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MEMÓRIAS DE QUANDO GURI

por Caio T. Resende


“Quando a lua nasceu no céu, não tinham nome céu e lua. Só depois veio o Homem...”
I

Hoje tenho a mão mais leve, cansei de pesar sobre as coisas o que meu peito e alma não
puderam. Levo inda, por baixo de um segredo, um par de coisas de que tenho medo, são coisas
bobas de menino, como, por exemplo, ficar de ponta cabeça e ver alguém se aproximando – parece
bobo, mas o que esperar de gente com a cabeça tão no céu? E tenho medo dos caminhos mais
seguros, desde muito, muito menino, pois lá é que sempre as coisas ficam chatas, ficam como se
sempre fossem a mesma coisa. Lá, os rios pararam de correr e os meninos chovem para dentro.

II

Quando eu tinha seis anos – e isso vibra como fosse agora – eu vivia numa cidade que era
muito menor do que esse seu quarto – as cidades são sempre pequenas quando se sente saudade –,
tinha lá, quase do lado, uma bruxa que morava. Aos seis anos de idade eu descobri que bruxas são
pessoas e que mães não deviam ficar longe de seus filhos.
Tinha também um canteiro no meio da rua, onde descansavam árvores pobres de folha, onde um
bando de meninos rotos virava euforia toda vez que de suas pedras naquelas árvores um
passarinho se extinguia. Aos seis anos de idade eu descobri que, por vezes, também os meninos
podem ser bruxa.

III

Eu nunca gostei de estudar. Ia só por medo das palmadas, achando um absurdo alguém
levar palmadas só por não gostar de alguma coisa. Era um colégio feito de freiras o primeiro
colégio da minha vida; lá, era regra que, sempre ao chegar, todos os meninos deviam se por em fila
e rezar para Deus abençoar o dia de cada aula. Só que isso nunca deu certo. Ao menos não para
mim. Mesmo com o passar das rezas, as aulas eram chatas cada vez, e, para piorar as coisas, os
meninos do colégio deixaram de falar comigo por eu ter sido pego tirando meleca. Depois do
colégio, passei a pensar que Deus não gosta de meninos e menos ainda daqueles que tiram meleca.
E por ficar tanto tempo ao sol, rezando para nada, cogitei que talvez o próprio Deus pudesse ser
bruxa.

IV

Nunca houve um dia em que eu não pensasse nela. E quando as cidades são pequenas,
quando ficam pequenas por conta da saudade, o sol das seis horas sempre traz alguma lágrima.
Parecia uma enorme abóbora o sol daquele dia, dizem que por causa de detritos é que ele brilha
naquela cor. No entanto, para mim, não tratava de ser isso: era o vestido dela que brilhava lá no
céu – para os meninos, todos os vestidos são vestidos de mãe. Eu pensava que no mundo só as
mães não eram bruxa.

Contara-me que, num dia qualquer, ganhara de sua mãe o primeiro par de sapatos. Eram
sapatos brancos os que ela ganhara, e tão tardiamente – só aos sete anos veio seu primeiro par.
Eram sapatos usados os seus primeiros sapatos, e vinham de uma longa linhagem de três pares de
pés de menina. Ela disse o tamanho de sua alegria, mas que um daqueles sapatos tinha o saltinho
solto de tantos caminhos. Foi necessário um prego no meio do saltinho, para então, no seu vestido
– e vestida de toda alegria –, ir à festa da padroeira e ter seu sonho por um dia; mesmo fustigada
por aquele prego, mesmo aos sete anos, com seu pé em estado de cruz. Com ela eu entendi o
porquê de todas as mães serem meninas.
VI

Caiam todas lá do teto, como fosse nuvem o telhado. E logo a minha tia incitou-me que
fosse e me banhasse com um daqueles bocados. Era uma chuva de balinhas de maçã, e como nunca
se viu na terra. Acontecimento maior não haveria de ocorrer para um guri. Nem a passagem de um
cometa, nem um eclipse da lua, nem o voo de um avião-pelota, poderiam causar espanto maior do
que o daquela chuva. Hoje, passados vinte anos, sou eu o único a recordar, nenhum deles, tia, avó,
avô, lembram mais daquele dia. Dizem que foi invenção ou coisa minha da cabeça, o que para mim
dá no mesmo: a maioria dos adultos esquece os sonhos de criança.

VII

Quando ela voltou, trazia na bagagem uma mola-maluca. Também um menino ela trazia, e
esse passou a ser meu irmão. Já era tarde quando retornei da formatura – finalmente me via livre
do colégio – e a cidade já não era tão pequena. Não lembro quando foi que a olhei, nem que roupa
mesmo ela usava, mas durante muito tempo amei uma franja sobre a testa. Quando a saudade
termina há detritos no horizonte e o sol já não parece uma abóbora.

VIII

Todas as meninas tinham bonecas de pano, mas com ela as coisas iam de outro modo: sua
boneca era um tijolo – um tijolo de vestido, para ser mais exato. O seu pai não podia dar-lhe
bonecas e por isso fazia vestidinhos para alguns tijolos que, então vestidos, ganhavam nomes e
comiam sopa de lama. Ela era contente de suas bonecas e nunca fazia fé de perceber que na
verdade eram tijolos. Corria pela casa com sua Maria, dava-lhe chá e sopa de lama. O único
problema era quando de sua mão escapulia-lhe a pobre amiga que, saindo do seu encanto de
boneca, ao acerta-lhe o pequeno pé, voltava então a ser tijolo. Mais tarde pensou de seus amores
que também alguns afetos, assim como Maria, eram feitos de tijolo.

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