Analise de Discurso e Interpretacio
pRESSUPOSTOS
Este tema foi objeto de um livro que escrevi (E. Orlandi, 1996)
objetivando explicitar o lugar da interpretagio na andlise de discurso.
Neste capitulo retomo este tema naquilo que ele tem de util na com-
preenso da relagio di scurso/texto.
‘A nogio de interpretagao passa por evidente quando, na realida-
de, cada teoria Ihe ddum sentido diferente de acordo com os diferen-
tes métodos praticados.
Partirei de trés pressupostos: a. nao hd sentido sem interpretagdo; b.
ainterpretagao estd presente em dois niveis: o de quem falae ode quem
analisa, ec. a finalidade do analista de discurso nao € interpretar mas
compreender como um texto funciona, ou seja, como um texto produz
sentidos. E preciso lembrar que nesta filiagdo terica nao hd sentido em
si,o sentido sendo definido como “relagao a” (Canguilhem, 1976).
Como ainterpretagéio tem uma relagao fundamental com amaterialidade
dalinguagem, as diferentes linguagens significam diferentemente: sdo assim
distintos gestos de interpretagdio que constituem a relacao com o sentido
nas diferentes linguagens. Aqui, limitar-nos-emos a linguagem verbal.
A incompletude é caracterfstica de todo processo de significa-
Gao. A relagio pensamento/linguagem/mundo permanece aberta,
sendo ainterpretac’io funcao dessa incompletude, incompletude que
Consideramos como uma qualidade e nao um defeito: a falta, como
'emos dito em abundancia, é também o lugar do possfvel na lingua-
gem. E isto que chamamos “a abertura do simbélico”, a qual junta-
4 fato ‘de que a questio do sentido é uma questao que nao se
Pois é uma questo filoséfica (P. Henry, 1981). Em outras pa-
19‘o nodal em que a Lingiifstica tem a ver com
Sociais (M. Pécheux, 1975).
Uma conseqiléncia desta abertura — apesar do fantasma de um
fechamento sobre um objeto total -éa dispersao inevitavel das
ciéncias humanas ¢ sociais, pelo proprio fato de que essas ciéncias
sido afetadas necessariamente pela incompletude propria ao sujeito
eallinguagem. Situando a Andlise de Discurso em relagao a esta
dispersiio e a0 campo da Lingtiistica, em meu trabalho, a dispersio
eaincompletude sao tratadas nos limites moventes e tensos entre
pardfrase e polissemia, os dois eixos que sustentam 0 funciona-
mento da linguagem e que constituem 0 movimento continuo da
significagdo entre a repeticdo e a diferenga. Entretanto, como vere-
mos mais adiante, nao é porque o processo de significagao é aber-
to que nao seria regido, administrado. Ao contrario, € justamente
pela abertura que ha determinagio: 14 onde, a lingua, passivel de
jogo (ou afetada pelo equivoco) se inscreve na historia para que
haja sentido. O que chamamos discursividade é justamente a ins-
crigio dos efeitos da lingua na historia (cf. abaixo a definigao de
discursividade por M. Pécheux). E neste sentido que a analise de
discurso trabalha a relagdo da lingua com sua exterioridade. Estas
consideragGes preparam 0 deslocamento do modo como foi trata-
da a ideologia, e a questdo da interpretagao, tal como a concebe-
mos, trabalha este deslocamento.
lavras. o sentido é0 pont
a Filosofia e as Ciéncias
A QUESTAO
A Anilise de Discurso francesa, que tem sua origem nos anos
60, surge em um contexto intelectual afetado por duas rupturas.
Deum lado, com o progresso da Lingiifstica, era possivel nao
mais considerar o sentido apenas como contetido. Isto permitia a
anilise de discurso no visar o que o texto quer dizer (posigao
tradicional da andlise de contetido face a um texto) mas como um
texto funciona. De outro, nesses mesmos anos, hd um desloca-
mento no modo como 0s intelectuais encaram a “leitura”. Este
fato pode ser pensado a partir de trabalhos como os de Althusset
(Ler Marx), de Lacan (a leitura de Freud), de Foucault (a Arque
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yg—
.- glogia). de Barthes (a relagéo leitura/escritura). HA que designo
como suspensao da nogio de interpretagao. A leitura aparece
nao mais como simples decodificagdo mas como a construgao de
um dispositivo tedrico. Pensando-se em termos de arquivo, eu
giria que aciéncia também passa a pensar (a construir) seus ar-
quivos, suas maneiras de ler. A nogao de “dispositivo” tem, para
mim, um sentido preciso que leva em conta a materialidade da
linguagem, isto é, sua ndo-transparéncia e coloca a necessidade
de construir um artefato para ter acesso a ela, para trabalhar sua
espessura semAntica — lingiifstica e histérica—em uma palavra,
sua discursividade. Reconhece-se a impossibilidade de se ter aces-
soaum sentido escondido em algum lugar atras do texto. A ques-
tao do sentido torna-se a questao da prépria materialidade do
texto, de seu funcionamento, de sua historicidade, dos mecanis-
mos dos processos de significagao. A Andlise do Discurso é a
disciplina que vem ocupar o lugar dessa necessidade tedrica, tra-
balhando a opacidade do texto e vendo nesta opacidade a pre-
senga do politico, do simbélico, do ideoldgico, o préprio fato do
funcionamento da linguagem: a inscrigao da lingua na historia para
que ela signifique. A idéia de funcionamento supoe a relaciio es-
trutura/acontecimento (M. Pécheux,1988), articulagao do que é
da ordem da lingua e do que deriva de sua historicidade, relagao
entre o que, em linguagem, é considerado estavel com o que é
Sujeito a equivoco.
A anilise de discurso ocupa assim esse lugar em que se reco-
nhece a impossibilidade de um acesso direto ao sentido e que tem
como caracteristica considerar a interpretag’io como objeto de
Teflexdo. Ela se apresenta como uma feoria da interpretagdo no
Sentido forte. Isto significa que a andlise de discurso coloca a
questao da interpretacdo, ou melhor, a interpretago é postaem
duestao pela andlise de discurso. Assim como os sentidos sd
ce ere aberta (nao temos acesso a sentido enquanto va
sentido ees ele nao se fecha pois nesta filiagdo tedrica nao ha
fech, em si) do Mesmo modo, penso, a interpretagao nao se
a. Temos a ilusdio de seu fechamento quando em realidade
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