guia para a realização de exercícios
de Capoeira desenvolve, além da capacidade motora da criança, sua habilidade de
representação.

Os símbolos são como indicações e marcações de movimentos corporais a


serem executados. Os desenhos funcionam como uma ponte entre a proposta do
professor e o movimento, facilitando a aprendizagem de noções de lateralidade
(direito-esquerdo). A aprendizagem se dá da seguinte forma: o aluno realiza o
movimento corporal guiando-se pela imagem de uma estrela, lua (ou círculos de
diferentes cores, por exemplo), no chão. Depois que este movimento se torna
automático (adaptação), o professor vai introduzindo novos conceitos
(esquerda/direita) que são assimilados também gradualmente pelos alunos.

Observou-se grande aceitação por parte dos alunos em relação à nova


estratégia de ensino, com o auxílio dos desenhos, assim como rápida evolução na
aprendizagem dos movimentos específicos da capoeira. O sucesso desta técnica
relaciona-se com o fato do professor agregar um novo estímulo na apresentação das
tarefas: o visual, apontado por Piaget (1990) pela sua destacada importância nos
processos de aprendizagem:

O modo de aprendizagem mais eficiente parece ser o visual, mas quando as


informações são apresentadas ou processadas por dois ou mais módulos
simultaneamente, a aprendizagem melhora visivelmente. As crianças têm
probabilidade de aprender mais se as informações forem apresentadas cinética,visual
e auditivamente, ao mesmo tempo, do que se forem apresentadas por apenas um
modulo de cada vez. (PIAGET apud GALAHHUE, 2003, p. 374)

Considerações Finais

A escolha do método de ensino ideal e dos procedimentos a serem realizados


durante as aulas - que variam de acordo com o a atividade a ser praticada, número de
alunos, idade, local e infra-estrutura disponível (conforme Xavier 1986)- são um
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grande passo para a eficácia do aprendizado não só na Educação Física mas também
durante as aulas de Capoeira. Manifestação da nossa cultura popular,
tradicionalmente seu ensino se dá por métodos aplicados intuitivamente por mestres e
professores-e com sucesso. No entanto, o conhecimento científico, aliado à
experiência empírica, pode ser um aliado ao permitir a análise das variáveis que
influenciam na relação professor-aluno e auxiliar na escolha da melhor forma de
atuação por parte do professor. O desenvolvimento de novas técnicas de ensino,
neste sentido, também só traz benefícios. No caso da técnica de desenhos descrita
neste artigo, esta atende a um público específico – o infantil-e é de grande valor na
comunicação entre professor e aluno.

Referências Bibliográficas

CAPOEIRA, N. Capoeira: Galo Já Cantou. Rio de Janeiro: Record, 1999.

____ Capoeira: Os Fundamentos da malícia. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GALAHHUE, D L; OZMUN, J C. Compreendendo o Desenvolvimento Motor: Bebês,


Crianças, Adolescentes e Adultos. São Paulo: Phorte, 2003.

PIAGET, J. A Formação do Símbolo na Criança: Imitação, Jogo e Sonho, Imagem e


Representação. Rio de Janeiro: LTC, 1990.

SOARES, C.E.L. A Capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de


Janeiro. Campinas: Unicamp, 2002.

XAVIER, T.P. Métodos de Ensino em Educação Física. São Paulo: Manole, 1986.

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