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Ídolos caídos
A minha adolescência é cada vez mais uma história antiga, cada vez mais povoada por
memórias de mortos, cada vez mais o relato de quem está a envelhecer
MARTA CAIRES / 03 DEZ 2017 / 02:00 H.

O aviso da notícia de última hora estremece no telefone e vejo que morreu o Zé Pedro dos Xutos, ídolo fugaz dos meus 17
anos, do concerto cancelado pela chuva e da desilusão à porta, ali no antigo Batalhão. Os planos de pular ao som da música,
eu que até tinha decorado os versos, a carga metida nos contentores, mesmo pronta para o outro mundo e, no fim, a noite não
passou de umas cervejas e tremoços nos bares da marina.

Não devia ser ainda meia noite quando subi os degraus da entrada naquela roupa de improviso, umas calças de ganga que
implorei à minha mãe que apertasse nas pernas e um lenço vermelho desencantado entre tralha esquecida no armário das
minhas tias. E cheirava a terra molhada e a cabeça doía-me assim ao de leve quando me deitei certa de que os Xutos eram
meus. O concerto seria sempre um detalhe, uma história minha e dos outros todos que ficaram à porta.

Agora as notícias de última hora do telefone anunciam a morte do Zé Pedro, que era guitarrista e tinha todas qualidades de
um ídolo, e tudo parece triste. Não falo da música, nunca soube distinguir a pop e o rock, a minha instrução musical é básica,
mas isto dos Xutos é de outra dimensão, são os meus 17 anos e é difícil explicar os sonhos, as ideias, a visão de mim e do
mundo que encerram. Foi o ano em que decidi muito e até que ia estar sempre do lado dos anti-heróis, dos espíritos inquietos
e muitas vezes imperfeitos.

Os Xutos & Pontapés tinham isso, encarnavam a época, aquele fim dos anos 80 e uma geração sem slogans políticos e
causas, a quem sobrava a vida de todos os dias. Também sobrava o medo de uma guerra nuclear, da SIDA e um sentimento
de orfandade. Os pais não nos entendiam, os professores não nos viam talento e os políticos tinham o mais o que fazer para
perder tempo connosco. E nós fomos ouvir outras vozes, eu tive o Xutos e depois a poesia de Pessoa antes de me render ao
cinema e à literatura, antes de me vestir de preto para provocar e provar a minha existência.

As canções e os poemas, os filmes do Cine Fórum e os livros da Livraria Esperança ancoraram-me, deram-me um lugar onde
pertencer, explicaram-me sentimentos, deram sentido ao que me parecia desalinhado, falaram mais fundo, às vezes mais do
que o meu pai e a minha mãe, ainda mais naqueles anos, quando me pareciam tão longe de mim, tão diferentes, tão de outro
tempo e de outro mundo, quando os filmes passavam em sessão dupla na Casa do Povo e dançar só a rumba e a valsa. O meu
pai dizia muitas vezes que as danças modernas eram esquisitas, não eram “mais do que abanar o capacete”.
E o que me resgatou desta orfandade aconteceu naquela noite de chuva miudinha e cheiro a terra molhada, naquele
desapontamento e nas primeiras cervejas na marina, num azar que marcou o meu caminho para ser quem sou. Não foi um
músico conhecido que morreu, um talento do rock, um comendador, foi perceber que a minha adolescência é cada vez mais
uma história antiga, cada vez mais povoada por memórias de mortos, cada vez mais o relato de quem está a envelhecer.

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